Vermelho terra Evoca a riqueza mineral de um solo permeado por relações e multiplicidades. Estar no espaço urbano é mergulhar na essência da terra, é sentir o gélido, o úmido, é manchar as mãos, os sapatos e o caderno de bordo, é estar plenamente ali. Vermelho terra, um reflexo do chão que nos acompanha em cada passo da jornada, espelha a abundância de encontros traduzindo um estado de presença viva e pulsante. O chão, como um ninho, acolhe e aquece, oferecendo tanto aconchego quanto descoberta. UNIVERSIDADE ESTADUAL PAULISTA “JÚLIO MESQUITA FILHO” CAMPUS BAURU ARQUITETURA E URBANISMO MARINA BIAZOTTO FRASCARELI CAMINHANDO POR LINHAS: MODOS DE RECONHECER ÀS MARGENS DOS TRILHOS FERROVIÁRIO EM SÃO CARLOS/SP. BAURU 2024 MARINA BIAZOTTO FRASCARELI CAMINHANDO POR LINHAS: MODOS DE RECONHECER ÀS MARGENS DOS TRILHOS FERROVIÁRIO EM SÃO CARLOS/SP. Dissertação apresentada como parte dos requisitos para obtenção do título de mestre ao Programa de Pós-Graduação em Arquitetura e Urbanismo da Faculdade de Arquitetura, Artes e Comunicação da Universidade Estadual Paulista “Júlio de Mesquita Filho”, Campus Bauru. Orientador: Prof. Dr. Helio Hirao Coorientador: Prof. Dr. Evandro Fiorin BAURU 2024 Frascareli, Marina Biazotto. Caminhando por linhas: modos de reconhecer às margens dos trilhos ferroviários em São Carlos-SP. / Marina Biazotto Frascareli – Bauru, 2024 141 f. : il. Dissertação (Mestrado)– Universidade Estadual Paulista (Unesp), Faculdade de Arquitetura, Artes, Comunicação e Design, Bauru Orientador: Helio Hirao/Coorientador: Evandro Fiorin 1. Cartografia. 2. Caminhar. 3. São Carlos. 4. Patrimônio Ferroviário. I. Universidade Estadual Paulista. Faculdade de Arquitetura, Artes, Comunicação e Design. II. Título. UNIVERSIDADE ESTADUAL PAULISTA Câmpus de Bauru ATA DA DEFESA PÚBLICA DA DISSERTAÇÃO DE MESTRADO DE MARINA BIAZOTTO FRASCARELI, DISCENTE DO PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM ARQUITETURA E URBANISMO, DA FACULDADE DE ARQUITETURA, ARTES, COMUNICAÇÃO E DESIGN - CÂMPUS DE BAURU. Aos 27 dias do mês de agosto do ano de 2024, às 14:30 horas, por meio de Videoconferência, realizou-se a defesa de DISSERTAÇÃO DE MESTRADO de MARINA BIAZOTTO FRASCARELI, intitulada Caminhando por Linhas: Modos de Reconhecer às Margens dos Trilhos Ferroviários em São Carlos/SP . A Comissão Examinadora foi constituida pelos seguintes membros: Professor Doutor HÉLIO HIRAO (Orientador(a) - Participação Virtual) do(a) Programa de Pós-graduação em Arquitetura e Urbanismo / Universidade Estadual Paulista , Professor Associado EDUARDO ROMERO DE OLIVEIRA (Participação Virtual) do(a) Programa de Pós-graduação em Arquitetura e Urbanismo / Universidade Estadual Paulista - Faculdade de Arquitetura Artes Comunicação e Design - Câmpus de Bauru , Professor Doutor EDUARDO ROCHA (Participação Virtual) do(a) Departamento de Arquitetura e Urbanismo / Universidade Federal de Pelotas. Após a exposição pela mestranda e arguição pelos membros da Comissão Examinadora que participaram do ato, de forma presencial e/ou virtual, a discente recebeu o conceito final: APROVADA . Nada mais havendo, foi lavrada a presente ata, que após lida e aprovada, foi assinada pelo(a) Presidente(a) da Comissão Examinadora. Professor Doutor HÉLIO HIRAO Faculdade de Arquitetura, Artes, Comunicação e Design - Câmpus de Bauru - AV. Eng. Luiz Edmundo Carrijo Coube , 14-01, 17033360 http://www.faac.unesp.br/#!/pos-graduacao/mestrado-e-doutorado/arquitetura-e-urbanismo/CNPJ: 48031918002925. AGRADECIMENTO Esta dissertação, resultado de uma escuta atenta, foi moldada por conversas sem pressa e momentos de silêncio, refletindo um período de profunda imersão na cidade de São Carlos/SP. Essa fase começou com minha partida da casa dos meus pais em Pederneiras para iniciar o mestrado, simbolizando não apenas uma mudança física, mas também transformações internas significativas. Ao longo dessa jornada, encontrei pessoas essenciais que, de maneira constante, instigaram a reinventar, tanto a mim mesma quanto esta dissertação. Expresso aqui minha sincera gratidão: Aos meus pais, Luís e Isabel, por me ensinar que a coragem anda de mãos dadas com a curiosidade. E que, quando não dá pé, eu tenho com quem contar para me puxar. Pelo baú de livros e pelos incentivos ao movimento do corpo desde pequena. Ao meu companheiro, Renann, por ser a solidez e a fixação. Pela cumplicidade e pelo companheirismo do dia a dia. Pela jornada leve, mas repleta de desafios. Obrigada por me ensinar sobre calma, por insistir me manter no tempo do agora. Às minhas avós, obrigada pela sabedoria de ganhar a rua. Ao meu orientador, Helio Hirao, pelos constantes questionamentos e pelo conhecimento do mutável. Por me mostrar o caminho oposto à fixação, totalidade e unidade. Por me ensinar acolher a simplicidade da incompletude e da indeterminação. Aos meus amigos de caminhada, Carol, Kauê, Nay, Gabriel, pelo colo, ombro, leituras e discussões. E todos os outros que, durante esse percurso, proporcionaram encontros que aumentaram minha potência de agir. A Lívia Zanelli, professora-orientadora-amiga, pela sensibilidade e por receber minhas palavras singelas em caos. A todos os meus amigos de vida, por dar as mãos e dividir as aflições comigo. Ao grupo de pesquisa do Nepp por me lembrar da força e do prazer de trabalhar em coletivo. Aos professores Eduardo Romero e Lívia Morais Lima pelas trocas inspiradoras, expedições e água. À Tia Jô, professora-bailarina-mãe, que me ensinou tanto sobre o movimento, o corpo e alma. Ao Marcelo, professor-bailarino-pássaro, por descontruir a linearidade do clássico e apresentar o chão do contemporâneo. Aos leitores, especialmente por me darem o tempo e os olhos nas páginas que escrevo. SUMÁRIO DAS MOTIVAÇÕES E DOS AFETOS 13 COMO ESSE TEXTO SE MOBILIZA? 15 I. DESEMBOLAR 21 As linhas 21 A formação do núcleo urbano são-carlense 24 A chegada da ferrovia: uma cidade para o consumo 30 Das crises ao início das atividades industriais 42 A concentração urbana próxima ao sistema ferroviário, as adaptações territoriais e a implementação do sistema rodoviário 56 II. DESFIAR 63 O Caminhar para além do deslocamento 63 Flâneur: o anônimo que vagueia a esmo e se camufla na multidão. 64 Dadaístas e Surrealistas: do banal ao inconsciente 66 Situacionistas: a deriva como um jogo coletivo para atravessar as ambiências da cidade 68 Transurbância: uma modalidade experimental de investigação nos territórios atuais 71 O cartografar para mapear os processos 76 Desmontar, rasgar, adaptar, reverter e..e..e... 76 Cartografar: um método transversal de pesquisa-intervenção 79 A caminhografia como movimento do corpo e do pensamento 81 III. ROMPER E ALINHAVAR 85 Cinco experiências em São Carlos-SP 85 Alinhavando os conceitos 85 O afeto que permeia 86 Percurso 8: Apreender o presente entre brechas de um imaginário passado 90 Caminhar solitário, um estado inicial de corpo 93 Percurso 9: Os sentidos dos encontros 97 Ritmo 100 Ruptura 103 Percurso 10: Registrar no corpo a cidade em que se caminha. 105 Corpografia 107 Percurso 11: A prova dos lambes, o sol que seca a cola também intensifica os cheiros 112 Jogo 116 Percurso 12: Caminhar em grupo, reinventando o jogo 120 Territorializar, desterritorializar e reterritorializar 124 ENXERGAR NAS PONTAS SOLTAS UM PRINCÍPIO PARA NOVOS EN- TRELAÇAMENTOS 128 REFERÊNCIAS 133 LISTA DE FIGURAS Figura 01 - Diagrama das linhas. 25 Figura 02 - Rua General Osório na década de 1990. 30 Figura 03 - Rua General Osório, 1957. 31 Figura 04 - Camadas cartográficas de São Carlos. 38 Figura 05 - Mulher na escadaria da Estação Ferroviária em São Carlos. 39 Figura 06 - Estação Ferroviária em São Carlos. Sem data. 40 Figura 07 - Porteira entre a área central e a Vila Prado. Sem data. 41 Figura 08 - Jogo de Bets na rua da Vila Nery. Sem data. 42 Figura 09 - Grêmio Recreativo e Familiar Flor de Maio. Sem data. 43 Figura 10 - Acidente envolvendo o bonde e um caminhão na Vila Nery, 1940. 46 Figura 11 - Greve dos trabalhadores do Frigorífico São Carlos do Pinhal, 1968. 47 Figura 12 - Efeitos da enchente na Rua Geminiano Costa, 1970. 48 Figura 13 - Desfile carnavalesco, 1988. 49 Figura 14 - Bemvindo Rafael Girro na Praça Coronel Salles, 1973. 50 Figura 15 - Vendedor ambulante. Sem data. 51 Figura 16 - Antiga Fábrica de Tecidos anterior a reforma do ONovoLab. 54 Figura 17 - Antiga Serraria Giongo. Sem data. 56 Figura 18 - Antiga Faber Castell. Sem data. 57 Figura 19 - Homem fantasiado de palhaço com perna-de-pau e megafone no centro de São Carlos. Sem data. 60 Figura 17 - Diagrama dos métodos. 86 Figura 20 - Mapa de São Carlos, um território a ser revelado. 90 Figura 21 - Diagrama do percurso 8. 91 Figura 22 - Expressão gráfica do percurso 8. 92 Figura 23 - Nota de Verso do percurso 8. 93 Figura 24 - Fotografia “vai na fé não na sorte”. 94 Figura 25 - Diagrama do percurso 9. 98 Figura 26 - Expressão gráfica do percurso 9. 99 Figura 27 - Notas de verso do percurso 9. 100 Figura 28 - Fotografias expressando o ritmo. 101 Figura 29 - Diagrama do percurso 10. 106 Figura 30 - Expressão gráfica do percurso 10. 107 Figura 31 - Notas de verso do percurso 10. 108 Figura 32 - Fotografia do Louro. 109 Figura 33 - Fotografias do percurso 10. 112 Figura 34 - Diagrama do percurso 11. 113 Figura 35 - Notas descartáveis sobre o corpo. 114 Figura 36 - Expressão gráfica percurso 11. 114 Figura 37 - Nota de verso do percurso 11. 115 Figura 38 - Fotografias do percurso 11. 116 Figura 39 - Fotografias da intervenção do percurso 11. 117 Figura 40 - Diagrama do percurso 12. 121 Figura 41 - Expressão gráfica do percurso 11. 122 Figura 42 - Notas de verso do percurso 11. 123 Figura 43 - Fotografias do percurso 11. 124 Figura 44 - Fotografias do percurso 11. 125 Figura 45 - Diagrama das experiências. 129 RESUMO As linhas férreas das cidades contemporâneas são moldadas por forças e dinâmicas que criam ambiências múltiplas e heterogêneas, envolvendo corpos singulares e áreas expostas a constantes mudanças e conflitos. Na busca pelo reconhecimento dessas forças que tecem a experiência corporal urbana, esta pesquisa se concentra no entorno da Estação Ferroviária de São Carlos-SP. Investiga práticas e inventividades urbanas através das percepções e cognições das relações do corpo com a cidade, focando nos sujeitos, nas ambiências e nos dispositivos que conformam esses encontros. Para revelar a experimentação na/com a cidade, utiliza o caminhar como dispositivo de habitar, observando os encontros pelos afetos. Emprega conceitos deleuziano-guattariano para destacar as diferenças, heterogeneidades e multiplicidades presentes nas ambiências analisadas. A prática reúne fotografias, mapeamentos afetivos, anotações de um diário de campo e expressões gráficas, que, quando revisitados e combinados, geram uma espécie de cartografia. Essa cartografia nunca se fecha e está sempre em movimento, constituindo uma pesquisa-experiência que mobiliza corpo e pensamento. Palavras-chave: Cartografia; Caminhar; São Carlos/SP; Patrimônio Ferroviário; ABSTRACT The railways in contemporary cities are shaped by forces and dynamics that create multiple and heterogeneous ambiances, involving unique bodies and areas exposed to constant changes and conflicts. In the search for recognition of these forces that weave the urban bodily experience, this research focuses on the surroundings of the São Carlos Railway Station in São Paulo. It investigates urban practices and inventiveness through the perceptions and cognitions of the relationships between the body and the city, focusing on subjects, ambiances, and the devices that shape these encounters. To reveal the experimentation in/with the city, it utilizes walking as a dwelling device, observing encounters through affects. It employs Deleuzian-Guattarian concepts to highlight the differences, heterogeneities, and multiplicities present in the analyzed ambiances. The practice gathers photographs, affective mappings, field diary notes, and graphic expressions, which, when revisited and combined, generate a kind of cartography. This cartography never closes and is always in motion, constituting a research-experience that mobilizes body and thought. Keywords: Cartography; Walking; São Carlos/SP; Railway Heritage