1 UMA BRAÇA E DOIS PALMOS 2 3 Bruno Brito UMA BRAÇA E DOIS PALMOS Dissertação apresentada ao Programa de Pós-Gradua- ção em Artes Visuais, linha “Processos e Procedimen- tos Artísticos” do Instituto de Artes da UNESP, como exigência parcial para obtenção do Título de Mestre em artes visuais, sob a orientação do Prof. Dr. José Spaniol. São Paulo, 2018 4 Ficha catalográfica preparada pelo Serviço de Biblioteca e Documentação do Instituto de Artes da UNESP B862u Brito, Bruno, 1992-. Uma braça e dois palmos / Bruno Brito. - São Paulo, 2018. 47 f. : il. Orientador: Prof. Dr. José Paiani Spaniol. Dissertação (Mestrado em Artes) – Universidade Estadual Paulista “Julio de Mesquita Filho”, Instituto de Artes. 1. Almeida Júnior, José Ferraz de - 1850-1899. 2. Pintura - Apreciação. 3. Vida rural. 4. População rural. 5. Pintura brasileira - Séc. XIX. I. Spaniol, José Paiani. II. Universidade Estadual Paulista, Instituto de Artes. III. Título. CDD 759.981 (Mariana Borges Gasparino - CRB 8/7762) 5 Bruno Brito UMA BRAÇA E DOIS PALMOS ____________________________________________ Prof. Dr. José Paiani Spaniol (IA/UNESP) (Orientador) ____________________________________________ Prof. Dra. Maria Cecília França Lourenço (FAU/USP) ____________________________________________ Prof. Dra. Fernanda Mendonça Pitta (Pinacoteca/SP) São Paulo, maio de 2018. 6 7 UMA BRAÇA E DOIS PALMOS 8 9 RESUMO O presente trabalho discute algumas questões que acompanham minha produção artística desde 2013, como a recorrência de procedi- mentos tradicionais construtivos e a proximidade com as medidas do corpo, assim como os métodos vernaculares de medição empregados na estruturação de projetos. Este pensamento construtivo desenvolvi- do através da prática em artes visuais resultou em algumas impressões acerca da espacialidade nas pinturas de Almeida Júnior, principalmente nos quadros da fase regionalista, onde o pintor retrata cenas do interior paulista. Assim, foi feita uma leitura das imagens a partir dos elementos compositivos da paisagem, dos objetos e dos gestos dos personagens, ilustrando os argumentos por meio de dados e características recorrentes no cotidiano rural de comunidades caipiras e caiçaras. Desse modo, o estudo descreve a organização espacial dessas populações e as relações do homem com o seu território: físico, geográfico e subjetivo, imaterial. PALAVRAS-CHAVE Almeida Júnior; território caipira, medição vernacular; espaço; paisagem; pequena propriedade rural. 10 11 ABSTRACT This dissertation discusses some issues that accompany my ar- tistic production since 2013, such as the recurrence of traditional cons- tructive procedures and the proximity to body measurements, as well as vernacular measurement methods used in project design. This construc- tive thinking developed through in the visual arts practice has resulted in some impressions about the spatiality in Almeida Júnior’s paintings, mainly in the the regionalist phase works, where the painter depicts scenes from the interior of São Paulo. Thus, a reading of the images was made from the compositional elements of the landscape, the objects and the gestures of the characters, illustrating the arguments through data and recurrent characteristics in the rural daily life of caipiras and caiça- ras communities. Thus, the study describes the spatial organization of these populations and the relations of man with his territory: physical, geographical and subjective, immaterial. KEY WORDS Almeida Júnior; caipira’s territory, vernacular measurement; spa- ce; landscape; small rural property. 12 13 AGRADECIMENTOS Minha família e seus conhecidos espalhados pelo Vale do Paraíba, Litoral Norte de São Paulo e Sul de Minas Gerais, todos os momentos divididos com vocês foram fundamentais na elaboração deste trabalho. Em especial meus pais, tão presentes, solícitos e carinhosos. Mariana Amorim, minha grande companheira, pela sua alegria diária e seu incentivo fervoroso. Avante. Meus amigos mais próximos: Raphael Amaral, pelas muitas horas de conversa e articulações regionais em curso. Paulo Nimer e Thiago Hattnher, pela recepção carinhosa e pelas trocas musicais. João Livra, pelo otimismo e perseverança de sempre. Felipe Vieira, por toda sua expertise compartilhada e a prontidão no batente. Aos conterrâneos Mariano, Caiana e Alcântara, vocês são demais, 501. Professor José Leonardo, por seu vasto repertório sertanejo. Meu orientador, José Spaniol, pelas ricas trocas durante esse período. Fernanda Pitta, pela atenção e pelo cuidado com meus escritos. Agnaldo Farias, pela leitura atenta e pelos comentários construtivos na qualificação. Peter Németh, pelo lindo glossário caiçara de Ubatuba e pelos pormenores da canoa de um tronco só. Chico Dias de Andrade, por compartilhar seu rico acervo e por seu trabalho tão esclarecedor sobre as técnicas construtivas vernaculares. Ao porta-voz da vida rural do Vale do Paraíba, Francisco Lacaz Ruiz, o “Chico Abelha”, pelo seu vasto material videográfico compar- tilhado na internet, cujo conteúdo me deu as chaves para concluir este trabalho. 14 Aos finados pesquisadores Alceu Maynard Araújo, Emílio Willems, Carlos Borges Schmidt, Antonio Candido, Gioconda Musso- lini e tantos outros, que com generosidade, deixaram seus atemporais estudos sobre os modos de vida caipira e caiçara, estejam em paz. Ao CNPq, pela Bolsa de Pesquisa de Mestrado, que me propor- cionou a dedicação necessária. 15 UMA BRAÇA E DOIS PALMOS “Eu estudei a cultura caipira durante muitos anos, mas queria observar o seguinte: essa é cultura dentro da qual eu fui criado...eu não falo do mundo caipira apenas como um estudioso, eu falo do mundo caipira como um participante”. Antonio Candido 16 17 SUMÁRIO 19 Introdução 23 Preâmbulo Uma Braça e Dois Palmos 27 A Construção de um Repertório Visual 43 A Pequena Propriedade Rural Paulista e os Sistemas Vernaculares de Medição 43 Os personagens, os objetos e o espaço 45 Um criador de imaginários 46 O pintor como narrador onisciente 51 Homem e ambiente 51 Autonomia e destreza 54 Compartilhamento de repertório 57 O ovo do macuco 65 Sistemas vernaculares de medição 66 As medidas e os processos vitais 75 Território simbólico e cartografia coletiva 79 Georreferenciamento 79 O deslocamento como unidade de medida 83 A pintura como documento 87 Considerações finais 91 Bibliografia 18 19 INTRODUÇÃO Por meio de um referencial pessoal adquirido em grande parte durante a infância e adolescência nas proximidades do Vale do Paraíba, Sul de Minas e Litoral Norte de São Paulo, minha produção plástica passou a fazer uso de procedimentos tradicionais construtivos e recorrer a um vocabulário de formas e modos de fazer comuns a essas regiões. Durante este período, outro evento importante para a compreensão des- te trabalho foi minha passagem pela Etec Cônego José Bento em 2010, também conhecida por Escola Agrícola de Jacareí, onde cursei durante um ano, o Técnico Florestal, no qual pude me aproximar das bases práticas e teóricas que regem uma propriedade rural como: produção vegetal, reprodução de plantas, mecanização florestal, planejamento e uso de solo, gestão ambiental, viveiricultura e instalações florestais. A partir da minha primeira exposição individual intitulada Uma Braça e Dois Palmos, realizada em 2014, algumas noções de medida passaram a fazer parte do meu processo de trabalho, se desdobrando em instalações ao ar livre (Réguas, 2014), em investigações escultóricas (Casa de Ferro, 2014 e Mastros, 2015) e em uma série de desenhos (Mínimo Vital, 2017). Este conjunto de ações também resultou no desenvolvimento de um sistema de trabalho baseado num vocabulário visual e gestual es- pecífico, dentre eles, alguns métodos vernaculares de mensuração do espaço, o que levou à aproximação da obra do Almeida Júnior pelo viés da espacialidade, da qual eu estava afetivamente e profissionalmente fa- miliarizado. Desse modo, a segunda metade desta dissertação consiste 20 na leitura das obras do pintor ituano, que retratou cenas de uma paisa- gem similar às que tive contato nos últimos quinze anos, e que hoje é objeto de minha pesquisa prático-teórica. Este esforço de mensurar a pequena propriedade rural pintada por Almeida Júnior, resultou numa revisão bibliográfica que justificasse as práticas cotidianas desse grupo social em questão - os caipiras - e consequentemente as maneiras que meu pensamento visual opera nas proposições artísticas e na leitura da paisagem natural e arquitetônica. Alguns autores já discorreram sobre a função dessas pinturas na criação de uma iconografia paulista na virada do século XIX junto do desenvolvimento do estado de São Paulo, que enriquecido pelo café do Oeste, estava pronto para investir na malha urbana e industrial. Para isso, foi necessário apresentar a importância que tiveram os paulistas para a construção da nação brasileira e reforçar a imagem de um pas- sado regional na figura do bandeirante conquistador, para assim, tornar clara a noção de modernização que viria nos anos seguintes1. Durante a pesquisa, procurei não me ater a estes aspectos presentes na obra de Almeida Júnior, evitando concluir qual foi, de fato, a função desempe- nhada pelo pintor neste período em que viveu e quais desdobramentos socioculturais sua obra acarretou. Este trabalho analisa os elementos da paisagem e do território, criando pontes entre as pinturas analisadas a partir de seus espaços re- tratados. Essas relações se dão de um modo não linear, já que as ce- nas não obedecem uma sequência cronológica e nem dizem respeito ao mesmo sítio, embora tenham sido pintadas num dado perímetro do interior paulista, entre os municípios de Itu, Piracicaba, Salto e Rio das Pedras, por onde o artista circulou. Destacando alguns elementos na paisagem, teremos uma espécie de configuração básica da propriedade rural do sudeste do Brasil. Como dito anteriormente, por meio das ima- gens pintadas por Almeida Júnior, em anos e locais distintos, é possível criarmos um espaço mental mensurável, que nos remete a uma distri- buição territorial comum no interior do país: a casa de pau-a-pique, o terreiro, o pasto, a estrada, o rio e a mata. Também recorro à características de outro grupo social com modo de vida semelhante: os caiçaras, mais precisamente das comunidades do litoral norte de São Paulo, intimamente ligados à Serra do Mar e logo, ao Vale do Paraíba, reduto da cultura caipira no país. 1 Sobre este assunto, ver a tese de doutorado de Fernanda Pitta: “Um Povo Pacato e Bucólico”: Costume e história na pintura de Almeida Júnior, 2013. 21 Chiquinha, 2013 Paraibuna - SP Ambos os grupos exercem, por meio de suas atividades diárias, grande influência sobre seus territórios, manejando-os e fazendo uso de procedimentos tradicionais de trabalho que irei listar no decorrer do texto, ilustrando assim, a noção de ocupação e transformação do espa- ço, além do sentido de georreferenciamento nessas populações. É necessário mencionar que este estudo se debruça sobre os as- pectos da cultura cabocla de maneira supositiva. As afirmações feitas no decorrer do texto são frutos de análise de campo, levantamento bi- bliográfico, entrevistas e aproximações com a literatura. 22 Dona Dita, 2012 Jacareí - SP 23 PREÂMBULO Sanhaço Há um descompasso no vôo do Sanhaço. Sua trajetória é repleta de ruídos e mudanças bruscas. Como num desenho feito a olho cego. Uma rota subjetiva que tende à mudança, ajuste, curva acentuada, que- bra obtusa. Sua coluna pequena se adapta como nosso olho reage a luz. Característica que se repete em sua cor. Um azul que tende ao cinza. Um cinza que tende ao azul. Incerto, esmaecido. Problemático para um observador daltônico (que o reconhecerá pelo vôo, apenas). Uma cor bastarda que nasce ao esbarrar pincel. De pouco pigmento, economiza- da, rala. Azul antigo, céu de afresco, fachada de casa simples. Pássaro nostálgico, não lembrado, de canto impronunciável. Sanhaço. 