NO ANFITEATRO DA ANATOMIA O CADÁVER E A MORTE ANA CAROLINA BISCALQUINI TALAMONI NO ANFITEATRO DA ANATOMIA CONSELHO EDITORAL ACADÊMICO Responsável pela publicação desta obra Washington Luiz Pacheco de Carvalho João José Caluzi Ana Maria de Andrade Caldeira Antonio Vicente Marafi oti Garnica Luciana Maria Lunardi Campos Roberto Nardi Nelson Antonio Pirola Osmar Cavassan Maria de Fátima Neves Sandrin Renata Cristina Cabrera ANA CAROLINA BISCALQUINI TALAMONI NO ANFITEATRO DA ANATOMIA O CADÁVER E A MORTE © 2012 Editora UNESP Cultura Acadêmica Praça da Sé, 108 01001-900 – São Paulo – SP Tel.: (0xx11) 3242-7171 Fax: (0xx11) 3242-7172 www.culturaacademica.com.br feu@editora.unesp.br CIP – BRASIL. Catalogação na Fonte Sindicato Nacional dos Editores de Livros, RJ __________________________________________________________________________ T144a Talamoni, Ana Carolina Biscalquini No anfi teatro da anatomia: o cadáver e a morte / Ana Carolina Biscalquini Talamoni. São Paulo: Cultura Acadêmica, 2012. Inclui bibliografi a ISBN 978-85-7983-350-2 1. Anatomia humana. I. Título. 12-9263. CDD: 611 CDU: 611 __________________________________________________________________________ Este livro é publicado pelo Programa de Publicações Digitais da Pró-Reitoria de Pós-Graduação da Universidade Estadual Paulista “Júlio de Mesquita Filho” (UNESP) Editora afi liada: SUMÁRIO Apresentação 7 1 O cadáver, signo da morte 13 2 Os tratamentos dirigidos ao cadáver 43 3 Um esboço da trajetória anatômica 53 4 As dissecações anatômicas e o problema do material cada- vérico 113 5 A Anatomia e o ensino de Anatomia no Brasil 139 Considerações fi nais 165 Referências bibliográfi cas 167 APRESENTAÇÃO Este livro constitui-se em uma das etapas de uma pesquisa mais ampla que teve como objetivo realizar uma análise interpretativa dos processos de ensino e de aprendizagem engendrados no âmbito das aulas da disciplina Anatomia Geral e Humana ministrada para uma turma de estudantes de um curso de licenciatura em Ciências Bioló- gicas.1 Na tarefa de observação e interpretação das aulas, buscou-se focar o processo de familiarização dos estudantes com o laboratório de Anatomia e, consequentemente, com o acervo anatômico ali existen- te, isto é, com as peças cadavéricas. Para cumprir esta proposta, utili- zou-se como abordagem teórico-metodológica os preceitos das Pes- quisas Qualitativas em Educação e, sobretudo, os apoios oferecidos pela Antropologia Interpretativa representada por Clifford Geertz. A opção pelo recorte centrado no processo de familiarização dos estudantes junto ao acervo anatômico deveu-se ao fato de conceber- -se a aula, e mais especifi camente a aula de Anatomia, não apenas em seus aspectos didático-pedagógicos, mas também enquanto um fato social, um entrecruzamento de momentos históricos para o qual fl uem aspectos sociais, científi cos, psicológicos e culturais pertinen- tes não só à própria Anatomia, mas também noções polifônicas de 1 Talamoni. Pesquisa realizada com apoio da Capes, 2012. 8 ANA CAROLINA BISCALQUINI TALAMONI vida, de morte e de ciência que, a seu tempo, permitiram a forma- tação e também a consagração do saber anatômico e do seu ensino acadêmico. As perspectivas adotadas de pesquisa e de aula cobraram da autora a peregrinação por diversas áreas do conhecimento, marca- damente da Educação, Ensino de Ciências, História, Antropologia, Pedagogia, Psicologia e da Biologia. Cumpriu-se assim a proposta de uma iniciativa voltada para uma pesquisa interdisciplinar que aborda a aula de Anatomia a partir de suas interfaces com a cultura científi ca, com o Ensino de Ciência e, em linhas gerais, com o terri- tório abrangente da cultura. Tanto a disciplina anatômica quanto o processo de familiari- zação dos indivíduos com o laboratório de Anatomia e com o acer- vo anatômico espelham nos seus meandros uma prática científi ca plurissecular cuja trajetória mostra-se precariamente sistematizada nos estudos acadêmicos, quer os gerados pelos biólogos, quer pelos historiadores e fi lósofos das ciências. Entendendo-se a Ciência – e, portanto, a própria Anatomia – como produto sui generis da cul- tura, seu desenvolvimento se dá conjuntamente com o movimento de (re) defi nições das sensibilidades sociais próprias da civilização ocidental. Em consequência, postula-se que, no cenário que culminou na consagração da Anatomia como um campo inquestionavelmente científi co, exista uma série de ocorrências, conhecimentos e sensibi- lidades que, se em um primeiro momento podem ser considerados externos ao saber especializado, na verdade afl oram como funda- mentais para a compreensão dos fenômenos focados neste livro. Em resultado desta postura, admite-se que a produção do co- nhecimento e sua transmissão mediante o ensino formal podem ser defi nidas como exercícios intelectuais de longa duração, o que im- põe a necessidade e a urgência da realização de um estudo pautado pela perspectiva histórico-cultural. Com isto, ganha signifi cado es- tratégico para o ensino e a aprendizagem da Anatomia