DAS MOTIVAÇÕES E DOS AFETOS Fôlego. Não sei exatamente quando percebi a potência dos afetos na colisão das experiências. Nasci uma criança que ocupava as ruas, os quintais das avós e as quadras da escola. Sempre ouvia dizer que uma das minhas avós tinha rodinhas nos pés. Meu pai, comerciante, ia diariamente ao centro da cidade onde cresci e voltava contando sobre seus encontros com minha avó, que, em passos lentos, batia perna pela cidade. Talvez meu entusiasmo em explorar a cidade seja de família. Meu corpo sempre esteve em movimento. Por incentivo da minha mãe educadora, tornei-me praticante de dança; o ballet clássico me proporcionou uma noção espacial apurada. Sempre que pude, coloquei meu corpo em situações extremas. Um corpo-linguagem que desejava se expandir, livre de qualquer determinação exterior. Mas, afinal, o que é um corpo? Ele é o espaço onde o desejo se move, uma superfície para as intensidades circularem. Pausa. Arquitetura. Pelo viés das edificações ou do urbanismo, justifica-se pela manifestação primária da vida urbana em seus ambientes de existência. Assim, outra noção de corpo e espaço emergia para ser investigada. A dança, por sua vez, é sempre um evento constituído pelo corpo em movimento, sendo o espaço sua ocorrência. O diálogo entre dança e arquitetura não é recente, encontrei-me com os trabalhos de Trisha Brown, a qual tencionou os aspectos de seus estudos coreográficos com o ambiente construído, arquitetônico e urbano, numa trama social na região do Soho entre 1966 e 1977. Em seus estudos sobre movimentos corporais e comportamento em relação à gravidade, a coreógrafa experimentava a cidade e abria espaço para novas formas de relacionar arte e vida, caminhando nas fachadas dos edifícios ou dançando em grupo nos seus terraços. Assim, Trisha revelava um olhar histórico e artístico, vendo nas práticas de arte a continuação da atuação como agentes nas tramas do Soho. Intervalo. Um trajeto pode desnudar mais do que um ponto revela. Andar é um ato banal que insinua o quanto nossos pés podem ser outros pés. Perseguir é uma tarefa ambiciosa, que, além de seguir os passos de outra pessoa, causa a incorporação do mundo. Uma experiência que nos forma e que sempre se faz através da inscrição corporal, o que não significa ausência de embasamento teórico. Nas minhas deambulações, encontrei Sophie Calle, autora que, desde seu nascimento em Paris, carregou consigo trabalhos viscerais e autobiográficos, permitindo- me compreender que corpos não são apenas corpos, mas agrupamentos de forças e afetos. Em um de seus trabalhos, decide seguir estranhos nas ruas de Paris em 1980, com o objetivo de descobrir a cidade a partir dos caminhos dos outros. Observava seus gestos corporais por ruelas labirínticas num nomadismo, registrando-os em fotografias, perdendo-os de vista e esquecendo-os. Fim desse ato. Encontrei-me com a dança contemporânea. O engajamento do corpo na ação, os investimentos na sensorialidade, os riscos do movimento. O corpo, o espaço expressivo no qual se instala o tempo, os mundos imaginários e simbólicos. Ah, o corpo! Simultaneamente ao flerte com a dança contemporânea, colidi com as grafias: coreografias, corpografias e cartografias. Deixei que me afetassem, me invadissem, me comunicassem. Passei a dançar a cidade. Aquele corpo contido se distribuiu pelo espaço, sem uma lei precedente, em prol de sua própria presença de afirmação. Assim como a paisagem me transforma, embora não seja possível dizer quando começou a transformação. Somos seres da/na impermanência. Essa formação, que nunca se finda, despertou em mim o trabalho com a presença, a minha relação comigo mesma, com o outro: o outro espaço, o outro corpo. Com o chão. Uma ferramenta de troca que dá voz à nossa própria linguagem. A dança me proporcionou lugares de experimentação e, desde então, vejo o mundo mergulhada na experiência. Que esta pesquisa seja mais um convite para experimentar, jogar, encontrar e me relacionar com o pulso do mundo. Levanto-me da cadeira, pego o novelo e começo a desatar esse labirinto sobre o qual me inclino. 18 | CAMINHANDO POR LINHAS: MODOS DE RECONHECER ÀS MARGENS DOS TRILHOS FERROVIÁRIOS EM SÃO CARLOS COMO ESSE TEXTO SE MOBILIZA? COMO ESSE TEXTO SE MOBILIZA? Na fase inicial do trabalho, propõe-se uma reflexão sobre as motivações e os afetos que impulsionam este projeto. Ao discutir sobre o desejo, manifestou-se e expressou-se. Este desejo é uma ação que demanda experiência. Por que buscamos conquistar a cidade? Concebendo o corpo como uma ferramenta explorada sensorialmente, compreendemos que o desejo flui através de trajetórias não convencionais. Assim, emerge um espaço de expressão onde o tempo e os mundos imaginários se entrelaçam simbolicamente. O contato com as paisagens urbanas gerou afetos, resultando em uma dança pela cidade. O corpo, antes confinado, agora se expande pelo espaço, sem regras pré-definidas, manifestando-se com sua própria presença afirmativa. Assim como a paisagem, o corpo se transforma, embora seja difícil precisar quando exatamente essa transformação começou. O trabalho é permeado por pequenas anotações pessoais como desembolar, desfiar, romper, alinhavar, entrelaçar, e, e, e,...Notas como vermelho terra, ruptura, e afeto fizeram parte do processo de conhecimento e aprendizagem vivenciado durante o mestrado. Mas, calma, não se apresse. Antes de prosseguir, é essencial entender brevemente a construção dos conceitos abordados neste trabalho. Em vez de buscar definições precisas, totalizantes e unitárias, como em um dicionário, propõe-se adotar uma abordagem semelhante à de um mapa aberto, no sentido deleuziano-guattariano. Isso significa encarar os conceitos como categorias de análise dos estudos urbanos, indeterminados e abertos ao porvir. Ao discutir a formação de arquitetos e urbanistas, tratamos de uma ciência social aplicada que deve considerar formas plurais e democráticas de intervenção em um território. No entanto, tem-se investido pouco no entendimento dos processos de subjetivação1 relacionados às questões teóricas e práticas que impulsionam o desenvolvimento das competências profissionais. Persiste uma abordagem que valoriza apenas a objetividade do mundo e a representação do possível. Essa representação deixa escapar o mundo da diferença, ao centralizar-se em uma única perspectiva, não expressando toda a profundidade e multiplicidade presentes nos espaços (MAGNAVITA, 2015, p.18). Nesse universo da macropolítica, configuram-se estratificações históricas, caracterizadas por construções de saberes-poderes hegemônicas e conservadoras. Quando consideramos formas plurais e democráticas de intervenção na cidade, adentramos a perspectiva de uma natureza diferente: a micropolítica. Este é o lugar onde os processos de subjetivação individual e coletiva circulam, um universo molecular de intensidades, fluxos, desejos, criatividade e acontecimentos. Trata-se do 1 Vinculado aos processos de subjetivação está a criatividade. 19 | CAMINHANDO POR LINHAS: MODOS DE RECONHECER ÀS MARGENS DOS TRILHOS FERROVIÁRIOS EM SÃO CARLOS COMO ESSE TEXTO SE MOBILIZA? que está “fora” do poder dominante, mas que reside no “dentro” do indivíduo. A macropolítica e a micropolítica, sendo da ordem política, interagem e coexistem nas dobras. Representam tanto o consenso como o dissenso, as ações e as reações. Assim, a criatividade, vinculada aos processos de subjetivação, surge no espaço intermediário das situações e contextos dos saberes-poderes, estabelecendo territórios existenciais (MAGNAVITA, 2015, p.22). Quando deixamos de reconhecer a ciência menor, perdemos a oportunidade de nos conectar com a multiplicidade2 e a heterogeneidade da cidade. Portanto, cabe aos arquitetos e urbanistas resgatar a potência e o impacto de planejamentos de cidades mais abertas à alteridade. Surge, assim, a necessidade de fazer escolhas que priorizem o acolhimento de ambiências não espetacularizadas, como cidade-museu e cenários urbanos. Ocupar o campo das ciências sociais e psicológicas coloca esses profissionais em uma encruzilhada política e micropolítica. Um dos caminhos leva à reprodução de modelos que nos engessam e impedem o florescimento de processos de singularização. O outro caminho se dedica a compreender esses processos por meio de agenciamentos, reconhecendo que não há neutralidade nesse percurso (GUATTARI; ROLNIK, 1996, p. 29). Não se trata de arquitetos, urbanistas ou qualquer outro profissional do campo social solucionarem as complexidades do mundo, mas de reconhecerem as diversas linhas de força presentes nos espaços. Ao compreender o espaço para além do sentido físico, adicionam-se as práticas de território em sentido conceitual. Para isso, mergulha-se nos conceitos da filosofia da diferença (DELEUZE; GUATTARI, 1997), reconhecendo que essas dinâmicas ocorrem em contínuo estado de variação. O espaço liso é caracterizado por sua natureza aberta e não hierárquica, sem divisões rígidas ou fixas entre pontos e áreas. Em outras palavras, é um espaço de conexões onde os limites são permeáveis, acolhendo a multiplicidade e promovendo encontros. Esse tipo de espaço corresponde à nomadologia (nomos). Em coexistência, o espaço estriado refere-se ao sedentário, marcado por linhas e estruturas fixas que correspondem a organizações e controle, restringindo a liberdade dos movimentos gerados pelos encontros. Apesar de coexistirem, a interação entre esses espaços não impede sua distinção. Eles se comunicam entre si: “o espaço liso não para de ser traduzido, transvertido num espaço estriado, e o espaço estriado é constantemente revertido, devolvido a um espaço liso” (DELEUZE; GUATTARI, 1997, p.157). Na alternância dos estados também pode ser discutida pelos modos de 2 “É que as diferenças não são objetivas; pode-se habitar os desertos, as estepes ou os mares de um modo estriado; pode-se habitar de um modo liso inclusive as cidades, ser um nômade das cidades (...) (DELEUZE; GUATTARI, 1997, p.166)”. 20 | CAMINHANDO POR LINHAS: MODOS DE RECONHECER ÀS MARGENS DOS TRILHOS FERROVIÁRIOS EM SÃO CARLOS COMO ESSE TEXTO SE MOBILIZA? existências e subjetividades. O nômade por se tratar daquilo que está em movimento cruza fronteiras e cria linhas de fuga. É caracterizado por seu estado de resistência às fixações daquilo que lhe é imposto. Já a representação da fixação fica por conta do sedentário (logos), que se caracteriza na permanência, na raiz de um só eixo. Diz respeito às normas e submissões. Entendendo a vida urbana como um processo ativo de produção de subjetividade, o objetivo do trabalho é investigar e reconhecer através do caminhar e do cartografar, as ambiências e os corpos que habitam a cidade, procurando novos ordenamentos e invenções desenvolvidas pelas práticas sociais. Portanto, o trabalho se debruça sobre um urbanismo do cotidiano, que procura revelar as linhas de forças que os projetos urbanísticos dominantes tentam excluir. Compreender as dinâmicas da cidade solicita uma metodologia contemporânea, sobretudo na arquitetura e no urbanismo. Utilizamos a personificação do nômade, tal metodologia não se dá pela lógica comum. O procedimento adotado neste trabalho realiza práticas espaciais referenciadas de artistas da Internacional Situacionista na cidade moderna (DEBORD, G. Teoria da deriva. In: JACQUES, 2003) e, se atualiza com a prática da transurbância (CARERI, 2017). Essa prática é um poderoso instrumento cognitivo-criativo/estético-ético no qual busca produzir conhecimento que estimula o caminhar nos territórios atuais, nas áreas à mercê do tempo e, nas margens da cidade, de modo a reconhecê-los O investigar das dinâmicas moventes, presentes na cidade, não se faz com elaboração de mapas estáticos. Mapear é um processo aberto, em constante movimento, registrando determinados momentos sem dar conta da fluidez do tempo efêmero. Por isso, empregamos a cartografia proposta por Gilles Deleuze e Félix Guattari (1997), como uma composição de pensamento de forma rizomática, pela qual transitam os afectos e perceptos3. Essas forças são vivenciadas pelo/no corpo subjetivo. Dessa maneira, os mapas moventes, são percursos que se qualificam nas errâncias, buscando desestabilizar as relações de saberes-poderes em nome da consolidação da diferença. Somando-se a cartografia sentimental exposta por Rolnik (2016), assume- se o olhar sensível do cartógrafo, o qual compreende as diversas facetas de um fenômeno com objetivo de captar as forças que operam além do visível. Ou seja, no lugar onde atravessam os afetos resultantes dos encontros, nos quais reverberam os movimentos do desejo. O interesse pelo movimento e pela transformação do espaço geográfico reflete na metodologia que se constrói em ação. Cartografar é conectar afetos que atravessam quem transita pelo espaço. É educar o ouvido, os olhos e o 3 Os afectos não são afeições e os perceptos não dizem respeito à percepção. São devires não humano. Ou seja, bloco de sensações, forças que passam de um para o outro. 