1 DANILO WENSESLAU FERRARI BORDALO PINHEIRO, MONTEIRO LOBATO E A CIRCULAÇÃO (INTER)NACIONAL DE CARICATURAS ASSIS 2018 2 DANILO WENSESLAU FERRARI BORDALO PINHEIRO, MONTEIRO LOBATO E A CIRCULAÇÃO (INTER)NACIONAL DE CARICATURAS Tese apresentada à Universidade Estadual Paulista (UNESP), Faculdade de Ciências e Letras, Assis, para obtenção do título de doutor em História (Área do Conhecimento: História e Sociedade). Orientadora: Profª. Drª. Tania Regina de Luca Bolsista: Programa de Doutorado Sanduíche no Exterior (PDSE) / Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior - Brasil (CAPES), entre maio e agosto de 2017. Processo n. 88881.134403/2016-01. Código de financiamento 001. ASSIS 2018 3 4 5 Ao Rô e Dú. 6 AGRADECIMENTOS À Universidade Pública, responsável pela formação superior de qualidade no Brasil, apesar dos tempos sombrios em que vive o país. À professora Tania Regina de Luca, orientadora desde os tempos de graduação, a quem devo muito mais que os acertos deste trabalho. As palavras não seriam suficientes para expressar gratidão por tanto apoio até aqui. Ao professor Júlio Rodrigues da Silva, orientador durante o estágio no exterior, pela boa acolhida em Lisboa e pelas sugestões bibliográficas essenciais que tornaram possível a continuidade da pesquisa. Aos professores da banca de qualificação e defesa, Zélia Lopes da Silva, João Luís Ceccantini e Márcia Naxara pela leitura atenta e sugestões indispensáveis. Ao amigo Miguel Zioli, pela leitura das primeiras versões e revisão do texto final. À equipe de trabalho do Museu Bordalo Pinheiro, em Lisboa, e do Centro de Documentação Alexandre Eulálio (CEDAE), na Universidade estadual de Campinas (UNICAMP), pelo atendimento humano e pela presteza em ajudar a encontrar a documentação necessária. Aos funcionários da Seção Técnica de Pós-Graduação da Universidade Estadual Paulista (UNESP/Assis), em especial ao José Lino Alves, assessor técnico do Programa de história. À rede municipal de educação de São José do Rio Preto – SP, pelo aprendizado profissional. Aos amigos, de perto e de longe, que sempre estiveram na torcida. Em especial, ao Leonardo Dallacqua de Carvalho, que abriu as portas da sua casa, de madrugada, quando precisei pernoitar em Assis - SP. À minha família, que soube entender as minhas ausências nesse período. Ao Edson Rodrigo, pelo companheirismo e pela paciência em conviver com o doutorando finalizando sua tese. O presente trabalho foi realizado com apoio da Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior - Brasil (CAPES) - Código de Financiamento 001. Bolsa do Programa Doutorado Sanduíche no Exterior (PDSE), processo n. 88881.134403/2016-01, que possibilitou a coleta de material indispensável para a pesquisa. 7 E em nada como na obra do caricaturista transluz mais diáfana a alma de uma nação1. 1 LOBATO, Monteiro. A caricatura no Brasil I. O Estado de S. Paulo. Ano XLI, n. 13.185, p. 04, 27 jan. 1915 (a) 8 FERRARI, Danilo Wenseslau. Bordalo Pinheiro, Monteiro Lobato e a circulação (inter)nacional de caricaturas. 2018. 503 f. Tese (Doutorado em História) – Universidade Estadual Paulista (UNESP), Faculdade de Ciências e Letras, Assis, 2018. RESUMO Este trabalho explora os diálogos transnacionais entre a obra do caricaturista português Rafael Bordalo Pinheiro (1846-1905) e a produção do escritor brasileiro Monteiro Lobato (1882-1948). O estudo centra-se no caso dos personagens Zé Povinho, figura que se eternizou na memória dos portugueses, como símbolo de certa identidade nacional, e do Jeca Tatu que se fixou enquanto representante jocoso do caipira brasileiro. Tais criações surgiram numa época de intensa discussão e (re)construção das identidades nacionais. Bordalo, que viveu no Rio de Janeiro por quatro anos, foi nome de destaque na imprensa periódica brasileira e internacional. Lobato, por sua vez, foi profundo conhecedor da cultura visual do seu tempo, tendo atuado como importante crítico de arte no cenário cultural paulista. Na época, a circulação da cultura, em escala transcontinental, já se tornara uma realidade devido ao avanço nas tecnologias de impressão e transporte. Assim, a pesquisa permitiu revisitar a obra de Bordalo Pinheiro a partir da sua mais famosa criação, tendo em vista os diálogos estabelecidos com outros artistas do traço, bem como a importância que a estada em terras brasileiras teve para o seu trabalho. Além disso, foi possível reavaliar o papel das referências estrangeiras, na produção de Lobato, em busca de um projeto político, cultural e artístico para o Brasil. Palavras-chave: Rafael Bordalo Pinheiro. Monteiro Lobato. Imprensa. Caricatura. Questão nacional. Circulação internacional. 9 FERRARI, Danilo Wenseslau. Bordalo Pinheiro, Monteiro Lobato and the (inter)national circulation of caricatures. 2018. 503 p. Thesis (Doctorate in History) – São Paulo State University (UNESP), School of Science and Languages, Assis, 2018. ABSTRACT This essay explores the transactional dialogues between the work of the Portuguese caricaturist Rafael Bordalo Pinheiro (1846-1905) and the production of the Brazilian writer Monteiro Lobato (1882-1948). The study focus on the case of the characters Zé Povinho, a figure that became eternal in the memory of the Portuguese people, as a symbol of certain national identity, and Jeca Tatu that was known as a lazy representative of the Brazilian “redneck”. Such creations appeared at a time of intense discussion and (re)construction of the national identities. Bordalo, who has lived in Rio de Janeiro for four years, was a name of highlight in the Brazilian and international periodical press. Lobato, in his turn, was a deep expert on the visual culture of his time, having acted as an important critic of art in the cultural scenery of São Paulo. At that time, the spread of culture, in transcontinental proportion, had become a reality due to the advancement of the technologies of printing and transportation. Therefore, the research allowed to revisit the work of Bordalo Pinheiro from his most famous creation, bearing in mind the dialogues established with other artists of the trace, as well the importance that living in Brazilian lands has had for his work. Besides that, it was possible to re-evaluate the role of foreign references in Lobato´s production, searching for a political, cultural, and artistic project for Brazil. Keywords: Rafael Bordalo Pinheiro. Monteiro Lobato. Press. Caricature. National Question. International Circulation. 10 SUMÁRIO INTRODUÇÃO p. 11 CAPÍTULO 01 – RAFAEL BORDALO PINHEIRO E O ZÉ POVINHO NO BRASIL p. 22 1. 1. Rafael Bordalo Pinheiro: um passeur cultural entre Portugal e o Brasil p. 22 1. 2. A criação do Zé Povinho p. 28 1. 3. Zunidos no Brasil imperial p. 49 1. 3. 1. O Mosquito e a chegada de Bordalo ao Brasil p. 50 1. 3. 2. A trajetória de O Besouro p. 61 1. 4. O Zé Povinho no Brasil p. 72 1. 4. 1. Rituais do poder p. 80 1. 4. 2. Em busca do povo brasileiro p. 102 CAPÍTULO 02 – DE VOLTA A PORTUGAL p. 123 2. 1. O Antonio Maria e Álbum das Glórias: uma caracterização p. 125 2. 2. O Zé Povinho de volta a Portugal p. 138 2. 2. 1. Entre a monarquia e a república p. 148 2. 2. 2. O lugar do povo p. 182 2. 2. 3. Colonialismo e patriotismo no jornal O Antonio Maria p. 206 CAPÍTULO 03 – CONTINUIDADE E RUPTURA: ZÉ POVINHO NO JORNAL PONTOS NOS II p. 243 3. 1. Colocando os Pontos nos ii p. 243 3. 2. Zé Povinho nas páginas dos Pontos nos ii p. 252 3. 2. 1. A continuidade da decadência p. 258 3. 2. 2. Patriotismo e culto ao progresso nos tempos do Ultimato p. 294 CAPÍTULO 04 – MONTEIRO LOBATO E A GÊNESE DO JECA TATU p. 330 4. 1. Monteiro Lobato: um artista em formação p. 330 4. 2. Letras portuguesas no itinerário formativo lobatiano p. 337 4. 3. Um escritor no mundo das imagens p. 360 4. 4. A criação do Jeca Tatu p. 417 CONCLUSÃO: PERSONAGENS NACIONAIS? p. 440 ACERVOS CONSULTADOS p. 446 REFERÊNCIAS p. 447 ANEXOS p. 459 11 INTRODUÇÃO Rafael Bordalo Pinheiro e Monteiro Lobato foram nomes de destaque nas artes e na cultura dos seus países. Bordalo, na caricatura e cerâmica, e Lobato, na literatura e na edição de livros, tornaram-se artistas conhecidos pela busca incessante do caráter nacional em suas obras. O caricaturista português criou o Zé Povinho como sátira do Portugal em decadência, no final do século XIX. O escritor paulista elaborou o Jeca Tatu, no início do XX, como caricatura literária do caboclo brasileiro. Apesar desses pontos em comum, Bordalo e Lobato viveram em locais e épocas distintas e não se conheceram pessoalmente. Quais diálogos poderiam existir entre as suas obras? O período entre 1875 e 1914 foi marcado pela afirmação das identidades nacionais, num contexto de avanço tecnológico e disputas neocolonialistas que culminaram na Primeira Grande Guerra Mundial. Portugal e Brasil tiveram de (re)pensar a identidade do seu povo e o lugar por ele ocupado no mundo moderno, diante dos novos arranjos internacionais. No Brasil, diversos intelectuais se empenharam em refletir sobre a questão nacional, em conexão com modelos europeus, questionando os fracassos do regime republicano, dilema potencializado pela proximidade do centenário da nossa independência.2 Naquela época, os sentidos de nação e nacionalismo variaram entre o sentimento ufanista, a partir do qual nutria-se orgulho pelas grandezas naturais do país, e a sensação pessimista, por conta do nosso atraso social e cultural.3 Monteiro Lobato (1882-1948), então fazendeiro e intelectual ainda pouco conhecido, tomou parte naqueles debates, ao criar a figura do Jeca Tatu, por meio dos artigos “Uma velha praga” e “Urupês”, publicados no final de 1914, no jornal O Estado de S. Paulo. Nesses textos, o escritor criticou os hábitos do caipira paulista na lida com a terra, traçando um perfil do caboclo como preguiçoso e doentio, um parasita, imagem que muito contrastava com a figura idealizada do homem do campo, cultivada pela tradição romântica. A crítica do autor rendeu polêmica nos meios culturais e trouxe reconhecimento ao autor. A partir de então, a figura do Jeca ultrapassou os limites regionais, tornando-se símbolo caricatural do brasileiro. O Jeca foi apropriado pela publicidade e, mais tarde, 2 OLIVEIRA, Lúcia Lippi. A questão nacional na Primeira República. São Paulo: Brasiliense; Brasília: CNPq, 1990. 3 CANDIDO, Antonio. Uma palavra instável. In: ________ Vários escritos. Rio de Janeiro: Ouro sobre Azul, 2013, p. 217-227. 12 pelo cinema e pela TV.4 A fama da personagem acompanhou Lobato ao longo de toda a sua vida e espreitou a figura de seu criador, após a sua morte, reaparecendo de tempos em tempos e reacendendo antigas polêmicas.5 O próprio Lobato revisitou seu personagem, e tentou recriá-lo, de acordo com as distintas posturas políticas que assumiu ao longo da vida.6 Porém, foi o Jeca opilado, de 1914, que se fixou no imaginário brasileiro: A imagem do Jeca Tatu opilado foi uma criação literária, que passou por um processo de apropriação pelo social, no momento de sua constituição e, mais que isto, assumiu, ao longo do tempo, um caráter de abrangência com relação ao brasileiro de forma geral, tomado enquanto símbolo de identidade. Esse processo de apropriação foi tão forte, permanecendo entranhado e parte constituinte do imaginário brasileiro que, nem mesmo seu autor foi capaz de revertê-lo, apesar das tentativas realizadas.7 Em Portugal, o caricaturista Rafael Bordalo Pinheiro (1846-1905) criou o Zé Povinho, nas páginas do seu periódico A Lanterna Mágica, em junho de 1875. A personagem representava um português do campo, à semelhança do Jeca Tatu, que saiu da pena de Lobato, anos mais tarde: um homem rude, analfabeto, apático e um tanto parvo. Com essa caricatura, Bordalo Pinheiro criticou a excessiva cobrança de impostos levada a cabo, no reinado de D. Luís I (1838-1889)8. A figura teve rápida aceitação entre caricaturistas e homens de letras portugueses e estrangeiros, ultrapassando as fronteiras nacionais. Zé Povinho fixou-se na cultura daquele país, sendo apropriado/retomado por seu criador em diferentes épocas e com intenções diversas, tornando-se a representação caricatural mais difundida do português. Seus muitos usos, com o passar do tempo, fizeram com que a caricatura fosse tomada como “Portugal em pessoa”, “homo lusitanus”, e “o português tal e qual”. Nas palavras de João Medina, é possível identificar como a figura é vista até os dias de hoje, entre os estudiosos portugueses: “ele é Portugal, um certo Portugal ou uma certa maneira psicológica de retratar o 4 É preciso lembrar que o Jeca não foi desenhado por Lobato. A caricatura foi obra literária, a partir dos recursos da escrita satírica, como o rebaixamento, descritivismo e metáforas. LEITE, Sylvia Telarolli. Chapéus de palha, panamás, plumas, cartolas. São Paulo: Editora Unesp, 1996, p. 73-114. 