24 Casa Café Em cada casa o café tem um cheiro. Mas não é o café, é a casa. Um mesmo café, assume outro cheiro em outra casa. Suspeitei dos pro- dutos de limpeza, que podiam interferir na apreciação, mas não, é a casa. Percebi que o café, ao ser coado, revela o espaço vazio da casa. Ele denuncia a própria volumetria da construção e ativa um campo ima- terial (na casa e na memória). Ao entrar num recinto com café sendo co- ado temos, simultaneamente, uma apreciação olfativa e espacial. Nasce um sexto sentido, ainda sem nome. Não à toa, ambas palavras tem qua- tro letras e duas sílabas: ca-fé / ca-sa - deveriam ser sinônimas. Um café coado tem mais de arquitetura do que de culinária. Nanica Das bananas que dão por aqui, a nanica é a mais querida. E não é por conta do preço, mas por suas propriedades organolépticas e simbó- licas, começando por seu nome, que já supera as demais: -maçã - fruta que lembra outra; falta de personalidade; aveludada, indecisa. -prata - tem uma dureza semântica-metálica que afasta; quando verde, amarra. -ouro - pretensão áurea para uma fruta ordinária; ambiciosa, ca- lórica. -da-terra - soa sair do solo e ter gosto do mesmo; dureza de torrão, necessita fogo. O arranjo silábico da palavra “nanica” possui uma sonoridade que agrada na fala e na escuta: na-ni-ca. As três sílabas criam um ritmo si- milar ao de ba-na-na, por isso é a mais genuína e próxima da ideia de banana. banana, banana-nanica bananananica banananica bananica nanica 25 Mesmo esverdeada, seu gosto já tende ao doce. A nuance é sutil, porém, um olho calibrado reconhece no exterior da fruta o sabor inter- no. Atinge a perfeição quando amarelada e com poucas pintas pretas. Finaliza seu processo de maturação com a casca já pretejada, quando o açúcar atinge o pico. Sua polpa amolecida queima ligeiramente a ponta da língua com uma acidez adocicada. Por fim, a nanica é despretensiosa. Mesmo atingindo grandes proporções, ultrapassando às vezes mais de um palmo, não abre mão do adjetivo que apequena, com exceção do “nanicão”, nomenclatura ambígua utilizada pelos produtores rurais. Pedir uma penca de nanica é como chamar por um nome feminino no diminutivo, hábito comum no Brasil: terezinha, cidinha, chiquinha. Cria-se um vínculo familiar com o enunciado da fruta, tornando-a mais próxima e cativa. 2 2 Os três textos foram produzidos pelo autor entre os anos de 2016 e 2017. 26 Nhá Chica, 1895 Óleo sobre tela, 109 x 72 cm Pinacoteca do Estado de São Paulo 27 A CONSTRUÇÃO DE UM REPERTÓRIO VISUAL Se há um fator determinante na formação do imaginário de uma população, este certamente está ligado a própria geografia do local em que se deu a ocupação da mesma. Diferente do clima, inevitavelmente assimilado pelo corpo através da sensação térmica, as condições geo- gráficas de uma determinada região estão mais ligadas ao sentido da visão de modo voluntário. Há uma correspondência entre o tipo de re- levo em que se encontra um povoamento e a noção de paisagem que possuem estes habitantes, de modo que uma população de montanha se relaciona com o território diferente de um morador da planície, por exemplo. Parece-me que esta condição topográfica é um dos pilares na formação de um repertório visual capaz de influenciar o pensamento do indivíduo durante a vida, mesmo que este venha a habitar outros am- bientes no decorrer dos anos. A nossa relação com o entorno é prática e subjetiva de maneira si- multânea e diariamente somos colocados diante de impasses onde estes dois aspectos são confrontados entre si. Tomemos como exemplo um caiçara de uma ilha: ele tem o mar a sua volta e sabe que numa pers- pectiva prática, qualquer ato ou decisão está submetido à sua condição insular, de modo que um mantimento necessário específico do conti- nente pode custar um período de tempo de travessia, uma quantidade de combustível ou a sua própria submissão a um intempérie, como uma chuva ou vento (num barco próprio e sem cobertura). Ao passo que, numa perspectiva mais subjetiva, a figura do mar configura uma série de outros fatores sobre a decisão de atravessá-lo ou não, primeiramente 28 ligada a ideia de sobrevivência, já que uma tempestade pode compro- meter a travessia e fatalmente levá-lo à morte, prejudicando assim, a sua família ou a comunidade a que pertence. Por outro lado, a ideia de isolamento nestas populações insulares confere alguns traços de comportamento curiosos em relação aos habi- tantes do Brasil continental, por exemplo no modo que os casais lidam com o ciúme e a traição, como observou Willems: Desertar ou fugir com outro nunca levou a ação violenta do cônjuge “enganado”. Na verdade, crimes passionais, que são o cabeçalho tão frequente dos jornais brasileiros, jamais são originários das comunidades caiçaras. (WILLEMS, 2003, p. 120) Emílio Willems, em 1947, nota que na comunidade de Búzios, Litoral Norte de São Paulo, não há preconceito masculino contra as mulheres desertoras ou que fugiram com outros homens. Também ob- serva que a maioria das iniciativas de quebra matrimonial parte das mulheres e que essa atitude não é vista pela comunidade como mau comportamento, “mas simplesmente como arranjo matrimonial mais satisfatório”. A ausência de ciúmes também é acentuada, segundo Willems, pela prática sexual entre irmãos e irmãs e, em menor escala, entre pais e filhas, fenômeno ocasionado pela informalidade das mora- dias e pela ausência de prostituição na ilha. Este traço comportamental parece estar diretamente ligado à ideia de “conformação geográfica”, já que o grande empreendimento de dei- xar a ilha por pequenos motivos extraconjugais não parece ser uma op- ção viável para esses indivíduos. Também é interessante pensar na ocupação da cidade de São Paulo e identificar as localidades das Casas Bandeiristas, estrategica- mente posicionadas em locais de onde era possível observar a paisagem e de algum modo ter controle das dinâmicas que por ali se davam. Por exemplo, o Sítio Morrinhos, na região de Santana, Zona Norte da ci- dade. O complexo arquitetônico se encontra no topo de uma colina de onde é possível avistar o centro da cidade, o vale do Rio Tietê e ainda controlar a passagem dos caminhos antigos que transpunham Serra da Cantareira. Já no Sítio da Ressaca, na região do Jabaquara, Zona Sul de São Paulo e logo, mais perto do litoral, outro aspecto chama atenção: apesar 29 do nome provir, provavelmente, de um córrego que banha as cercanias chamado Córrego da Ressaca, há relatos de que quando o mar ficava revolto na baixada era possível sentir, do Sítio, uma brisa úmida que transpunha a Serra do Mar. O povoador paulista parecia estar sempre atento aos caminhos que circundavam a região e a possuir um certo controle sobre o seu perímetro, característica que vai se acentuar na figura do bandeirante, sedento por território e disposto a cruzar a Mata Atlântica ou descer o Tietê nas grandes canoas monóxilas. Desse modo, faz sentido constatar que os primeiros gestos e áreas povoadas da cidade de São Paulo já apontavam para esse forte traço cultural paulistano de dominação, ges- tado sob o signo da proa e da vereda. Na introdução do livro Caminhos e Fronteiras, Sérgio Buarque de Hollanda recorre a um trecho de sua outra obra, Monções: Sua vocação estaria no caminho, que convida ao movi- mento; não na grande propriedade rural que forma in- divíduos sedentários… A mobilidade dos paulistas está condicionada, em grande parte, a certa insuficiência do meio; insuficiência para nutrir os mesmos ideais de vida estável, que nas terras da marinha puderam realizar-se quase ao primeiro contato mais íntimo entre o europeu e o mundo novo. (HOLLANDA, 1994, p.9) De modo análogo, este condicionamento subjetivo da paisagem ocorre com os habitantes da região do Vale do Paraíba, onde vivi du- rante 18 anos. Como se sabe, a bacia do Rio Paraíba do Sul fica entre a Serra da Mantiqueira, a Serra do Mar (entre os municípios de São Sebastião e Ubatuba) e a Serra da Bocaina, na divisa com o Estado do Rio de Janeiro. Mas há também outras duas cadeias de montanha pouco mencionadas: uma no “fundo do vale”, o Parque Nacional do Itatiaia, já na tríplice fronteira de Minas Gerais, Rio de Janeiro e São Paulo e a pequena serra de Arujá, que se estende até o município de Santa Izabel. Ao percorrer a Rodovia Presidente Dutra partindo de São Paulo, é possível perceber a depressão que se adentra após passar por Guaru- lhos e a planície que vai se estender durante toda a estrada, apenas com algumas depressões ao longo do percurso. De fato, o Vale se assemelha a uma cratera longitudinal cujo centro é banhado pelo Rio Paraíba do Sul, que por sua vez é formado pelo encontro do Rio Paraitinga e do Rio Paraibuna, ambos nascidos na Serra da Bocaina, no município de 30 A Partida da Monção (detalhe), 1897 Óleo sobre tela, 640 x 390 cm Museu Paulista 31 A Partida da Monção (detalhe), 1897 Óleo sobre tela, 640 x 390 cm Museu Paulista 32 Areias e Cunha, respectivamente. Se por um um lado o planalto de São Paulo possibilitava a visão privilegiada das cercanias e que de algum modo, dava o impulso para os mamelucos destemidos descer serra abaixo ou navegar rio a dentro, já que possuíam uma via fluvial em direção ao oeste, o Tietê, já no Vale do Paraíba parece-me que a geografia exerceu um efeito contrário, e cujos reflexos se arrastam até a atualidade. Apesar da região ter sido local de passagem intensa durante a ex- ploração das Minas Gerais e protagonista no século XIX em virtude da cultura cafeeira, o Vale do Paraíba, diferente do Planalto de Piratininga, era configurado como caminho e não como ponto de partida, fator reco- nhecível ainda nos dias de hoje na figura da Rodovia Presidente Dutra, que confere às cidades marginais o título de Eixo Rio-São Paulo. E é essa noção de “entre” e de “istmo”, que vai determinar a formação do imaginário espacial na população valeparaibana. Essa condição de “reduto” é reforçada, sem dúvida, pela enorme cadeia de montanhas da Serra Mantiqueira a oeste, uma parede geoló- gica que faz o pano de fundo de toda a várzea do vale. Do lado oposto, à leste, a Serra do Mar que dá acesso ao Litoral Norte pela Rodovia Oswaldo Cruz ou pela Tamoios. Ao sul, se encontra São Paulo e ao norte o Rio de Janeiro, formando assim, uma encruzilhada imaginária que vai dar suporte ao senso de geolocalização nos habitantes da região. Desse modo, parece-me que o cidadão valeparaibano possui uma noção ligeiramente desenvolvida de deslocamento e de mensuração es- pacial, já que alguns fatores atuam no cotidiano de quem circula pela região: 1 - A visão dilatada do horizonte, já que a plana e extensa várzea possibilita que a Serra da Mantiqueira se torne um referencial geográfi- co para quem percorre a Dutra; 2 - O tempo percorrido entre uma cida- de e outra varia de 10 a 20 minutos pela Rodovia, de modo que o tempo necessário para atravessar a região seja facilmente calculado pelo indi- víduo se necessário; 3. É possível avistar cortinas de chuva percorrendo a região de algum ponto mais alto das cidades ou do próprio centro da várzea, onde se encontra a estrada.. Evidentemente, essas percepções não ocorrem de maneira ge- neralizada e consciente na população e ainda podem possuir nuances em microrregiões com as suas devidas particularidades. A questão aqui proposta tenta elucidar de que modo opera o pensamento coletivo deter- minado por um macro contexto geográfico específico e quais os desdo- bramentos socioculturais acarretados por estas condições. 