a análise das imagens arquitetadas no decorrer do tempo sobre a morte, os mortos e os cadáveres, desafi os que ditam o objetivo deste livro. NO ANFITEATRO DA ANATOMIA: O CADÁVER E A MORTE 9 Em continuidade, cabe salientar que o conjunto multifacetado de imagens que conferem contornos nem sempre claros às represen- tações da vida, da morte e dos corpos destituídos de vida se consti- tui em uma tortuosa trama que tem permitido a manipulação dos cadáveres em prol da produção dos conhecimentos anatômicos. O entendimento dessa complexa rede de signifi cados é um objetivo grandioso e que, portanto, sabe-se de antemão, não será esgotado neste texto. O que se oferece ao leitor é uma revisão minuciosa da bibliografi a disponível acerca da temática, motivo pelo qual multi- plicaram-se as referências bibliográfi cas e as transcrições do que foi escrito por vários autores, visando com isto reiterar a importância das fontes primárias utilizadas e o percurso assumido pela própria análise no decorrer desta pesquisa. Ressalta-se ainda que a proposta deste livro é realizar um estudo histórico que busca contribuir para a melhor elucidação de algumas questões datadas no tempo presente, sendo que algumas delas não se restringem apenas à aula e ao laboratório de Anatomia. Como exem- plo, cita-se o fato noticiado pelo jornal Folha de S.Paulo on- line, no dia 31 de maio de 2012, sob o título “Polícia encontra crânios e fetos em terreno de universidade em SP”.2 De acordo com a reporta- gem, os dirigentes de uma conhecida instituição de ensino superior sediada na capital paulista, ao ter seu curso de Enfermagem descre- denciado pelo Ministério da Educação e Cultura (MEC), viram-se diante da contingência de desativar o laboratório de Anatomia da instituição e, para tanto, teriam solicitado a um zelador que enter- rasse as peças anatômicas no jardim situado no terreno da própria universidade. Este acontecimento, ao ganhar conhecimento públi- co, gerou por alguns dias um acalorado debate, demonstrando de forma bastante evidente a atualidade da temática assumida por este livro. Acima de tudo, o que foi registrado pelo jornal pontua a faceta mais cruel do processo de desumanização e desvalorização dos mor- 2 Disponível em: . Acesso em: 31 maio 2012. 10 ANA CAROLINA BISCALQUINI TALAMONI tos não identifi cados e, portanto, não reclamados, que compõem a grande maioria dos acervos anatômicos existentes no Brasil. Este livro é composto de cinco capítulos que buscam estabele- cer o processo de elaboração de imagens sobre a morte e os mortos na civilização ocidental e suas implicações na constituição do saber anatômico. O primeiro capítulo visa estabelecer um quadro de modelos so- bre as concepções de morte delineadas ao longo dos séculos, no con- texto da cultura ocidental. A partir disso, intenta-se compreender melhor como as representações do cadáver são, em parte, resultantes de uma construção histórica e cultural da morte e do defunto, dois desdobramentos de uma mesma problemática humana, ao mesmo tempo individual e coletiva, a questão do perecer. O segundo capítulo busca estabelecer um paralelo entre as re- presentações que as sociedades articulam sobre seus mortos e os tratamentos que lhes são destinados, abordando desde os ritos fú- nebres mais tradicionais até as técnicas científi cas mais avançadas. Na sequência, o terceiro capítulo delineia o processo de desenvolvi- mento da ciência anatômica desde a Antiguidade até os dias atuais, enquadrando-o nas dimensões históricas e culturais nas quais foi produzida. O capítulo quarto incursiona pelo problema de suprimento de material anatômico e, concomitantemente, a espetacularização das dissecações públicas, um capítulo à parte da trajetória da Anatomia que se mostrou fundamental no movimento de aceitação coletiva da prática anatômica. O quinto e último capítulo discorre sobre o per- curso assumido pela pesquisa, ensino e aprendizagem da Anatomia no contexto brasileiro, mais especifi camente no estado de São Paulo, onde afl orou com vigor a Escola Boveriana de Anatomia. O intento de reconstruir esta trajetória surgiu da necessidade de compreender melhor as falas articuladas pelo professor da disciplina observado, tanto no ambiente do laboratório quanto em duas entrevistas conce- didas à autora. Foram nestes momentos que o docente, ao discorrer sobre a linha fi losófi ca que pautava sua prática de ensino e de pes- quisa, referiu-se até hoje à predominante escola do prof. Bovero. NO ANFITEATRO DA ANATOMIA: O CADÁVER E A MORTE 11 Cabe ressaltar ainda que este livro constitui-se na primeira parte da tese de doutoramento, apresentada no outono de 2012, ao Pro- grama de Pós-Graduação em Educação para a Ciência da Faculdade de Ciências da Universidade Estadual Paulista, campus de Bauru. A segunda parte da pesquisa, que analisa as aulas de Anatomia minis- trada para uma turma de licenciatura em Biologia, será tema de um outro livro, que a autora pretende publicar em breve. 