5 LAJOLO, Marisa. Monteiro Lobato: um brasileiro sob medida. São Paulo: Salamandra, 2006, p. 53. 6 LAJOLO, Marisa. Jeca Tatu em três tempos. In: SCHWARZ, Roberto (Org.). Os pobres na literatura brasileira. São Paulo: Brasiliense, 1983, p. 101-105; ALVES Filho, Aluizio. As metamorfoses do Jeca Tatu. A questão da identidade do brasileiro em Monteiro Lobato. Rio de Janeiro: Inverta, 2003. 7 NAXARA, Márcia. Estrangeiro em sua própria terra. Dissertação (Mestrado em História) – Intituto de Filosofia e Ciências Humanas, Universidade Estadual de Campinas, Campinas, SP, 1991, p. 215-216. 8 FRANÇA, José-Augusto. Rafael Bordalo Pinheiro: o português tal e qual. Lisboa: Bertrand, 1982, p. 110-111. 13 Português com muitos defeitos (e algumas virtudes também) devidamente realçados ou caricaturados”.9 O processo de construção das identidades nacionais, que deve ser inserido em escala internacional, não raro engendrou personagens-tipo, que representaram – e seguem representando – determinados setores sociais das nações. Na França, o caricaturista Honoré Daumier (1808-1879) criou o Robert Macaire, e os ingleses viram- se simbolizados pelo John Bull. Nos Estados Unidos, ficou famosa a figura do Tio Sam, veiculada ao longo do século XIX, até os nossos dias. Essas personagens ultrapassaram fronteiras e circularam pelo mundo inspirando a criação de outras figuras. Dentre os mais conhecidos, foi o Zé Povinho, de Bordalo Pinheiro, que apresentou semelhanças com o Jeca Tatu lobatiano. As semelhanças e proximidades entre as duas figuras foram mencionadas na historiografia.10 Chegou-se a relacionar o Jeca Tatu com os labregos da região do Minho e de Trás-dos-Montes, que povoaram as obras de Camilo Castelo Branco, além das caricaturas literárias criadas por Eça de Queirós, Ramalho Ortigão e Fialho de Almeida, autores que Monteiro Lobato tanto leu e admirou.11 Porém, as conexões que porventura articularam um caso ao outro tiveram restrita fortuna crítica. Teriam o Jeca Tatu e o Zé Povinho, símbolos tão identificados com suas culturas nacionais, diálogos internacionais? O objetivo deste trabalho é o de identificar e analisar as intersecções entre os dois personagens. A questão pode contribuir para a compreensão do processo de construção das identidades nacionais nos dois países. No início desta pesquisa, pensou-se nas relações entre o Jeca de Lobato e o Zé Povinho de Bordalo, partindo deste último como uma referencialidade para o primeiro. No entanto, com o desenrolar das análises, sobretudo após o estágio em Portugal, em contato com a documentação sobre a produção bordaliana, armazenada nos arquivos lisboetas, percebeu-se a amplitude da obra do artista português e a importância do Zé Povinho, mobilizado profusamente nos seus grandes jornais, de maneira bastante variável. Já o Jeca Tatu foi o personagem mais conhecido da produção lobatiana, mas 9 MEDINA, João. Rafael Bordalo Pinheiro e o Zé Povinho, auto-caricatura do Português. Línguas & Letras. Cascavel, PR, vol. 06, nº 11, p. 145, 2005. 10 Marcos Antonio da Silva atribuiu ao Zé Povinho o papel de ancestral do Jeca Tatu. SILVA, Marcos Antonio da. Caricata República. Zé Povo e o Brasil. São Paulo: Marco Zero, 1990, p. 08. 11 Tais possibilidades foram aventadas por NUNES, Cassiano. Jeca Tatu. O Estado de São Paulo. Ano CIII, n. 32.853, 18 abr. 1982. Caderno Cultura, ano II, n. 97, p. 11. Edição especial do centenário de Monteiro Lobato. 14 foi bem menos recorrente na obra do escritor brasileiro, reaparecendo sob a pena do autor em momentos precisos. Por isso, houve uma mudança no percurso da pesquisa, devido à autonomia que a obra de Bordalo conquistou ao longo das análises. O artista português também produziu suas caricaturas em diálogo com a produção e outros artistas do traço, além de apresentar, constantemente, as marcas que a experiência no Brasil teve para a sua produção. Além disso, trata-se de dois autores profusamente estudados em seus países, fato que aumentou os desafios da pesquisa. Bordalo e Lobato marcaram a memória nacional em Portugal e no Brasil respectivamente por conta dos seus personagens que se fixaram no imaginário do público. Assim, a tese apresenta duas partes, uma para cada um dos autores, tendo como desafio articular estes dois momentos. Bordalo Pinheiro foi artista de renome internacional, colaborando em publicações estrangeiras, como a inglesa The Illustrated London News e as espanholas El Mundo Comico e Illustración Española Y Americana. O caricaturista viveu no Brasil durante quatro anos, entre 1875 e 1879, onde ilustrou as periódicos O Mosquito (RJ, 1869/1877), Psit!!! (RJ, 1877) e O Besouro (RJ, 1878-1879). Apesar da sua passagem pelo Rio de Janeiro e suas colaborações em periódicos estrangeiros, seus diálogos com a obra de outros artistas do traço não são estudados. Além disso, seu mais famoso personagem, o Zé Povinho, é frequentemente tomado de maneira mítica e atemporal, sem levar em consideração a sua historicidade e a série documental. Algumas análises pinçam aparições a partir das quais se elaboram conclusões generalistas.12 Monteiro Lobato, por sua vez, foi grande admirador da produção intelectual portuguesa, além de possuir acurado conhecimento sobre o universo visual, tendo atuado como um dos mais importantes críticos de arte do cenário cultural paulista, nos anos 1910.13 Lobato produziu, ele próprio, as suas caricaturas e pinturas, sobre as quais há pouco reconhecimento. O autor também publicou um estudo pioneiro sobre a história da caricatura no Brasil e alhures, no qual elogiou a obra de Bordalo, demonstrando ter contato com as suas publicações periódicas. Ainda que se conheça o trabalho de Lobato como crítico de arte, as suas relações com as imagens do cotidiano, veiculadas pela imprensa periódica, permanecem sem estudos sistemáticos. 12 Este foi o caso de FRANÇA, José-Augusto. Op. cit., p. 558. 13 CHIARELLI, Tadeu. Um Jeca nos vernissages. Monteiro Lobato e o desejo de uma arte nacional no Brasil. São Paulo: Edusp, 1995. 15 Um dos caminhos para análises como esta é o da aproximação temática, possibilitada pelos contextos compartilhados entre os diferentes autores.14 Monteiro Lobato e Rafael Bordalo Pinheiro atuaram entre as balizas temporais que marcaram um período de busca pelas identidades nacionais, como reação aos dilemas do tempo, em diálogo com a modernidade e com as referências estrangeiras. No caso brasileiro, as distintas vertentes do moderno propunham a leitura crítica da cultura e dos referenciais estrangeiros, sem imitações. Apesar disso, a criação do personagem Jeca Tatu, tomado enquanto ícone de certa brasilidade, produzida à época, não foi estudada a partir das possibilidades dessas trocas intercontinentais. A modernidade técnica do período favoreceu os diálogos transnacionais, por meio da rápida circulação dos impressos periódicos. A imprensa, nessa época, já se encontrava globalizada. Na passagem do século XIX para o XX, assistiu-se ao boom do periodismo no Ocidente, movimento designado por alguns autores como o início da “era midiática” ou da “civilização do jornal”.15 A importância dos impressos, na época, foi observada pelas significativas marcas deixadas na arte literária.16 As imagens, por sua vez, espalharam-se rapidamente, graças à pedra litográfica e, mais tarde, à fotografia que facilitaram sua produção na “era da reprodutibilidade técnica”, o que provocou questionamentos acerca da permanência de seus status como obra de arte.17 No século XIX, o Brasil entrou na rota da circulação mundial da cultura, em conexão com Portugal, França e Inglaterra, fazendo com que diversos letrados, livreiros, editores e ilustradores estrangeiros aqui se fixassem, trazendo inovações técnicas e estéticas, como foi o caso de Bordalo Pinheiro. O movimento inverso, no qual estes passeurs tiveram sua obra transformada, graças ao contado com a produção brasileira, também foi recorrente, ainda que bem menos lembrado. Numa palavra, “fica claro que o século XIX foi um período de ampliação sem precedentes na produção de livros e revistas e de intensa circulação de impressos entre a Europa e o Brasil.”18 14 O estudo de Maria Alice Faria sobre as aproximações entre Musset e Álvares de Azevedo consistiu em exemplo desse tipo de perspectiva. FARIA, Maria Alice. Astarte e a espiral. São Paulo: Conselho Estadual de Cultura, 1970. 15 MOLLIER, Jean-Yves. A leitura e seu público no mundo contemporâneo: ensaios sobre história cultural. Belo Horizonte: Autêntica, 2008. 16 THÉRENTY, Marie-Ève. La littérature-journal. In: KALIFA, Dominique; THÉRENTY, Marie-Ève. (orgs.). La civilisation du journal. Paris: Nouveau Monde Éditions, 2011, p. 1509-1521. 17 BENJAMIN, Walter. A obra de arte na era de sua reprodutibilidade técnica. In: Magia e técnica, arte e política. Rio de Janeiro: Brasiliense, 1986, p. 166-167. 18 ABREU, Márcia. A circulação transatlântica dos impressos – a globalização da cultura no século XIX. Livro – revista do núcleo de estudos do livro e da edição, SP, vol. 01, nº 01, p. 122, 2011. 16 A circulação da cultura em escala mundial foi possível desde os grandes descobrimentos, entre o século XV e XVI, quando as quatro partes do mundo se conectaram sob domínio ibérico.19 De acordo com alguns autores, porém, foi a era do imperialismo, no XIX, que tornou esse processo bem mais significativo, pois a motivação econômica - mais forte que o desejo de difusão religiosa – acelerou este processo.20 A obra de escritores e artistas europeus era rapidamente lida consumida no Brasil, tal como O Primo Basílio, de Eça de Queiroz, publicado em 1878 e comentado no Brasil, semanas após seu lançamento, em Portugal.21 Apesar deste evidente movimento de conexão, os estudos a respeito do período pós-1822 deixaram de lado os contatos e as trocas culturais entre Portugal e Brasil, que persistiram mesmo após a ruptura política da independência. O estudo das transferências culturais, que se concretizou nas últimas décadas, tem amenizado este tipo de lacuna, em certos casos. Porém, algumas pesquisas abordam-nas em seu nível meramente quantitativo (quantidade de livros e traduções que circularam entre os países), sem identificar como estes elementos se incorporaram e se aculturaram de fato.22 Em linhas gerais: A partir de 1825, no entanto, isto é, a partir do momento em que de fato passou a haver dois países, foi como se a unidade que fora antes passasse a nada mais ter em comum. Historiadores lusos continuaram a estudar Portugal, agora amputado da ex-colônia americana; historiadores brasileiros puseram-se a estudar o seu novo país, fazendo referência eventual, positiva ou negativa, às raízes lusas.23 O estudo das influências e intersecções culturais recebeu diversas designações, tais como “circularidade”, “hibridismo”, “mestiçagem” e “zona de contato”. Nos estudos do século XIX, tem-se mobilizado, nos últimos anos, a ideia de transfert culturel, conceito associado à circulação internacional de ideias, modelos artísticos e intelectuais, na qual se explora a construção supranacional do que se acredita ser a representação de uma identidade puramente nacional. O século XIX, portanto, figura 19 GRUZINSKI, Serge. Les quatres parties du monde. Paris: Éditions de la Martinière, 2004. 