33 Neste sentido, durante o período em que vivi no Vale do Paraí- ba, tive a oportunidade de circular por algumas cidades da região, na maioria das vezes em caráter turístico ou em virtude das pescarias com meu pai e seus amigos do bairro, nas quais era comum adentrar estradas vicinais e cruzar os municípios pela zona rural em busca dos pontos de pesca ou de propriedades cujos proprietários eram conhecidos ou indi- cados por outrem. Um aspecto que se tornou marcante para mim foi o fato de ten- tar entender o percurso que o Rio Paraíba fazia. Lembro-me que essa questão sempre me confundia durante a infância e adolescência, pois o mesmo, ao se formar em Paraibuna pelos dois afluentes que descem a Bocaina, faz uma grande curva entre os municípios de Santa Branca, Guararema e Jacareí. Essa curvatura era facilmente acessada por estra- das de terra cujo início podia se dar em qualquer uma das três cidades, de modo a criar uma rede complexa de acessos intermunicipais, onde o protagonista era o rio. Sendo assim, era necessário um grande esforço mental para tentar identificar para onde o rio estava descendo, pois em seu trajeto também havia grandes curvas ocasionadas pela topografia local e que colocava em cheque a constatação dependendo da margem em que se encontrava o observador. Neste período, também não era comum e acessível o uso de plata- formas digitais ou mecanismos de geolocalização via satélite e por isso, não se tinha uma imagem de planta baixa em mente. Desse modo, a noção de percurso era amadurecida através da oralidade e também pela construção subjetiva de uma cartografia mental, fundamentada por lo- cais de pesca já visitados como ranchos, elementos arquitetônicos como pontes, formações naturais como cachoeiras e pelos próprios acessos em si. Também pude avançar até o Sul de Minas, onde vivem meus fa- miliares maternos. Acredito que a experiência em território mineiro contribuiu, de alguma maneira, justamente para a construção dessa ima- gem da região vista de cima, já que ao transpor a Serra da Mantiqueira, é possível avistar longas distâncias da várzea do vale. Uma noção que talvez se assemelhe ao fenômeno de overview effect, percepção que ti- veram os astronautas quando viram, pela primeira vez, a Terra vista do espaço, e no espaço. Diferente do que ocorre na planície do vale, cuja ampla atmosfera acima da população assume uma espécie de protagonismo no referen- cial local - descrito anteriormente na figura das chuvas - nas montanhas 34 a visão panorâmica do terreno ocasionada pelo desnível topográfico pa- rece marcar profundamente a relação dos habitantes com a paisagem abaixo da linha do olho. Também é importante frisar que, assim como eu, muitos mantém laços familiares nas duas localidades e é justamente o trânsito de ambas populações entre os dois territórios, que vai evidenciar ainda mais a proximidade cultural entre os paulistas e mineiros. Semelhanças essas que vão aflorar principalmente na ocupação do solo, na edificação das casas, nas culturas de subsistência e nas manifestações culturais lúdicas como a música e as festas. E é nesse mesmo sentido, pelo espectro das práticas tradicionais, que também podemos facilmente aproximar mais um grupo social vizinho: o caiçara do litoral norte de São Paulo, que se encontra logo atrás da Serra do Mar. Acredito que esta tríplice fronteira formada pelos paulistas do serra acima, caiçaras da costa e mineiros da mantiqueira, com sua de- vidas particularidades geográficas e folclóricas, foi capaz de criar uma certa homogeneidade paisagística e consequentemente uma unidade no pensamento e no vocabulário visual regional, e que poderíamos, colo- cá-los todos sob o lençol de influência da cultura cabocla, marcada pela herança indígena e portuguesa, a qual mais tarde vai incorporar traços do então negro livre. É justamente sobre este tripé cultural que se deu a formação de um repertório pessoal, o qual julgo ser responsável pelas práticas ar- tísticas adotadas por mim a partir de 2013, na ocasião da exposição individual intitulada “Uma Braça e Dois Palmos”, quando passei a me valer de procedimentos tradicionais construtivos e de uma espécie de glossário composto de gestos, ferramentas e formas recorrentes no ima- ginário local dessas comunidades mencionadas anteriormente. * * * Um ano antes de me mudar para São Paulo e ingressar no curso de Artes Visuais, em 2010 me matriculei no Curso Técnico Florestal, oferecido pela Escola Agrícola de Jacareí. Uma área de 33 hectares no centro da cidade fundada em 1935 em memória de seu fundador, José Bento de Andrade, que havia iniciado o projeto de uma escola profis- sional no município ainda no ano de 1885 com o nome de Colégio São Miguel ou simplesmente “Coleginho”. Somente em 1940 a escola vai receber o nome de Cônego José Bento, mediante um decreto do então 35 Interventor Federal no Estado de São Paulo, Adhemar de Barros. A escola, ainda em funcionamento, é voltada para o ensino das práticas que dizem respeito ao ambiente rural e oferece cursos de Agro- pecuária, Agrimensura, Meio Ambiente, entre outros, todos de caráter técnico e prático, já que a unidade possui uma ampla área disponível para o desenvolvimento de projetos e pesquisas de campo. Durante esse período de um ano de curso pude me aproximar de um universo que até então era familiar para mim por um viés empírico, justamente vivenciado em atividades de âmbito familiar como nas pes- carias mencionadas anteriormente. Já nestas oportunidades que antece- diam o curso, notava em mim um certo interesse pelas dinâmicas dos contextos rurais visitados, geralmente relacionadas à paisagem natural e cultural. Já fazia uso de alguns cadernos de desenho nesta época e que, acompanhado de ferramentas e possíveis instrumentais necessários a uma empreitada na mata como cordas e facas, pareciam configurar algo próximo da ideia das missões de naturalistas estrangeiros no Brasil, as- pecto frequentemente presente no imaginário de alguns estudantes no ensino fundamental devido o ligeiro avanço no conteúdo das discipli- nas de ciências exatas. Somado a isso, meu tio Dario Brito, o qual es- tava sempre presente nestas ocasiões, já era formado em Química e por coincidência, já havia cursado o Técnico Florestal anos atrás e por isso também detinha conhecimento acerca do funcionamento das plantas, constituição de solos e identificava com facilidade árvores nativas na cidade e no campo. O que estava internalizado no meu referencial por meio de atividades corriqueiras, tornou a ser ressignificado num âmbito científico que era proporcionado pelo curso em questão. Paralelamente a este movimento, crescia o meu interesse e envolvimento no campo das artes visuais por meio da pintura mural em Jacareí. Findo o curso técnico, já possuía uma produção artística e que ganhou corpo a partir de 2011, já na graduação. A vinda para São Paulo foi, sem dúvida, a grande chave para compreender de que modo se deu a construção de uma questão que vai evoluir e se estender até os dias de hoje no mestrado. É justamente dei- xando o Vale do Paraíba que passo finalmente a voltar meu olhar para a região, mas agora em três eixos: familiar-afetivo, técnico-analítico e subjetivo-artístico. Passados quatro anos de experimentação no curso de artes visuais, em 2014 minha produção artística parece apontar para uma direção que, num primeiro momento, sugeria um certo interesse por procedimentos 36 construtivos de modo genérico, mas que logo passa a se voltar de modo acentuado para um caráter tradicional e vernacular, cujas matrizes eram provindas de um vocabulário rural caipira e caiçara. Partindo de formas que remetiam às estruturas preliminares da casa de pau-a-pique, produzi uma série de desenhos e pinturas que ado- tavam um movimento mecanizado do corpo e que sugeria uma noção de golpe contra o material empregado: o papel ou a lona, ambos dispos- tos na parede, denunciando assim, uma tendência em se trabalhar com o eixo vertical. Este conjunto de trabalhos continha um caráter projetivo e automaticamente apontava para a materialização do elemento repre- sentado, no caso, a figura da casa. É quando me volto para a noção de procedimento e inicio uma série de projetos voltados para a experi- mentação dos materiais e dos métodos recorrentes no imaginário rural construtivo, resultando em trabalhos no campo da escultura, desenho, pintura e instalação. Em novembro do mesmo ano, apresento a minha primeira expo- sição individual intitulada Uma Braça e Dois Palmos. O título faz men- ção à duas unidades de medida que partem do corpo humano: a braça, equivalente a 2,20 m e o palmo, em torno de 22 cm. A primeira vez que soube da existência da primeira medida foi através de meu pai e meu tio, que durante uma pescaria na comunidade caiçara do Camburi, no extremo norte de Ubatuba, ouviram de um senhor conhecido por Véio Migué que, ao recordar de uma empreitada na mata virgem no tempo antigo, o mesmo menciona que avistou uma “cobra de oito braça”. Essa imagem ficou muito marcada entre nós e logo se tornou uma anedota para descrever coisas pouco prováveis, pois se calcularmos a medida stricto sensu, teríamos uma cobra de quase 18 metros de com- primento, o que é, no mínimo, absurdo, já que na região amazônica encontram-se as maiores exemplares do país e que não ultrapassam os 9 metros. No entanto, essa passagem pode nos apontar para um aspecto interessante do pensamento caboclo brasileiro que é o fato de, na au- sência de métodos convencionais baseados nos sistemas métricos, os objetos, as árvores, as distâncias e no caso, os animais são medidos por estimativas baseadas na própria envergadura do homem. Mesmo que, muitas das vezes essa medida final escape da realidade, é preciso consi- derar que esse esforço mental de mensurar determinada coisa a partir do próprio corpo está submetido à subjetividade de cada indivíduo e essa, por sua vez, está intimamente ligada à vivência com a paisagem e seus elementos compositivos. 37 Instalação do mastro na margem do Rio Paraíba, 2015. Interior da Escola Agrícola de Jacareí, na ocasião da exposição individual Na Boca do Sol, ocorrida no Museu de Antropologia do Vale do Paraíba. 38 É dentro dessa lógica que meus trabalhos no campo das artes vi- suais passam a operar, então, passei a desenvolver algumas instalações na paisagem que intitulei de Réguas. A primeira régua foi feita na já mencionada Praia do Camburi em 2014 e consistia em 5 hastes de bambu com aproximadamente 3 metros de altura e dispostas a cada dois passos largos de distância. A instalação foi feita durante o momento da vazante da maré, de modo que as hastes se valessem do espelho ocasionado pela água para se duplicarem vir- tualmente no sentido vertical. O trabalho, intitulado de Régua de maré vazante, faz menção ao procedimento de mensuração do nível de bar- ragens, onde as marcações vão denunciando a profundidade da água a medida que esta vai subindo ou descendo. No caso da praia, as hastes revelavam, mesmo que sutilmente, a quantidade de água que chegava em cada uma delas, ou seja, as primeiras varas marcavam quase que meio centímetro, e as seguintes iam progressivamente marcando uma quantia maior de água nas suas bases. Essa operação tornou clara para mim, a noção do quão abstrato é mensurar a paisagem natural e ainda tentar extrair dados de tal procedimento. No entanto, também revelou que tais métodos, que mais se assemelham a uma protoengenharia, dão o primeiro suporte para o olho iniciar um processo de leitura da paisa- gem, já que ao detectar a modulação das hastes no espaço, é capaz de projetar sua continuação e calcular mentalmente a distância pretendida. A segunda régua foi produzida numa propriedade rural no mu- nicípio de São Luiz do Paraitinga no ano de 2015 e, diferente da pri- meira, possuía uma relação com o terreno em declive de um pequeno vale. O trabalho intitulado Mira (sistema de medição para curvas de nível) consistia em 11 varas de bambu com aproximadamente 6 metros de altura niveladas pelo topo e dispostas a cada 1 passo largo. A inter- venção, que media em torno de 12 metros, exigia do observador uma distância maior para apreciação e dessa maneira, era capaz de revelar o desnível do terreno, já que as varas estavam alinhadas pelo topo e por isso diminuiam progressivamente de tamanho em direção ao barranco. Esta segunda situação, muito semelhante aos procedimentos adotados pela agrimensura e cuja ferramenta empregada se chama mira, revelou de que modo se dá a compreensão da paisagem através da noção de topografia, mesmo que esta, seja denunciada por mecanismos rústicos como as hastes de bambu. Por fim, vale chamar a atenção para o nome do instrumento uti- lizado pelos topógrafos: mira. Parece haver uma espécie de certeza e 39 confiança no próprio olho de quem manuseia o equipamento. Mais im- portante que o instrumental utilizado no ofício, aqui, o olho é a “prova dos nove”. Novamente a ideia de atmosfera, mencionada no início, se faz presente, já que é justamente nesse campo virtual em que corre a vista humana, buscando elementos no trajeto para lhe servir de suporte. É no franzir da testa que o profissional e o caboclo garantem a certeza do local para se fincar a estaca, o mourão, o poste, o mastro ou o esteio. O tempo é responsável pela construção de um rico repertório de métodos e sistemas próprios de leitura espacial, contribuindo para o que chamo de calibragem