1 O CADÁVER, SIGNO DA MORTE Este capítulo tem como objetivo apresentar um quadro de mode- los históricos defi nidos e de sua relativa superação ao longo do tem- po. Com isso, busca-se compreender melhor como as representações do cadáver são, em parte, frutos de construções históricas e culturais da morte e do defunto, dois desdobramentos de uma mesma proble- mática humana individual e coletiva, a questão do perecer. Por essa razão, observar-se-á que é impossível separar as representações do cadáver das ideias de vida, de morte, de destruição, da escatologia, da iconografi a, dos rituais fúnebres e da expansão das cidades. Admite-se, aqui, que as representações da morte são indissociá- veis das representações do morto, haja vista o fato de que o cadáver é o signo da morte, ou, pelo menos, a visão mais próxima que qual- quer sujeito pode ter a respeito do derradeiro fi m. Assim sendo, os tratamentos que cada sociedade destina, historicamente, a seus mor- tos refl etem o tipo de sensibilidade desenvolvida frente ao trespasse. Quanto mais a morte mostra-se mística, maiores os cuidados para com os mortos. Em contrapartida, ao longo do processo civi- lizacional ocidental operou-se uma transformação, uma tendência de naturalização da morte que foi imprescindível para que os ca- dáveres fossem dessacralizados e se tornassem anatomizáveis. O afl oramento do corpo morto como objeto de estudo constitui-se em 14 ANA CAROLINA BISCALQUINI TALAMONI um fato histórico e cultural que alimentou as sensibilidades frente à morte, tanto a do sujeito desconhecido, que é o anônimo da Ciên- cia, como a dos “entes queridos”. Essa cisão mostra-se clara no plano discursivo; há sempre uma separação, um limite asséptico entre o cadáver do laboratório de Anatomia e o morto da vida privada. Ou esse fato refl ete uma cons- trução social da morte e do morto que é interiorizada pela comuni- dade científi ca, ou a comunidade científi ca produz tais discursos a fi m de forjar sensibilidades que neguem a humanidade do cadáver e permitam a sua manipulação. O objetivo deste capítulo é justamente explorar essas possibilidades na perspectiva histórica. Por razões didáticas, ele foi subdividido de modo a contemplar uma primeira defi nição do termo “cadáver”, seguida de uma expla- nação acerca das relações histórico-sociais estabelecidas entre a mor- te e o medo. Nesse encaminhamento, buscar-se-á demonstrar como os medos, sobretudo do desconhecido, tendem a expressar o grande temor humano frente à morte (Delumeau, 2009). Por último, vai re- traçar brevemente a maneira como as sociedades têm representado e cuidado de seus mortos ao longo do processo de civilização oci- dental, o que pode ser examinado a partir dos tratamentos e rituais dirigidos ao cadáver ao longo da história. O termo cadáver designa mais comumente o corpo anônimo, des- provido de vida, um objeto inanimado. Pode ser defi nido como “a car- ne dada aos vermes, do latim cadavere. O nome é uma referência ao nosso destino. Estamos fadados à decomposição e a virarmos comida de seres repugnantes” (Godoy et al. 2003, p.27-8). Relaciona-se fun- damentalmente com a questão da morte e do seu signifi cado cultural. A cadaverização é o processo de transformação do corpo morto em “corpo-cadáver”, verifi cada através de três sintomas tanáticos: a) esfriamento do corpo (“tanatomorfosis”), que se verifi ca nas primei- ras três horas após a morte; b) rigidez cadavérica, na terceira e quarta horas; c) desidratação, sinais oftalmológicos diversos e lividez (man- chas na pele), que começam a se manifestar a partir da terceira hora e desenvolvem-se por aproximadamente doze a quinze horas, quando o corpo entra em estado de “putrefação”. NO ANFITEATRO DA ANATOMIA: O CADÁVER E A MORTE 15 A putrefação é justamente o estágio do processo de decomposi- ção do corpo que instiga ao perigo, ao nojo e à desolação. É marcada por alterações corporais, emissão de gases e fl uidos, acompanhados de um odor considerado “fétido”. Essa fase é, segundo Thomas (1980, p.35), o “surgimento da vida na morte”, à medida que os res- tos mortais que se produzirão são provenientes da digestão animal, do “festim gerador de vida, de onde a matéria viva não cessa de ger- minar e de reproduzir-se”. O estágio fi nal da tanatomorfosis, pos- terior à putrefação, é a mineralização. Nesta última restam apenas elementos inertes e sem vida, como dentes e cabelos, que atestam que “aquele que estava ali, não está mais a não ser pela prova de que algum dia, foi” (ibid., p.37). Os mortos desaparecem com seus res- tos, e é a partir da angústia individual e coletiva perante esse futuro que se torna possível compreender o que as sociedades fi zeram com os seus, ao longo da história. O cadáver é, portanto, o resultado de transformações orgânicas que fazem do corpo vivo um corpo morto, bem como de uma árdua tarefa intrapsicológica que consiste no processo de ressignifi cação da identidade do defunto. Assim, a difi culdade em referir-se ao cadáver pode gerar outras, que se circunscrevem no nível semântico. Diversos termos são empregados para retratar