20 FERRO, Marc. História das Colonizações. São Paulo: Companhia das Letras, 1996, p. 36-37. 21 NASCIMENTO, José Leonardo do. O Primo Basílio na imprensa brasileira do século XIX. São Paulo: UNESP, 2008. 22 Este foi o caso de COOPER-RICHET, Diana. Paris: capital editorial do mundo lusófono na primeira metade do século XIX? Varia Historia. Belo Horizonte, vol. 25, nº 42, p. 539-555, jul./dez. 2009. 23 PEREIRA, Miriam Halpern; CARVALHO, José Murilo de. Apresentação. In: ______; ______; VAZ, Maria João; RIBEIRO, Gladys Sabina (Orgs.). Linguagens e fronteiras do poder. Lisboa: Centro de Estudos de História Contemporânea, Instituto Universitário de Lisboa, 2012, p. 09. 17 como período privilegiado para este tipo de análise, uma vez que foi a época de definição e afirmação das identidades nacionais.24 A análise das transferências culturais concretizou-se nas últimas décadas, quando a globalização acelerou-se a níveis nunca vistos. O pioneirismo coube à obra de Michel Espagne e Michael Werner sobre os empréstimos e interações culturais entre França e Alemanha nos séculos XVIII e XIX. Os autores definiram o conceito como um descolamento de material ou objeto no espaço (com ênfase nos movimentos humanos – viagens, livros, bens de uso corrente etc.). 25 O trabalho do pesquisador seria o de relacionar estes dois sistemas supostamente autônomos e assimétricos.26 Serge Gruzinski, por exemplo, sinalizou a necessidade de restabelecer as ligações deixadas de lado pelas historiografias nacionais: Diante de realidades que convêm estudar sob diversos aspectos, o historiador tem de converter-se numa espécie de eletricista encarregado de restabelecer as conexões internacionais e intercontinentais que as historiografias nacionais e as histórias culturais desligaram ou esconderam, entaipando as suas respectivas fronteiras. (...) Várias gerações de historiadores escavaram entre estes países fossos tão profundos que atualmente custa muito entender a história comum entre impérios e subcontinentes.27 Em relação às imagens, se no passado foi necessário justificar seu uso enquanto fonte histórica, no presente esta modalidade usufrui plena cidadania historiográfica.28 A atomização dos objetos clássicos da história, ocorrida nas últimas décadas, modificou o conceito de documento, atribuído, a partir de então, a diversas expressões da ação humana.29 Evidentemente, as imagens não são reflexos fiéis de uma realidade, como se acreditou no passado. Ao contrário, são construções permeadas de intencionalidades sociais e políticas, cujo escrutínio é tarefa dos pesquisadores. Para tanto, consolidou-se a análise iconográfica – compreensão do significado convencional da imagem – aliada à 24 LOYER, Emmanuelle. Transferts Culturels. In: DELPORTE, Christian; MOLLIER, Jean-Yves; SIRINELLI, Jean-François. Dictionnaire d’histoire culturelle de la France contemporaine. Paris: Puf, 2010, p. 805-808. 25 Apud ANDRIÈS, Lise. A imprensa como modelo de construção nacional: algumas hipóteses metodológicas. In: GUIMARÃES, Valéria (org.). Transferências culturais. Campinas, SP: Mercado de Letras; SP: EDUSP, 2012, p. 40. 26 GRUZINSKI, Serge. O historiador, o macaco e a centaura: a “história cultural” no novo milênio. Estudos Avançados, vol. 17, nº 49, p. 323, 2003. 27 Ibidem. 28 Marcos Silva empreendeu defesa da imagem e da caricatura como fonte histórica, na introdução de seu trabalho de mestrado, publicado no início dos anos 1990. SILVA, Marcos. Op. cit., p. 10-11. 29 KARNAL, Leandro; TATSCH, Flávia Galli. A memória evanescente. In: DE LUCA, Tania Regina; PINSKY, Carla (orgs.). O historiador e suas fontes. SP: Contexto, 2010, p. 9-27. 18 interpretação iconológica, por meio da qual se identificam suas mensagens subjacentes.30 Nesta pesquisa, interessa ainda a complexa questão da autoria, na qual a prática de um artista não resulta apenas das suas escolhas individuais, mas é também concebida a partir da produção acumulada historicamente.31 As imagens fazem parte de um “circuito” de informações, pensamentos e memórias coletivas. Elas são permeadas por temporalidades diversas, pois se relacionam com outras imagens, de épocas anteriores.32 Assim, cabe perguntar: que relações existem entre a imagem do Zé Povinho, do Jeca Tatu e dos personagens símbolos de outros lugares e épocas? As caricaturas, em particular, constroem a realidade de forma satírica, ressignificando imaginários sociais, culturais e políticos. Desde o século XIX, o uso da linguagem caricatural tornou-se recorrente como instrumento de luta política.33 O riso tornou-se derrisório, de zombaria, ou seja, passa a ser usado na destruição do outro, por meio de diferentes estratégias do cômico, cuja identificação é fundamental para compreender os sentidos dessa linguagem.34 Para tanto, é fundamental ter amplo conhecimento da época, dos personagens e dos confrontos entre publicações, caricaturistas e grupos de poder. Além disso, é importante estar atento ao texto que as acompanha, enquanto eixo condutor de sua leitura.35 Para Christie Davies, é essencial comparar cartuns entre países e períodos diferentes, identificando suas alterações e permanências.36 É certo que a caricatura distingue-se pelo exagero e generalização dos traços do retratado. Porém, o estereótipo que se produz não deve ser encarado como essencialmente negativo. A “bondade dos estereótipos” consiste em fazer com que um indivíduo ou grupo social não caia no esquecimento e na indiferença. As imagens estereotipadas são lembradas, apesar do “mau lugar” que ocupam. Além disso, o 30 De acordo com BURKE, Peter. Testemunha Ocular. Bauru, SP: Edusc, 2004, p. 43-56, este método tem origem na Escola de Warburg, da qual fizeram parte Aby Warburg, Fritz Saxl, Erwin Panofsky e Edgar Wind, em Hamburgo, nos anos 1920. 31 Para GASKELL, Ivan. História das imagens. IN: BURKE, Peter (org.). A escrita da história. SP: UNESP, 1992, p. 243, a autoria “é antes uma conseqüência da concepção do artista e da percepção do relacionamento dele com a arte na tradição ocidental”. 32 SAMAIN, Etienne. As imagens não são bolas de sinuca. Como pensam as imagens. IN: ______ (org.). Como pensam as imagens. Campinas, SP: Edunicamp, 2012, p. 21-36. 33 MINOIS, Georges. História do riso e do escárnio. São Paulo: Editora Unesp, 2003, p. 461-509. 34 PROPP, Vladímir. Comicidade e riso. São Paulo: Ática: 1992. 35 GANTÚS, Fausta. Caricatura y prensa: una reflexión en torno de las imágenes y su importancia en la investigación histórica. El caso mexicano, siglos XIX-XX. Domínios da Imagem, Londrina, PR, ano V, n. 10, p. 73-88, maio 2012. 36 DAVIES, Christie. Cartuns, caricaturas e piadas. Roteiros e estereótipos. IN: LUSTOSA, Isabel (org.). Op. cit., p. 103. Grifo da autora. 19 estereótipo tem sua verdade, pois também retrata dados concretos, malgrado a generalização que lhe é intrínseca.37 Não se deve perder de vista os suportes – no caso, as publicações periódicas – destas linguagens. Nos últimos anos, os pesquisadores apontaram a necessidade de se questionar as fontes impressas, não apenas a respeito de seu conteúdo, mas tendo em vista sua complexidade (trajetória da publicação, suas fontes de receita, papel dos idealizadores, lugar por ela ocupado na história e contexto em que circulou). Assim, consolidou-se a perspectiva na qual se analisam as publicações considerando seus múltiplos aspectos, entre os quais, as técnicas de impressão, a materialidade, a presença/ausência de ilustrações e suas funções.38 Tais aspectos nada têm de natural, visto que atribuem à obra novos significados, algumas vezes diversos daqueles pretendidos pelos autores.39 Não se constrói uma história visual sem os textos, que ajudam a reconstituir os seus possíveis significados.40 Para além das legendas, no caso das caricaturas, os escritos autorreferenciais, como as cartas, também merecem atenção. Neste tipo de fonte, opera-se uma organização do “eu” que se pretende mostrar ao outro e legar como imagem de si.41 Cabe ao pesquisador estar atento a esta dimensão dos escritos autorreferenciais, enquanto estratégia de auto-representação. Por meio das missivas é possível antever informações sobre o funcionamento de publicações e seus bastidores, além das relações de sociabilidade e as filiações estéticas dos letrados e artistas. Monteiro Lobato foi missivista contumaz. Ao longo de mais de quarenta anos, trocou cartas com amigos, familiares e contatos profissionais, assim como Rafael Bordalo Pinheiro, cujo acervo de correspondências foi decisivo para a compreensão do seu trabalho. Cabe lembrar que a pesquisa teve como base um conjunto diversificado de documentos. Na primeira parte da tese, que engloba os capítulos 01, 02 e 03, apresentam-se análises sobre a trajetória de Bordalo Pinheiro no Brasil e em Portugal, e os usos que o Zé Povinho teve em sua produção, que foi lida anos mais tarde, por Monteiro Lobato. Para tanto, mobilizou-se um corpus documental constituído pelos 37 ZINK, Rui. Da bondade dos estereótipos. IN: LUSTOSA, Isabel (org.). Op. cit., p. 47-68. 38 DE LUCA, Tania Regina. História dos, nos e por meio dos periódicos. IN: PINSKY, Carla (org.). Fontes históricas. São Paulo: Contexto, 2005, p. 111-153. 39 CHARTIER, Roger. A história cultural: entre práticas e representações. Lisboa: Difel, 1988, p. 26-67. 40 MENEZES, Ulpiano. T. Bezerra de. Fontes visuais, cultura visual, história visual. Balanço provisório, propostas cautelares. Revista Brasileira de História, São Paulo, vol. 23, n. 45, p. 11-36, jul. 2003. 41 ARTIÈRES, Philippe. Arquivar a própria vida. Estudos Históricos, RJ, nº 21, p. 9-34, 1998. 20 seguintes jornais bordalianos: A Lanterna Mágica (Lisboa, 1875), O Mosquito (RJ, 1875-1877), O Besouro (RJ, 1878-1879), O Antonio Maria (1ª série – Lisboa, 1879- 1885) e Pontos nos ii (Lisboa, 1885-1891). As cartas que Bordalo trocou com amigos, familiares e contatos profissionais, armanezadas nos arquivos portugueses, ajudaram a compreender as relações as quais estava envolvido e, por consequência, a sua obra. Não se incluíram, nesse conjunto, a segunda série de O António Maria (Lisboa, 1891-1898) e a revista A Paródia (Lisboa, 1900-1907) - as duas últimas publicações do artista - jamais mencionadas por Monteiro Lobato. Nestes últimos periódicos, a importância e a frequência do Zé Povinho diminuíram consideravelmente e o seu criador encontrava-se cada vez mais envolvido com a cerâmica. Seja como for, analisar os usos do Zé Povinho desde as suas aparições no Brasil, na década de 1870, até suas figurações no jornal português Pontos nos ii, que findou em 1891, significa trilhar novamente um dos itinerários de leitura realizados por Monteiro Lobato nos anos de sua formação enquanto escritor e estudioso das artes visuais. A segunda parte da tese reservou-se para as análises sobre Monteiro Lobato e a criação do Jeca Tatu, tendo em vista os contatos do autor com a produção intelectual e as artes visuais do seu tempo, que permitiram aproximações entre o Zé Povinho o seu personagem. Para tanto, mobilizou-se um conjunto de documentos mais variado, que incluiu as muitas cartas (publicadas e não publicadas) trocadas pelo autor com familiares, amigos e contatos profissionais. Estes documentos permitiram vislumbrar os bastidores da produção lobatiana e as referências visuais e literárias às quais ele tinha acesso, no momento em que criou o seu Jeca. Outros itens, como a produção iconográfica do autor, armazenada nos arquivos, foram fundamentais para compreender melhor a sua relação com as imagens do cotidano, ainda pouco explicada. Este trabalho está dividido em quatro