21 | CAMINHANDO POR LINHAS: MODOS DE RECONHECER ÀS MARGENS DOS TRILHOS FERROVIÁRIOS EM SÃO CARLOS COMO ESSE TEXTO SE MOBILIZA? nariz para habitar o território de modo corporificado. O cartógrafo pesquisador cria corpo junto com a pesquisa. Tal prática solicita o conceito de corpo. Neste trabalho, compreende-se que há variações de estado desse corpo. Em alguns momentos, discute-se o corpo em sua dimensão biológica; em outros, aproxima-se do conceito abordado pelos filósofos pós-estruturalistas, o corpo sem órgão, que consideram o corpo não apenas por suas funções, mas como um órgão integrante de um organismo vivo4. Os corpos associam-se aos graus de potência, os quais podem ser aumentados ou diminuídos por meio de encontros, gerando afetos5. Assim, “os corpos não se definem por seu gênero ou espécie, por seus órgãos e funções, mas por aquilo que são capazes de fazer” (DELEUZE; PARNET, 1998, p.49). O tema e as metodologias abordados são essenciais para o reconhecimento da cidade, fornecendo pistas valiosas para a arquitetura e o urbanismo, especialmente em cidades de porte médio na América Latina, como São Carlos. Este trabalho busca revelar as complexidades desse município, reconhecendo a potência das ambiências e corporeidades que têm sido excluídas, ignoradas e higienizadas da cidade. São Carlos, fundada em 1857, inicialmente se desenvolveu com base na pecuária e na cana-de-açúcar. Com a ascensão da produção cafeeira e a chegada da ferrovia, a paisagem da região foi transformada. Entre 1930 e 1950, a crise cafeeira e a estagnação da lavoura levaram a cidade a se apoiar nas atividades industriais iniciadas pelos imigrantes. Atualmente, as indústrias são a base da economia de São Carlos, complementadas pela forte tradição universitária que reforça sua imagem como “Capital da Tecnologia”. Embora a ferrovia ainda esteja em uso e haja esforços para preservar o patrimônio histórico e cultural, a marginalidade é evidente ao longo do leito férreo (FRASCARELI; FIORIN; ROMÃO, 2022). Em consonância com o objetivo da pesquisa busca-se para o trabalho em questão: • Revisar bibliografias, desenvolvendo um entendimento historiográfico do município de São Carlos-SP, relatando a chegada da ferrovia e o declínio dela, com objetivo de compreender a história do local de pesquisa. • Discutir os conceitos das práticas errantes estudados por Paola Berenstein Jacques e suas derivações para caminhada nos territórios atuais com 4 “Se tudo é vivo, não é porque tudo é orgânico e organizado, mas, ao contrário, porque o organismo é um desvio da vida. Em suma, uma intensa vida germinal inorgânica, uma poderosa vida sem órgãos, um Corpo tanto mais vivo quanto é sem órgãos, tudo que passa entre os organismos. (DELEUZE; GUATTARI, 1997, v. 5, p. 212)”. Ver mais em: DELEUZE, G.; GUATTARI, F. Mil Platôs: Capitalismo e esquizofrenia. 1.ed. São Paulo: 34, 1997. v. 4. 5 Deleuze em diálogo com Claire Parnet (1998), embasado por Spinosa, delineia que “os afectos são os devires. São devires que transbordam daquele que passa por eles, que excedem as forças daquele que passa por eles” (DELEUZE; PARNET, 1998, p.47). As coisas carregam afectos, tais afectos geram afetos; alguns materiais tem mais afectos que outros, variam em intensidades. 22 | CAMINHANDO POR LINHAS: MODOS DE RECONHECER ÀS MARGENS DOS TRILHOS FERROVIÁRIOS EM SÃO CARLOS COMO ESSE TEXTO SE MOBILIZA? Francesco Careri e Eduardo Rocha afim de compreender os processos utilizados na apreensão da cidade através da prática do caminhar. • Analisar os conceitos sobre cartografia, cartografia sentimental e processos de subjetivação, suscitados por Deleuze e Guattari, Suely Rolnik e Pascoalino Romano Magnavita buscando aprofundar os planos de composição do pensamento. • Mapear as linhas de fuga referente as práticas sociais ao longo do leito férreo são-carlense na área central da cidade, através da caminhada e da cartografia, compreendendo os agenciamentos e as relações presentes no tempo atual. Se por um lado o urbanismo consolidado e planejado é homogeneizador, por outro existe um urbanismo que é praticado, da ordem da subjetivação. Nesse sentido, podemos ressignificar a formação dominante dos arquitetos e urbanistas, para suscitar a formulação de uma cidade mais múltipla e territorializada. É urgente traçar uma nova perspectiva para o campo da pesquisa em arquitetura e urbanismo, uma visão que se aproxima da cidade vivida para dizer sobre ela. No primeiro momento, no processo de desembolar as linhas, buscou-se entender a historiografia do município de São Carlos-SP por meio de uma pesquisa bibliográfica que relatou a história dominante. Antes de reconhecer os espaços habitados da cidade atual, foi necessário mover-se por linhas duras (molares). Considerando a cidade como um território onde essas linhas se articulam, ampliaram- se os estratos históricos. A análise das fotografias permitiu observar variações nas configurações dessas linhas, flexibilizando-as e somando camadas históricas do passado, o que possibilitou uma compreensão mais profunda do presente. Na ação de desfiar as linhas, o caminhar para além do deslocamento. Interessamo-nos em caminhar entre errantes, aqueles que, através de suas obras, praticavam as errâncias urbanas. O ato de andar pela cidade criticava o urbanismo como um campo disciplinar, funcionando como um manifesto que questionava a construção dos espaços. Perguntamos: quem são os agentes da história do caminhar que flexibilizam pensamentos rígidos e linhas duras? Somando à investigação das dinâmicas em movimento, afirmamos que cartografar é mapear processos. O objetivo não foi sistematizar um método cartográfico, mas rastrear apontamentos nesse diálogo, que suportassem as análises críticas como instrumentos de resistência. Este capítulo foi fundamentado pelos estudos de Deleuze e Guattari, Suely Rolnik, Virginia Kastrup, entre outros autores. Esses estudos revelam a cartografia como uma ferramenta que relaciona a história do presente e possibilita a coexistência com encontros passados, conectando o que somos com o que fomos. 23 | CAMINHANDO POR LINHAS: MODOS DE RECONHECER ÀS MARGENS DOS TRILHOS FERROVIÁRIOS EM SÃO CARLOS COMO ESSE TEXTO SE MOBILIZA? Se caminhar e cartografar dizem respeito aos processos cognitivos e criativos, então, considera-se que são práticas em trânsito. Em caminhografar, movimentar o corpo e o pensamento, aproximando-se de aplicações que ocorrem na interseção entre método empregado à arquitetura e ao urbano. Revisa uma experiência que requer atenção e tempo, denominada caminhografia urbana, sendo mais do que uma forma de locomoção: é uma possibilidade de entrar em contato com o sensível à favor da construção de processos de subjetivação. Em rompes e alinhavar, revela-se relatos íntimos, em primeira pessoa, sobre caminhadas coletivas ou trajetos solos. Esses percursos atravessaram a zona urbana de São Carlos pela linha do trem, com um enfoque especial no entorno da Estação Ferroviária e nos vestígios fabris que ali resistem. Trata-se da disposição dos sujeitos para encontrar o objeto de pesquisa e os corpos que habitam a cidade. O rompimento da linha é visto como uma maneira de realizar novas conexões com as forças operantes da cidade. O ato de alinhavar conceitos diz respeito às experimentações metodológicas que aproximam teorias das experiências realizadas na cidade. Não busca definir e fixar tais conceitos, mas ampliar as possibilidades de análise e leitura sobre os estudos urbanos discutidos. Sendo todos os conceitos empregados permeados pelo afeto. Assim, explora-se modos de registrar, narrar, habitar e expressar as caminhadas e cartografias realizadas na etapa prática. Por fim, o trabalho se conclui ao enxergar nas pontas soltas um princípio para novos entrelaçamentos. Reconhecendo potências e lacunas no percurso de construção dos processos de subjetivação, os quais ocorreram por serem vivenciados de maneira honesta e disposta neste trabalho. 24 | CAMINHANDO POR LINHAS: MODOS DE RECONHECER ÀS MARGENS DOS TRILHOS FERROVIÁRIOS EM SÃO CARLOS DESEMBOLAR I. DESEMBOLAR As linhas “Indivíduos ou grupos, somos atravessados por linhas, meridianos, geodésicas, trópicos, fusos, que não seguem o mesmo ritmo e não têm a mesma natureza. São linhas que nos compõem. (DELEUZE; GUATTARI, 1997, p. 76)”. As linhas duras, flexíveis e de fuga (DELEUZE; GUATTARI, 1997) operam em coexistência, atuando no território a ser cartografado (inclusive no corpo daquele que cartografa). Elas estão presentes nos estratos da vida, permeando tudo o que é habitado, percorrido e experienciado. Ao reconhecer a cidade como o palco da vida cotidiana, é possível explorar desde os diversos modos de ocupação dos espaços até os estratos mais consolidados. Neste trabalho, as linhas são utilizadas como articulações, buscando ampliar a compreensão dos estratos. Ligadas à memória, ao passado, à história e à moral, as linhas duras (molar) delimitam identidades, hábitos e opiniões cristalizadas, representando assim modos de existência mais estáticos. Desta forma, acabam obstruindo a chegada do novo, contribuindo para a reprodução e a manutenção de territórios através de mecanismos de controle e captura (DELEUZE; PARNET, 1998). Essas linhas são de natureza oficial, organizando-se nos territórios e nos movimentos de estratificação, como é exemplificado na história consolidada apresentada neste estágio inicial do trabalho. (...) “nelas tudo parece contável e previsto, o início e o fim de um segmento, bem como a passagem de um segmento a outro” (DELEUZE; GUATTARI, 1997, p.67). Para que a vida possa se estabelecer, é necessário desfazer os territórios endurecidos. Os pequenos desvios nesses territórios são responsabilidade das linhas flexíveis (moleculares). Essas linhas delineiam alterações que provocam fissuras nos territórios mais rígidos, gerando pequenas mutações no que já estava estabelecido. É neste ponto que as imagens inseridas neste capítulo se posicionam. Os movimentos provocados pelas fotografias estabelecem conexões poderosas que abrem caminho para outras narrativas e temporalidades. Elas podem até nos ajudar a romper com o que está pré-estabelecido. O importante é estarmos abertos a isso e não nos deixarmos guiar apenas pela fixação. Por último, mas não menos importante, temos a linha de fuga (de voo). Esta linha rompe com os protocolos estabelecidos, tratando dos agenciamentos e das potências de transformações existenciais. Embora essas linhas se caracterizem de 25 | CAMINHANDO POR LINHAS: MODOS DE RECONHECER ÀS MARGENS DOS TRILHOS FERROVIÁRIOS EM SÃO CARLOS DESEMBOLAR maneiras diferentes, não podem ser pensadas separadamente; elas coexistem, se alternam e se misturam. Nenhum indivíduo ou território é constituído apenas por uma linha. Por mais consolidada (dura) que seja a história contada sobre o município de São Carlos, sempre existirão linhas flexíveis (fotografias) forçando novas relações (agenciamentos). 26 | CAMINHANDO POR LINHAS: MODOS DE RECONHECER ÀS MARGENS DOS TRILHOS FERROVIÁRIOS EM SÃO CARLOS DESEMBOLAR LINHAS DURAS . MOLARES LINHAS FLEXÍVEIS . MOLECULARES LINHAS DE FUGA . VOO Figura 01 - Diagrama das linhas. Fonte: Elaborada pela autora. 2024. 