a mesma realida- de do corpo desprovido de vida. O termo “corpo” é usado habitual- mente na língua portuguesa, no francês e no inglês, e mostra uma ambiguidade à medida que, ao tentar amenizar a realidade da morte, acaba por reiterar que a morte é de alguém. As construções textuais acerca do corpo muitas vezes requerem adjetivos e outros elementos linguísticos que remetem a ideias de personifi cação e purifi cação do cadáver, elementos estes que estão associados em oposição ao pro- cesso de putrefação para o qual a própria morte os encaminhou. Na língua espanhola, sobretudo na literatura e em textos acadêmicos, o cadáver é comumente denominado pela palavra transido, ou seja, aquele que efetuou o tránsito, “a passagem”. As palavras muerto, cadáver e difunto geralmente fazem alusão aos mortos anônimos, em um contexto de descrição objetiva. Os ter- mos fi nado e falecido são utilizados para referirem-se a conheci- 16 ANA CAROLINA BISCALQUINI TALAMONI dos, muitas vezes substituindo o nome próprio, assim como na língua portuguesa. No inglês, o cadáver pode ser denominado pelas palavras corpse, que equivale aos termos cadáver ou defunto, e stiff, jargão ou gíria que faz uma menção jocosa à rigidez cadavérica. Também se veri- fi ca nessa língua o uso de vocábulos como body, correspondendo ao termo “corpo”, e the loved one, uma referência cordial, muito utilizada nas propagandas de serviços funerários. Ou seja, a mul- tiplicidade de termos que podem ser empregados para denominar o cadáver dá indícios da difi culdade intersubjetiva que ele suscita, de modo que: O cadáver é inseparável do discurso acerca do cadáver; mas o que se diz do morto nunca corresponde com a realidade indizível da morte. (...) falar sobre ele equivale a reduzi-lo a certos signifi cantes que não podem defi ni-lo. A racionalização do cadáver não toma o morto como objeto senão como pretexto para reintegrá-lo na norma. (...) o morto evoca a fala racional porque ele representa uma ausência, “um lugar impossível de focalizar” (Thomas, 1980, p.79). A esperança de um retorno, quiçá de uma “reversão” do processo de despojamento do corpo, tem sido engendrada através de uma série de rituais funerários que compõem um capítulo à parte no processo de desenvolvimento civilizacional, da história das sensibilidades, dos medos, das ideias e da arte, o que permite inferir que o cadáver é o signo da morte em grande parte das civilizações sobre as quais existe um conhecimento antropológico mais aprofundado (ibid.; Parry, 1991). Os tratamentos destinados ao defunto decorrem da sensi- bilidade nutrida pelos múltiplos sistemas de pensamento en- gendrados por representações culturais específicas de vida e de morte. Enquanto signo, o cadáver é uma construção cultural que não se restringe às suas condições orgânicas, demandando uma série de elaborações cognitivas, construções simbólicas e inter- pretações subjetivas (Mauro, 2006). Como diz Le Breton (2006, NO ANFITEATRO DA ANATOMIA: O CADÁVER E A MORTE 17 p.82), “o estatuto do cadáver comanda a legitimidade dos usos que dele se faz”. Quem tem medo da morte? Para pensar o cadáver é indispensável “defi nir” a morte. Segundo um dicionário da língua portuguesa, a morte signifi ca “1. Cessação da vida. 2. Termo, fi m. 3. Destruição, ruína. 4. Pesar profundo. Mor- te cerebral: Conjunto de dados clínicos e eletroencefalográfi cos que podem indicar lesão cerebral irreversível” (Ferreira, 2001, p.506); já o termo trespasse, do verbo transpassar ou trespassar, signifi ca: “1. Transpor, galgar. 2. Furar de lado a lado (...). 3. Fechar. 4. Afl igir, contrastar. 5. Exceder, ultrapassar. 6. Morrer, falecer” (ibid., p.722). A morte pode ser desdobrada sob duas perspectivas. A primeira relaciona-se ao evento biológico de extenuação da vida e é determi- nada por instrumentos e recursos tecnológicos de averiguação do óbito que têm se tornado cada vez mais refi nados. Esses instrumen- tos permitem a defi nição da morte aparente (parada respiratória), da morte relativa (parada respiratória e cardíaca), e, enfi m, da morte absoluta, pautada pela tanatosis, o pequeno intervalo de tempo que separa a morte relativa da morte irreversível. A segunda perspectiva emana dos processos simbólicos, emocio- nais e psicológicos que permitem a sua representação intersubjetiva em um contexto cultural específi co, de regra pautado pelo pranto e pelo medo. Os tratamentos dirigidos ao cadáver estão fundamental- mente relacionados a essa representação simbólica da morte. A morte é um processo de desconstrução, de desconstituição da vida organizada, seja pelo impacto que ela provoca no meio social ou familiar, seja pelo processo de cadaverização e putrefação do corpo, que “multiplica em forma progressiva os signos de sua irreversibili- dade” (Thomas, 1980, p.18). Ela é a fonte de um medo anônimo que paira sobre a humanidade desde tempos imemoriais. Segundo a tese de Delumeau (2009, p.33), o medo é parte da constituição psicológica do homem. É um estado orgânico e afetivo 18 ANA CAROLINA BISCALQUINI