capítulos. No primeiro deles, intitulado “Rafael Bordalo Pinheiro e o Zé Povinho no Brasil”, apresentou-se a trajetória do caricaturista português e o contexto no qual se deu a criação do famoso personagem, em 1875, bem como a análise das suas primeiras aparições em Portugal. Buscou-se compreender também o projeto gráfico e político levado a cabo pelo ilustrador em terras brasileiras, por meio de reflexões sobre os periódicos nos quais atuou, como O Mosquito e O Besouro, em cujas páginas Bordalo recriou o Zé. Estas figurações do personagem refletiram o contexto brasileiro da época, marcado pela crise do regime monárquico e pela desagregação do trabalho escravizado, tema que agitou os debates acerca da mão-de-obra no país. 21 No segundo capítulo, “De volta a Portugal”, apresentou-se análise das aparições do Zé Povinho na primeira série do jornal O Antonio Maria, o mais longevo periódico produzido por Bordalo Pinheiro, que circulou entre 1879 e 1885. Nesta publicação, o artista retomou seu ilustre personagem em profusão. As aparições do Zé neste jornal foram as mais abundantes. Portanto, foi necessário quantificar e sistematizar tais caricaturas numa série documental, a fim de compreender suas mudanças e permanências, sem perder de vista os diálogos de Bordalo com a produção de outros artistas do traço, além dos reflexos que as experiências no Rio de Janeiro deixaram em sua obra. O período foi marcado pela permanência da monarquia e a crescente oposição republicana, além das disputas neocolonais entre as potências europeias, que agitaram os debates públicos em Portugal, país de tradição identitária colonialista. Em seguida, no terceiro capítulo, apresentou-se análise do Zé Povinho nas páginas do jornal Pontos nos ii, que circulou entre 1885 e 1891, logo após o fechamento de O Antonio Maria. Nesse período, a questão internacional tornou-se ainda mais urgente nos debates públicos portugueses. A Conferência de Berlim (1884-1885) e o Ultimato britânico (1890) resultaram na perda de importantes possessões portuguesas na África. As análises das figurações do Zé Povinho nesse período permitiram antever uma significativa mudança nos posicionamentos assumidos pelo autor diante dos dilemas do seu tempo. O uso da personagem, mobilizado como arma na luta política, foi consideravelmente modificado. Por fim, o quarto capítulo, intitulado “Monteiro Lobato e o Jeca Tatu” apresentou análise da trajetória do escritor em seus tempos de formação intelectual e artística. Para tanto, procurou-se investigar as interações entre Lobato e a cultura portuguesa, além do seu contato com o mundo visual, que o levou a conhecer e apreciar a obra de Rafael Bordalo Pinheiro. Tais referências encontram-se nas muitas cartas que o autor enviou ao longo da vida. Nessas missivas, publicadas em livros, Lobato também construiu sua autoimagem como pintor, desenhista e caricaturista, atividades que ele muito praticou. Assim, cabe questionar: que caminhos levaram o Zé Povinho ao Jeca? Quais ecos da caricatura de Bordalo existiram no personagem lobatiano? 22 01. CAPÍTULO 01 - RAFAEL BORDALO PINHEIRO E O ZÉ POVINHO NO BRASIL Ao longo dos anos 1870, Rafael Bordalo Pinheiro transformou-se em consagrado caricaturista em Portugal e no mundo. Foram tempos de uma juventude agitada que se transforaram em experiência profissional, com a criação do Zé Povinho e com as suas primeiras vivências enquanto dono de jornal. A fama do artista chegou ao Brasil, onde, ao longo de quatro anos, esteve atento às questões públicas que agitavam o país na época. Foi também em terras brasileiras que o artista tentou adaptar seu mais famoso personagem experimentando diferentes formas, contextos e modelos de caricaturá-lo. Bordalo deixou marcas na imprensa brasileira, mas retornou a Portugal modificado, como se verá. Neste capítulo apresenta-se a trajetória do autor enquanto passeur que circulou entre Portugal e o Brasil, estabelecendo trocas e diálogos entre diferentes produções. Em seguida, reflete-se sobre o contexto no qual surgiu o Zé Povinho, intentando-se uma análise das suas primeiras figurações no jornal lisboeta A Lanterna Mágica. Na sequencia, reconstitui-se a trajetória das suas principais publicações brasileiras, O Mosquito e O Besouro, na tentativa de compreender algumas questões pouco explicadas sobre a sua passagem pelo Rio de Janeiro. Por fim, são analisadas as aparições do Zé em terras brasileiras, num contexto marcado pela crise do Segundo Reinado, pelos primeiros passos na modernização do país e pela discussão sobre a identidade nacional. 1. 1. Rafael Bordalo Pinheiro, um passeur cultural entre a Europa e o Brasil Gênio da caricatura, príncipe dos caricaturistas portugueses, inventor da banda desenhada, fotógrafo dos fatos, cuja obra foi espelho do seu tempo, são epítetos pelos quais Rafael Bordalo Pinheiro (1846-1905) ficou conhecido no Brasil, de alguma forma, e em Portugal, principalmente42. Estes adjetivos demonstram certa visão mítica e um tanto heroicizada, fruto do trabalho de construção de sua memória, elaborado principalmente após a sua morte. Bordalo figura na bibliografia como artista rebelde e combativo do seu tempo, que teria se insurgido, essencialmente, contra os grupos instalados no poder. A criação de um museu para abrigar a sua obra, a partir do material 42 Ver por exemplo as conferências elogiosas de Joaquim Leitão, admirador de Bordalo, reunidas em O poço que ri – Rafael Bordalo Pinheiro e o seu tempo. Lisboa: Câmara Municipal, 1936, p. 10-11. 23 dos colecionadores, amigos, admiradores e familiares, fez parte desse processo comemorativo e laudatório.43 Bordalo foi nome de destaque nas artes e na história da imprensa brasileira e internacional. Sua obra é fundamental para compreender o processo de produção de imagens no século XIX, em Portugal e no Brasil. Atuou principalmente como ilustrador, homem de jornal e, nos anos finais de sua vida, empresário e produtor de cerâmicas artísticas. Membro de uma família da burguesia lisboeta, o desenhista cresceu em contato com as artes. Seu pai, Manuel Maria Bordalo Pinheiro (1815-1880) foi importante gravador, pintor e escultor. Sua irmã, Maria Augusta (1841-1915), destacou- se na pintura e no artesanato. Seu irmão, Columbano Bordalo Pinheiro (1857-1829) foi um dos pintores portugueses mais renomados no último quartel do século XIX. Na juventude, Rafael atuou em comédias amadoras no Teatro Garret, a convite de um de seus primos.44 A admiração pelo teatro acompanhou-o durante toda sua trajetória, estampada nas publicações periódicas que empreendeu. Seu progenitor chegou a arranjar-lhe colocação como amanuense na Secretaria da Câmara dos Pares do Reino, mas Rafael Bordalo a exerceu por pouco tempo, devido ao seu grande interesse pelas novas possibilidades artísticas que se apresentavam no final dos Oitocentos. O jovem artista frequentou também a Academia de Belas Artes de Lisboa e após o casamento com dona Elvira, dedicou-se profusamente ao desenho e à pintura, expondo seus trabalhos nos principais salões lisboetas. Suas obras chegaram à Exposição Universal de Madri, iniciando a projeção internacional do seu nome. Apesar do apreço pela pintura, acabou por se destacar como caricaturista, por meio da imprensa periódica. Na época, a popularização da fotografia e da litografia, fruto do crescente avanço tecnológico, levou a produção mundial de imagens à escala industrial. As ilustrações encontravam-se facilmente em livros, jornais, revistas, álbuns, cartões postais, rótulos de produtos, cartazes de rua etc. Uma nova visualidade marcou aquele tempo.45 Os novos recursos o entusiasmaram. Bordalo 43 O museu foi criado em 1916 por Artur Ernesto de Santa Cruz Magalhães (1864-1928), admirador do artista e colecionador de sua obra. A instituição foi abrigada na moradia de Cruz Magalhães, no bairro de Alvalade, onde funciona até os dias atuais. A proposta, inicialmente levada a cabo por um grupo de admiradores de Bordalo e colecionadores da sua obra, mais tarde foi encampada pela Câmara Municipal de Lisboa, que se tornou gestora do Museu. LEITE, Ana Cristina. O Museu Rafael Bordalo Pinheiro. In: ________; CARVALHO, Anabela (Orgs.). Guia do Museu Rafael Bordalo Pinheiro. Lisboa: Câmara Municipal, 2005, p. 9-25. 44 COTRIM, João Paulo. Rafael Bordalo Pinheiro Fotobiografia. Lisboa: Assírio & Alvim; El Corte Inglés; Museu Bordalo Pinheiro, 2005, p. 13-23. 45 Em Portugal, tal qual no Brasil, a litografia desenvolveu-se mais amplamente na imprensa ilustrada, e acabou por suplantar os processos mais antigos, xilografia e talho doce, quando se instalaram os primeiros 24 assistiu a tais mudanças, insurgindo-se contra os padrões de arte acadêmica e figurando como artista rebelde da cultura urbana.46 Fig. 01: Rafael Bordalo Pinheiro (1846-1905), na juventude Fonte: Museu Bordalo Pinheiro47. A partir dos anos 1870, dedicou-se aos impressos periódicos, produzindo pequenas folhas a respeito da vida teatral em Lisboa, como O dente da Baronesa (Lisboa, 1870) e O Binóculo (Lisboa, 1870), que fizeram sucesso nos teatros em que foram distribuídas. O desenhista também publicou O Calcanhar de Aquiles (Lisboa, 1870), com caricaturas “gravadas em água-forte pelo próprio autor”48. Este último impresso trazia caricaturas dos escritores mais renomados nas letras portuguesas do seu tempo, como Ramalho Ortigão (1835-1915); Alexandre Herculano (1810-1877); Manuel Pinheiro Chagas (1842-1895), Camilo Castelo Branco (1825-1890) e outros. Entre as tais caricaturas, o ilustrador publicou os autógrafos dos autores retratados, incentivando o jovem artista. Bordalo buscava a projeção do seu nome, nos principais cenários culturais do país. prelos mecânicos, em 1835. SOUSA, Osvaldo Macedo de. História da arte da caricatura de imprensa em Portugal. Vol. I. Lisboa: Humorgrafe, 1998, p. 14-22; ANACLETO, Regina. Gravura em Portugal. In: MATTOSO, José (Org.). História de Portugal. Vol. 05. Lisboa: Círculo de Leitores, 1992, p. 681-682. A xilografia consistia em gravar a imagem em matriz de madeira, em alto relevo, cavando-a com um buril. A xilografia de topo permitiu a gravação simultânea de textos e imagens na mesma folha. No talho doce, a imagem era gravada em chapa metálica, em baixo relevo. Já na litografia, criada no final do século XVIII, a ilustração era feita com lápis gorduroso diretamente em placa de pedra calcária, onde se prensava o papel, sem a necessidade de gravadores. A resistência da pedra permitia a impressão de grandes quantidades de reproduções. Contudo, não era possível imprimir textos e imagens na mesma folha. TWYMAN, Michael. L’imprimerie: historie et techniques. Lyon: ENS Éditions, 2007. Sobre a história da produção de imagens no Brasil e o destaque da litografia ver SANTOS, Renata. A imagem gravada. Rio de Janeiro: Casa da Palavra, 2008. 46 SILVA, Raquel Henriques da. Desenhar para rir: a sociedade burguesa ao espelho. In: LEITE, Ana Cristina; CARVALHO, Anabela. (Orgs.). Op. cit., p. 39. 47 Imagem disponível em: http://museubordalopinheiro.cm-lisboa.pt/B02.htm Acesso em 01 ago. 2017. 