27 | CAMINHANDO POR LINHAS: MODOS DE RECONHECER ÀS MARGENS DOS TRILHOS FERROVIÁRIOS EM SÃO CARLOS DESEMBOLAR A formação do núcleo urbano são-carlense Da terra ancestral dos Kaingang e Kayapós, ainda se escuta, de tempo em tempo o apito do trem. Em solos dos Campos de Araracoara1, assim como a maioria dos povoados no período colonial e imperial, corre sangues indígenas. O sítio sobre o qual surge os primórdios da cidade de São Carlos, estende-se à margem esquerda do ribeirão Monjolinho, em território que anteriormente pertencia ao município de Araraquara. Os nativos, ao verem o sol nascer por detrás das montanhas acreditavam que ali morava o dia, portanto o nomearam como Aracoara: de ará: dia; e coará, morada (TRUZZI, 2007, p.30). Essa terra, que hoje constitui o município de São Carlos, inicia sua colonização sistematicamente a partir da abertura do chamado “picadão de Cuiabá” pelo sargento-mor Carlos Barthlomeu de Arruda Botelho. Tendo como ponto de partida Piracicaba, que era denominada “boca de sertão”, a estrada delineava os campos do córrego do Feijão, cruzava a mata densa do Pinhal, e superava os extensos cerrados dos Campos de Araraquara. Caminhos que levavam às minas de ouro de Cuiabá e Goiás no fim do século XVIII (FUNDAÇÃO PRÓ- MEMÓRIA DE SÃO CARLOS, 2017, p. 144). A abertura dessa estrada formou um corredor cultural no qual diferentes grupos étnicos transitavam. Há registros históricos e arqueológicos que mencionam a presença indígena (MANO, 2006, p. 42). Esses caminhos em direção às minas do centro-oeste brasileiro construíram um contexto de busca por oportunidades para muitas pessoas, permitiu o povoamento mais rápido da área por todos aqueles que se sentiam atraídos pelas férteis terras do planalto. Desde já, é cabível não perder de vista que tal presença, exterminação, marginalização ou absorção de grupos populacionais em questão foi resultado do sistema de lavouras inaugurado em meados do século XIX no oeste paulista. Um cenário de exterminação dos indígenas, expulsão dos posseiros, importação dos negros escravos seguido da apropriação dos imigrantes europeus, etapas de um mesmo processo que se sobrepõem, uma após a outra (TRUZZI, 2007, p.47). Sendo assim, no início do século XIX, as terras da futura São Carlos começaram a ser demarcadas em sesmaria, a história local narra um intenso movimento de apropriação de terras através de disputas entre sesmeiros e posseiros pela concessão das cartas. Três grandes áreas de sesmaria se estruturam juridicamente. A primeira delas demarcada legalmente foi a do Monjolinho em 1810, nessa divisão incluía toda a parte norte da atual cidade. Vale ressaltar que há uma dificuldade de indicar com exatidão a época que os proprietários de terra consolidaram suas fazendas responsáveis pela aglomeração de atividade econômica na região. Em seguida, demarcou-se a sesmaria do Quilombo (atual região do distrito de Santa 1 Os campos de Aracoara envolviam um vasto território desconhecido, o qual se constituiria posteriormente, os municípios de Araraquara, Jaboticabal, São Carlos, Jaú, Brotas e Dois Córregos. 28 | CAMINHANDO POR LINHAS: MODOS DE RECONHECER ÀS MARGENS DOS TRILHOS FERROVIÁRIOS EM SÃO CARLOS DESEMBOLAR Eudóxia), acredita-se que foi assim nomeada pela presença de negros aquilombados na região – apenas pela tradição oral local, não obtendo confirmação baseada em pesquisas. E por fim, regularizou-se a última, em 1831, pelo sesmeiro Carlos José de Arruda Botelho, foi um dos idealizadores da formação da cidade nos limites de sua propriedade. Assim, foi denominada sesmaria do Pinhal, sendo adquirida em 1785 por Carlos Bartholomeu de Arruda Botelho2 (pai de Carlos José, futuro Conde do Pinhal) - comandante da força armada de Pirassununga, teve sua família, em mais de duas gerações, como importante figuras no processo de constituição do território são-carlense (FUNDAÇÃO PRÓ-MEMÓRIA DE SÃO CARLOS, 2017, p.19). Nesse momento, um pouco antes de 1857, data oficial da fundação de São Carlos, o café ainda não havia chegado ao território são-carlense, sendo a criação de bovinos e suínos, bem como a cultura canavieira, as principais atividades econômicas locais. A região de São Carlos era constituída por fazendas localizadas nessa zona pioneira tocada por trabalho escravo, que lidavam com a agropecuária e com um incipiente cultivo de cana de açúcar. Um período demarcado pela valorização de terra, uma vez que as lavouras começaram adentrar na região, atestado pela presença de engenhos, alambique, caldeira, e aumento da procura pelo braço escravo. (GORDINHO, 1985, p.19). Assim como a lavoura, o café foi espraiando conforme encontrava solo adequado e, do cafezal nasceu a vila. O café foi a causa do povoamento mais intenso nas terras são-carlenses, ainda integradas a freguesia de São Bento (atual Araraquara). Desse modo, o café fez crescer os pequenos núcleos existentes e criou novos a partir de povoados incipientes que, até o momento, eram apenas pouso de beira de estrada para os tropeiros que demandavam o sertão. Em 1840, por iniciativa de Carlos José de Arruda Botelho, foram plantadas ao lado de outras culturas, os primeiros pés de café da região (TRUZZI, 2007, p.33). A partir disso, volta-se o foco no virtuoso desenvolvimento do núcleo de São Carlos, local onde a capela começaria a ser construída em 1856. Sendo Carlos José de Arruda Botelho quem doou uma parcela das terras que conformavam a antiga sesmaria do Pinhal para a formação do patrimônio religioso. “É provável que o elemento religioso viesse ao encontro das aspirações dos fazendeiros de disciplinar a vida em comum e suas posses de terra na frente pioneira” (TRUZZI, 2007, p. 41). Uma necessidade de assistência religiosa que superava prática habituais da própria religião, aplicada como uma ferramenta de civilização que doutrinava os corpos afoitos em busca de vida livre. 2 Uma vez adquirida a sesmaria do Pinhal, Carlos Bartholomeu de Arruda Botelho construiu a primeira sede da Fazenda do Pinhal, a qual residiu com Maria Siqueira consolidando sua família com quatro filhos: Manoel Joaquim Pinto de Arruda, Maria Francisca de Arruda, Eugênica Antônia de Arruda e Carlos José Botelho. 29 | CAMINHANDO POR LINHAS: MODOS DE RECONHECER ÀS MARGENS DOS TRILHOS FERROVIÁRIOS EM SÃO CARLOS DESEMBOLAR A construção da capela foi solicitada por Jesuíno de Soares Arruda e sua mulher e, serviu de ponto de concentração inicial para fecundação da cidade. Tendo São Carlos de Borromeu como santo escolhido, além de padroeiro da família, Carlos era o nome predominante dos Botelhos (TRUZZI, 2007, p.41). O primeiro agregado de arranchados feitos de barrote e cobertos de palha de indaiá se consolidou em torno do patrimônio religioso, “(...) modestas casuchas improvisadas no entorno do pátio da capela e derramando-se ladeira abaixo pelas ruas laterais até os alagados das águas do Gregório” (Neves, 2007, p.4). Um conjunto cada vez maior de casas foi rodeando o pátio em torno da capela, a qual foi inaugurada em 1857. E no ano seguinte, São Carlos passou a elevação do Distrito de Paz à categoria de freguesia de Araraquara (TRUZZI, 2007, p.42). São Carlos do Pinhal não nasceu do improviso, Antônio Carlos de Arruda Botelho traçou o amplo pátio da capela abrangendo duas quadras inteiras, concedida ao eixo centro da cidade, que foi denominada rua de São Carlos. As tessituras viárias foram igualmente traçadas dentro dessa perspectiva, orientadas na direção norte-sul com a expectativa de ocupar a colina central, se não fosse o impasse criado pelo proprietário da sesmaria do Monjolinho, João Alves de Oliveira, que não permitiu a expansão do povoado em direção ao norte. Portanto, a área urbana permaneceu limitada à metade sul do pátio da igreja, com as ruas inseridas margeando a colina descendo para o córrego do Gregório (NEVES, 2007, p.4). De acordo com Neves (2007), em 1866, durante a reunião da Câmara dos Vereadores atenuou-se a aparição das primeiras vias: Rua do Commercio (atual Avenida São Carlos), da fachada principal da capela até o cruzamento da General Osório – atravessava o córrego do Gregório por uma pinguela; Rua de Santo Ignácio (atual Episcopal) saindo da fachada posterior da capela dava acesso ao cemitério (hoje largo de São Benedito); Rua do Jatahy (atual Dona Alexandrina); as transversais leste-oeste Rua Riachuelo (atual Matta); Rua Itaquy (atual Jesuíno de Arruda) e a Paysandu, hoje General Osório. Em 1868, depois do falecimento de João Alves de Oliveira (proprietário da sesmaria do Monjolinho), sua esposa, Dona Alexandrina Melchiades de Alkimim doa terras e liberta São Carlos para o norte. Nessa altura ainda é inviável apresentar a população de São Carlos, até meados de 1870 sua população era contabilizada junto com Araraquara. O progresso do município de São Carlos foi afirmado pelo recenseamento realizado em 1874. A vila contava com seus 6.897 habitantes, desse número, a grande maioria residia na zona rural e cerca de um quarto do total eram escravos. A população do município constituía mais de dois terços da população de Araraquara, de quem São Carlos fora distrito (TRUZZI, 2007, p. 44). 30 | CAMINHANDO POR LINHAS: MODOS DE RECONHECER ÀS MARGENS DOS TRILHOS FERROVIÁRIOS EM SÃO CARLOS DESEMBOLAR No decorrer de 1870, São Carlos enfrentou dois momentos de ameaça ao seu desenvolvimento, houve dois surtos de varíola, um em 1874 e outro em 1879. Mesmo tendo a promoção de esforço do governo providencial pela vacinação a campanha atingiu poucas pessoas, tendo seu maior enfoque na capital. Foi somente na República, em 1892, que se estabeleceu um abrangente programa de saúde pública, isto ocorre pelo fato de que as oligarquias rurais compreenderam que a ameaça da insalubridade poderia arruinar os esforços para a chegada dos imigrantes. Nesse momento, a urbanização de São Carlos era embrionária, a vila limitava- se as estruturas básicas: tinha uma igreja, uma cadeia e o cemitério, além de pequenos comércios locais e algumas casas no entorno do patrimônio religioso (FUNDAÇÃO PRÓ-MEMÓRIA DE SÃO CARLOS, 2017, p. 24). Tanto a capela quanto o cemitério, obras públicas fundadoras da nascente São Carlos, foram remodelados uma década depois. Após as primeiras casas de barrote e palha de indaiá chegou a vez das construções mais sólidas de tijolos e telhas, inseridas nas proximidades da colina, assim, relevando a São Carlos da estrada de ferro. 31 | CAMINHANDO POR LINHAS: MODOS DE RECONHECER ÀS MARGENS DOS TRILHOS FERROVIÁRIOS EM SÃO CARLOS DESEMBOLAR Figura 02 - Rua General Osório na década de 1990. Fonte: Acervo APH-FPMSC. 32 | CAMINHANDO POR LINHAS: MODOS DE RECONHECER ÀS MARGENS DOS TRILHOS FERROVIÁRIOS EM SÃO CARLOS DESEMBOLAR Figura 03 - Rua General Osório, 1957. Fonte: Coleção Porceno Marino. Acervo APH-FPMSC. 