TALAMONI que se expressa por um sentimento geral de insegurança que alicer- çou as primeiras formas de organização da vida social. Para o autor, existem três tipos de medo, por cujas partes o horror à morte perma- neceu disperso: os medos espontâneos, os medos cíclicos e os medos refl etidos. Os “medos espontâneos” são sentidos por uma grande fra- ção das populações, e não possuem um motivo claro. Como exemplo, é possível citar o medo dos lobos, do mar e da noite que atemorizaram os indivíduos na Antiguidade, ou, ainda, o medo de morrer de fome, de pesadelos, de gatos, bruxas e mendigos, o medo do “outro”, do mau-olhado e do inferno que afl igiram, sobretudo, a Idade Média. Os “medos cíclicos” são ocasionados por eventos pontuais, como a peste e as profecias que assombraram a Idade Média. Ou ainda, o medo dos fantasmas, que se tornou comum, sobretudo em função do surgimento do purgatório, no século XIII, e das reações do cadáver que se “comunicava” com os vivos. Para este último caso, eram previstas ações como o sentenciamento e a consumação de “execuções póstumas”, ocasiões nas quais os mortos eram desenter- rados e uma estaca era atravessada em seu corpo, fi xando-o no chão. Os “medos refl etidos” são aqueles que decorrem de uma indaga- ção ou de uma situação específi ca, exigindo do sujeito uma reação cal- culada. O medo do envelhecimento e da morte na pós-modernidade é um bom exemplo do medo refl etido, e um avanço no processo de desenvolvimento da racionalidade humana como hoje é concebida. A morte e o trato dos cadáveres As representações da morte e da vida e seus refl exos nas ritua- lizações fúnebres são, por si sós, tema de um amplo e complexo trabalho. Por esse motivo procurou-se esboçar aqui algumas repre- sentações da morte que pautaram o processo de desenvolvimento das sensibilidades ocidentais frente ao corpo morto, considerando que as mesmas são fruto de uma construção cultural e histórica cujo peso jaz sobre cada cadáver. Além das representações do cadáver, acredita-se que as ideias de vida, de morte, de destruição, a escato- NO ANFITEATRO DA ANATOMIA: O CADÁVER E A MORTE 19 logia, a iconografi a, os rituais fúnebres e a expansão das cidades são alguns dos elementos que compõem a rede de signifi cações necessá- rias para que o cadáver e os sentimentos que ele suscita possam ser compreendidos. Por ser um produto da cultura, ele não existe sem o seu entorno, mesma razão pela qual traz implicações na pesquisa, no ensino e na aprendizagem de Anatomia. A morte domada A representação da morte domada prevaleceu nas civilizações ocidentais europeias do fi nal da Antiguidade ao fi nal da Alta Idade Média (453 d.c. a 1000 d.c.), e foi, de certa forma, retomada como a representação da morte romântica ao fi nal do século XVIII e no século XIX. A morte domada não era uma morte trágica, nem ex- cepcional ou mística, mas composta por uma sucessão de eventos, regulada por um ritual habitual, sempre descrito com complacência (Ariès, 1988a, p.14). Consistia no fato de ser prenunciada, já que se acreditava que “a morte avisa”. O moribundo, sabendo que a morte lhe espreitava, dedicava os últimos momentos de vida a conversar, advertir, orientar e se despedir de parentes e amigos. A morte pública e a publicidade da morte eram elementos im- portantes da morte domada e, portanto, da “boa morte”, pois per- mitiam ao moribundo que suas últimas disposições fossem ouvi- das, atestadas, acatadas. Subjaz ao conceito da boa morte a ideia do “trespasse” como um evento próprio da vida cotidiana individual e, sobretudo, coletiva, motivo pelo qual o luto, a princípio, estendia-se a toda a comunidade. A preocupação existencial e/ou religiosa ainda não era parte do fato da morte. Segundo Ariès (op. cit., p.36-7): No credo ou o velho cânone romano, o Inferno designa a morada tradicional dos mortos, mais lugar de encontro que de suplício. Os justos ou os resgatados do Antigo Testamento esperaram aí que Cristo depois da morte os viesse libertar ou despertar. Foi mais tarde, quando 20 ANA CAROLINA BISCALQUINI TALAMONI a ideia de Juízo venceu, que os infernos se tornaram para toda uma cultura aquilo que eram apenas em casos isolados, o reino de Satã e a morada dos condenados. A morte domada foi tema de obras literárias como A morte de Ivan Illitch, de Lev Tolstoi (1886), Enquanto agonizo, de William Faulkner (1930), Crônicas de uma morte anunciada, de Gabriel Gar- cía Márquez (1981), O morro dos ventos uivantes, de Emily Brontë, publicado originalmente em 1847, entre outras. A morte domada estava em franca oposição à morte súbita, ou mors repentina, que é aquela que não avisa e para a qual não se foi prevenido. Esse tipo de morte era considerado, sobretudo entre os cavalheiros, como desonroso, vergonhoso, infame, vil, trágico, como a representação de Alexandre em seu leito de morte, de Karl von Pi- loty, 1886. A vítima da morte súbita era comumente considerada amaldiçoada, pois as condições da morte eram indeterminadas, mui- tas vezes clandestinas, sem testemunhas, sem