48 BORDALO Pinheiro, Rafael. O Calcanhar de Aquiles. Lisboa, 1870, capa. 25 Lisboa vivia uma efervescência de ideias. Um grupo de artistas e homens de letras reunia-se no Casino Lisbonense para discutir os problemas de Portugal e propor caminhos para suplantar os atrasos do país, em relação ao restante da Europa. Os encontros, denominados Conferências democráticas do Casino, tiveram à sua frente nomes como Eça de Queiroz (1845-1900), Teófilo Braga (1843-1924) e Antero de Quental (1842-1891), considerado mestre do grupo. Tais letrados propunham uma reforma estrutural do país, em especial no campo cultural e educacional, que consideravam abandonados pelo governo monárquico.49 Rafael Bordalo Pinheiro fez parte do grupo, assistindo às conferências e ilustrando-as no seu periódico A Berlinda (Lisboa, 1870/1871), a partir do qual passou a intervir no campo político.50 Na folha, o artista retratou Portugal em decadência, sob o regime monárquico, diante das potências europeias, em plena expansão imperialista. A monarquia bragantina, no Brasil, também foi alvo do ilustrador. Bordalo desenhou os Apontamentos sobre a picaresca viagem do imperador de Rasilb pela Europa, ridicularizando D. Pedro II, que viajava pelo continente europeu. Nesta sátira caricaturada, Rasilb era o Brasil. Nesta oportunidade, o imperador brasileiro figurou como fraco e paradoxal, caricaturado de chinelas e guarda-chuva, diante de um Otto Von Bismark glorioso no cenário mundial51. Nos quadrinhos sobre a sua viagem, D. Pedro II simbolizou o atraso em meio a um mundo moderno, ou seja, um monarca em plena América republicana. Nas palavras do artista: Razilb [Brasil] é uma nação florescente que se governa a si própria, mas que tem a condescendência de pagar a um Imperador, para que este a bem da administração pública, das finanças e do público desenvolvimento do país, estude hebraico e outras línguas mortas (...). E parte [em viagem], mascarado de Imperador-democrata, que é como quem diz: chocos-frescos, preto-branco ou piano-forte.52 Em pouco tempo, Rafael Bordalo tornou-se reconhecido caricaturista e sua fama ultrapassou as fronteiras portuguesas. Em 1873, o artista partiu para a Espanha, como correspondente da publicação inglesa The Illustrated London News. Bordalo também colaborou nas revistas espanholas El Mundo Cómico e Illustración Española y 49 MACHADO, Álvaro Manuel. Geração de 70. In: MATOS, Alfredo Campos. Dicionário de Eça de Queiroz. Lisboa: Imprensa Nacional - Casa da Moeda, 2015, p. 670-672. 50 A Berlinda – reproduções de um álbum humorístico ao correr do lápis - circulou em duas séries, entre 1870 e 1871. PORTUGAL. BIBLIOTECA NACIONAL. Bordalo n’A Berlinda: mostra documental. Lisboa: Biblioteca Nacional, 2005, p. 09. 51 NEMI, Ana Lúcia. Rafael Bordalo Pinheiro e a monarquia bragantina. Revista do Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro, Rio de Janeiro, n. 468, p. 111-132, jul./set. 2015. 52 BORDALO Pinheiro, Rafael. Apontamentos sobre a picaresca viagem do imperador de Rasilb pela Europa. Edição Fac-símile (Pinacoteca de SP). Lisboa, 1872, p. 02. 26 Americana. Recebeu convite para trabalhar em Londres, mas declinou. Seu destino acabou sendo o Brasil, para onde zarpou em agosto de 1875, aceitando proposta que lhe interessou sobremaneira. Tal opção envolveu uma série de fatores, analisados mais detalhadamente adiante. O desenhista viveu no Rio de Janeiro por quase quatro anos, até abril de 1879. Rafael Bordalo Pinheiro tornou-se passeur cultural entre a Europa e o Brasil. Da sua experiência europeia, na qual colaborou em publicações portuguesas, espanholas e inglesas, trouxe inovações que deixaram marcas na história da imprensa brasileira, mas também teve sua obra modificada, ao retornar a Portugal, como se tentará demonstrar ao longo deste trabalho. A noção de passeur compreende a ideia da reciprocidade, ou seja, trata-se do mediador, em contato com culturas diferentes, operando “o processo de transferência cultural que nunca se dá em sentido único, mas em forma de ‘vai e vem’, da origem ao receptor, e do receptor à origem, num movimento que pode ser recorrente em escala nacional ou internacional”.53 A experiência de Bordalo no Brasil foi enriquecedora. O desenhista veio ilustrar o jornal satírico O Mosquito, a convite dos seus proprietários, pois o italiano Angelo Agostini (1843-1910), que produzia as caricaturas da folha, deixava o posto. Após esta primeira experiência, Bordalo criou outras publicações como Psit!!! (RJ, 1877) e O Besouro (RJ, 1878/1879). Neste contexto, outros desenhistas e jornalistas estrangeiros tiveram presença marcante na imprensa brasileira. Além de Agostini, proprietário da Revista Ilustrada (RJ, 1876-1891), outro italiano, Luigi Borgomaineiro (1834-1876), também fez sucesso atuando em diversos periódicos, como A Vida Fluminense (RJ, 1868-1875); sem perder de vista o prussiano Henrique Fleiuss (1823-1882), criador da Semana Ilustrada (RJ, 1860/1876). No Rio de Janeiro, Bordalo atuou nos domínios Rua do Ouvidor, que congregava a efervescência da vida cultural carioca no século XIX. O caricaturista teve contato com os outros ilustradores, livreiros, editores, músicos, jornalistas, homens de imprensa, literatos, políticos e boêmios que se reuniam nas redações dos principais jornais e revistas da época, na Confeitaria Colombo, no Alcazar Lyrique, nos principais teatros entre outros pontos relevantes. Naquela estreita via, no centro antigo do Rio, as 53 “Enfin, le processus de translation culturelle ne se font presque jamais à sens unique, mais plutôt sous forme de va-et-vien de la source émettrice vers le récepteur et retour, dans un mouvement qui, sans être perpetuel, peut être recourrent à l’echélle nationale ou internationale.” COOPER-RICHET, Diana. Passeurs Culturels. In: DELPORTE, Christian et al. (Orgs.). Dictinnaire d’histoire culturelle de la France contemporaine. Paris: Puf, 2010, p.607. 27 notícias sobre o Brasil e o mundo corriam de porta a porta, de ouvido a ouvido. Tratava- se do coração artístico e literário do país. Em passagem anedótica, na qual lhe perguntaram se havia cursado a Academia de Belas Artes, o artista respondeu: “Tenho o curso da Rua do Ouvidor... cinco anos... Eu canto de ouvido”.54 De volta Portugal, em 1879, empreendeu suas mais longevas publicações: O Antonio Maria, que circulou em duas fases (1879-1885 e 1891-1898); Pontos nos ii (1885-1891) e A Paródia (1900-1907). Em 1884, aventurou-se em nova empreitada ao fundar, em sociedade com o irmão, Feliciano Bordalo Pinheiro (1847-1905), a Fábrica de Faianças Artísticas, na cidade de Caldas da Rainha. Rafael tornou-se ceramista, atividade na qual também se destacou, produzindo peças que foram expostas nos salões lisboetas e nas exposições universais, no exterior.55 Neste conjunto, destacou-se a Jarra Beethoven, considerada sua maior obra. A Jarra foi um dos motivos de seu retorno ao Brasil, em 1899, onde o artista tentou vende-la.56 Fig. 02: Rafael Bordalo Pinheiro, no auge de sua carreira Fonte: Museu Bordalo Pinheiro57. 54 Apud ARAUJO, Emanoel. Rafael Bordalo Pinheiro e o diálogo entre duas pátrias. In: Rafael Bordalo Pinheiro – o português tal e qual. O caricaturista. São Paulo: Pinacoteca do Estado, 1996, p. 18. 55 HENRIQUES, Paulo. Uma cerâmica nacional. In LEITE, Ana Cristina; CARVALHO, Anabela (Orgs.). Op. cit., p. 93-119. 56 A Jarra Beethoven foi produzida em 1895, por encomenda de José Relvas, que desejava decorar a sala de música da sua propriedade. Com o término do trabalho, Relvas não aceitou a encomenda, alegando que não caberia em sua casa. Bordalo não conseguiu vendê-la em Portugal e a trouxe para o Brasil, onde também não encontrou comprador. Decidiu rifá-la, mas ele próprio havia comprado o número sorteado. O artista doou-a ao governo brasileiro e hoje a Jarra se contra no Museu Nacional de Belas Artes, no Rio de Janeiro. A Jarra transgrediu o papel decorativo das peças cerâmicas, alcançando o status de arte, com base numa discussão em voga na época, a respeito do utilitarismo da produção decorativa. Sobre o assunto, ver MALTA, Marize. Jarra Beethoven e a incrível história de uma imagem-problema. ArtCultura, Uberlândia, vol. 12, n. 20, p. 135-150, jan.-jun. 2010. 57 Imagem disponível em: http://museubordalopinheiro.cm-lisboa.pt/0101.htm# Acesso em 01 ago. 2017. 28 Na sua vasta obra, teve destaque o personagem Zé Povinho, considerado sua mais célebre criação. Concebida em 1875, nas páginas do periódico A Lanterna Mágica, poucos meses antes de Bordalo vir ao Brasil, a figura surgiu como crítica à excessiva cobrança de impostos do governo monárquico. O personagem representava sátira ao português do campo: indivíduo rude, analfabeto e um tanto parvo. Zé Povinho, como se verá, teve rápida aceitação, sendo recriado por diversos desenhistas em Portugal e no Brasil. Bordalo Pinheiro, valendo-se do sucesso, mobilizou sua criação nos mais diversos momentos da sua carreira, inclusive como peça cerâmica, e em diferentes contextos, participando ou comentando as situações em que apareceu.58 Bordalo Pinheiro atuou intensamente no final do século XIX, tornando-se figura de proa no cenário cultural e político de seu tempo. Seu trabalho foi importante para o desenvolvimento da caricatura e das técnicas de reprodução de imagens em Portugal e nos demais países onde atuou, justificando o apreço que seus conterrâneos dispensaram à sua obra. Sua passagem pelo Brasil foi marcante para o país e para a sua carreira. Cabe questionar, contudo, a respeito das mudanças e permanências dos seus posicionamentos diante dos contextos em que viveu e nos quais enquadrou o seu Zé Povinho. Bordalo Pinheiro foi sempre o heroico e combativo caricaturista que desafiou os poderes do seu tempo? 1. 2. A criação do Zé Povinho Na sua vasta obra gráfica, Bordalo criou diversos personagens tipos, que representaram determinados grupos sociais, tanto em Portugal quanto no Brasil. Destacaram-se, entre outros, o Fagundes (sátira do parlamentar brasileiro falastrão e medíocre); o Psit e o Arola (dupla de figuras antagônicas que simbolizaram o grã-fino e o popular), flanando pelas ruas do Rio de Janeiro; além da alcoviteira Maria da Paciência, típica portuguesa de capote e lenço. No século em que os novos saberes científicos procuravam explicar o funcionamento da sociedade, havia o desejo de classificar, agrupar, caracterizar, enfim, construir uma identidade. O próprio Bordalo 58 A obra de Bordalo inspirou outros artistas do traço em Portugal e no Brasil. No país luso, ficou conhecido o caso de Silva Monteiro, renomado caricaturista do início do século XX. Ver Silva Monteiro - Desenho humorístico n’Os Ridículos 1908-1926. Catálogo da exposição. Lisboa: Museu Bordalo Pinheiro, 2010. Já em terras brasileiras, o Zé Povinho transformou-se em Zé Povo na produção artística de muitos dos nossos ilustradores. Sobre o assunto ver: RIBEIRO, Pedro Krause. Usos do povo no discurso político da charge: Zé Povo e Zé Povinho na imprensa luso-brasileira (1875-1912). 2011. 225 f. Dissertação (Mestrado em História) – Instituto de História, Universidade Federal do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, 2011. 29 satirizou esta busca incessante pelas classificações identitárias, no número de estreia do seu O Binóculo: O Binóculo apresenta, não comenta. Mostra os tipos. E de tipos é o nosso século. Arquétipo ou protótipo, pouco importa. O tipo tem hoje a máxima importância; o nosso século só admira tipos. N’outro tempo, quando se dizia d’um homem: - é um conselheiro – todas as bochechas se enchiam de admiração. Isso passou. Hoje diz-se: - é um tipo – e a admiração acolhe sempre esse epíteto.59 Em Portugal vivia-se sob o regime da monarquia constitucional, instaurada em 1834, após as guerras que levaram os liberais ao poder e puseram fim ao sistema absolutista. Ao monarca, agora submetido a uma carta constitucional, reservava-se o papel de chefe do Estado, mas parte significativa do núcleo decisório era compartilhada com o conselho de ministros. A instalação do liberalismo, contudo, esteve longe de resolver os problemas do país e acertar os ponteiros do seu relógio com o restante da Europa. A sensação era a de que Portugal acumulava longos séculos de atraso – político, econômico, social e cultural – situação difícil de ser revertida. Para tanto, distintos projetos entraram em conflito dificultando a estabilização do novo sistema monárquico60. Somente na segunda metade do século XIX, a instabilidade chegou ao fim, com a chamada Regeneração. A revolta militar levada a cabo pelo general Saldanha, em abril de 1851 estabilizou os liberais no poder, após décadas de disputas entre os herdeiros dos movimentos liberais – em meio aos temores de um retorno absolutista. No período regenerador, desejou-se elevar Portugal ao progresso material alcançado pelas potências da Europa. A tarefa coube ao engenheiro militar Antonio Maria Fontes Pereira de Melo (1819-1887), que criou em 1852 o Ministério das Obras Públicas, do Comércio e das Indústrias, responsável pelo desenvolvimento de infraestrutura exemplificada na construção de estradas, pontes e dos primeiros caminhos de ferro. Fontes Pereira de Melo retornou ao poder, chefiando o ministério entre 1871 e 1877, enquanto líder do Partido Regenerador. No intuito de prosseguir com o programa de obras e modernização do país, o ministro fez empréstimos com os bancos ingleses, 59 BORDALO Pinheiro, Rafael. Introdução. O Binóculo. Lisboa, n. 01, p. 01, 29 out. 1870. Grifos do autor. 