33 | CAMINHANDO POR LINHAS: MODOS DE RECONHECER ÀS MARGENS DOS TRILHOS FERROVIÁRIOS EM SÃO CARLOS DESEMBOLAR A chegada da ferrovia: uma cidade para o consumo O sistema de produção cafeeiro cresceu depressa na província de São Paulo em virtude do aumento do consumo no mercado internacional, transformando-se no principal produto da economia paulista e brasileira. O café torna-se símbolo de poder, riqueza, esperança, domínio de classes e história. Uma perspectiva que perpassa toda estrutura social paulista, desde os coronéis de terra até os ex-escravos. Nesse período, a população existente em São Carlos era em sua maioria fazendeiros que residiam junto aos agregados e escravos nas fazendas. Assim, podendo cuidar de suas terras fartas de subsistências. No entanto, a riqueza principal nas fazendas provinha dos cafezais. O café, que chegou como incêndio, invadindo as matas do Pinhal, se transformava em ouro nos mercados internacionais superando a cana e a criação. Foram abaixo as matas seculares e lavouras ostentando ao sol as plantas recém-nadas, o início de um novo ciclo econômico no Brasil (NEVES, 1997, p.16). O grande problema desse processo de ascensão cafeeira em São Carlos era o escoamento da imensa carga por ermos e descampados até chegar aos portos de Santos, São Sebastião e Ubatuba. O café sendo um produto essencialmente destinado ao mercado externo, tinha como principais compradores a Europa e os Estados Unidos (NEVES, 2007, p.15). Apesar de algumas literaturas apontarem registros da presença do café em São Carlos bem no início do século XIX, entende-se que as plantações desse período serviam ao consumo interno, não estavam estruturadas para a larga escala de produção. A ascensão cafeeira em São Carlos ocorre a partir de 1870, impulsionado pela implantação das estradas de ferro que se consolidavam nas regiões mais próximas. Anterior a implantação da estrada de ferro os produtos da região fluíam pela estrada principal, sendo aquela que descia, aos pés do planalto, até Rio Claro, sentido Piracicaba, Campinas, Jundiaí, São Paulo e finalmente, Santos. Pelo outro lado, o prolongamento dessa estrada conduzia a Araraquara, rumo à Minas Gerais e Goiás. Tendo o primeiro trecho citado maior relevância para o governo provincial e o segundo sendo conservado pelos próprios moradores da região em prol de seus interesses. No entanto, o governo é forçado a se preocupar mais com a qualidade da estrada rumo ao norte decorrente da declaração de guerra ao Paraguai (1860), uma vez que a vila de Araraquara estava geopoliticamente localizada para o abastecimento das tropas (TRUZZI, 2007, p.43). O binômio café/ferrovia é frequentemente analisado quando se trata do período cafeeiro no Brasil, onde a produção agrícola da região era um fator determinante para a expansão das estradas de ferro, ocasionando um cenário de disputa nas áreas rurais pela aproximação dos trilhos em suas terras. A inserção do sistema de 34 | CAMINHANDO POR LINHAS: MODOS DE RECONHECER ÀS MARGENS DOS TRILHOS FERROVIÁRIOS EM SÃO CARLOS DESEMBOLAR transporte ferroviário proporcionou uma transformação estrutural e se firmou como elemento primordial da paisagem nas cidades do interior paulista. Foi no cerne desse processo de deslocamento da cultura lavoureira que as famílias de fazendeiros, natos de cidades importantes da época colonial, transformaram as terras do oeste paulista3. Em meados de 1865, os trilhos recém-chegados em São Paulo e Jundiaí foram se espraiando até São João do Rio Claro (atual Rio Claro) – a obra foi entregue por volta de 1876, através da Companhia Paulista de Estradas de Ferro, a qual, possuía concessão para a construção do trecho além de Rio Claro, em que o principal interesse era chegada dos trilhos até as terras do Mato Grosso. A construção da estrada de ferro assumiu um caráter de disputa política envolvendo influentes fazendeiros da região de São Carlos, liderados por Antônio Carlos de Arruda Botelho. Diante do impasse que circundava as disputas, em 1880, a Companhia Paulista renunciou à concessão, permitindo a incumbência das obras à Companhia Rio Claro de Estradas de Ferro (FUNDAÇÃO PRÓ-MEMÓRIA DE SÃO CARLOS, 2017, p. 35). A nova década indicava-se promissora para o município, os fazendeiros locais haviam empreendidos as primeiras obras da estrada ferro. Em 1880, São Carlos alcança administrativamente no Império, pela Lei de 21 de abril, a elevação a vila de São Carlos do Pinhal à categoria de cidade pelo presidente da Província em questão, Laurindo Abelardo de Brito. Simultaneamente, houve a instalação da comarca judicial (FUNDAÇÃO PRÓ-MEMÓRIA DE SÃO CARLOS, 2017, p. 20). Antônio Carlos de Arruda Botelho (o qual viria ser conhecido como Conde do Pinhal), já citado anteriormente no trabalho, representou o padrão da classe dos barões do café existentes em São Carlos. Qualquer historiografia que evidencie os ‘grandes homens’ e os ‘grandes feitos’ em São Carlos se confunde com a sua bibliografia. Nessa pesquisa, aguçaremos a construção da figura do Conde do Pinhal não com a intenção de destacá-lo, mas, com o objetivo de compreendermos decisões políticas relacionadas ao desenvolvimento urbano. Antônio Carlos, nasceu em Araraquara, onde acompanhou sua família na abertura de fazendas no município, com seu pai e seus irmãos participou da fundação de São Carlos. Em 1857, ocupou a presidência da Câmara de Araraquara, ordenou a criação do distrito de paz de São Carlos do Pinhal, onde nessa cidade, mais tarde, se tornou chefe do Partido Liberal, produzindo influência política local, seu prestígio lhe valeu o título de barão, visconde e conde em reconhecimento aa serviços prestados no abastecimento de tropas durante a Guerra do Paraguai (1860). Como herdeiro da sesmaria do Pinhal, acompanhou o plantio dos primeiros pés de café na região, e foi um dos maiores responsáveis pela importação dos primeiros contingentes de imigrante. 3 As terras do oeste paulista, além de sua disponibilidade qualitativa tinham como principal aspecto condições climáticas, topográficas e férteis propícias para abranger marcha do café. 35 | CAMINHANDO POR LINHAS: MODOS DE RECONHECER ÀS MARGENS DOS TRILHOS FERROVIÁRIOS EM SÃO CARLOS DESEMBOLAR Assim, não há dúvidas que o maior de seus esforços foi a construção da estrada de ferro no trecho Rio Claro, Araraquara e Jaú. Tendo em vista que foi representante de um vasto conjunto de oligarcas locais, motivado por interesses pessoais e de seus amigos e parentes, determinou o traçado que melhor conviria (TRUZZI, 2007, p.96). As obras da estrada de ferro entre Rio Claro e São Carlos tiveram início em 1882, teve sua inauguração em 1884. Sua abertura da ferrovia alavancou o incremento da produção cafeeira: um sopro de progresso para a futura Princesa do Oeste. Neste momento surgem diversos edifícios que supririam as demandas econômicas e sociais imposta pelo sistema ferroviário, como o prédio da Estação Ferroviária, tendo uma reforma em 1908, a qual incluiu ampliações e instalação do relógio em sua fachada principal. No mesmo ano (1884) foi construída a Câmara Municipal, localizada no Largo Municipal (atual Praça Coronel Salles). Construída em arquitetura tradicional foi demolida em 1926 após anos de uso e má conservação. Desde 1921 a Câmara ocupava o Palacete Conde do Pinhal, antiga residência de Antônio Carlos de Arruda Botelho (Conde do Pinhal). A construção de outros prédios públicos compreendeu melhoramentos urbanos para São Carlos do Pinhal, como manifestações do tempo resultante da evolução das tipologias e da necessidade populacional. Nesse momento ainda não caracterizavam, em termos arquitetônicos, grandes expressões reconhecidas pela elite (influenciada por um modelo eurocêntrico) do período cafeeiro como ocorreu na capital paulista (BORTOLUCCI, 1997, p.78). Embora não reconhecidos pela alta sociedade, o município de São Carlos, assim como em muitos casos de cidades remanescentes, tinha forte presença de expressões arquitetônicas tradicionais de saberes específicos – ainda que não expostos nem na atualidade. Em 1886, inaugurou-se o Matadouro Municipal, no qual compreendia um conjunto de instalações para animais e funcionários. Tendo apenas seu bloco principal mantido e incorporado ao Campus da Universidade de São Paulo em 1971, atual sala da Escola da Engenharia. As instalações do Matadouro apresentam característica da arquitetura tradicional. Em 1887, a Companhia Rio Claro de Estradas de Ferro estabeleceu sua expansão até a cidade de Araraquara e até a cidade Jaú. Essa ampliação apresentou resultados econômicos positivos, tornando o município de São Carlos um os principais fornecedores de café no estado. Em consonância com os avanços socioeconômicos e as transformações urbanas, a chegada dos trilhos proporcionou um intenso aumento populacional, decorrente da busca por novas oportunidades. A saber, em 1874 a população de São Carlos consistia em 6.687 habitantes, sendo um quarto escravos (aproximadamente 1.568, um número expressivo influenciado pela lavoura). Já no ano de 1886 com a chegada da ferrovia, anterior o evento da abolição dos escravos e no período de estimulação da imigração, a população são-carlense chega a 16.104 habitantes, sendo 2.982 habitantes escravos e 2.501 habitantes imigrantes (TRUZZI, 2007, p.66). 36 | CAMINHANDO POR LINHAS: MODOS DE RECONHECER ÀS MARGENS DOS TRILHOS FERROVIÁRIOS EM SÃO CARLOS DESEMBOLAR A evolução do sistema cafeeiro foi atravessada pelo evento da abolição da mão de obra escrava presente nas lavouras, que ocorreu de forma lenta e gradual. O Estado, os fazendeiros e os abolicionista conservadores estavam preocupados em transformar a emancipação em um processo longo, mantendo praticamente inalteradas as formas de trabalho e domínio nas mãos da elite escravista e agrária. Na contramão dessas ações, os escravos resistiam pela liberdade próxima e agiam em prol da aceleração do fim da escravidão, intensificando fugas e consolidando quilombo nos espaços urbanos. Vale evidenciar que o município de São Carlos do Pinhal, integrava a promissora oeste paulista, portanto, foi um dos municípios que mais utilizou a mão de obra escrava para o trabalho na lavoura e no espaço urbano (OLIVEIRA, 2018, p. 29). Os fazendeiros prevendo a expansão de suas lavouras e a escassez de braços escravos, não hesitaram em estimular a imigração estrangeira. A libertação dos escravos carregava a virtude de reforçar a ordem social, uma vez que ela fosse concedida e não conquistada (TRUZZI, 2007, p.60). Próximo a abolição, os fazendeiros tinham implantado um sistema de trabalho assalariado e não tinham dúvidas que a adoção de mão-de-obra imigrante era capaz de preservar o sistema de lavouras. Em 13 de maio de 1888, após a abolição da escravidão, mesmo que obtida a liberdade, aos libertos restavam poucas perspectivas de inserção e mobilidade social. Alguns permaneceram nas fazendas, sendo discriminados e recebendo um salário menor que os colonos imigrantes. Outros se deslocaram para o espaço urbano, aumentando a população do núcleo. No entanto, continuaram marginalizados e marcados pela discriminação. As massas de libertos se dirigiam para a cidade se aglomerando em espaços coletivos, como moradias plurifamiliar e cortiços (OLIVEIRA, 2018, p.64). Até o momento da abolição, ainda não existia no perímetro urbano nenhum loteamento regularizado, sendo o espaço urbano compreendido por 274 hectares. No entanto, entre 1889 e 1893, houve um crescimento de 50% da área urbana que sucedeu a construção de quatro loteamentos passando a ter um perímetro urbano de 364 hectares (LIMA, 2008, p. 42). Com relação ao aumento e a constituição populacional, acredita-se que a abolição da escravidão e a imigração europeia foram as grandes responsáveis pelo crescimento populacional no núcleo urbano. Vale ressaltar que não houve uma mera substituição do braço escravo pelo braço do imigrante, mas sim um incremento numérico simultâneo das duas mãos-de-obra. A abertura da ferrovia e a consequente incorporação de mão de obra escrava negra e imigrante para o trabalho rural direcionaram a produção cafeeira. Dentre os vários imigrantes, a corrente migratória de destaque, que povoou as terras de lavoura e, os bairros operários da cidade de São Carlos, foi a italiana. 37 | CAMINHANDO POR LINHAS: MODOS DE RECONHECER ÀS MARGENS DOS TRILHOS FERROVIÁRIOS EM SÃO CARLOS DESEMBOLAR Em 26 de setembro de 1889 foi assinada a venda da Companhia Rio Claro de Estradas de Ferro a um grupo de investidores, conhecida como Rio Claro São Paulo Railway Limited (Rio Claro Railway). A administração da Companhia teve uma breve história, atuando durante o tempo que promoveram a expansão da linha de Araraquara e Jaboticabal e iniciaram a implantação dos ramais de Água Vermelha e Ribeirão Bonito. E, embora a Companhia tenha obtido sucesso no período de atuação foi colocada à venda, devido ao cenário de incertezas diante das políticas econômicas do Brasil no início da República (FUNDAÇÃO PRÓ- MEMÓRIA DE SÃO CARLOS, 2017, p.47). Neste ano de 1889, a Santa Casa da Misericórdia teve seu primeiro pavilhão inaugurado, com características ecléticas sem grandes ostentações. No ano seguinte, o Fórum e a Cadeia, que ocupavam o mesmo prédio da Câmara foram relocados para um prédio próprio, ainda existente sendo seu uso atual a Câmara Municipal. Sua arquitetura característica revela a atuação do arquiteto francês Victor Dubugras no munícipio de São Carlos. Construído em área aterrada às margens do Córrego do Gregório, o Mercado Municipal era responsável pelo abastecimento alimentício da população da cidade, sendo o primeiro pavilhão entregue em 1903 e o segundo em 1907. Outro equipamento público importante desse período foi o Colégio São Carlos inaugurado em 1913. Embora existissem outras instituições educacionais no município, o Colégio São Carlos marca um tempo de progressão arquitetônica. O espírito de renovação e modernização, predominante do desejo social burguês, indicava crescentes complexidades das atividades urbanas, propiciando implantações de novas tipologias e programas de edificações como bancos, fábricas, hotéis, restaurantes e escolas. Nesse contexto de modernização a Companhia Paulista viu oportunidade em adquirir a estrada de ferro de Rio Claro, efetivando a compra da Companhia Rio Claro em 1892 criando a possibilidade de expansão em direção ao centro-oeste do Estado. Durante esse período foram encerradas as doações de terras realizadas pela Igreja e pela Câmara Municipal, surgindo os loteamentos de iniciativa. A implantação do primeiro loteamento ocorreu nas terras de Joaquim Alves S. Nery, nomeado Vila Nery. Após dois anos, em 1891, foi loteada a Chácara Mattos, propriedade do Major Manoel Antonio, que recebeu o nome de Vila Pureza, localizada na área oeste do município, local de inserção da Santa Casa. Contemporânea da Vila Pureza foi a Vila Izabel, localizada ao leste da estrada em direção à Rio Claro, margeando o “picadão de Cuiabá”. Um pouco depois, em 1893, fundada por Leopoldo de Almeida Prado, surge a Vila Prado, a qual sua composição primária era constituída por operários devido à proximidade com a Estação Ferroviária (OLIVEIRA, 2018, p. 62). 