do olho. Como num golpe ou mesmo como uma flecha bem mirada, o olho fixa na paisagem o marco zero para se começar o que quer que seja. * * * A partir dessas considerações sobre a relação entre o indivíduo e a paisagem, somadas às minhas investigações artísticas a partir de 2014, foi possível tecer alguns comentários acerca da obra do pintor ituano Almeida Júnior, me atentando principalmente à espacialidade represen- tada e que será discutida na segunda metade deste trabalho, onde ilustro os argumentos desenvolvidos até aqui. 40 Régua de Maré Vazante, 2014 Camburi, Ubatuba - SP 41 Régua (processo), 2017 Atibaia - SP 42 Régua, 2017 Atibaia - SP 43 A PEQUENA PROPRIEDADE RURAL PAULISTA E OS SISTEMAS VERNACULARES DE MEDIÇÃO OS PERSONAGENS, OS OBJETOS E O ESPAÇO Minha aproximação com a obra de Almeida Júnior se deu em três estágios muito marcados, os quais foram fundamentais na compreensão do conjunto de pinturas analisadas e na elaboração deste trabalho. O primeiro contato, inevitavelmente, foi através da própria figura dos caipiras. Me ative à questão do personagem, seus gestos, fisionomia e indumentária. Debrucei-me sobre o tipo em questão com o intuito de compreender o seu processo de formação histórica e suas matrizes cul- turais, assim foi possível distinguir algumas manifestações deste grupo social e suas devidas origens, principalmente indígenas e portuguesas. Também foi necessário compreender o território ocupado por essas comunidades, que não é mensurável e que não está concentrado em um único estado do Brasil, esta constatação ajuda a ilustrar outros dois aspectos da cultura caipira: o isolamento e o nomadismo. Como dito nas palavras introdutórias, o fato de ter vivido no contexto do Vale do Paraíba e cercanias foi de grande importância no processo de compre- ensão destes aspectos supracitados, de modo que ao estudar os temas e observá-los do ponto de vista analítico, pude traçar um panorama mais claro a partir dos próprios lugares onde circulei e dos personagens reais que conheci, muitos destes: familiares ou pessoas próximas. Num segundo momento, passei a me interessar pelo instrumental 44 retratado por Almeida Júnior: o machado, a faca, a banqueta, o pilão, o fogão à lenha, os batentes de porta e janela, a tramela, o cocho de madeira, o balaio, a peneira, a viola, etc. E também os elementos sim- bólicos, como os mastros juninos e a própria casa, construída em taipa de mão. Esta indústria doméstica listada revela a autonomia e a neces- sidade do desenvolvimento de um repertório construtivo num contexto rural isolado. Para além de retratar os elementos em si, Almeida nos dá uma noção do gesto e do procedimento empregado nos mesmos. Em alguns casos é possível notar o golpe do machado e do facão, o tipo de encaixe e a engenhosidade de uma peça, além de suas medidas e pro- porções em relação aos personagens. Por fim, passei a voltar minha atenção para o próprio espaço re- tratado. Ao iniciar a investigação acerca dos ambientes e suas espacia- lidades, pude notar que os mesmos parecem apontar para uma narrativa que os conecta, seja por meio dos personagens ou pelos elementos da paisagem. Deste modo, este estudo propõe um trajeto a ser percorrido mentalmente no conjunto de obras abordadas, partindo do interior da casa e atingindo o interior da mata virgem, denunciando assim, um pa- drão organizacional das pequenas propriedades rurais paulistas. 45 UM CRIADOR DE IMAGINÁRIOS3 O massapê, a cana, a caiana, a roxa, a demerara, a fita, o engenho, a bica, o mel, a taxa, o alambique, a aguardente, o açúcar, o eito, o cassaco, o feitor, o cabo, o senhor, a soca, a ressoca, a planta, a replanta, o ancinho, o arado, o boi, o cavalo, o carro, o carreiro, a charrua, o sulco, o en- xerto, o buraco, o inverno, o verão, a enchente, a seca, o estrume, o bagaço, o fogo, a capinação, a foice, o corte, o machado, o facão, a moagem, a moenda, a conta, o barra- cão, a cerca, o açude, a enxada, o rifle, a ajuda, o cambão, o cabra, o padrinho, o mandado, o mandão.4 3 Menção ao título da exposição: Almeida Júnior: Um criador de imaginários, organizada por Maria Cecília França Lourenço, na Pinacoteca do Estado de São Paulo, em 2007. 4 Lins, Osman. O retábulo de Santa Joana Carolina - in Nove, nove- na: narrativas. 4. ed. São Paulo. Companhia das Letras. 1994. 46 O pintor como narrador onisciente Nas pinturas de Almeida Júnior identificamos alguns espaços, objetos e personagens que parecem se repetir em situações diferentes, como uma narrativa que se desenrola num dado cenário: um sítio na zona rural do interior paulista. As cenas acontecem num raio de apro- ximadamente quinhentos metros, não passando de um quilômetro de diâmetro (assunto que irei discorrer durante o texto). O artista parece criar pontes entre as pinturas ao deixar vestígios na paisagem e na figura humana, nos colocando então, diante de um espaço ampliado na fruição dos trabalhos. Construímos um ambiente mental por meio de uma trama que liga os espaços: a esposa dentro da Cozinha Caipira separando os grãos e o Caipira picando fumo na soleira da porta; a Nhá Chica pita o ca- chimbo enquanto olha o homem de Amolação Interrompida na beira do riacho, este, por sua vez, acena para alguém que passou por A Estrada. Os Caipiras Negaceando estão embrenhados na mata que se encontra logo atrás da casa de Apertando o Lombilho. O pintor parece exercer a função de narrador onisciente, ou seja, aquele que conhece tudo e a todos, que é capaz de descrever os sen- timentos de outros personagens ou mesmo narrar acontecimentos si- multâneos de locais distintos. Embora essa trama possa estar atrelada à figura dos caipiras, como sugeri no parágrafo anterior, a escolha do pontos de vista adotados pelo pintor é capaz de sugerir uma narrativa de acontecimentos simultâneos entre as pinturas analisadas do ponto de vista unicamente espacial. Em Amolação Interrompida, por exem- plo, temos o maior recuo do observador, este artifício consegue abarcar na cena: a estrada (subentendida no lugar do observador), o riacho, o pasto, o terreiro, a casa, a mata secundária e a mata nativa ao fundo. É possível desmembrarmos do interior dessa obra todos os demais locais presentes nas outras pinturas analisadas no decorrer do texto. Fernanda Pitta, ao analisar Amolação Interrompida, chama aten- ção para a presença de elementos concentrados no entorno da figura do caipira e como isso é capaz de isolar a cena e evitar um prolongamento narrativo e discursivo: Finalmente, é de se notar que o pintor inclua alguns deta- lhes anedóticos na cena, todos concentrados em torno da personagem – o aceno, o chapéu, a porunga, o machado e a tábua – somente a casa e o mastro de São João ficam ao 47 fundo da composição. Essa concentração de elementos contribui para a ênfase da figura do caipira, atenuando um caráter narrativo mais pronunciado. Fixa-se um instante, o interromper da ação, que se torna paradigmático. Atém- se mais ao visto e menos ao imaginado. Impede-se assim um prolongamento narrativo do observado. Não se conta exatamente uma história. Fixa-se uma sensação visual e tátil, mais do que se sugere um sentimento ou ambiente discursivo dilatado no tempo, embora a vivacidade da fatura e a presença desses detalhes identifiquem a cena, os objetos e a personagem com uma realidade precisa e imediatamente reconhecível. (PITTA, 2013, p.318) De fato, esta manobra do pintor consegue fixar a atenção no per- sonagem e isso fica mais acentuado com a espessa fatura de tinta em- pregada nos mesmos, diferentemente dos cenários que tendem a ser mais “ralos” e quase transparentes, podendo, às vezes, revelar a trama do tecido pintado. E talvez seja esta prática de dar materialidade ao caipira que o torna um elemento de compreensão do espaço, já que é necessário um esforço por parte do observador para desviar da figura humana e fazer a leitura da paisagem ao redor e dos demais elementos representados. Esse esforço visual de driblar o caipira é compensado pelo nosso próprio referencial espacial adquirido pelo corpo. Com isso quero dizer que a compreensão do ambiente retratado por Almeida Júnior necessita de um envolvimento para além do retinia- no, ou seja, compete ao observador evocar um repertório de locais já visitados ou de memórias corporais de deslocamento no espaço, para assim, adentrar nos cenários almeidianos. O caipira na tela passa a operar como uma espécie de mediador entre a pintura e o observador, ou seja, ao detectar a figura humana e a ocupação da mesma no ambiente retratado, juntamente dos elementos da paisagem e dos objetos espalhados, é possível mensurarmos este es- paço através de uma experiência referencial preexistente. Cria-se um jogo lento de aproximação com a figura do primeiro plano e logo em seguida com o próprio cenário ao fundo. É possível “caminharmos” por este ambiente, reconhecendo distâncias, qualidade dos materiais e padrões de organização territorial. *** Ao retratar os traços marcantes dos personagens e seus gestos típicos, hábitos e as situações cotidianas desse contexto, o artista nos 48 apresenta o arquétipo do homem rural paulista, não caindo na figura do herói brasileiro ou do pobre sertanejo. Apenas nos dá a imagem do camponês imerso nos seus afazeres, nos seus pequenos vícios, lazeres e trabalhos manuais, ora leves, ora pesados. O tempo corre devagar nas cenas retratadas e não há nenhum gesto que denota pressa ou angústia dos personagens. Não há indícios de um tempo cronológico, há somen- te um tempo subjetivo que é percebido pela própria relação do corpo com os movimentos do meio: o sol, a sombra, a umidade, o vento, as fases da lua e a colheita. Dessa maneira, o pintor retrata não só a figura do caboclo, mas a temporalidade e a atmosfera da vida no campo. Em seu artigo “O Sol no Meio do Caminho”, Rodrigo Naves dis- corre sobre a relação do Caipira Picando Fumo e a luz que se apresenta como calor na tela, fazendo do ambiente retratado uma “fornalha” do meio dia: O sol forte não parece incomodar o homem sentado nos degraus da casa. Uma tarefa singela concentra toda sua atenção: picar fumo, atender a um pequeno vício. Não se trata propriamente de trabalho. E sua concentração corresponde ao aspecto caprichoso da atividade. Absor- to, suas feições não revelam a tensão de quem necessita alcançar um objetivo preciso. Basta se deixar levar pelos movimentos conhecidos das mãos. O alheamento reduz sua presença física e torna-o menos suscetível ao calor, em proveito de um momento de intimidade,de quem se vê entregue ao ritmo errante das divagações. Ao fundo, a porta entreaberta e a sombra do interior da habitação reforçam a atitude ensimesmada do caipira, como se o abrigo físico da casa ecoasse a proteção evocada pelo recolhimento psicológico, numa quase figuração do que costumamos chamar “interioridade”. (NAVES, 2005, p.135) Intimamente ligado à questão do tempo, se dá este espaço tímido e sem grandes acidentes geográficos ou palcos de marcos históricos, como assinala Jorge Coli, no artigo “A violência e o caipira”5 . Não há um embate literal e romântico entre homem e natureza. São locais ermos, com marcas do desgaste diário do próprio trabalho. A economia de elementos empregados nas composições e a maneira simplista de representação (no que diz respeito à importância simbólica dos elemen- 5 Coli, Jorge. A violência e o caipira. Revista Estudos Históricos, CP- DOC – FGV, Rio de Janeiro, n.30, 2002, pp.23-30.Coli, Jorge. A violência e o caipira. Revista Estudos Históricos, CPDOC – FGV, Rio de Janeiro, n.30, 2002, pp.23-30. 