60 ALMEIDA, Pedro Tavares de. As chaves do período 1834-1890. In: ______ (Org.). A construção nacional 1834-1890. Lisboa: Objectiva; Madri: Mapfre, 2013, p. 19-29. 30 ampliando a dívida portuguesa e agravando o desequilíbrio das contas públicas. O regime liberal buscou soluções no aumento dos impostos incidentes sobre o consumo, causando descontentamento popular sobretudo porque a iniciativa poupava os grandes capitais e atingia diretamente os setores populacionais de rendimentos mais baixos. Ficou conhecido o juízo emitido por Fontes Pereira de Melo quando confrontado com as reclamações populares: “O povo pode e deve pagar mais”.61 O período também foi marcado pelas crescentes contestações ao regime monárquico. As ideias republicanas e socialistas ganhavam fôlego, sobretudo entre as mais novas gerações de artistas e intelectuais. Os movimentos revolucionários franceses de 1848 (instalação da II República) e 1871 (Comuna de Paris) certamente alimentaram o desejo por maiores mudanças. Os artistas e homens de letras, da chamada “Geração de 70” portuguesa, a qual Bordalo fez parte, viveram nestes anos da regeneração e se insurgiram contra ela. Para eles, o progresso material não bastava, pois o país era culturalmente provinciano, em comparação à França, à Inglaterra e à Alemanha, cuja produção intelectual e artística estes letrados tanto admiravam.62 Pensar Portugal estava na ordem do dia. Era necessário refletir sobre os sentidos e os rumos da nação, numa época de constante afirmação das nacionalidades, no Ocidente. Desejava-se equiparar o país às potências europeias, que se fortaleciam e se expandiam na corrida colonialista. Assim, surgiram projetos, muitas vezes dissonantes, com o do governo, que pretendia regenerar a pátria materialmente, com suas obras públicas. Entre esses projetos estava o dos jovens artistas e homens de letras, da geração de 70, que desejavam reformas profundas, em todos os campos, principalmente na cultura, nos comportamentos, na educação, nas consciências, enfim, regenerar o povo e a sociedade. Boêmios, estes letrados reuniam-se no Casino Lisbonense, espaço de convivência afetiva e fermentação de ideias. No início dos anos 1870, o grupo promoveu as chamadas Conferências democráticas do Casino Lisbonense, a fim de apresentar ideias, projetos e propostas para o país. Em meio aos jantares e rodas de conversa, os principais escritores e artistas da nova geração proferiram palestras sobre política, literatura, artes e vida social. Conforme visto anteriormente, Rafael Bordalo Pinheiro, frequentador do Casino, assistiu às conferências e caricaturou-as nas páginas da sua efêmera folha A Berlinda. 61 HOMEM, Amadeu Carvalho. Jacobinos, liberais e democratas na edificação do Portugal contemporâneo. In: TENGARRINHA, José (Org.). História de Portugal. São Paulo: Editora Unesp; Bauru, SP: Edusc; Lisboa: Instituo Camões, 2000, p. 271. 62 MACHADO, Álvaro Manuel. Op. cit. 31 Antero de Quental, considerado ícone do grupo, proferiu, em maio de 1871, no Casino, a conferência intitulada “Causas da decadência dos povos peninsulares nos últimos três séculos”. O autor refletiu sobre o atraso da península, expondo a visão histórica compartilhada por seu grupo, na qual a grandeza e a decadência alternavam-se na trajetória de Portugal. De acordo com o autor, os tempos medievais, em que Coimbra e Salamanca foram polos culturais da Europa, além da grandiosidade das conquistas ultramarinas, na Era Moderna, deram lugar a um período de apagamento, que teria atravessado os três séculos subsequentes, alcançando os Oitocentos. Segundo Quental, as causas de tal decadência recaíam na religião católica, radicalizada com a Inquisição e o Concílio de Trento, além da longa permanência do absolutismo monárquico.63 As Conferências do Casino, obviamente, incomodaram o governo, chefiado pelo Marquês de Ávila, que acabou por proibi-las, temendo o fortalecimento da oposição e das ideias republicanas. A nova geração questionava os fundamentos da portugalidade, compartilhando a ideia de que Portugal e sua sociedade se encontravam em franca decadência: “a consciência da decadência era geral, imperando uma visão pessimista quanto à viabilidade de possíveis melhoramentos.”64 O caráter essencialmente agrário e provinciano de grande parte da população, foi apontado como uma das causas para a degeneração do país. O grupo expressou outros olhares sobre o homem do campo, diferente da tradição romântica, que o havia idealizado. Autores como Almeida Garret (1799-1854), Júlio Dinis (1839-1871) e Alexandre Herculano traçaram um perfil incólume do camponês, dotado de pureza moral e religiosa, que os vícios e valores materiais não haviam pervertido65. A geração de 70, ao contrário, acompanhou o movimento de crítica ao homem do campo, apontado como sombrio, pessimista, atrasado e hostil à modernização da agricultura. Na definição do Grande dicionário da língua portuguesa (edição de 1871), do frei Domingues Vieira, a palavra “camponês” passou a designar o sujeito rude, grosseiro, inurbano, estúpido e descortês, equivalente às populações africanas, igualmente depreciadas pelo pensamento da época66. Nesse sentido, acreditou-se que era preciso educar, instruir e preparar o povo, visto negativamente, segundo as palavras de 63 QUENTAL, Antero de. Causas da decadência dos povos peninsulares nos últimos três séculos. In: MEDINA, João (Org.). História de Portugal. Amadora: Ediclube, s. d. , p. 295-342. 64 BERRINI, Beatriz. Brasil e Portugal: a geração de 70. Porto: Campo das letras, 2003, p. 38. 65 VAQUINHAS, Irene Maria. O campesinato. In: TORGAL, Luís Reis; ROQUE, João (Orgs.). História de Portugal. Vol. 05. O liberalismo. Lisboa: Estampa, p. 479-491. 66 Idem, p. 480. 32 Eça de Queiroz: “povo decadente, cujas últimas misérias aí estão para inspirar a compaixão ou o desespero, a dedicação ou a blasfêmia, o amor ou o insulto”.67 Nesse sentido, a estética realista, valorizada pelo grupo, nos anos 1870, contribuiu com seus desígnios de “dar a verdade ao povo”, que “necessitava de cruéis lições educadoras”.68 Em artigo no periódico As Farpas, Ramalho Ortigão elogiou a pintura de Rafael Bordalo Pinheiro, exposta no Salão da Sociedade Promotora de Belas Artes, em 1872. O crítico de arte atribuiu características realistas ao trabalho do jovem ilustrador.69 Sua obra caricatural também foi apontada como expressão de um grupo que desejava educar a sociedade e regenerar Portugal, a partir da consciência a respeito do estado de decadência do país. Assim, a produção bordaliana destacava-se em meio ao grupo: A Geração de 70, portanto, compreendia outros talentos que não somente aqueles que usavam da palavra como veículo de expressão; se, no final do século, muitos dos artistas plásticos e músicos procuraram na França os seus modelos e a sua inspiração, a verdade é que somente um integrou plenamente o grupo de 70: Rafael Bordalo Pinheiro. Os demais espíritos podiam até estar dele bastante próximos pela idade, mas não estavam imbuídos da visão a respeito da profunda decadência do país nem se sentiam inflamados pelo ideal da revolução.70 Foi neste contexto que surgiu o Zé Povinho. A figura veio a público pela primeira vez em 19 de junho de 1875, na edição n. 05 do periódico A Lanterna Mágica, concebido por Bordalo e até aquele momento, a mais expressiva, se comparada às anteriores. A publicação tinha oito páginas, equivalente às suas congêneres estrangeiras. O projeto foi audacioso, pois a periodicidade que no início era semanal passou para diária, a partir da oitava edição. Os desenhos eram assinados por Bordalo Pinheiro e pelo desenhista Manuel de Macedo (1839-1915), enquanto os textos ficavam a cargo dos escritores Guerra Junqueiro (1850-1923) e Guilherme de Azevedo (1840-1882).71 67 QUEIROZ, Eça de. Prosas da época de Coimbra. Apud MACHADO, Álvaro Manuel. Op. cit., p. 671. 68 BERRINI, Beatriz. Op. cit., p. 31-32. 69 O realismo surgiu como novidade nas artes portuguesas na fala de Eça de Queiroz, proferida nas “Conferências do Casino”, em julho de 1871. Ramalho Ortigão também elogiou a nova proposta, como “espírito moderno”, n’As Farpas, em 1872. De acordo com José-Augusto França, a geração de 70 portuguesa entusiasmou-se com a estética realista durante os anos 1870, mas na década seguinte, o grupo valorizou sobretudo o naturalismo FRANÇA, José-Augusto. História da arte em Portugal. Pombalismo e romantismo. Lisboa: Presença, 2004, p. 134-135. 70 BERRINI, Beatriz. Op. cit., p. 45. Grifos da autora. 71 Guilherme de Azevedo nasceu em Santarém (Portugal) e morreu em Paris. Foi poeta e jornalista. Era coxo e tinhas problemas de saúde, aos quais se atribuiu sua personalidade retraída. Publicou, entre outras obras, as coletâneas de poemas Aparições (1867), Radiações da Noite (1871) e Alma Nova (1874). Foi correspondente em Paris do jornal brasileiro Gazeta de Notícias (RJ, 1875-1956) entre os anos de 1880 e 1882. Guerra Junqueiro foi jornalista, poeta e político português. Publicou, entre outros, A velhice do pai 33 Na primeira página, estampava-se a autoria do periódico, a cargo de Gil Vaz, pseudônimo coletivo que abrangia Bordalo, Junqueiro e Azevedo. Os três artistas figuraram no desenho da folha, com suas cabeças encobertas por uma grande cartola, dividindo o par de sapatos e empunhando o crayon.72 O título do periódico, “a lanterna mágica”, demonstrava o fascínio daquela geração pela modernidade. O aparelho, desenhado abaixo do título, consistia em uma caixa iluminada por dentro, que projetava cenas desenhadas em um rolo de papel, antecessor do processo cinematográfico. O encarte da capa, mais simples, apresentava as informações do expediente: Fig. 04: Capa d’A Lanterna Mágica Fig. 05: Encarte d’A Lanterna Mágica Fonte: A Lanterna Mágica, Lisboa, n. 01, capa, 15 maio 1875. Hemeroteca Municipal de Lisboa Fonte: A Lanterna Mágica, Lisboa, n. 05, 19 jun. 1875. Hemeroteca Municipal de Lisboa Ao longo dos exemplares, pequenos desenhos, representando uma lanterna mágica, figuraram em vinhetas, alocadas entre os textos. Assim, apresentavam-se ao público, os acontecimentos da semana como se fossem cenas projetadas pela lanterna mágica, valendo-se da pena dos caricaturistas e das potencialidades dos processos de produção de imagens em larga escala. No programa, os idealizadores expuseram seu desejo de transformação, em especial, a reforma das consciências e dos poderes estabelecidos, por meio da monarquia e da Igreja: “Gil Vaz traça um programa desta eterno (1885); Os Simples (1892) e Pátria (1915). COELHO, Jacinto Prado. Dicionário de literatura portuguesa. Porto: Figueirinhas, 1994, p. 80; 513-516. 72 MATOS, Álvaro Costa de. Ficha histórica: A Lanterna Mágica. Hemeroteca Municipal de Lisboa. Disponível em: http://hemerotecadigital.cm-lisboa.pt/FichasHistoricas/ALanternaMagica.pdf. Acessado em 01 jul. 2017. 