38 | CAMINHANDO POR LINHAS: MODOS DE RECONHECER ÀS MARGENS DOS TRILHOS FERROVIÁRIOS EM SÃO CARLOS DESEMBOLAR Simultaneamente à construção dos primeiros loteamentos, São Carlos do Pinhal recebia alguns equipamentos urbanos derivados da riqueza da economia cafeeira e dos materiais que chegavam na cidade através da ferrovia, como: o Teatro Ipiranga (1892), o Jockey Club São-carlense (1894), o Jardim da Matriz (1894), a Casa Bancária Conde do Pinhal, o banco União de São Carlos e o banco São Carlos, a Sociedade Dante Alighieri (1902) atual Centro de Divulgação Científica e Cultural – CDCC, o Grêmio Recreativo Flor de Maio (1928) responsável pela formação da identidade e organização da comunidade negra em São Carlos (Bortolucci, 1991, p.15). As transformações urbanas fervilhavam no município, diretamente relacionadas com as transformações sociais e políticas. Atrelado aos equipamentos urbanos a sociabilidade como movimento da vida social através de representações reveladas em jornais4 caracterizavam o período de consumo da vida urbana. 4 Ver: DATRINO, R. M. São Carlos nos jornais: representações e cotidiano 1889-1901. 2005. 39 | CAMINHANDO POR LINHAS: MODOS DE RECONHECER ÀS MARGENS DOS TRILHOS FERROVIÁRIOS EM SÃO CARLOS DESEMBOLAR 39 | CAMINHANDO POR LINHAS: MODOS DE RECONHECER ÀS MARGENS DOS TRILHOS FERROVIÁRIOS EM SÃO CARLOS DESEMBOLAR Figura 04 - Camadas cartográfi cas de São Carlos. Fonte: Elaborada pela autora. 2024. 40 | CAMINHANDO POR LINHAS: MODOS DE RECONHECER ÀS MARGENS DOS TRILHOS FERROVIÁRIOS EM SÃO CARLOS DESEMBOLAR Figura 05 - Mulher na escadaria da Estação Ferroviária em São Carlos. Fonte: Acervo APH-FPMSC. 41 | CAMINHANDO POR LINHAS: MODOS DE RECONHECER ÀS MARGENS DOS TRILHOS FERROVIÁRIOS EM SÃO CARLOS DESEMBOLAR Figura 06 - Estação Ferroviária em São Carlos. Sem data. Fonte: Acervo APH-FPMSC. 42 | CAMINHANDO POR LINHAS: MODOS DE RECONHECER ÀS MARGENS DOS TRILHOS FERROVIÁRIOS EM SÃO CARLOS DESEMBOLAR Figura 07 - Porteira entre a área central e a Vila Prado. Sem data. Fonte: Acervo APH-FPMSC. 43 | CAMINHANDO POR LINHAS: MODOS DE RECONHECER ÀS MARGENS DOS TRILHOS FERROVIÁRIOS EM SÃO CARLOS DESEMBOLAR Figura 08 - Jogo de Bets na rua da Vila Nery. Sem data. Fonte: Acervo APH-FPMSC. 44 | CAMINHANDO POR LINHAS: MODOS DE RECONHECER ÀS MARGENS DOS TRILHOS FERROVIÁRIOS EM SÃO CARLOS DESEMBOLAR Figura 09 - Grêmio Recreativo e Familiar Flor de Maio. Sem data. Fonte: Acervo APH-FPMSC. 45 | CAMINHANDO POR LINHAS: MODOS DE RECONHECER ÀS MARGENS DOS TRILHOS FERROVIÁRIOS EM SÃO CARLOS DESEMBOLAR Das crises ao início das atividades industriais Por volta de 1890, São Carlos era uma das cidades mais progressistas do interior do estado. Conforme revelado anteriormente o núcleo urbano era produto do desejo de consumo, diversão e ostentação. Enquanto na fazenda os fazendeiros nasciam e trabalhavam, na cidade viviam e desfrutavam, consumindo o que era produzido no rural. Durante o apogeu das plantações de café e a implantação da ferrovia a cidade era reconhecida como local de consumo e não para produção (TRUZZI, 2007, p.113). O largo da estação era o ponto de aglutinação dos meios de transportes disponíveis: dos trens, do bonde que foi inserido no contexto urbanos em meados de 1914, e mais tarde dos carros. Entre a ferrovia e o Mercado Municipal (próximo à Avenida São Carlos) constituiu-se um corretor de funções comerciais, denominado Rua General Osório. O largo da estação recebeu uma praça na inauguração da estação designada como Praça Visconde de Rio Claro e renomeada, em 1916, com a inauguração da bitola larga, para Praça Conselheiro Antônio da Silva Prado. Homenageando o então presidente da Companhia Paulista de Estrada de Ferro. Nesse mesmo período, iniciou-se o calçamento das ruas do centro com paralelepípedos. O período de 1934 a 1950, no município de São Carlos, destacou-se pelo retrocesso no setor agrícola. O abalo decorrente a economia cafeeira refletiu nas plantações, os cafezais já se encontravam em decadência. No primeiro momento, os efeitos negativos da crise foram equilibrados pela persistência da política de valorização do café. Após essa época, o efeito não se sustentou. Além da crise, houve uma profunda estagnação da lavoura, a qual resultou em solos de baixa fertilidade. Nesse período o café já não dispunha do mesmo vigor com que atravessou as primeiras décadas do século anterior. Os principais sintomas da decadência do município foram marcados pela criação da cafeicultura e, de modo mais amplo, de todo setor agrícola. Bem como, o êxodo rural atrelado a busca por alternativas econômicas e pela maneira como a cidade foi reagindo e se acomodando aos novos parâmetros econômicos (TRUZZI, 2007, p.121). A grande crise cafeeira fez convergir para os centros urbanos um número considerável de antigos colonos atraídos pelo trabalho fabril. Esse êxodo rural foi processado de 1935 até o final da década de 1940, a saber, neste período a população rural do município reduziu-se em 25,8%. Anterior ao processo de deslocamento urbano a segregação urbana já era presente, desde o período embrionário da cidade, onde palacetes das famílias mais abastadas eram implantados no entorno da Igreja Matriz, sendo um local de moradia de prestígio para os fazendeiros. Datando a intensificação no processo de segregação espacial determinadas regiões da cidade passaram a abrigar populações em péssimas condições de habitação (TRUZZI, 2007, p.124). 46 | CAMINHANDO POR LINHAS: MODOS DE RECONHECER ÀS MARGENS DOS TRILHOS FERROVIÁRIOS EM SÃO CARLOS DESEMBOLAR São diversas as análises que revelam as condições que tornaram possível o início da industrialização no Brasil, sendo a economia cafeeira um movimento indissociável à industrialização, a medida em que a acumulação do capital foi gerada a partir da cultura cafeeira em todo o Estado de São Paulo no final do século XIX e início do XX. A compreensão do desenvolvimento industrial nas décadas de 1930 a 1940 é uma especificidade dos países de industrialização tardia, os quais iniciaram com produção de bens de consumo não duráveis. Com a alta na importação o mercado interno se fortalece criando condições para o crescimento da industrialização já com a implementação de segmentos de produção de consumo duráveis acelerando o progresso da urbanização. 47 | CAMINHANDO POR LINHAS: MODOS DE RECONHECER ÀS MARGENS DOS TRILHOS FERROVIÁRIOS EM SÃO CARLOS DESEMBOLAR Figura 10 - Acidente envolvendo o bonde e um caminhão na Vila Nery, 1940. Fonte: Acervo APH-FPMSC. 48 | CAMINHANDO POR LINHAS: MODOS DE RECONHECER ÀS MARGENS DOS TRILHOS FERROVIÁRIOS EM SÃO CARLOS DESEMBOLAR Figura 11 - Greve dos trabalhadores do Frigorífico São Carlos do Pinhal, 1968. Fonte: Acervo APH-FPMSC. 49 | CAMINHANDO POR LINHAS: MODOS DE RECONHECER ÀS MARGENS DOS TRILHOS FERROVIÁRIOS EM SÃO CARLOS DESEMBOLAR Figura 12 - Efeitos da enchente na Rua Geminiano Costa, 1970. Fonte: Acervo APH-FPMSC. 50 | CAMINHANDO POR LINHAS: MODOS DE RECONHECER ÀS MARGENS DOS TRILHOS FERROVIÁRIOS EM SÃO CARLOS DESEMBOLAR Figura 13 - Desfile carnavalesco, 1988. Fonte: Acervo APH-FPMSC 51 | CAMINHANDO POR LINHAS: MODOS DE RECONHECER ÀS MARGENS DOS TRILHOS FERROVIÁRIOS EM SÃO CARLOS DESEMBOLAR Figura 14 - Bemvindo Rafael Girro na Praça Coronel Salles, 1973. Fonte: Acervo APH-FPMSC 52 | CAMINHANDO POR LINHAS: MODOS DE RECONHECER ÀS MARGENS DOS TRILHOS FERROVIÁRIOS EM SÃO CARLOS DESEMBOLAR Figura 15 - Vendedor ambulante. Sem data. Fonte: Acervo APH-FPMSC 53 | CAMINHANDO POR LINHAS: MODOS DE RECONHECER ÀS MARGENS DOS TRILHOS FERROVIÁRIOS EM SÃO CARLOS DESEMBOLAR No caso são-carlense o contexto industrial já supria a demanda do complexo cafeeiro com algumas fábricas de pequeno porte desde o século XIX até 1929, não por acaso a cidade era conhecida como promissora Princesa do Oeste5. Através da grande infraestrutura urbana impulsionou-se a atividade produtiva para acumulação do pequeno capital industrial, além da disponibilidade de mão de obra e mercado consumidor interno. Mas foi em 1930 que houve uma intensificação do crescimento industrial no município6, o movimento de acumulação do capital assumi uma lógica de substituição de importação, sobretudo, de bens de consumos produzidos pela população de trabalhadores recém-chegada do campo (FEITOSA, 2015, p.72). Contudo, o café foi responsável pela criação de uma grande infraestrutura na qual o município pôde se beneficiar em concomitância com a indústria. Desse modo, a importação de imigrantes europeus favoreceu a origem de atividades industriais. Ao passo que os imigrantes foram importados trouxeram consigo uma série de ofícios, técnicas e atividades que consolidaram o setor industrial7. Simultaneamente com a acomodação de novos parâmetros econômicos, a expansão da ferrovia foi um elemento que concorreu para a constituição de um mercado integrado em todo o estado de São Paulo. Por esse motivo, grande parte das fábricas de São Carlos eram implantadas em terrenos anexos à estação ferroviária (TRUZZI, 2007, p.133). No ano de 1915, como consequência do ramo de vestuário foi fundada a Fábrica de Tecidos S. Madaglena. Posteriormente foi incorporada pela Companhia de Fiação e Tecidos São Carlos8 e era/é popularmente reconhecida como “Tecidão”. Inserida próxima a Estação Ferroviária com entrada na Rua Aquidaban, possibilitava um acesso direto aos trilhos por um desvio. Foi fundada por imigrantes, um italiano e um suíço, neste período em que foi fundada se formava a burguesia industrial, junto com a burguesia comercial e a classe operária da cidade (TRUZZI, 2007, p.156). O prédio é um dos poucos exemplares da arquitetura industrial são-carlense, que com 5 Destaca-se que a industrialização vai além do início das atividades industriais. Pois, abarca um complexo processo social que inclui mercado nacional e modificações territoriais para torná-lo integrado, bem como, a expansão do setor terciário e a expansão urbana. 6 Nesse momento, em relação a representatividade dos ramos industriais se destacavam o ramo de vestuário e de alimentação. A indústria moveleira teve um crescimento considerável aproveitando a oferta de matéria-prima proveniente das serrarias locais, sendo reconhecida no cenário paulista como “febre das camas”. Em concomitância, nas décadas de 1940 a 1950, o município também ficou conhecido como a capital dos alfaiates, atendia todo o mercado nacional – de uniformes para as indústrias Matarazzo e Cia da Estrada de Ferro até os ternos de políticos. O setor também foi favorecido a partir da implantação da Escola Industrial Paulino Botelho (fundada em 1932), com curso de alfaiataria e tecelagem. 7 Em sua origem, a indústria local foi fruto do surgimento de variadas profissões, sendo o imigrante o protagonista principal em qualquer ofício. Firmando-se que a história de São Carlos se inscreveu sob grupos minoritários. 8 Posteriormente a empresa se insere no ramo imobiliário fundando a Imobiliária Lutfalla, comprando fazendas e implantando loteamentos urbanos na cidade, ocasionando uma influente relação da indústria com a expansão urbana. 