corpo, sem cerimônias fúnebres e/ou de salvação. Eram vítimas de uma morte sem razão. Na ausência do cadáver, observou-se, sobretudo na literatura, o uso recorrente de representações metonímicas ou metaforizantes, de “substitutos” que tornavam os funerais fi ctícios possíveis, como uma peça de vestimenta ou um objeto do defunto, que, ao represen- tar o corpo do mesmo, tentava amenizar as contingências próprias da morte repentina. Nesses casos, tratava-se de uma necessidade de reter algo do morto, personifi cá-lo para melhor velá-lo e, assim, encaminhá-lo (Thomas, 1980; Ariés, 1988a, 1988b). A morte domada faz referência ao trespasse, ao repouso, de pre- ferência em um “jardim fl orido”, e foi representada na arte funerária pela imagem do jacente, o requiescens.1 A aparente aceitação do ine- vitável que o modelo da morte domada apresenta pode ser atribuída, segundo Ariès (1988a), ao formalismo dos processos verbais que, 1 Ver a estátua jacente de Cristóvão Solari. Igreja de Certosa, Pádua. Disponível em: http://arondadosdias.blogspot.com.br/2011/08/em-milao-com-os-lacos-de-bea- triz.html. Acesso em: 28 jun. 2012. NO ANFITEATRO DA ANATOMIA: O CADÁVER E A MORTE 21 como produtos da cultura e formas culturalmente estabelecidas de expressão, não permitiam, em um contexto sócio-histórico específi - co, outras formas de expressão do medo e da repugnância pela ideia do morrer. A resignação perante a morte e o “destino” se exprimia por uma supervalorização do momento da morte em detrimento dos assuntos funerários. No entanto, do século V ao XVIII, operou- -se uma lenta e cambiante aproximação entre o mundo do vivo e o dos mortos. No nível físico, essa aproximação se deu à medida que os túmulos (galerias e/ou carneiros) foram sendo congregados às cidades; no nível intra e interpsicológico, conforme os ritos fune- rários foram se complexifi cando e sendo incorporados como uma cultura mortuária. Paralelamente a esse processo, desenvolveu-se o sentimento religioso/cristão, culminando no fenômeno do enter- ro ad sanctos. Os enterros ad sanctos Anteriormente ao desenvolvimento do costume do enterro ad sanctos, o tratamento dirigido ao cadáver resumia-se à inumação do corpo, envolto em mortalhas, em locais afastados das cidades, pois os cadáveres eram considerados impuros e sua presença próxima aos vivos poderia originar castigos funestos.2 Foi precisamente pela fé na ressurreição dos corpos, a partir de uma interpretação do Juízo Final na qual o renascimento não é algo a ser temido, que os mortos foram aos poucos integrados à vida social, o que se deu ao longo da Idade Média. O sentimento de unidade entre o corpo e a alma que prevalecia na percepção do ser inaugurou o costume de se enterrar entes queri- dos junto aos túmulos dos mártires. Os mártires, inclusive por terem seus corpos presumivelmente incorruptíveis, tinham garantido para si a salvação eterna e um lugar no Paraíso e acreditava-se que essa 2 O termo funesto refere-se à profanação causada por um cadáver. 22 ANA CAROLINA BISCALQUINI TALAMONI proteção estender-se-ia aos mortais cristãos que fossem enterrados junto com eles. Além disso, o enterro ad sanctos garantia a não vio- lação dos túmulos, portanto era também uma proteção física para o defunto, além da espiritual. A partir do século VII, o morto foi literalmente trazido para dentro das igrejas, que eram o centro principal de convivência social das pequenas aldeias. A expansão das cidades ocorria em torno das basílicas cemiteriais; enquanto isso, os cemitérios a campo aberto, característicos da Antiguidade, foram paulatinamente abandonados em prol da “cintura eclesiástica”. Os túmulos dos mártires, ou Domus,3 localizavam-se nas basíli- cas cemiteriais e eram considerados locais sagrados, apropriados para a liturgia. O morto, que até então tinha sido renegado, associado ao profano e por isso excluído do espaço das cidades, passou a ser objeto de cuidados à medida que o corpo passou a ser considerado sagrado, com a ideia de que deveria estar apto ao “regresso”. Foi justamente nesse período que ocorreram drásticas alterações nos costumes fune- rários, os quais foram se tornando cada vez mais complexos e pom- posos. Dentre estes, é possível citar as honrarias devidas aos mortos pelos vivos, que incluíam a oração e uma série de outras homenagens. As sepulturas ad sanctos eram restringidas em função da posição social, do nível econômico, da religiosidade do defunto e das condições da morte. No século IX, foi proibido o enterro de laicos na igreja, pro- blema que podia ser contornado através dos “louváveis costumes”,4 que indicavam que o laico tinha morrido em vias de salvação. Aos pobres, eram reservadas grandes fossas comuns, abertas en- tre os carneiros. Tratava-se de valas de 30 pés de profundidade, com diâmetro de 5 por 6 metros, onde eram depositados de 1.200 a 1.500 cadáveres, e que só eram fechadas quando completamente preenchi- das (Ariès, 1988a, p.73). A gravura Le cimetière des Saint-Innocents vers 1550, de Theodor Josef Hubert Hoffbauer, é uma boa represen- tação da vida medieval em torno dos cemitérios. 