34 forma: - Doutrina clara e franca: entende que precisam de reforma as consciências, a carta e a roupa branca”73. No mês de junho, quando os portugueses comemoravam a forte tradição popular e católica da festa de Santo Antônio, Rafael Bordalo criou a cena em que surgiu o Zé Povinho, para satirizar a cobrança de impostos do governo liberal.74 Na seção “Calendário português”, o artista ridicularizou Fontes Pereira de Melo, encarnando o próprio Santo Antonio, com o rei D. Luís I ao colo, caricaturado como um bebê nas mãos do ministério. António de Serpa Pimentel (1825-1900), ministro da Fazenda, estendeu o pires para receber o dinheiro, “pra cera de Santo Antônio...”. Pelo ar, voaram moscas com cabeças de ministros e políticos. A cena foi acompanhada pelos olhares do chefe da guarda municipal, que apesar da apatia, vigiou atentamente para garantir o pagamento: Fig. 06: Calendário Português Fonte: BORDALO Pinheiro, Rafael. Calendário português. A Lanterna Mágica, Lisboa, n. 05, p. 36-37, 19 jun. 1875. Hemeroteca Municipal de Lisboa Legenda: Santo Antônio de Lisboa – Pra cera de Santo Antônio... A atmosfera que permeou o quadro foi a do ranço religioso representado pelas velas derretidas e pela referência à tradição do padroeiro lisboeta. O ministro da 73 A Lanterna Mágica, Lisboa, n. 01, p. 02, 15 maio 1875. 74 Esta edição d’A Lanterna Mágica saiu em 12 de junho de 1875, às vésperas do feriado de Santo Anónio de Lisboa (13/06), mas imprimiu-se a data errada, constando 19/06/1875. 35 Fazenda simbolizou a decadência monárquica, trajando roupas velhas e pés descalços, passando um pires como se pedisse esmolas. Zé Povinho reuniu as características negativas que a geração de 70 atribuía ao povo português, com seus andrajos remendados, calçados furados, além do semblante boquiaberto, um tanto bestial, que mesclou incompreensão e surpresa. Coçando a cabeça, pagou em moedas a esmola/imposto. Bordalo fez questão de identificar a figura, escrevendo seu nome nas calças: “Seu Zé Povinho”, diminutivo de povo, que o personagem representaria a partir de então. O desenho figurou nas páginas centrais daquele exemplar, onde os editores das revistas ilustradas publicavam as imagens que teriam destaque. Bordalo aproveitou para fazer uma série satirizando os festejos dos outros dois santos católicos, comemorados em junho. Zé Povinho reapareceu em desenho que ridicularizou o ministro do reino, António Rodrigues Sampaio (1806-1882), representando São Pedro, na edição de 26 de junho. O artista fez analogia entre a passagem bíblica da negação de Cristo, por Pedro, e a situação do ministro, que renegou seu passado de oposição ao regime regenerador de Fontes, aderindo a ele, como ministro. Zé Povinho apareceu de cócoras e boquiaberto. A barba, símbolo da virilidade masculina, que também representava o luto, tristeza e melancolia, apareceu mais acentuada.75 Bordalo acrescentou ao nome do Zé Povinho a expressão “sempre o mesmo”, que acompanhou o personagem em outras aparições: 75 De acordo com José Leite de Vasconcelos, até o século XX, a barba simbolizava o luto em algumas cidades portuguesas. Os homens deixavam de raspar os pelos do rosto dependendo do grau de parentesco com o ente falecido. O autor lembrou ainda que um dos personagens de Camilo Castelo Branco, no livro Brasileira de Prazins (1834), deixou de se barbear por tristeza. VASCONCELOS, José Leite. A barba em Portugal. Lisboa: Dom Quixote, 1996, p. 382. 36 Fig. 07: Calendário Português Fonte: BORDALO Pinheiro, Rafael. Calendário português. A Lanterna Mágica, Lisboa, n. 07, p. 52-53, 26 jun. 1875. Hemeroteca Municipal de Lisboa Legenda: Você é... Nãão senhor... Sempre o mesmo S. Pedro... Paio (A negação). Certamente a figura fez sucesso imediato. No exemplar seguinte, n. 08, quando a publicação tornou-se jornal diário, os idealizadores de A Lanterna Mágica acrescentaram o Zé Povinho entre as figuras desenhadas na primeira página. O personagem destacou-se por seu tamanho maior que as demais caricaturas, deitado, sobre o qual escalaram pequenos cavalheiros de cartola, clérigos, damas, além dos próprios Bordalo, Guerra Junqueiro e Guilherme de Azevedo, manipulando a lanterna mágica. O Zé figurou na página inicial em todas as edições até o desaparecimento da folha, no final de julho de 1875: 37 Fig. 08: Primeira página d’A Lanterna Mágica Fonte: A Lanterna Mágica, Lisboa, n. 08, p. 01, 01 jul. 1875. Hemeroteca Municipal de Lisboa Nascido na época da chamada Revolução Liberal de 1834, Zé Povinho tinha por volta de 40 anos de idade, na ocasião da sua criação, em 1875.76 Era o camponês, que vivia entre a cidade e o campo. Tinha um filho, o Zé Povinho Júnior, que apareceu na obra bordaliana somente uma vez, ainda em 1875, vadiando pela região do Rossio, com o dedo no nariz. Zé também tinha uma esposa, a Maria da Paciência, que apareceu anos mais tarde, nas páginas de O António Maria (Lisboa, 1879-1885). Numa leitura mais generalista, sem levar em conta as mudanças e permanências nos usos do personagem, José Augusto França apontou o Zé como indivíduo que conservava certa pureza e inocência do homem do campo, como o “bom selvagem” de Rousseau.77 O Zé Povinho apareceu constantemente nas páginas do jornal A Lanterna Mágica, conforme é possível observar por meio da tabela n. 01, abaixo. A partir destas 76 Foi possível atribuir idade ao personagem a partir do perfil traçado por Ramalho Ortigão, no Album das Glórias. De acordo com o autor, em 1882, Zé Povinho teria por volta de 50 anos. BORDALO Pinheiro, Rafael; ORTIGÃO, Ramalho (João Ribaixo). Zé Povinho. Album das Glórias, Lisboa, nº 32, set. 1882. Disponível em: www.bnportugal.pt. Acesso em 07/11/13. 77 FRANÇA, José-Augusto. Zé Povinho na obra de Rafael Bordalo Pinheiro 1875-1904. Lisboa: Bertrand, 1975, p. 15 e 25. 38 informações tabeladas obteve-se uma visão geral da série documental, tendo em vista a frequência e as temáticas sobre as quais o personagem figurou no jornal ilustrado. Os dados demonstraram que após a primeira aparição houve certa hesitação por parte do autor em caricaturar novamente o personagem. O Zé foi retomado somente dois exemplares depois. Porém, no momento em que A Lanterna Mágica tornou-se diária, a figura apareceu em praticamente todos os exemplares. Percebeu-se também que em quase todas essas situações a caricatura foi nomeada por Bordalo Pinheiro, visto que era necessário fixar seu nome, diante do público leitor, que ainda não o conhecia: 39 Tabela n. 01 - Aparições do Zé Povinho n’A Lanterna Mágica (Lisboa, 1875) Data Número Nomeação Página Título/Descrição Observações 12 jun. 1875 05 Nomeado pelo autor. 36-37 “Calendário português”. Zé Povinho pagou o imposto ao ministro Serpa Pimentel, nos festejos de Santo António. 26 jun. 1875 07 Nomeado pelo autor. 52-53 “Calendário português”. Zé Povinho figurou de cócoras, diante do ministro Sampaio Rodrigues, nos festejos de São Pedro. 01 jul. 1875 08 Não nomeado Capa A figura do Zé Povinho emoldurou a capa. Reapareceu na capa de todas as edições seguintes, totalizando 30 aparições. 08 jul. 1875 14 Nomeado pelo autor. 83 “Atualidades – Companhia dos Caminhos de Ferro”. Zé Povinho não reagiu ao aumento das tarifas de comboio, “ficando sempre na mesma”. 16 jul. 1875 21 Nomeado pelo autor. 111 “Atualidades – Ainda a revolução e a Rua dos Retrozeiros”. Zé Povinho continuou “sempre o mesmo” diante dos acontecimentos na Rua dos Retroseiros. 17 jul. 1875 22 Nomeado pelo autor. 115- 116 “Atualidades – Zé Povinho e as tarifas”. Diálogos entre o Zé Povinho e os políticos, no contexto do aumento das tarifas de comboio. 20 jul. 1875 24 Nomeado pelo autor. 123 “Atualidades – Preparativos para a parada de 24 de julho”. Zé Povinho ajoelhou-se diante de Fontes Pereira de Melo, que se preparava para a parada militar de 24 de julho. 21 jul. 1875 25 Não nomeado. 127 “Atualidades – Preparativos para a parada de 24 de julho”. Zé observa com entusiasmo os preparativos para a parada militar de 24 de julho de 1875. Nomeação genérica atribuída pelo autor, como “povinho”. 22 jul. 1875 26 Nomeado pelo autor. 131 “Atualidades – Preparativos para a parada de 24 de julho”. Zé Povinho Júnior, filho do Zé, coça o nariz, enquanto os ministros do império organizam a parada militar de 24 de julho. Zé Povinho Júnior. 24 jul. 1875 28 Nomeado pelo autor. 139 “Atualidades – Preparativos para a parada de 24 de julho – reverso da medalha”. Ainda a respeito da parada de 24 de julho, Zé Povinho ri do evento, enquanto olha com medo para a crise das províncias. 27 jul. 1875 29 Nomeado pelo autor. 143 “Atualidades – Durante a parada de 24 de julho e depois da parada”. Zé Povinho diante da parada militar de 24 de julho, percebe que os soldados são sempre os mesmos. 28 jul. 1875 30 Nomeado pelo autor. 148 “Atualidades – Ainda a parada”. Zé Povinho dormiu diante da parada militar de 24 de julho, e o autor reclamou a exuberância do evento, em contraste com a falta de escolas. 30 jul. 1875 32 Nomeado pelo autor. 155 “Atualidades – Um viajante”. Zé Povinho despediu-se de Portugal (na figura do príncipe D. Augusto), que partiu em viagem para o mar. Fonte: Elaborada pelo próprio autor. 40 Na maioria das vezes, Bordalo caricaturou a figura diante dos acontecimentos relativos ao aumento dos impostos e das passagens de comboio, bem como a parada militar que o governo organizou em 24 de julho, em comemoração ao aniversário da vitória liberal de 1833. Esses assuntos aguçavam as discussões públicas na imprensa, durante aqueles meses. Por isso, a seção na qual o Zé figurava tinha o nome de “Atualidades”. Zé Povinho variou entre a indiferença e a intervenção diante dos acontecimentos que presenciou. Nas páginas de A Lanterna Mágica, o caricaturista modificou e experimentou seu personagem, ainda em adaptação, na forma e no sentido. Bordalo estava em busca de um modelo. O ilustrador criticou o aumento das passagens de comboio ridicularizando os ministros do governo regenerador de Fontes como se fossem cozinheiros, alimentando os vagões. Ao seu lado, apareceram três figuras femininas simbolizando as “sras. Escolas Primárias”, abandonadas pela coroa como velhas senhoras famélicas e cadavéricas. O Zé Povinho figurou como indivíduo aparvalhado que presenciou inerte os acontecimentos, “sempre na mesma”, sem compreendê-los. O corpo, antes esguio e de estatura mais alta deu lugar a uma silhueta atarracada e rotunda. Nem mesmo o Bispo de Viseu, António Alves Martins (1808-1882), do Partido Reformista, que fazia oposição aos regeneradores, foi capaz de despertar a atenção desta figura: 41 Fig. 9: Atualidades - Companhia dos Caminhos de Ferro Fonte: BORDALO Pinheiro, Rafael. Companhia dos Caminhos de Ferro. O aumento das tarifas. A Lanterna Mágica, n. 14, p. 83, 08 jul. 1875. Hemeroteca Municipal de Lisboa 42 A postura do Zé Povinho foi ridicularizada, assim como a representação dos governantes, dessacralizados da sua posição de poder. Enquanto os ministros do Partido Regenerador figuraram em trajes de cozinheiro, o Bispo de Viseu foi caricaturado com as roupas e os gestos de uma velha matrona, ameaçando abandonar a vida pública. Bordalo e o seu grupo criticaram o abandono ao qual o governo monárquico relegava a instrução pública, em benefício dos melhoramentos materiais. Para estes letrados, a educação e a cultura eram o caminho para a regeneração moral do país. O estado da população e o decadentismo social eram fruto da falta de investimentos nesse sentido. A narrativa destas imagens caricaturais foi disposta em pequenos quadros. Nestas aparições, Zé Povinho foi nomeado pelo autor, enquanto as imagens foram explicadas, por meio das legendas, para garantir o humor, visto que seu sentido não se revelaria por si só. Tratou-se de uma época do século XIX, na qual a linguagem visual se difundia, mas a palavra ainda possuía preponderância enquanto recurso comunicativo. Assim, a textualidade verbal consistia em importante complemento das estratégias de derrisão utilizadas na caricatura desse período. Ilustração e texto se completavam enquanto itens constitutivos da