54 | CAMINHANDO POR LINHAS: MODOS DE RECONHECER ÀS MARGENS DOS TRILHOS FERROVIÁRIOS EM SÃO CARLOS DESEMBOLAR o passar dos anos foi abandonado vindo a ruir parcialmente em meados da década de 1980. Recentemente o prédio foi atribuído a um novo uso, teve sua estrutura reformulada pela incorporação da economia criativa Onovolab. No mesmo ano da fundação do Tecidão, foi inaugurada por imigrante italiano a indústria de artigos de ferro e madeira S/A Giometti, se tornou uma grande fornecedora de ferramentas para a agricultura. Sua primeira sede foi implantada na área central, na Rua Episcopal esquina com a Rua Bento Carlos. Sua vizinha de fundo foi a Cooperativa da Laticínios de São Carlos (CLSC), em 1937 teve sua primeira sede inserida na Rua Nove de Julho esquina com a Rua Bento Carlos. Ao final dos anos 1980 construiu uma nova unidade próximo à Praça Itália, ambos endereços tinham aproximação com os trilhos. A primeira unidade foi demolida, atualmente recebe o uso de estacionamento e a segunda unidade tem como uso atual a loja 29 da rede de Supermercados Savegnago, tendo a sua edificação original desativada e reformada, e sua chaminé demolida. O expressivo crescimento do ramo de produtos para educação foi resultado da fundação da indústria de Lápis Johann Faber Ltda., entre 1930 e 1948. Sendo essa a primeira fábrica de lápis da América Latina, atualmente é conhecida como Faber Castell. Em 1925, o imigrante suíço Germano Fehr fez um acordo com o cunhado Fritz Johannsen para a sua ida a Alemanha com objetivo de estudar o processo de fabricação de lápis. Foi em 1930 que a empresa se instalou no Brasil, se associaram à empresa alemã, surgindo então a Lápis Johann Faber Ltda. Teve sua primeira sede localizada na Rua José Bonifácio, próximo à Estação Ferroviária, sendo vizinha do Tecidão. Atualmente se encontra em desuso sendo alvo de interesse imobiliário. Foi uma das plantas fabris que mais tarde sofreu o deslocamento ocasionado pela substituição do modal férreo com o transporte rodoviário, sendo implantada mais próxima da Rodovia Washigton Luiz. O ramo moveleiro também se fortalece pela criação de serrarias, sendo elas: Serraria Santa Rosa e Serraria Giongo. A saber, a Serraria a vapor Santa Rosa, foi fundada por imigrante português, no mesmo ano da reforma na Estação Ferroviária (1908). Seus proprietários eram Francisco Ferreira e Antônio Martins Santiago. Localizava-se a 600 metros do Mercado Municipal esquina com a Rua Visconde de Inhaúma e a 200 metros da Estação Ferroviária de São Carlos (ALMANACH-ALBUM DE SÃO CARLOS: 1916-1917, 2007). Foi desativada em 1970 e, vendida, em 1980 para uma rede de Supermercados chamada Jaú Serve, o qual inaugurou sua loja número 22 em 1988. 55 | CAMINHANDO POR LINHAS: MODOS DE RECONHECER ÀS MARGENS DOS TRILHOS FERROVIÁRIOS EM SÃO CARLOS DESEMBOLAR Figura 16 - Antiga Fábrica de Tecidos anterior a reforma do ONovoLab. Fonte: Acervo APH-FPMSC. 56 | CAMINHANDO POR LINHAS: MODOS DE RECONHECER ÀS MARGENS DOS TRILHOS FERROVIÁRIOS EM SÃO CARLOS DESEMBOLAR Já a Serraria Giongo foi estabelecida pelo imigrante italiano Abel Giongo, construtor da Companhia Paulista foi responsável por diversos armazéns e estações em várias cidades. A serraria era composta por três galpões em alvenaria aparente, a sua estrutura ainda pode ser vista do viaduto 4 de novembro, os trilhos possibilitavam que os trens adentrassem ao edifício para carregar e descarregar madeira. A serraria foi desativada em 1991 e atualmente parte está ocupada para uma agência de Correios (ECT), e os demais fragmentos receberam o uso de estacionamento, buffet infantil e escola. Vizinho da Serraria Giongo foi o Engenho Vitória, inaugurado em 1915 beneficiava cereias, arroz, café e milho. Devido sua proximidade com a Estação Ferroviária era servido pelo ramal da Companhia Paulista de Estradas de Ferro. Foi desativado em 1949 e demolido posteriormente. Atualmente no local é uma agência do Poupatempo (ALMANACH-ALBUM DE SÃO CARLOS: 1916-1917, 2007). A Indústria Carlos Facchina foi inaugurada em 1914, pelo imigrante italiano Carlos Facchina, o qual montou a primeira fábrica de cola animal da América do Sul e a primeira fábrica de fosfato do Brasil. Com o passar dos anos foi diversificando sua produção, montou uma torrefação de café e uma fábrica de gelo. Posteriormente investiu em fabricação de embutidos. A antiga fábrica foi desativa em 1960 restando somente sua chaminé feita de tijolos, e em 2008 foi criado o Parque da Chaminé. Apesar da sua localização um pouco mais distante da Estação Ferroviária sua chaminé pode ser avistada dos trilhos e se destaca na paisagem urbana. Ainda no ramo têxtil uma fábrica de meias e outra de toalhas também foram implantadas em São Carlos, a saber, respectivamente 1942 e 1943. A Fiação e Tecelagem Germano Fehr (FTGF) se localizava na Rua Dona Ana Padro esquina com a Rua Itália na Vila Prado, ao fundo da ferrovia. Foi uma das indústrias mais significativas do bairro, sua chaminé anunciava a etapa de tintura dos fios de algodão. Em 1989 foi incorporada pela Fiação Rossignolo. O Pavilhão Exposhow está vinculado à industrialização, mas não é necessariamente um equipamento fabril, foi implantado na área do antigo Hipódromo da Felicíssima. No local, anteriormente foram construídos grandes armazéns pela Companhia de Armazéns Geraes, nos anos 1910. Durante a crise de 1930 houve a prática de queima de café intitulados como “Armazéns Reguladores” de café pela Cia. Paulista de Estradas de Ferros. Nos anos 1940 passou a ser conhecido como “Armazéns de São Carlos” da Companhia de Entrepostos e Armazéns Gerias de São Paulo (CEAGESP), sendo desativado em 1993. Cedido a prefeitura em 2007 inaugurou-se o Centro de Convenções e Exposições Oscar Ferreira, popularmente conhecido como Pavilhão Exposhow. Atualmente incorpora a área da Companhia de Desenvolvimento Habitacional Urbano do Estado de São Paulo (CDHU). 57 | CAMINHANDO POR LINHAS: MODOS DE RECONHECER ÀS MARGENS DOS TRILHOS FERROVIÁRIOS EM SÃO CARLOS DESEMBOLAR Figura 17 - Antiga Serraria Giongo. Sem data. Fonte: Acervo APH-FPMSC. 58 | CAMINHANDO POR LINHAS: MODOS DE RECONHECER ÀS MARGENS DOS TRILHOS FERROVIÁRIOS EM SÃO CARLOS DESEMBOLAR Figura 18 - Antiga Faber Castell. Sem data. Fonte: Acervo APH-FPMSC. 59 | CAMINHANDO POR LINHAS: MODOS DE RECONHECER ÀS MARGENS DOS TRILHOS FERROVIÁRIOS EM SÃO CARLOS DESEMBOLAR Foi nas décadas de 1950 e 1960 que ocorreram mudanças no desenvolvimento industrial e no porte das indústrias chegando a uma fase mais pesada. Se anteriormente, em 1948, havia uma concentração da produção no ramo de alimentação e mobiliário, em 1965, os ramos de construção, alimentação, metal mecânica e mobiliário se tornam mais representativos. A saber, os ramos de maior indicie empregatício eram, respectivamente, metalmecânica, vestuário e alimentação. Cabe destacar que a fábrica de geladeiras e fogões foi uma das maiores indústrias fundada ao longo das décadas de 1930 e 1940, a atual Eletrolux (FEITOSA, 2015, p. 80). A concentração urbana próxima ao sistema ferroviário, as adaptações territoriais e a implementação do sistema rodoviário Com a crise agrícola e o desenvolvimento industrial o locús da produção são- carlense se desloca do campo para a cidade. Há uma intensa concentração de indústrias em bairros centrais próximos à Estação Ferroviária e ao bonde, em sua maioria na região sudoeste de São Carlos. Tal área correspondia aos bairros Vila Prado, Vila Marcelino e Vila Isabel. Nesse sentido há uma intensificação de concentração urbana próxima ao sistema ferroviário. Se assume uma outra lógica de acumulação econômica e organização espacial, se antes ocorria em prol do sistema cafeeiro agora estava vinculada à produção industrial e a construção de loteamento e moradias para os trabalhadores. O desenvolvimento de comércios e serviços locais acompanharam essa lógica9. A Vila Marcelino (loteamento privado) foi estabelecida atrás da fábrica de Toalhas São Carlos, sendo ocupada majoritariamente por operários. Anteriormente, na mesma área em que se implantou a John Faber e a Companhia e Indústria Giometti, evidenciando ainda mais a ocupação de operários e profissionais especializados desde a apropriação dos bairros da Vila Prado e da Vila Isabel (Lima, 2008, p. 48). Houve a implantação de duas áreas de parcelamento espontâneo que originou a apropriação de áreas paralelas aos trilhos da ferrovia. São conhecidas popularmente como “Coloninhas da Fepasa”10, e na época foram ocupadas por famílias de ferroviários e financiadas pela Companhia Paulista de Estrada de Ferro. 9 Na pesquisa de Lima (2008) os processos de expansão urbana são detalhados a partir da divisão de três momentos: a) da formação do núcleo urbano, de 1857 a 1889, quando surgiram os primeiros arruamentos da cidade a partir de um eixo de expansão no sentido norte-sul; b) do auge da economia cafeeira e da importação de imigrantes, de 1890 a 1893, há um aumento populacional expressivo, a área urbana se espraia significativamente tendo seus primeiro loteamentos implantados no entorno da ferrovia; e, c) da desaceleração no processo de expansão urbana em concomitância com a crise cafeeira, de 1894 a 1929, ao passo em que se ampliavam as exigências para aprovação de planos de arruamentos. Ver: LIMA, R. P. Limites da Legislação e o (des)controle da expansão urbana: São Carlos (1857-1977). São Carlos: EdUSFCar, 2008. 10 Para aprofundamento sobre a vila ferroviária, suas instalações e seus exemplares arquitetônicos. Ver: JARDIM, E.; FLÔRES, R. Arquitetura ferroviária a Vila Ferroviário de São Carlos: Coloninha Fepasa. 3º Fórum Mestre e Conselheiros: Municipalização do Patrimônio e Educação. Belo Horizonte–MG, 2011. 60 | CAMINHANDO POR LINHAS: MODOS DE RECONHECER ÀS MARGENS DOS TRILHOS FERROVIÁRIOS EM SÃO CARLOS DESEMBOLAR Os loteamentos estabelecidos nas proximidades das indústrias e consequentemente da ferrovia não eram exclusivamente destinados aos operários, porém eram ocupados predominantemente por essa classe. Contudo, o processo de industrialização vai além do início das atividades industriais. Abarca um complexo movimento social que inclui o mercado nacional e as modificações territoriais para torná-los integrados, bem como a expansão do setor terciário e o crescimento urbano. A lógica da urbanização se coloca frente ao ritmo da industrialização, no caso são carlense o período de 1935 a 1948 foi considerado expressivo. Os loteamentos, citado anteriormente, concentrados nos arredores das indústrias e dos trilhos eram bem servidos pelo bonde elétrico (implementado em 1913), ou seja, a localização dos meios de transportes disponíveis determinou a localização das atividades industriais, que por sua vez afirmou a posição das atividades econômicas, dos loteamentos e das moradias (FEITOSA, 2015, p. 103). Ainda durante as modificações da vida social, econômica e política, a cidade de São Carlos era conhecida por atrair estudantes de outros municípios em suas escolas primárias, secundárias e profissionalizantes. Em 1948, foi fundada a Universidade de São Paulo (USP) com a criação da Escola de Engenharia de São Carlos (EESC). Suas atividades tiveram início no prédio que atualmente abriga o Centro de Divulgação Científica e Cultural (CDCC) localizado na área central da cidade. Em 1956, foi transferida para onde se constituiu a unidade do campus universitário. Tendo, em 2005, seu segundo campus inaugurado. A Universidade Federal de São Carlos (UFSCar), outra sede educativa expressiva do município, foi inaugurada em 1967. A significativa quantidade cursos nas áreas de exatas em ambas as instituições permitiram a construção do polo tecnológico. O poder político local vinculou-se com as lideranças econômicas estaduais, por volta de 1960 começou a participar de movimentos de desconcentração industrial da capital impulsionados por concessão de favores e a elaboração de vantagens a fim de concretizar a instalação de novas indústrias. Dessa maneira, a geolocalização do município de São Carlos e o caráter industrial já consolidado atraíram ainda mais indústrias vindas da capital. Ao mesmo tempo a administração municipal foi pressionada pela população para que se efetivasse uma política de ampliação de emprego. Assim, foi estabelecido o distrito industrial em 1968 impulsionando as indústrias que conseguiram se consolidar. Vale ressaltar que ainda entre 50 e 60, por meio de política econômica estadual e federal, foi implementada uma rede de rodovias no interior do estado de São Paulo, afirmando ainda mais a conexão entre cidades médias com São Carlos (DOZENA, 2008, p. 55). 