49 tos dentro do quadro) nos coloca num contato mais íntimo com a cena. Uma aproximação lenta que não esbarra em ruídos ou excessos. E a vista se dilatara, léguas e léguas batidas, de todos os lados: colinas redondas, circinadas, contornadas por fitas de caminhos e serpentinas de trilhas de gado; con- vales tufados de mato musgoso; cotilédones de outeiros verde-crisoberilo; casas de arraiais, igrejinhas branque- jando; desbarrancados vermelhos, restingas de córregos; píncaros azuis, marcando no horizonte uma rosa-dos- ventos; e mais pedreiras, tabuleiros, canhões, canhadas, tremembés e itambés, chãs e rechãs. Ali, até uma criança, só de olhar ficava sabendo que a Terra é redonda. E eu, que gosto de entusiasmar-me, proclamei: - Minas Gerais… Minas principia de dentro para fora e do céu para o chão... Santana ouviu, e corrigiu: - Porque você não diz: o Brasil? E era mesmo, concordei.6 Na passagem anterior, Guimarães Rosa chama atenção para este aspecto da paisagem no interior do Brasil, que segue alguns padrões em sua organização, seja ela no relevo, vegetação, atmosfera ou arquite- tura. Ao mesmo passo, retornando para as cercanias de São Paulo, Al- meida Júnior retrata estes locais olhando-os de perto, mas para além da pintura de cavalete, e sim com sua proximidade afetiva e compreensão plena destes ambientes dos quais era familiarizado. Esta familiaridade e astúcia em definir e representar os diversos locais que compõem uma pequena propriedade rural faz com que Al- meida nos dê uma espécie de resumo desse contexto que escolheu se dedicar até o final da vida. De modo que ao percorrer o interior paulista, seja para o perímetro de Itu e Piracicaba ou de São Luiz do Paraitinga e Cunha ou mesmo Litoral Norte, ainda podemos identificar estes pa- drões organizacionais registrados nas pinturas. 6 Rosa, João Guimarães. Minha Gente, in Sagarana. (14ª ed, pp. 179-180). Rio De Janeiro: José Olympio, 1971. 50 Caipira picando fumo, 1893 Óleo sobre tela, 202 x 141 cm Pinacoteca de São Paulo 51 HOMEM E AMBIENTE Autonomia e Destreza Almeida Júnior nos carrega efetivamente por esse ambiente rural tão característico e que, de certo modo, mantém alguns padrões nas re- giões do Brasil, cada uma com suas peculiaridades locais, variando em função do clima, relevo, fauna, flora, raiz cultural e atividade econômi- ca desenvolvida: pesca, agricultura, extração florestal, entre outras. Po- rém, no conjunto de pinturas em questão, todos esses elementos citados acima pertencem ao contexto geográfico do Sudeste do Brasil, por onde o pintor mais circulou. Onde há um clima geralmente ameno durante todo o ano, com frio no inverno e calor no verão, um relevo variado formado por serras, planícies, planaltos, vales e barrocas. Geralmente, a configuração básica dessas propriedades consiste em: casa, terreiro, pasto, roça, mata secundária, ribeirão, estrada e mata nativa. As habitações são distantes umas das outras e surgem na paisagem por meio do pau-a-pique, técnica construtiva que utiliza a terra local, geralmente retirada de um barranco da própria proprieda- de. São casas discretas e de acabamento rústico em meio ao quintal de terra batida, também conhecido por terreiro. Em seguida, as regiões destinadas ao cultivo, roças de milho, mandioca, café, feijão, batata e um canteiro de hortaliças, assim como os pastos, onde ficam as crias: cavalos para transporte, bovinos para produção própria de leite ou carne (também destinados, em alguns casos, para venda ou troca num vilarejo mais próximo). Muitas das propriedades possuem uma ou mais nascen- 52 tes, e logo contêm um ribeirão cortando o terreno, criando uma espécie de delimitação simbólica entre o quintal e as áreas mais ermas do sítio, como a mata secundária seguida da mata nativa. O homem do campo está intimamente ligado à sua propriedade, assim como aos movimentos da natureza: do sol, da chuva, dos animais, do inverno, do verão, da seca e da colheita. Vive-se em função do am- biente e por isso, ao longo da vida, o capiau desenvolve um vocabulário próprio de subsistência. Há cronogramas anuais, mensais, semanais e diários, que exigem disciplina e ao mesmo tempo flexibilidade. Os afa- zeres se sujeitam à imprevisibilidade da paisagem e aos intempéries. Assim, homem e natureza passam a se dialogar, acima de tudo, num sentido prático, que por sua vez, está repleto de subjetividades. Conhece o homem muito bem as propriedades das plan- tas ao seu redor - para remédios, para construções, para canoas, para jangadas - bem como os fenômenos naturais presos à terra e ao mar e que os norteia no sistema de vida anfíbia que leva, dividindo suas atividades entre a pesca e a agricultura de pequeno vulto, com poucos excedentes para troca ou para venda: os ventos, os “movimentos” das águas, os hábitos dos peixes, seu periodismo, a época e a lua adequadas para pôr abaixo uma árvore ou lançar à terra uma semente ou uma muda ou colher o que plan- tou.7 O cotidiano dos indivíduos geralmente é solitário, notamos isso nas pinturas: Cozinha Caipira, Caipira Picando Fumo, Apertando o Lombilho e Amolação Interrompida. Dividem-se as tarefas entre os fa- miliares e logo se dispersam pela propriedade para exercer suas devidas funções. Este isolamento confere aos membros da família, maneiras únicas na lida com o ambiente e com o trabalho. Esta espécie de retiro diário possi- bilita o desenvolvimento de métodos próprios para a solução de problemas, sendo necessário estar apto para cortar a lenha, ferrar o cavalo, coletar se- mentes, se localizar na mata, encontrar água limpa, cuidar de um ferimento ou construir um abrigo. Por ser um organismo vivo, a propriedade rural é repleta de imprevistos e variantes, por isso a vida nesse tipo de ambiente re- quer intuição, força física e racionalidade, na maioria das vezes, empregadas simultaneamente. 7 Mussolini, Gioconda. Ensaios de antropologia indígena e caiçara. Org. Edgard Carone. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1980. 53 Cozinha Caipira, 1895 Óleo sobre tela, 63 x 87 cm Pinacoteca do Estado de São Paulo 54 Compartilhamento de repertório Este grupo social também possui um repertório comum, que é compartilhado entre os indivíduos durante as atividades coletivas de lazer ou trabalho, como nos chamados “mutirões”. O “mutirão” é usado geralmente na etapa final da cons- trução de uma casa, desde que a técnica empregada exija que todo o trabalho seja feito de uma vez. Ele termina com grandes festividades. Com apenas isso, todos aque- les que vêm ajudar no trabalho sentem-se bem pagos. (SCHMIDT, 1951 apud. SHIRLEY, 1977, p.61) É comum neste tipo de evento a prática de cantigas, danças, grande quantidade de comida8 e cachaça, geralmente oferecidas pelo solicitante da empreitada, seja para um roçado de plantio ou para o corte e retirada de uma madeira para o feitio de uma canoa, no caso dos caiçaras. São nestas ocasiões em que o conhecimento individual é transmitido entre os indivíduos por meio da observação e da oralidade, e que a prática do trabalho, juntamente da euforia e do festejo, afloram e se reafirmam como identidade coletiva. As experiências individuais desenvolvidas ao longo dos dias são compartilhadas e absorvidas pelos demais participantes num misto que envolve: esforço físico, laços fami- liares, ritos religiosos, cooperação comunitária e poesia. Podemos ilustrar esta passagem com a pintura Apertando o Lom- bilho, onde a mulher está pitando fumo na soleira da porta enquanto o homem prepara o cavalo para ser selado. Provavelmente esta cena se repete quase que diariamente no ínterim de uma tarefa e outra. A mulher parece distraída ao olhar para a mata, no entanto, convive com o procedimento de selagem e teoricamente torna-se apta a exercer tal função, se necessária. Ou em Caipiras Negaceando, onde um homem jovem e outro mais velho estão numa caçada no interior da mata: o mais velho faz um sinal com a mão direita impedindo um possível impulso do jovem inexperiente, se pudéssemos traduzir o gesto, teríamos algo como: “Espere um pouco, ainda não é a hora”. Neste caso, o gesto com a mão foi capaz de transmitir inúmeras experiências anteriores na caça, 8 Segundo Maynard (1964, p.35). O “empanzinamento” ´é uma das característica das festas caboclas que celebram a colheita, como a do milho, que está relacionado à Festa do Divino no planalto paulista e a pesca da tainha no Litoral Norte, ambas no período do solstício de inverno. 55 ou seja, através da subjetividade da “não-ação”, o jovem caçador pôde acessar o próprio comportamento do pássaro, anteriormente apreendido pelo caçador mais velho. Caipiras Negaceando (detalhe), 1888 Óleo sobre tela, 281 x 215 cm Museu Nacional de Belas Artes 56 Narrativa Proposta e Trajeto do interior da Casa até a extremidade da Mata Nativa Da esquerda para direita e de cima para baixo 57 O ovo do macuco Nota-se que no bolso do colete do personagem à direita há pos- sivelmente uma espécie de ave com a calda para fora, assim como um cesto ao fundo, possivelmente usado na coleta de ovos ou no transporte de pequenos animais. Segundo o Glossário Caiçara de Ubatuba (NÉ- METH, 2010), o termo “negacear” consiste na técnica de atrair, a fim de caçar, periquitos usando-se duas varas compridas de bambu, uma com um periquito e uma banana amarrada na ponta, usados como “chama”, o outro bambu com um laço. No entanto, estes caipiras “carregam es- pingardas de curto alcance, destinadas a presa de animais de pequeno e médio porte” (PITTA, 2013), como “macucos, catetos, pacas, quatis” (CANDIDO, 1975). Podemos levar em consideração que mais de um tipo de animal pode ser capturado em uma caçada, justificando assim a presença do cesto e das armas. Pitta (2013) sugere que o elemento no bolso do personagem seja apenas uma palha de milho utilizada para pitar fumo, uma hipótese muito plausível. A prática de pitar fumo está atrelada aos momentos de descanso entre uma atividade e outra, como na pintura O Derrubador Brasileiro, na qual o lenhador fuma seu cigarro enquanto descansa em uma pedra fresca. No entanto, exclusivamente durante a caça, embora assuma a conotação de lazer em algumas ocasiões, os caboclos parecem ter um trato mais cuidadoso quanto ao pequeno vício. Isso também está rela- cionado à prática do silêncio absoluto e a ausência de fontes luminosas que possam espantar a caça na mata ou o peixe na água. Gioconda Mus- solini (1980), na Ilha de São Sebastião (Ilhabela) descreve o seguinte cuidado dos pescadores durante a pescaria noturna: (...) os pescadores guardando o segredo do local em que conseguiram encontrar o peixe e evitando até fumar, quando pescam à noite, para não denunciar aos outros a sua presença. (MUSSOLINI, 1980, p.267) Evidente que na passagem anterior os pescadores evitam ser no- tados por outros pescadores, porém isso ajuda-nos a ilustrar a questão da disciplina e a renúncia do vício durante a atividade da pesca e seus intervalos. Por fim, sustentando a hipótese de que o elemento no bolso seja 58 uma ave e que o título da obra esteja relacionada à caça de pássaros, no poema de Ricardo Gonçalves, o termo “negacear” também foi uti- lizado para se referir à caça do Nambu (Crypturellus parvirostris), ave de pequeno porte comum no sudeste do Brasil, além de mencionar o uso do “polvarinho”, objeto destinado ao armazenamento de pólvora, justificando assim, o uso das espingardas para caça de aves na pintura: Encontro um caçador junto ao caminho Negaceando os “nambus”, má catadura, A tiracolo a bolsa, e o polvarinho, Chapéu de palha e faca na cintura.9 A ambiguidade do elemento no interior do bolso do personagem é reforçada pela cesta vazia ao fundo, logo atrás do personagem mais velho. Sendo assim, permito-me aqui propor uma leitura que foge ligei- ramente do ambiente discursivo da tela: Há uma certa dramaticidade no elemento do bolso do colete, que embora se assemelhe a uma palha de milho seca, evoca uma ave já inanimada. Neste sentido, Almeida Júnior parece revisitar a tradição da pintura de natureza-morta, onde é frequente a representação de pássa- ros, coelhos e patos no canto da mesa, geralmente com os pescoços para fora. Interessante lembrar que o quadro Caipiras Negaceando é o pri- meiro da temática caipira pintado após seu retorno de Paris, o que nos leva a pensar que ainda há uma ligeira tendência aos modos europeus de representação, como assinala PITTA (2013, p.76): Feita seis anos após o retorno do pintor da França, ela desperta paralelismos com a pintura realista e naturalista francesa dos anos de formação do artista. Seus aspectos formais – composição, escolha das cores, modo de pintar – tanto quanto sua escolha temática, o interesse pelos ti- pos populares e camponeses, um dos assuntos prediletos daquela pintura, autorizam a aproximação. É curioso e ao mesmo tempo irônico pensar que o artista “guarda a tradição no bolso” do personagem, deixando-a subentendida ao retor- 9 Gonçalves, Ricardo. “De Manhã” in O programa de Vernáculo. Rio de Janeiro: Livraria Francisco Alves, 1963. 