3 Capelas, na conotação atual. 4 Costume de dar oferendas à Igreja. NO ANFITEATRO DA ANATOMIA: O CADÁVER E A MORTE 23 Já os excomungados ou supliciados, por sua vez, não tinham di- reito aos cuidados cristãos, sendo seus corpos desamparados, deixa- dos para apodrecer no relento ou em falsos cemitérios (que fi cavam fora das dependências da Igreja e da cidade). Muitos condenados eram abandonados no local de sua própria execução, onde permane- ciam até a completa decomposição. Havia cemitérios destinados aos suicidas, totalmente murados e sem aberturas, com os caixões sendo passados por cima do muro. Ao longo da Idade Média, os cemitérios eram habitualmente denominados de galerias ou carneiros. Tratava-se de espaços/fossas comuns que faziam divisa com pelo menos uma parede da igreja. Al- guns carneiros estavam localizados nos próprios muros, mas sempre em solo considerado sagrado. Nota-se que nesse período a preocu- pação com o cadáver limitava-se ao espaço de sua inumação, o que poderia garantir o renascimento dos sujeitos. Apenas os túmulos de mártires eram identifi cados, pois a preocupação geral se restringia ao destino comum de todos os mortos cristãos. A palavra carneiro deriva do prefi xo caro, do latim clássico. Se- gundo Ariès (1988a, p.69), Passou para a língua clerical com vários sentidos: o verbo fez- -se carne, o pecado da carne, a carne é fraca, na linguagem vulgar, o mesmo caro deu origem a palavras que signifi cam carne (o italiano carne), mas também com o baixo latim carona, cadáver (...). No antigo francês a mesma palavra signifi ca o lugar bento onde repousam os mortos. Para o referido autor, não se tratou de uma mera substituição de palavras, mas antes, da construção de um novo conceito, o de cemitério enquanto espaço social, vindo responder a uma demanda que se tornava cada vez mais premente: garantir o cuidado do mor- to após o trespasse e, consequentemente, seu lugar no Paraíso – “O cristão medieval era alguém que já estava no céu, quase por defi ni- ção” (Rodrigues, 1999, p.122). 24 ANA CAROLINA BISCALQUINI TALAMONI Ars moriendi Durante o primeiro milênio, o sistema léxico cristão pautou a sensibilidade individual e coletiva frente à morte e ao defunto. Aquele cadáver outrora amaldiçoado e repugnante, renegado por sua comunidade ao longo da Antiguidade, foi resgatado do limbo ao qual tinha sido condenado. Ao serem enterrados nas dependências das igrejas, os cadáveres foram incorporados pelos centros de conví- vio social, já que as igrejas e seus cemitérios foram, ao longo da Idade Média, também o local de proclamações, diversões, festas, enfi m, um ponto de encontro. Para compreender melhor a domesticação da morte e do morto nesse período é necessário notar que dualismos como corpo e alma, natural e cultural não faziam parte do sistema de pensamento do medievo, pautado apenas pelo sagrado e pelo profano. Portanto, quando o cadáver foi simbólica e objetivamente retirado da esfera do profano, ele passou a integrar literalmente o cotidiano. As danças macabras são uma boa representação do conví- vio que se estabeleceu entre os vivos e os mortos e de como os vivos conviviam com o inevitável.5 Até o século XII os sujeitos se sentiam relativamente tranquilos frente à morte devido à relação intrínseca estabelecida entre o batis- mo e a ressurreição pelo Apocalipse de São João, que preconizava bastar ao indivíduo ser um bom cristão para que seu lugar no Paraíso fosse garantido. Após esse período, as ideias de Ressurreição e de Juízo Final presentes no evangelho de São Mateus ganharam relevo, e o conceito de Juízo Final foi defi nitivamente associado ao do renas- cimento de Cristo (Ariès, 1988a, p.123) e ao julgamento das almas. A iconografi a macabra desse período expressa bem a releitura da morte que tais associações proféticas ocasionaram no imaginário individual e coletivo. “A pesagem das almas”, o julgamento, passou a ser fonte recorrente de angústias. A justiça e a moral tornaram-se objeto de constantes preocupa- ções, invadindo por completo a vida do medievo, cuja representação 5 Ver A dança da morte, de Dagger Shealt (1521), por Hans Holbein. NO ANFITEATRO DA ANATOMIA: O CADÁVER E A MORTE 25 iconográfi ca mais comum passou a ser a do “livro”, que seria “pesa- do” no Juízo Final. A partida de xadrez que o cavaleiro Antonius é convidado a jogar, na película O sétimo selo (1956), de Ingmar Berg- man, também sugere essa representação da vida como um campo de luta contra forças mortais diabólicas. O medo do julgamento manifestou-se pela produção de obras dedicadas à arte de “bem morrer”, ou ars moriendi. O destino deixou de ser coletivo para se tornar individual. O quarto, na iconografi a, tornou-se um espaço representativo da batalha derradeira que deci- diria o destino do moribundo. Geralmente o cômodo estava repleto de pessoas, familiares, amigos, sacerdotes, animais de estimação (to- dos elementos também presentes na representação da morte doma- da, a