caricatura, como se verá adiante. No exemplar n. 22, Rafael Bordalo Pinheiro caricaturou a oposição ao governo vigente tentando despertar a consciência do Zé Povinho, a respeito da situação em que vivia. Os oposicionistas foram designados genericamente, nas legendas, como “Oposições da Silva”, enquanto o Zé foi chamado de “Zé Povinho da Costa”. O líder dos políticos retratados era Anselmo José Braamcamp (1817-1885), um monarquista que se opunha ao governo do Partido Regenerador. Braamcamp apareceu em trajes femininos, como uma senhora conselheira. No enredo, Zé voltou a pé da cidade do Porto, até Lisboa, pois não tinha dinheiro para pagar a nova tarifa do comboio. Desta vez, o personagem dialogou com seus interlocutores, intervindo na questão: 43 Fig. 10: Atualidades – Zé Povinho e as tarifas Fonte: BORDALO Pinheiro, Rafael. Zé Povinho e as tarifas (diálogo). A Lanterna Mágica, Lisboa, n. 22, p. 115-116, 17 jul. 1875. Hemeroteca Municipal de Lisboa 44 As oposições propuseram ao Zé Povinho que deixasse de servir seu patrão, o governo, para servi-las, ao que o personagem, desconfiado, não aceitou: “Home essa...! Vocês diz [sic] que são tão bons como os outros”. Os oposicionistas apresentaram nova proposta ao povo: fazer-lhe a barba, lavá-lo e ensiná-lo a ler. Zé também não aceitou, pois daria muito trabalho. Além disso, o governo lhe mostraria as tropas e a criadagem bem vestida, na parada de 24 de julho. No diálogo com os oposicionistas, Zé Povinho reconheceu seu estado de espoliação, mas afirmou gostar da situação, das suas “reinações” e de dormir. Ao final, Anselmo Braamcamp percebeu que seria um desafio convencer o Zé Povinho. O oposicionista designou o personagem como “mandrião” (sinônimo de preguiçoso e indolente), que se contentava com pouco: “Que tipo!... Não percebe que é o dono da casa e contenta-se em ser um bom criado. É perigoso educa-lo; o que custará muito, pois é um mandrião e contenta-se com pouco”.78 Evidentemente estes políticos da oposição foram ridicularizados, em sua postura, quase inútil, de despertar essa parcela da população da sua inércia. O Zé, por sua vez, também foi alvo de derrisão. A figura teria consciência da sua condição de exploração, mas preferia permanecer naquele estado, nada fazendo contra a sua apatia. É importante observar o formato do corpo do Zé, atarracado e rotundo, bastante diferente das suas duas primeiras aparições. Quando se deitou, diante de Braacamp, nas últimas tirinhas, seu ventre apareceu bastante avantajado. O detalhe não era fortuito. Tratava-se de uma estratégia de zombaria difundida entre os caricaturistas. Em analogia às alegorias religiosas, “engordar” simbolizava a baixeza corporal, associada aos vícios e pecados da comilança e da esbórnia, em oposição à grandeza espiritual do sacrifício e do jejum79. Por isso, as formas corpóreas do Zé se modificaram. Num dos quadrinhos, na coluna esquerda, ele apareceu sentado, de pernas abertas, como se o caricaturista quisesse empurrá-lo para baixo, ou seja, para o raso terreno, de modo a degradá-lo e deprimi-lo. Nestas primeiras aparições, o Zé Povinho preferia assistir à parada de 24 de julho a tentar reverter sua situação. Na opinião dos editores do jornal, o desfile serviria 78 BORDALO Pinheiro, Rafael. Zé Povinho e as tarifas (diálogo). A Lanterna Mágica, Lisboa, n. 22, p. 116, 17 jul. 1875. 79 A acentuação de um corpo nédio obtém maior sucesso na conquista do riso ao contrário do corpo delgado ou esquálido. HOMEM, Amadeu Carvalho. Riso e poder: uma abordagem teórica da caricatura política. Cultura - Revista de História das Ideias, Coimbra, Instituto de História e Teoria das Ideias, vol. 28, p. 746-747, 2007. 45 para distrair as atenções e o descontentamento popular pelo aumento das tarifas dos comboios. Por isso, os preparativos para o evento foram acompanhados e retratados cotidianamente pelo grupo de A Lanterna Mágica. Tratava-se de uma comemoração cívica, a respeito de um evento tido como fundador da monarquia liberal, governo então vigente, que havia derrotado o absolutismo. Rafael Bordalo Pinheiro ridicularizou a organização da festa, caricaturando os ministros regeneradores e o rei D. Luís I, como crianças brincando de soldadinho. Ao lado deles, apareceu o Zé Povinho Júnior, filho do Zé, deitado no chão do Rossio, com o dedo no nariz: Fig. 11: Atualidades – Preparativos para a parada de 24 de julho Fonte: BORDALO Pinheiro, Rafael. Atualidades. A Lanterna Mágica, Lisboa, n. 26, p. 131, 22 jul. 1875. Hemeroteca Municipal de Lisboa Legenda: Que tendência para a guerra!!! Que tendência para a paz!!! Os meninos grandes. Mais uma vez os governantes do país foram destronados da sua sacralidade política, ridicularizados em posturas infantis, com soldadinhos de chumbo e chapéu de jornal. Na legenda, Bordalo ironizou: “Os meninos grandes”, acrescentando, à mão, os dizeres: “Que tendência para a guerra”. Sobre o Zé Júnior, vaticinou: “Que tendência para a paz”. Assim, o personagem figurou novamente, como preguiçoso e indolente, que nada faria para reverter sua situação de abandono pelos poderes estabelecidos. Os 46 responsáveis pela publicação zombaram, portanto, do patriotismo comemoracionista da monarquia. Na opinião deles, de nada adiantaria comemorar o 24 de julho, enquanto data cívica e patriótica, se as condições do povo muito contrastavam com o fausto da parada militar. Após a realização dos festejos, Rafael Bordalo Pinheiro caricaturou a presença do Zé Povinho no evento. O ilustrador criticou novamente o contraste entre a exuberância militar da parada e o abandono ao qual se relegava a instrução pública no país. O desenhista caricaturou o desfile afirmando que em vez de oferecer “riquíssimas artilharias”, os governantes deveriam oferecer ao povo “riquíssimas escolas primárias”. O Zé apareceu sentado, de pernas abertas, entusiasmado com a passeata da armada, mas figurou, abaixo, dormindo, diante da passagem das ricas instituições escolares, idealizadas pelos autores, na figura de mulheres opulentas. Abaixo deles, Bordalo retomou as três senhoras cadavéricas simbolizando a educação portuguesa abandonada: Fig. 12: Atualidades – Ainda a parada 47 Fonte: BORDALO Pinheiro, Rafael. Ainda a parada. A Lanterna Mágica, Lisboa, n. 30, p. 148, 28 de jul. 1875. Hemeroteca Municipal de Lisboa Zé não se interessava por escolas. Entusiasmava-se, porém, com as demonstrações de força da monarquia. Como é possível observar, a figura catalisou o pensamento destes letrados da geração de 1870 que desprezavam o processo de regeneração material do país, levado a cabo pelo governo constitucional. Estes homens de letras acreditavam que somente a regeneração espiritual, ou seja, a cultura, o conhecimento e a educação seriam capazes de aplacar o decadentismo português que, de acordo com o grupo, atravessava os séculos. Em instigante análise, a partir de uma única caricatura sobre o Zé Povinho, Raquel Henriques da Silva constatou que a postura de inércia da personagem, diante dos acontecimentos, ridicularizaria os governantes, que, sem sucesso, tentavam despertá-lo para trabalhar e produzir. O personagem ria dos reis e dos ministros que procuravam levantá-lo. De acordo com esse raciocínio, Bordalo tentava provocar muito mais o povo português, em sua postura de conivência e desistência constante, que os próprios governantes. Para o artista e sua geração, a apatia persistente teria impedido a grandeza do país na era contemporânea.80 Tal reflexão é fundamental para compreender os sentidos do personagem. Entretanto, é preciso cuidado com as generalizações. A figura foi mobilizada por Rafael Bordalo Pinheiro em diversos momentos de sua atuação na imprensa. Seus usos mudaram no tempo e no espaço, ou seja, há uma historicidade na personagem que demanda reflexões. No geral, a imagem do Zé Povinho foi tomada pelos admiradores de Bordalo como símbolo de luta contra o autoritarismo e a exploração do povo, assim 80 SILVA, Raquel Henriques da. O Zé Povinho de Rafael Bordalo Pinheiro: uma retórica da ambivalência. Revista do Instituto História da Arte, Lisboa, n. 03, p. 238-253, 2007. A autora restringiu sua análise a uma única aparição do Zé Povinho, publicada no jornal O Antonio Maria, em 1880. Esta imagem será objeto de análise, no próximo capítulo deste trabalho. 48 como a memória do seu criador. Tais apropriações produziram uma visão única sobre a obra bordaliana, como se seus posicionamentos fossem invariáveis em trinta e cinco anos de atuação na imprensa periódica. Após a morte do ilustrador, em 1905, houve apropriação de sua imagem pelo movimento republicano, em Portugal. No velório do autor, o médico Antonio José de Almeida (1866-1929), um dos líderes do republicanismo português, proferiu o discurso de homenagem ao artista.81 A figura do Zé Povinho também foi tomada como símbolo da propaganda republicana, em publicações que reproduziram os desenhos de Bordalo, como Salve, heroica cidade de Lisboa – Viva a República (Porto, 1910); O Culto da Bandeira (Porto, 1911); Pró-Pátria (Porto, 1912) e Pátria e República (Porto, 1913).82 Nas comemorações do centenário de criação do Zé Povinho, em 1975, houve nova apropriação da imagem de Bordalo e seu personagem, em diversas exposições, catálogos e livros publicados na ocasião. Neste contexto, Bordalo e o Zé Povinho foram mobilizados como ícones da liberdade e da democracia, refletindo o contexto político de mudanças, com o fim da ditadura salazarista e início do período democrático. No catálogo da exposição Zé Povinho fez 100 anos, foi possível identificar este uso da personagem como símbolo da “marcha irresistível” do povo português em busca da liberdade: Passando o centenário da publicação da estampa onde aparece, pela primeira vez, a figura símbolo, num momento tão decisivo, como o que estamos vivendo, para afirmação do povo português, na sua marcha irresistível a caminho de atirar, finalmente com a albarda, esse odioso símbolo dum passado de opressão, miséria e obscurantismo religioso, reveste-se de flagrante oportunidade esta exposição, através da qual tentamos uma panorâmica completa quanto possível da interpretação gráfica do Zé Povinho através da caricatura, desde a sua invenção em 1875. Esperamos com ela ajudar a compreender o que ele é ou o que ele tem sido para o consciencializar sobre o que ele pode ser83 O Zé Povinho surgiu em 1875, como expressão de Bordalo acerca da decadência social e cultural portuguesa, contra a qual a geração de 1870 se insurgiu. A cena de sua primeira aparição, na cobrança de impostos, “pra cera de Santo Antonio” evidenciou suas críticas à monarquia, ao regime liberal, à igreja e ao povo provinciano, 81 MEDINA, João. Caricatura em Portugal. Rafael Bordalo Pinheiro, pai do Zé Povinho. Lisboa: Edições Colibri, 2008, p. 70-73. 82 NEVES, Álvaro. Rafael Bordalo Pinheiro. Inventário da obra artística do desenhador. Lisboa: Academia das Ciências; Coimbra: Imprensa da Universidade, 1920. 83 MOITA, Irisalva. Porque a exposição Zé Povinho fez 100 anos. In: Zé Povinho fez 100 anos. Catálogo da exposição. Lisboa: Câmara Municipal, Centro de Artes Plásticas dos Coruchéus, 1976, p. 03-04. 49 considerados como categorias do atraso. Desde então, o ilustrador mobilizou a personagem em diferentes contextos. Porém, a figura cristalizou-se como símbolo da luta pela liberdade, graças às apropriações do movimento republicano e das comemorações do centenário do Zé, em 1975, momento de reabertura política após anos de ditatura salazarista. Somente a análise sistemática das aparições do Zé Povinho permitirá compreender as mudanças e as permanências nos seus usos, em meio à produção bordaliana. Para tanto, é necessário ter em vista o contexto, o funcionamento dos diversos suportes periódicos que o artista empreendeu, além das suas relações com os diferentes grupos de poder. A identificação da historicidade da personagem e suas