59 nar para o Brasil. Sendo assim, inserindo à essa discussão a figura do cesto vazio ao fundo e partindo da premissa que o mesmo serve para carregar ovos encontrados ou pequenos animais abatidos, gostaria de introduzir mais uma hipótese que também responde à própria história da pintura e suas tradições: Assim como ocorre com o elemento velado dentro do bolso do caçador, o cesto vazio parece criar uma tensão na composição do qua- dro, já que se encontra próximo ao centro da tela (ocupado pela dobra da manga da camisa do personagem mais velho, ao lado do bolso) e no vão das pernas que formam um triângulo junto à espingarda, deixando -o parcialmente aparente, assim como a figura do terceiro caçador no canto direito da pintura, quase imperceptível. Esta estratégia de ocultar o objeto e, no caso do cesto, deixá-lo vazio, faz com que o observador projete seu repertório pessoal de modo a preenchê-lo com esse elemen- to que o falta. Retomando a ideia da história da pintura, gostaria de chamar atenção para a paleta de cores empregada pelo artista, tendenciosa aos verdes, ocres, amarelos, vermelhos, brancos e negros. Almeida Júnior não emprega a cor azul em Caipiras Negaceando, nem mesmo na pe- quena mancha de céu no canto superior esquerdo, que parece ser da luz da madrugada: “A hora que o artista nos põe diante dos olhos esta cena de mata virgem deve ser pela madrugada, pois na folhas e ramos nota-se a frescura úmida do orvalho matinal e, além dessa particularidade, vê-se por uma abertura na abóbada enfolhada das árvores um trecho do céu leve- mente jaspeado de cor rósea e opalina [...].” (QUEI- RÓS,1888 apud PITTA, 2015). Coincidentemente, a ausência da cor azul pode estar relacionada à procura e à caça de uma ave específica: o Macuco (Tinamus solitarius), importante ave na cultura de caça brasileira. Segundo o Inventário e Caracterização da Fauna de Vertebrados Selvagens de Campinas: É a peça mais nobre da paciente caçada de pio na flores- ta e está entre as aves cinegéticas mais importantes do Brasil, fornecendo à população rural parte das proteínas indispensáveis. 60 Uma das características mais marcantes do macuco é a cor de seu ovo, um azul turquesa muito acentuado, facilmente reconhecido no ninho. Vale lembrar que o pigmento azul sempre foi uma questão na história da arte, devido a dificuldade de encontrá-lo na natureza e por atingir altos preços no mercado da época. Almeida Júnior parece desafiar o observador a projetar no cesto o único elemento azul que se pode encontrar no interior de uma mata: o ovo do macuco. E de fato, do ponto de vista cromático, ao introduzir mentalmente essa possibilidade na cena, todo quadro é desestabilizado, quase como a introdução de uma uma gema preciosa no meio de ho- mens rústicos em um ambiente hostil, escuro e monocromático. Estaria o único elemento azul de Caipiras Negaceando subenten- dido nos ovos de macuco ainda por serem encontrados e depositados no interior da cesta? Seria os ovos azuis mais um possível elemento da natureza-morta sugerida pela ave no bolso do personagem? Por fim, es- taria a palavra “macuco” relacionada ao termo “matuto”, como maneira de auto afirmação do pintor em território paulista? Almeida convida- nos a “ensimesmar” e a “matutar” sobre os desdobramentos da cena. *** Como foi dito nos parágrafos anteriores, curiosamente, atividades de trabalho e lazer passam a se confundir no dia a dia destas populações. Um dos informantes de Antonio Candido disse que: “tinha caboclo que envelhecia sem conhecer o açougue”, revelando a proximidade e de- pendência da prática da caça, seja para a subsistência ou para o lazer. No conto Meu tio o Iauaretê, de Guimarães Rosa, o personagem principal é capaz de descrever infinitos detalhes do movimento de uma onça atacando: Vou ensinar, hem; mecê vê do lado de donde não tá vindo o vento - aí mecê vigia, porque daí é que onça de repen- te pode aparecer, pular em mecê... Pula de lado, muda o repulo no ar. Pula em-cruz. É bom mecê aprender. É um pulo e um despulo. Orelha dela repinica, cataca, um estalinho, feito chuva de pedra. Ela vem fazendo atalhos. Cê já viu cobra? Pois é, Apê! Poranga suu, suu, jucá-iu- cá... Às vez faz um barulhinho, piriri nas folhas secas, pisando nos gravetos, eh, eh - passarinho foge. Capiva- ra dá um grito, de longe cê ouve: au! - e pula n’água, onça já tá aqui perto. Quando pinima vai saltar pra comer mecê, o rabo dela encurveia com a ponta pra riba, despois 61 concerta firme. Esticadinha: a cabeça dá de maior, pra riba, quando ela escancara a boca, as pintas ficam mais compridas, os olhos vão pra os lados, reprega a cara. Ói: a boca - ói: a bigodeira salta... Língua lá redobrada de lado... Abre os braços, já tá mexendo pra pular: demora nas pernas - ei, ei - nas pernas de trás... Onça acuada, vira demônio, senta no chão, quebra pau, espedaça. Ela levanta, fica em pé. Quem chegou, tá rebentado. Eh, tapa de mão de onça é pior que porrete... Mais adiante, completa: Todo movimento da caça a gente tem que aprender, Eu sei como é que mecê mexe mão, que cê olha pra baixo ou pra riba, já sei quanto tempo mecê leva pra pular, se carecer. Sei em que perna primeiro é que mecê levanta... Descreve também a sensível habilidade de identificação dos bi- chos através do som: Isso é zoeira de outros bichos, curiango, mãe-da-lua, co- rujão do mato piando. Quem gritou foi lontra com fome. Gritou: Irra! Lontra vai nadando vereda-acima. Eh, ela sai de qualquer água com pêlo seco... Capivara? De longe mecê escuta a barulhada delas, pastando, meio dentro, meio fora d’ água... Se onça urra, eu falo qual é. Eh, nem carece, não. Se ela esturrar ou miar, mecê logo sabe... Mia sufocado, do fundo da goela, eh, goela é enorme... Heeé... Apê! ... O mato todo tem medo. Onça é carrasca. Por fim, o personagem extremamente familiarizado e íntimo dos felinos, vai se auto-afirmando como tal e se metamorfoseando por meio da linguagem oral: Eh, parente meu é a onça, jaguaretê, meu povo. Mãe mi- nha dizia, mãe minha sabia, uê-uê... Jaguaretê é meu tio, tio meu. Ã-hã. Nhem? ... Hé...Aar-rrâ... Cê me arrhoôu... Remuaci... Rêiucàanacê... Araaã... Uhm... Ui... Ui... Uh... uh... êeêê... êê... ê... ê...10 Os trechos anteriores são capazes de ilustrar a íntima relação que os indivíduos da zona rural desenvolvem na lida com a mata e os ani- 10 Rosa, Guimarães. Meu tiu o iauaretê. in Estas Estórias. 2.ed. Rio de Janeiro. José Olympio. 1976 62 mais que nela habitam. Este contato diário com a fauna e a flora faz dos membros desta população, homens integrais, inseridos em um comple- xo sistema que envolve trabalho, lazer, práticas de subsistência, religio- sidade e cooperação vicinal. Magia, medicina simpática, invocação divina, exploração da fauna e da flora, conhecimentos agrícolas fundem-se deste modo num sistema que abrange, na mesma conti- nuidade, o campo, a mata, a semente, o ar, o bicho, a água e o próprio céu. Dobrado sobre si mesmo pela economia de subsistência, encerrado no quadro dos agrupamentos vicinais, o homem aparece ele próprio como segmento de um vasto meio, ao mesmo tempo natural, social e sobre- natural. (CANDIDO, 1975, p.175) Este traço “holístico” do indivíduo caipira também parece se es- tender para as ferramentas utilizadas por estes homens, que passam a operar como extensões da mão humana, viabilizando a transformação efetiva da natureza por meio de gestos, golpes e procedimentos. Em sua passagem pelo Rio de Janeiro no ano de 1832, Charles Darwin chama atenção para a habilidade dos brasileiros com a faca: O hábito de carregar uma faca é universal. E é quase um bem necessário ao se entrar no mato, por causa do cipó. A frequente ocorrência de assassinatos pode, em parte, ser atribuída a isso. Os brasileiros são tão destros na faca que são capazes de atirá-la com ótima pontaria a alguma dis- tância, e com força suficiente para causar um ferimento mortal. Vi diversos meninos que praticavam a arte como meio de diversão, e, pela habilidade com que acertavam o alvo, um pau vertical, muito prometiam em caso de em- preendimentos mais sérios. (DARWIN, 2010, p.43) Do mesmo modo operavam os tropeiros que, segundo Kidder: “Todos eles trazem um grande facão de mato preso à cin- ta, do lado de trás...Serve para cortar madeira, conser- tar arreios, cortar carne, e em caso de necessidade, para se defenderem ou mesmo assaltarem”. (KIDDER, 1951 apud FRANCO, 1997, p.72) Estes objetos, quase que domesticados pelo dono e indispensá- 63 veis no dia-a-dia dessas populações, vão se metamorfoseando e assu- mindo funções durante a faina ou lazer: limpar um peixe ou picar o fumo; partilhar a caça com os vizinhos ou ferir o inimigo durante um conflito; cortar a lenha para a fogueira de São João ou abater um gado. Estes movimentos de mutação da ferramenta em uma arma potencial foram descritos por Jorge Coli no artigo citado anteriormente. O embate diário com o meio natural e o social exige dos caipiras um misto de esforço e valentia que os preservem como homens inte- grais. Maria Sylvia conclui que é a noção de si, a única referência des- ses indivíduos perante a natureza e a sociedade em que vivem: Nestas existências inteiramente pobres, incipientes no domínio da natureza e rudimentares nos ajustamentos humanos, pouco se propõe ao entendimento do homem senão a sua própria pessoa. É ela que sobressai direta- mente, solitária e despojada, por sobre a natureza; ape- nas ela constitui o sistema de referência através do qual o sujeito consegue perceber-se. Em seu mundo vazio de coisas e falta de regulamentação, a capacidade de pre- servar a própria pessoa contra qualquer violação aparece como a única maneira de ser: conservar intocada a inde- pendência e ter a coragem necessária para defendê-la são condições de que o caipira não pode abrir mão, sob pena de perder-se. A valentia constitui-se, pois, como o valor maior de suas vidas. (FRANCO, 1997, p.62-63) A noção de valentia, aqui, também pode ser entendida como ca- pacidade de domínio e transformação da paisagem por meio de um movimento centrífugo destes homens a partir da própria casa e, cujos limites desse impulso transformador tangem as fronteiras de suas pro- priedades. É a valentia como tendência inerente a esses indivíduos de avançarem mata a dentro munidos de um repertório compartilhado e de ferramentas mutáveis. 64 Caipiras Negaceando, 1888 Óleo sobre tela, 281 x 215 cm Museu Nacional de Belas Artes 65 SISTEMAS VERNACULARES DE MEDIÇÃO O homem do povo sabe construir, é arquiteto por intui- ção, não erra; quando constrói uma casa a constrói para suprir as exigências de sua vida; a harmonia de suas cons- truções é a harmonia natural das coisas não contaminadas pela cultura falsa, pela soberba e pelo dinheiro. Ali está a nossa casa. Simples, sem voltas, sem retórica. Uma casa em que os espaços foram cuidadosamente examinados, calibrados, pensados, não sobre a base da especulação da construção, mas sobre a base da solidariedade humana; uma casa onde é possível viver, e principalmente pensar, onde há espaço para tudo, um espaço cuidadosamente dosado... Lina Bo Bardi 11 11 Ferraz, Marcelo Carvalho. Arquitetura Rural na Serra da Man- tiqueira. São Paulo: Empresa das Artes, 1996. 