61 | CAMINHANDO POR LINHAS: MODOS DE RECONHECER ÀS MARGENS DOS TRILHOS FERROVIÁRIOS EM SÃO CARLOS DESEMBOLAR Figura 19 - Homem fantasiado de palhaço com perna-de-pau e megafone no centro de São Carlos. Sem data. Fonte: Acervo APH-FPMSC 62 | CAMINHANDO POR LINHAS: MODOS DE RECONHECER ÀS MARGENS DOS TRILHOS FERROVIÁRIOS EM SÃO CARLOS DESEMBOLAR Após esse período, como consequência do crescimento do sistema rodoviário, a expansão urbana de São Carlos direcionou-se a rodovia, uma prenuncia na localização das indústrias afastadas da ferrovia, ocasionando uma modificação na relação trabalho-moradia podendo ser ainda associada ao crescimento do uso de automóveis e do acelerado desenvolvimento do setor terciário. Embora o transporte ferroviário fosse o principal meio de transporte, a partir de 1930, as estradas de ferro enfrentaram a concorrência do transporte rodoviário. Os investimentos financeiros e os interesses políticos colocaram em xeque as companhias ferroviárias (Fundação Pró-memória de São Carlos, 2017, p.85). No município de São Carlos, entre 1962 e 1969, os efeitos do desmantelamento do transporte ferroviário se destacaram através do fechamento dos ramais de Água Vermelha, Santa Eudóxia e Ribeirão Bonito. Nesse sentido, o evento mais simbólico no processo de substituição da ferrovia pela rodovia foi a construção do viaduto “Quatro de novembro”. O projeto teve sua inauguração em 22 de junho de 1968, sua estrutura passa sob os trilhos da estrada de São Carlos, anunciando a superação do transporte ferroviário pelo rodoviário. Já em 1971, a Companhia Paulista e outras empresas se reúnem e originam a Ferrovia Paulista S.A. (Fepasa), mas o pouco interesse no setor e a expansão desenfreada do sistema rodoviário contribuíram para o desmantelamento e sucateamento das ferrovias. De símbolo da modernidade, a ferrovia passa a ser reconhecida como ultrapassada, uma perspectiva atrelada ao processo acelerado de industrialização brasileira. Mesmo que a extensa rede ferroviária tivesse um papel de destaque o sistema rodoviário alavancou a integração dos mercados e das áreas pouco povoadas de difícil acessos, sobretudo chegando aos locais em que a ferrovia não conectava. Tais mudanças regionais no sistema de transporte, associadas a urbanização, embasaram a evolução industrial no interior do estado de São Paulo, o qual mais tarde apresentaria taxas superiores à capital e sua região metropolitana. Em meados de 1980, houve movimentos de desconcentração espacial da indústria paulista, a redefinição da expansão industrial desencadeou o processo de interiorização da indústria metropolitana, a qual se intensificou pelo incentivo do Programa Nacional de Cidades Médias do Governo Federal. Dessa forma, foram realizados investimentos significativos com foco nas rodovias fortalecendo a rede intercidades no interior paulista. A localização de São Carlos se tornou uma das regiões mais importantes do estado e do país, tendo o eixo rodoviário formado pelas rodovias Anhanguera e Washington Luís (LIMA, 2008, p.176). Para além da localização, São Carlos, apresentava um centro produtor de inovação e tecnologia impulsionado pelas universidades. Em 1884, localizada às margens da rodovia, foi construído pelo Conselho Nacional de Desenvolvimento 63 | CAMINHANDO POR LINHAS: MODOS DE RECONHECER ÀS MARGENS DOS TRILHOS FERROVIÁRIOS EM SÃO CARLOS DESEMBOLAR Científico e Tecnológico (CNPq) o Parque Tecnológico de São Carlos (ParqTec), atuando no sentido de incubar” e fornecer infraestrutura para empresas nascentes, além de ofertar bolsas de estudos para desenvolvimento nas empresas. Teve como objetivo principal impulsionar o desenvolvimento científico e tecnológico na região, também contribuindo para atração e expansão das empresas investidoras em pesquisa e desenvolvimento de alta tecnologia. Com o estímulo aos processos da industrialização, a presença dos eixos rodoviários, a pavimentação urbana, e as modificações em relação aos parâmetros habitacionas se destacavam em dois aspectos: a) da localização distante do centro, e b) da concentração da população por renda. Como consequência do urbanismo disperso e de baixa densidade acentuou-se ainda mais a concentração por classe social. Se nos bairros como Vila Purza e Vila Elizabeth concentravam famílias mais abastadas (que posteriormente viriam deixar o centro devido ao aumento do comércio), nos bairros da zona sul havia a ocupação de famílias de baixa renda, a saber, os bairros Vila São Jose e Vila Leonardo que estavam localizados à margem da rodovia. (FEITOSA, 2015, p.121). A produção do espaço, dentro do contexto das relações socioeconomica, acabam determinando a maneira como ocorreram as ocupações espaciais urbanas. Sendo assim, o espaço urbano se constituiu de variados usos do solo, manifestados por movimentos de segregação socioespacial. A propria dinâmica social, economica e política gerou contradições ao se concretizar sob forma de organização, distribuição, ocupação e apropriação do espaço. A depender de políticas de investimentos públicos e privados diversase que tenderam a priorizar parte de uma população em detrimento à outra parcela populacional. No caso de São Carlos, a formação de bolsões periféricos foi resultado da expansão desordenada e não planejada da trama urbana (DOZENA, 2008, p.98). O consequente fluxo de mão de obra à procura de trabalho ocasionou escacez na oferta de moradia. A burguesia industrial, dispondo de capital, converteu seus investimentos na implementação de loteamentos e habitações para aluguel. Devido aos altos custos de moradia, uma parcela populacional passou a ocupar espaços em condições precárias de higiene, esses lugares eram denominados como cortiços. A procura de residências para aluguel se tornou superior à oferta de habitações. Com isso, o Estado passou a intervir na relação capital-trabalho, impulsionando condições básicas para reprodução da força de trabalho. Assim, desenvolveu políticas habitacionais em prol do fortalecimento de programas para habitações de interesse social. A partir de 1940 surgiram leis municipais que tinham como objetivo disciplinar o uso e a ocupação do solo urbano através de uma segração espacial delimitada. 64 | CAMINHANDO POR LINHAS: MODOS DE RECONHECER ÀS MARGENS DOS TRILHOS FERROVIÁRIOS EM SÃO CARLOS DESEMBOLAR Ao implantarem loteamentos distantes das áreas centrais consolidaram o padrão periférico explicitado anteriormente, desse modo, geram uma conformação urbana espraida que teve como consequência grandes áreas de vazios urbanos11. Com a intensificação do processo de espraiamento na cidade a população que reside nas bordas tem sua mobilidade prejudicada em função da distância e da carência do transporte coletivo. Dessa forma, a ocupação socioespacial acabou isolando parte dessa população restringindo as oportunidades de trabalho e de educação. As condições de mobilidade urbana são diretamente relacionadas à segregação socioespacial, à especulação imobiliária e ao planejamento do crescimento urbano. Cunhado pela política desenvolvimentista adotada no Brasil, o município de São Carlos depositou investimentos no setor industrial e deu início a sua atual tradição de polo universitário e tecnológico. Em 1990 são implementadas pelo Governo Federal, políticas de privatização a Fepasa. Atualmente, a linha funciona apenas com cargueiros. Posteriormente, conforme as transformações urbanas iam se acentuando, houve um processo deslocamento das indústrias próximas a ferrovia e das novas indústrias para as margens das rodoviárias, em particular a Rodovia Washington Luiz. A nova tradição industrial em conjunto às universidades indicou um rumo promissor para a cidade de São Carlos. No entanto, o patrimônio ferroviário e industrial são testemunhos históricos que contribuíram com o desenvolvimento urbano de São Carlos. Reconhecê-los como bem destinado ao usufruto da sociedade é manter ligações com um passado comum, saberes e conhecimentos humanos. Assim, compreendê- los como vestígios de processos históricos formadores de uma sociedade é não os esquecer. Quando se trata de patrimônio ferroviário e industrial levanta-se questões de como lidar com esse patrimônio afim de incluí-lo na cidade contemporânea, considerando a existência de perspectivas econômicas da produção do espaço principalmente no que diz respeito a especulação imobiliária que modifica diretamente a forma de ordenação urbana. Sempre haverá um grande desafio quando a discussão for valor patrimonial e especulação imobiliária. O fato é que, como é o caso de muitas cidades do interior paulista, há uma grande presença de obsolescência e marginalidade do patrimônio nas cidades contemporâneas. Porém, esse cenário se difere parcialmente, no caso de São Carlos, uma vez que o complexo ferroviário está ativo, a Estação Ferroviária abriga a Fundação Pró-Memória de São Carlos que, desde 1993, contribui para preservar e difundir o patrimônio histórico e cultural do municipal. Sobretudo, o leito férreo, 11 Para um melhor entendimento sobre esse processo foi realizada uma análise histórica das moradias operárias e das formas de ocupação habitacional em São Carlos. Além de um aprofundamento nas questões que se referem à problemas ambiental, pois quando falamos de produção e apropriação social do espaço urbano também discutimos sobre danos ambientais. Um estudo ambicioso que vai além das necessidades dessa pesquisa. Ver: DOZENA, A. São Carlos e seu desenvolvimento: contradições urbanas de um pólo tecnológico. Annablume, 2008. 65 | CAMINHANDO POR LINHAS: MODOS DE RECONHECER ÀS MARGENS DOS TRILHOS FERROVIÁRIOS EM SÃO CARLOS DESEMBOLAR suas áreas centrais e os vazios urbanos são espaços em foco para especulação imobiliária uma vez que são vistos pela lógica produtivista do espaço como degradados e abandonados. A relação entre industrialização e urbanização neste trabalho não se limita à exploração realizada na pesquisa, uma vez que não é parte integrante do objetivo do estudo. Nesta etapa, buscamos entender a origem da cidade de São Carlos, desde a chegada da ferrovia até o início das atividades industriais, os processos de expansão urbana, bem como as reconversões econômicas, o deslocamento generalizado das indústrias e o abandono e degradação das áreas ao redor dos trilhos. Portanto, nos movemos através das linhas duras com a personificação do nômade, aquele que percorre os platôs encontrando-se e transformando-se através desses encontros. Temos uma preocupação com a jornada, com as linhas de fuga e não com os pontos específicos. No entanto, para caracterizar essas linhas de fuga, é necessário reconhecer os pontos, as linhas duras. Assim, compreender os processos de expansão urbana, bem como os de desindustrialização e deslocamentos fabris, é desvelar o território e assinalar as lógicas socioespaciais presentes em São Carlos. São espaços à espera de soluções, alternando-se entre estriados e lisos. No próximo capítulo, partiremos da premissa de desfiar as linhas, explorando outras formas de experimentar este espaço, com o intuito de permitir ao corpo vivenciar um estado corporal diferente. Para isso, afastamo- nos do traçado mais hegemônico e homogêneo da cidade histórica, opondo-nos ao modernismo. Atrelado a este estado corporal, o conceito de cartografia emerge no contexto do rizoma como uma maneira de acompanhar um pensamento que se manifesta na criação de mapas em movimento. Isso faz parte de um percurso para produzir um saber, por isso, a primeira proposição da pesquisa é que não há separação entre conhecimento e experiência. 66 | CAMINHANDO POR LINHAS: MODOS DE RECONHECER ÀS MARGENS DOS TRILHOS FERROVIÁRIOS EM SÃO CARLOS DESFIAR II. DESFIAR O Caminhar para além do deslocamento “O trajeto se confunde não só com a subjetividade dos que percorrem um meio mas com a subjetividade do próprio meio, uma ve