66 As medidas e os processos vitais É comum notarmos nas casas da zona rural que as portas e janelas são reduzidas em relação às do perímetro urbano, assim como a própria estrutura e a altura do pé direito. Parece haver uma economia no uso do material, que na maioria das vezes é todo extraído do próprio terreno: madeira, bambu, terra, fibra vegetal e folhas de palmeira, excluindo assim esta hipótese, já que não há custos nestes materiais. Além disso, era quase nulo o número de elementos industrializados na construção. Segundo Weimer (2012, p.273), é por volta da Primeira Guerra Mundial, foram acolhidas as folhas-de-flandres, vulgarmente conheci- das como telhas de zinco, mas é somente após a década de 30, com o crescimento da indústria no estado de São Paulo, que a zona rural inicia um processo lento de modernização, possibilitando o acesso a materiais como telhas, tijolos, vidros, tintas e ferragens. Tomando como exemplo a pintura Apertando o Lombilho, obser- vemos a proximidade que há entre os personagens e a casa (para além da relação cromática, que tende aos tons terrosos). Parece haver uma correspondência entre a medida do corpo humano e a arquitetura. Vale lembrar, que instrumentos como trenas, metros ou réguas eram pouco utilizados neste tipo contexto e por isso os métodos mais utilizados para medição eram os próprios membros do corpo: a braça, o palmo, os de- dos, o pé e o passo. Logo, a casa surge como extensão da envergadura de seu construtor. (SPANIOL, 2014) Em um clássico artigo da historiografia da arquitetura brasileira, Paulo Thedim Barreto já chamava a atenção para a riqueza da terminologia técnica na língua portu- guesa, fortemente baseada na aplicação de nomes ligados à constituição humana, como “cabeça”, “dente”, “mão”, “macho”, “fêmea”, “morder”, “chapéu”, “saia”, “cami- sa” (BARRETO, 1947 apud ANDRADE, 2016, p.152). De volta à pintura de Almeida Júnior, também notamos em Cozi- nha Caipira, a proximidade de escala entre a personagem e os objetos do interior da casa: o pilão, a banqueta, o cesto e a peneira, criando uma relação quase que mimética. Assim como ocorre no feitio da casa, estes instrumentos cotidianos, que mediados pelas ferramentas de trabalho (machado, facão, enxó, serrote, martelo e talhadeiras) também impri- mem as medidas do seu construtor. 67 Apertando o Lombilho, 1895 Óleo sobre tela, 64 x 88 cm Pinacoteca do Estado de São Paulo 68 Esteio de Aroreira, José Fortuna Esteio de aroeira corroído pelo anos O vendável do tempo até hoje tu resistes Quem hoje vê teu vulto no sertão abandonado Não sabe que encerras sua história longa e triste Meu pai que te plantou na terra dura lá da mata Tu foste a cumeeira do teu rancho pequenino Só o vento frio da noite e o cantar dos curiangos Ficaram acompanhando a solidão de teu destino Esteio de aroeira, também tenho a tua idade Meu pai te construiu para que fosses meu abrigo O tempo foi passando e só depois de muitos anos Pela primeira vez te encontrei esteio amigo Meu pai que também era o esteio firme da família Há “muitos ano” atrás longe daqui tombou sem vida Só tu me esperou esteio “véio” de aroeira Para me conhecer e ouvir a minha despedida Esteio de aroeira, quantas vezes esperança Ficaram sepultadas no teu tronco no passado Ainda tu conservas o sinal de uma lembrança Marcada no teu tronco pelo corte do machado Nós que “nascemo” junto esteio “véio” de aroeira Será quem vai primeiro ser tombado pela sorte Se és tu lá na floresta derrubado pelo tempo Ou eu por este mundo derrubado pela morte 12 Na cantiga anterior, nota-se a comparação entre a figura do pa- triarca e o forte esteio de aroeira, assim como o ciclo de vida do autor e o da própria madeira em questão. Parece haver uma assimilação subje- tiva entre corpo humano e a vida útil da madeira. Nesse mesmo senti- do, notamos que essas arquiteturas rurais são de aparência rústica, mas acima de tudo frágeis, como o próprio corpo humano, característica que está denunciada na extremidade do batente da porta em Apertando o Lombilho e de Caipira Picando Fumo, assim como ao redor da janela em O Violeiro. Essa característica nos aponta para um aspecto funda- mental para compreender a relação entre o corpo e a casa: a organicida- de e a impermanência do material. As casas não aparentam ser feitas para durarem muitos anos ou suportarem a ação contínua dos intempéries. São entendidas como seres de vida útil reduzida e fragilizada, construídas com um esforço medido 12 Ribeiro, José Hamilton. Música caipira: as 270 maiores modas de todos os tempos. São Paulo: Globo, 2006 69 e sem excedente de energia gasta, apenas o mínimo vital necessário, conceito defendido por Antonio Candido em Os Parceiros do Rio Bo- nito.13 As casas baixas, construídas em ripas, amarradas com tranças de cipó e barreadas, e a pequena igreja, de mes- mo modo edificada, são de feição muito efêmera, de sor- te que essas habitações parecem construídas para pouco tempo, apenas como refúgio de viajantes. A impressão de duração, baseada na solidez das habitações européias, falta aqui de todos, mas, em verdade, não deixando de ser adequada ao clima; o morador cuja residência não tem estabilidade, não precisa de teto duradouro (...) 14 Constrói-se apenas o essencial para se habitar e se necessário, remonta-se a casa após uma chuva forte ou vento, como se o ato de reconstrução não fosse inviável, mas pelo contrário, premeditado, já que estas ocasiões levam aos mutirões e logo à festividade entre os in- divíduos, criando uma ideia de renovação e ciclo na comunidade. Deste modo, o que existe de fato é uma economia de energia empregada e uma conformidade entre a necessidade doméstica e os interesses comu- nitários. A reunião dos membros do bairro, motivada pelos mutirões para a construção de uma casa, reforça as relações de cooperação por meio do trabalho misturado à práticas lúdicas como as cantigas e danças, muitas vezes empregadas em processos construtivos como o da taipa de sopa- po, cuja técnica consiste em duas pessoas (uma dentro e outra fora da casa) arremessando bolas de barro contra a trama de bambu e ritmados por uma cantiga específica, Gunter Weimer comenta: A aplicação (da taipa de sopapo), no entanto, requer maior destreza e uma sincronia perfeita dos arremessos. Para que estes se processem ao mesmo tempo, normal- mente os taipeiros e seus auxiliares cantam uma cantiga ritmada, em que as tônicas são aproveitadas para o arre- messo (WEIMER, 2012) 13 Candido, Antonio. Os parceiros do Rio Bonito: estudo sobre o cai- pira paulista e a transformação dos seus meios de vida. São Paulo: Livraria duas Ci- dades, 1975. 14 SPIX e MARTIUS, 1938 apud CANDIDO, 1975. 70 No relato de Alceu Maynard, fica evidente que o rito construtivo nas comunidades tradicionais brasileiras está fortemente ligado aos ri- tos profanos da arqueocivilização como o carnaval, repleto de álcool, comezaina e brincadeiras “selvagens”, como o arremesso de matéria orgânica nos demais.15 No trabalho de barrear a casa tomam parte crianças, ho- mens e mulheres. É um trabalho alegre e divertido; as mulheres vão buscar água no rio; os homens amassam o barro, e os meninos pisam, amassando-o. Para rebocar a casa — tapar — como dizem, fazem uma brincadeira. É uma espécie de mutirão; muita bebida (cachaça) ou o ‘queimado’ — mistura de cachaça, junca, erva-cidreira, malva rosa, erva-doce, angico (que é a principal erva usada), catingueira, rasteira, cambuí (fruta). No final do barreamento, todo mundo está sujo. Todos trabalham: crianças, mulheres e homens. Sai muita brincadeira, uns jogam barro nos outros e acaba tudo em paz, com a casa ‘tapada’ e todos sujos por causa do ‘tapamento’. (ARAÚ- JO, 1961 apud ANDRADE, 2016, p 220). Podemos concluir que nestas comunidades tradicionais, onde se trabalha com o mínimo vital, há um vocabulário de estruturas, objetos e ferramentas, que conferem aos indivíduos um referencial de medição muito particular e que é baseado em experiências cotidianas e suposi- ções a partir da observação retiniana, assim como da própria lida com o espaço. Em Apertando o Lombilho, nota-se que o vão da porta mede apro- ximadamente um braço da personagem (do ombro até a ponta dos de- dos), e que se o cavalo mede em torno de 1,5 metros de altura, conclu- ímos que o mastro ao centro do terreiro mede algo perto dos 4 metros, ultrapassando assim, o pé direito da casa que parece medir no máximo 2,5 ou 3,0 metros. Se tombarmos mentalmente o mastro em direção à casa e considerarmos a distorção causada pela perspectiva, sua ponta irá tocar a soleira da porta e se ainda supormos que o terreiro avança proporcionalmente na direção oposta, ou seja, na direção do observa- 15 As brincadeiras carnavalescas eram “um tanto brutas”, confessam os moradores atuais (de Cunha - SP). Formavam-se duas carreiras, uma de homens e outra de mulheres que jogavam água uns nos outros. Quem saísse da fila tomava banho à força. Aos transeuntes atirava-se água com farinha de trigo das janelas. Em lugar de água e farinha usavam-se também laranjinhas de cêra cheias dos mais diver- sos líquidos, desde “águas de cheiro” até caldo de feijão e urina. (WILLEMS, 1961, p. 180). 71 dor, teremos o comprimento do quintal, que seria de 8 a 10 metros. Tendo em vista esses exemplos, percebemos que a assimilação da paisagem natural e arquitetônica nestas regiões não é mediada por instrumentos de medição e sim pela leitura visual em conjunto com o repertório adquirido pelo corpo na vivência com o espaço. Este me- canismo intuitivo de medição confere ao indivíduo o que chamei de Sistema Vernacular de Medição, o qual assume variações em função de cada ambiente e sua respectiva organização. Há casos onde esses sistemas incorporam um certo tipo de ins- trumental rústico disponível no local: cordas, linhas, estacas, cipós e gravetos, como por exemplo na primeira etapa do feitio de uma canoa caiçara do litoral norte de São Paulo: a madeira recém derrubada na mata é marcada com um cipó, de modo que seu comprimento seja cor- tado sete vezes maior que 1/4 de sua circunferência16. Ou seja, com uma tora de 2 metros de circunferência, é possível construir uma canoa de 3,5 metros de comprimento: 25% de 2,0m = 0,5m | logo: 7 x 0,5m = 3,5m Emílio Willems, na Ilha de Búzios, registra um procedimento si- milar: A árvore é escolhida dependendo do tamanho da canoa a ser construída. A medida básica é a largura da embar- cação. Se a canoa que se deseja construir deva ter, por exemplo, cerca de 40 cm de largura, a árvore deverá ter quatro vezes está largura, ou seja, 1,60 m de diâmetro. (WILLEMS, 2003, p. 63) Lembrando que estes números descritos nos exemplos acima não surgem durante o processo in loco assumindo importância no feitio. As medidas são estritamente definidas a partir da própria matéria, ou seja, é o material que irá determinar a medida final do objeto. ...o próprio material, devidamente preparado, tornava-se o padrão para cálculos e desdobramentos das medidas -base em outros valores, ajudando a calcular as medidas e arranjos construtivos necessários, funcionando como verdadeiro módulo. (ANDRADE, 2016, p.207) 16 NÉMETH, 2011, p. 24. 72 No entanto, existem algumas premissas que podem influenciar na escolha dos cortes, como a própria finalidade da canoa: pesca de tainha, puxada de rede, visita de cerco flutuante, transporte de carga, etc. En- volvendo assim, outros fatores como: velocidade, estabilidade e núme- ro de pessoas que irá comportar. Aqui, novamente notamos que há uma correspondência entre o corpo, o objeto e a sua funcionalidade. Quando uma árvore possui grandes medidas, costuma-se “tirar” de duas a três embarcações de sua tora, de modo que não haja desperdício da madeira. Retomando o conceito de mínimo vital, concluímos que o tama- nho de uma canoa, varia em função do seu uso, o qual está subordinado à dinâmica da vida e à dieta de uma família ou comunidade. Não se deve construir uma canoa superior ao que ela precisa suportar ou além do que uma família necessita consumir. Este exemplo torna claro que a medição e o método construtivo tradicional está mais ligado a fatores orgânicos e subjetivos - processos vitais - neste caso a própria dieta e a economia de uma família, do que à premissas métricas preestabelecidas pelo construtor. Outro exemplo que ilustra esta questão está ligado à palavra “al- queire”, que do árabe al kail, designava originalmente uma espécie de cesto, transportado nas laterais de animais de carga e cujo conteúdo variava de 13 a 16 litros de cereais e sementes destinados ao plantio. Ou seja, um alqueire correspondia a um determinado número de sementes e logo, à uma área necessária para plantação das mesmas. No Brasil colonial, 1 alqueire equivalia entre 12,5 e 13,8 litros de conteúdo, após a implantação do sistema métrico decimal no século XIX, o alqueire passou a corresponder a 24.200 m2 nas cercanias de São Paulo. Braças Metros Alqueire Paulista = 50 x 100 110 x 220 Fica claro que, desde a colonização, o sistema brasileiro de me- dida territorial e a assimilação da paisagem está atrelada à ideia de um processo vital subjetivo e à própria relação corporal com o terreno por meio do trabalho, neste caso: o plantio, o consumo ou a comercializa- ção da safra. Willems (1961, p.51), nota que em Cunha, os mutirões de roçado, por exemplo, são organizados da seguinte maneira: um indivíduo deno- minado “medidor” divide as “tarefas” entre os participantes - as tarefas 73 consistiam em áreas com a medida habitual de 14 braças quadradas, ou seja, 2 x 7 braças. Esta tendência do homem rural não mensurar uma distância ou uma área através dos sistemas métricos convencionais e sim por meio de uma intuição ou projeção de uma experiência corpórea (esforço fí- sico), pode ser notada nas estradas vicinais ao perguntar para um mo- rador: “Há quantos quilômetros está o meu destino?”, dificilmente a resposta dada satisfaz o forasteiro, por ter como devolutiva algo como: “Tá logo ali”, “É um tirinho”ou “É atrás daquele morro, na terceira curva”. Estes indivíduos medem as distâncias cotidianas por meio de um sistema próprio desenvolvido e são incapazes de traduzir esses có- digos para alguém que não os detém, já que são repletos de variáveis como: o meio de transporte empregado, o peso da carga, a hora do dia, o clima durante o percurso, o tipo da empreitada, etc. 74 O Violeiro, 1899 Óleo sobre tela, 141 x 172 cm Pinacoteca do Estado de São Paulo 75 TERRITÓRIO SIMBÓLICO E CARTOGRAFIA COLETIVA Assim como ocorre com os procedimentos construtivos e as re- lações de trabalho e lazer, coletivamente um imaginário territorial se desenvolve nessas regiões. A paisagem e seus elementos compositivos são incorporados subjetivamente pelos indivíduos que por ali circulam, formando assim, uma cartografia coletiva. Retomando a passagem de Caipiras Negaceando, podemos pen- sar na ambiguidade da localização não definida destes personagens, por conta da luz baixa no interior da mata e pela ausência de uma trilha delimitada. Há apenas uma pequena nuance de luz que transpassa o dossel das árvores. Nesse tipo de contexto, cria-se uma relação intuitiva fortemente ligada à prática da observação das plantas, árvores, rastros de animais, pedras e cursos d’água. Um mapa mental é constituído a partir de experiências anteriores e da assimilação por meio de conversas informais entre membros da comunidade. Estas cartografias coletivas incorporam: plantas, pedras, cursos d’água, locais de trabalho e lazer, marcos históricos, acontecimentos pessoais e afetivos, mitologias da região e experiências sensoriais. Entende-se aqui, “experiências senso- riais” por: fenômenos assimilados pelos sentidos do corpo: calor, frio, umidade, secura, ruído, silêncio, proximidade, distanciamento, etc. Ou mesmo sensações suprasensoriais como medo, desconfiança, vertigem, clarividência, coragem, felicidade, etc, fenômenos estes que são atribu- ídos aos elementos da paisagem e passam a exercer influências concre- tas ou simbólicas sobre os indivíduos. 76 Do mesmo modo que os caipiras do planalto, nos seus campos e matas, os caiçaras da costa brasileira desenvolveram estes complexos mapas sobre a figura do mar: Apesar da indivisibilidade, o espaço marinho, marcado por elementos simbólicos, não é homogêneo, indiferen- ciado; existem os pontos de pesca, as rotas e caminhos influenciados por fenômenos naturais como os ciclos das marés e luas, da reprodução dos peixes e também pela cultura. Para os pescadores artesanais, portanto, o mar não é somente um espaço físico, mas também é o resul- tado de práticas culturais, onde os grupos de pescado- res artesanais se reproduzem material e simbolicamente. (DIEGUES, 2004, p.205). Na pintura Paisagem do Sítio Rio das Pedras, podemos listar possíveis elementos compositivos dessa cartografia simbólica que se desenvolve nas comunidades tradicionais: Há no primeiro plano, um pequeno riacho que corta a composi- ção. Em muitos casos, cursos d’água exercem a função de limite entre duas propriedades. Podemos supor que a margem esquerda seja de um determinado sítio e a margem direita de outrem. Ou ainda, constituir um sub-limite dentro da própria propriedade, onde a margem esquerda configura uma Mata Secundária e a margem direita, a Mata Nativa: A Mata Secundária é a parcela florestal manejada diariamente pelo homem para plantio de alimentos, extração de lenha, coleta de sementes e frutas - aspecto reforçado pela presença de um palmito no canto esquerdo da tela, alimento recorrente na dieta das comunidades caipiras e caiçaras, logo, um elemento da cultura. Em contraposição, temos a Mata Nativa à direita, onde há uma árvore de grande porte ao fundo (assumindo a função simbólica de mata virgem e intocada) da qual não vemos a copa e que poderíamos supor ser um Jequitibá (Cariniana estrellensis), espécie que atinge grandes alturas na mata atlântica e que é símbolo do estado de São Paulo. Por fim, vale notar a brusca diferença na cobertura vegetal em ambas as margens do ribeirão: o lado correspondente à Mata Secundá- ria tem o solo descoberto, ocasionado pelo pisoteamento humano ou animal. Já na Mata Nativa, o solo apresenta uma vegetação rasteira pre- servada, denunciando o aspecto intocado de uma floresta virgem. Se pudéssemos ainda transpor essa paisagem da região de Rio das Pedras para o contexto litorâneo, teríamos mais um elemento sig- 77 nificativo nesta cartografia: a direção que corre a água do riacho, que inevitavelmente iria de encontro ao mar. Constituindo assim, mais um forte indicador georreferencial, assunto que irei discorrer a seguir. Paisagem do sítio Rio das Pedras, 1899 Óleo sobre tela, 57 x 35 cm Pinacoteca do Estado de São Paulo 78 Amolação Interrompida, 1894 Óleo sobre tela, 200 x 140 cm Pinacoteca do Estado de São Paulo 79 GEORREFERENCIAMENTO O deslocamento como unidade de medida Novamente tomando como ponto de partida a construção da ca- noa, podemos ilustrar o conceito de georreferenciamento17 nestas co- munidades, que ao contrário dos métodos modernos convencionais, não fazem uso de aparelhos via satélite. Durante uma pesquisa de campo realizada em agosto de 2016 na comunidade caiçara da praia do Bonete, em Ilhabela, um informante me apontou para o topo de um morro após eu perguntá-lo sobre as árvores mais comuns na construção das canoas. No alto, uma árvore despontava no dossel da mata a uma distância que impossibilitava qualquer tipo de detalhamento a olho nu, no entanto, o caiçara pode me afirmar com cer- teza de ser de uma espécie específica (da qual não tomei nota) apenas pela sua altura e pela horizontalidade da copa. De volta para o planalto paulista, este episódio seria ilustrado pela pintura Amolação Interrompida, onde o campo da cena se expande e passa a abrigar mais elementos de uma propriedade rural: a casa, o ter- reiro, o pasto, o ribeirão, a estrada (subjetivamente no lugar do observa- dor), a mata secundária e a mata nativa ao fundo da casa. 17 Entende-se aqui, georreferenciamento por: capacidade dos in- divíduos se deslocarem e se localizarem em seu território de maneira autônoma e in- tuitiva (sem aparatos tecnológicos), possuindo assim, um sistema próprio de referên- cias espaciais e temporais, não necessariamente ligados à unidades padronizadas de medição territorial e cronológica. 80 Como dito anteriormente, a partir de referenciais na paisagem (como o mastro de São João), podemos concluir que a medida do ter- reiro, ou seja, a área de terra batida frente a casa, estaria próxima dos 10 metros de comprimento. Ao transpormos esta constatação para Amola- ção Interrompida, é possível projetarmos a medida do terreiro no espa- ço entre o personagem e a casa, por onde se forma um caminho. Deste modo, novamente considerando a deformação causada pela perspecti- va, teríamos o equivalente a 4 ou 5 terreiros em linha reta18, concluindo assim, que a distância entre o ribeirão e a casa seria de 40 a 50 metros. Evidente que estes números são tentativas de mensuração espa- cial a partir da representação da pintura, articulando os elementos da cena e criando assim, módulos que ajudam a revelar os espaços vazios. No entanto, os métodos tornam-se cada vez mais abstratos à medida em que a distância aumenta na representação pictórica, como no caso da Mata Secundária e da Mata Nativa na pintura em questão, que parecem ultrapassar 100 metros de distância.19 Devido a perspectiva aérea empregada por Almeida Júnior na re- presentação das duas matas, torna-se ambígua qualquer suposição vi- sual acerca das distâncias que elas se encontram do observador ou da área que elas ocupam na propriedade rural. Sendo assim, empregamos aqui mais um método que nos ajuda a revelar essa distância: o tempo. É necessário considerar que a noção de tempo também será subjetiva, não sendo mensurável por meio da cronologia convencional, em horas ou minutos, mas sim pela própria experiência do deslocamento do corpo no espaço. Exemplificando: ao buscar palmito na borda da mata secundária (Paisagem do Sítio Rio das Pedras), ou seja, na divisa com a mata na- tiva, o caboclo tem uma assimilação temporal da atividade, que logo se torna uma nova unidade de medida. Supondo que o palmito se encontra mais próximo da casa e é acessado facilmente por uma pequena trilha aberta, de caminhada leve, a distância percorrida não ultrapassaria 250 metros, raio suficiente para obtenção de recursos florestais no âmbito doméstico. Então, a extremidade da Mata Nativa onde se encontram os 18 Aqui, adotamos a figura do terreiro de Apertando o Lombilho como unidade de medida. 19 Aqui, gostaria de mencionar que os métodos de medição a partir dos referenciais na paisagem ficam cada vez mais complexos, levando-me, quase que inevitavelmente a fazer uso de memórias e experiências pessoais nesse tipo de con- texto, como: pesquisas de campo, processos artísticos, passeios turísticos e visitas familiares. 81 Caipiras Negaceando, estaria distante a não mais que que o dobro dessa distância, ou seja, 500 metros. Considerando que o ritmo médio de caminhada de uma pessoa é de 6km/h (caminha-se 1km em 10 minutos), percorrer uma distância de 500 metros levaria em torno de 5 minutos, tempo razoavelmente ne- cessário para se adentrar numa mata nativa caminhando em linha reta. O despertar é geralmente às 5 horas, seguido de peque- na ablução, consistindo num pouco de água pelos olhos. Segue a primeira refeição e a ração de milho às criações. Parte-se então para o local de trabalho, raramente encos- tado à casa, quase sempre distante 200 a 1000 metros.20 Antonio Candido menciona uma estimativa em metros da distân- cia que se deslocam os caipiras do interior paulista dentro de suas pro- priedades, uma média de 600 metros distante da casa, podendo haver variações para mais ou para menos. Partindo da hipótese que Almeida Júnior não ultrapassou um raio superior que 500 metros para realizar todas as pinturas analisadas, en- tão, os Caipiras Negaceando já estariam no limite da propriedade, ou seja, no interior da Mata Virgem. Isso pode ser sustentado pelo fato de estarem descalços, pois apesar da matriz indígena na cultura caipira, a habilidade de adentrar a floresta sem nenhum tipo de proteção nos pés parece improvável, já que há relatos de alguns homens fazerem uso das rústicas alpargatas, sendo assim, mais próxima a ideia de alcançarem, confortavelmente, no máximo meio quilômetro de distância. Além dis- so, trata-se de uma cena ocorrida na segunda metade do século XIX, onde as matas eram mais preservadas e com grande disponibilidade de caça, ou seja, não era necessário empregar muito esforço floresta à den- tro para abater animais, como veremos na passagem a seguir. 20 CANDIDO, 1975. p. 123 82 A Estrada, 1899 Óleo sobre tela, 120 x 80 cm Acervo Banco Itaú S.A 83 A pintura como documento (...) ali passou Manuel Antônio e convidou ao filho dela depoente, de nome Antônio, que ainda não tem doze anos, para irem caçar paca, achando-se Manuel da Ponte armado de espingarda e acompanhado de cães para a ca- çada, a cujo convite anuiu seu filho, e então dirigiram-se para o mato. Passado algum tempo, voltou o filho dela depoente e contou-lhe que Manuel da Ponte havia posto os cães no mato, mas que não tinham levantado paca, por isso que ia caçar em outro lugar, para o que de novo o convidou, mas que seu filho a este novo convite não anuiu e foi para a casa de Benedito Reis comer laranjas. Em seguida ela, depoente, tendo precisão de lavar roupas dirigiu-se para um córrego que ficava por baixo da casa de sua filha e aí ouviu o estampido de um tiro; então ela depoente lembrou-se que tinha