morte pública) e seres sobrenaturais. Satã e seus demônios de um lado, a Santíssima Trindade e seus anjos celestiais do outro. A cena do quarto geralmente retrata a última provação. A ideia do Juízo e a possibilidade de não desfrutar da vida eterna fez que não só a morte, mas também a vida passasse a ser domada. Vivia-se em função da conversão, em uma tentativa de restauração constante do padrão da profecia que permeava o imaginário coletivo da época (Kermode, 1997, p.33). Os temas macabros Diante da possibilidade de uma eternidade infeliz no purgató- rio, ou pior, no inferno, o cadáver em decomposição tornou-se tema recorrente tanto na iconografi a quanto nas expressões artísticas em geral, sobretudo dos séculos XIV ao XVI. A representação da morte como repouso foi substituída pela imagem de sofrimento, corrupção e putrefação do corpo. O Juízo Final e o Purgatório foram retratados exaustivamente em função do medo geral e constante pelo qual os vivos foram interpelados: o medo do purgatório em si, e das almas do purgatório que podiam assombrar os viventes. Segundo Vovelle (2010, p.27-8), o purgatório constituiu-se em um “terceiro local”, criado 26 ANA CAROLINA BISCALQUINI TALAMONI No momento em que uma nova necessidade de justiça na sociedade laica favorece a eclosão do conceito de julgamento individual, em que a leitura binária da ordem do mundo vê-se substituída por esquema ternário, que tolera uma categoria intermediária entre os bons e os malvados, em que a nova propensão para medir e contar pode levar a modular as penas, introduzindo o tempo humano na economia da salvação. Os ossos e as caveiras eram elementos presentes nos temas ma- cabros, pois o osso, segundo Thomas (1980, p.145), representava “o suporte incorruptível de uma vida cuja precariedade nos negamos a aceitar”. Simbolizavam a perenidade, em oposição à corruptibilida- de, da qual a carne é seu símbolo maior. Da negação da precarieda- de da carne, nota-se como a caveira, os ossos, a lápide e o jazigo vêm representar, com importância psicológica e social ímpar, os restos mortais. Assim, o signifi cante precedeu e determinou de tal forma o signifi cado que os símbolos acabaram se tornando mais “verdadei- ros” que aquilo que representavam, como é o caso dos ornamentos criados com ossos humanos expostos no Ossuário no Cemitério de Sedlec, fundado em 1278, na República Tcheca. Os signifi cantes sociais, nesse encaminhamento, mostraram-se determinantes na ocultação do sentido do cadáver, o que se deu em grande parte através dos rituais funerários que, entre tantas fun- ções, visavam revalorizá-los. O crânio, por sua vez, tornou-se um elemento cada vez mais associado à morte, pois recordava o rosto e a vida: “em uma civili- zação do verbo, em que a palavra é vida, o crânio adquire uma nova dimensão simbólica: a boca e as orelhas são a sede de um intercâm- bio verbal. Em consequência, o crânio se transforma em símbolo de expressão por excelência” (ibid., p.148-9). As missas e os rituais que se seguiram ao advento do Juízo Final tinham por objetivo aliviar as angústias, os medos e as contradições gerados pela representação aterrorizante do purgatório. A noção de que o purgatório era, em última análise, um espaço de negociação, deu origem à prática dos préstitos, que se tornaram bastante co- muns até o fi nal da Idade Média. NO ANFITEATRO DA ANATOMIA: O CADÁVER E A MORTE 27 Os préstitos consistiam em uma procissão eclesiástica na qual deveriam estar presentes parentes, amigos, quatro monges das qua- tro ordens mendicantes6 e, de acordo com a riqueza do morto, certa quantidade de crianças pobres da paróquia, de hospitais etc. Todos os participantes ganhavam uma esmola como o preço de sua presen- ça (Le Goff, 1995; Ariès, 1988a). Em função da demanda crescente pelos préstitos, os indivíduos começaram a preparar antecipadamente seus testamentos, ao mes- mo tempo em que a Igreja Católica passou a elaborar os obituários, uma tentativa de organizar a execução dos serviços de perpetuidade incluídos na maioria dos testamentos.7 Outra modifi cação signifi cativa no que diz respeito ao morto, e que só foi possível em função da individualização do defunto e do destino, foi a identifi cação do mesmo através dos quadros de funda- ção.8 Os quadros de fundação corresponderam a uma primeira ten- tativa de representação do morto. A esse costume somou-se o uso das máscaras mortuárias ou bustos, esculpidos primeiramente em madeira ou pedra, e posteriormente em cera, que buscavam repro- duzir o rosto do defunto. Essas obras ornamentavam os caixões, tú- mulos e sepulturas, sendo também usual alocá-las por algum tempo no interior da igreja, de preferência no local onde o morto costumava assistir às missas, servindo como um “mediador simbólico” no pro- cesso de transição ou luto. Também se depreende desse costume que o horror à morte e ao contato com o morto era escamoteado pelas máscaras e estátuas, através das quais o indivíduo mais parecia estar em sono tranquilo do que propriamente morto. O emprego de dispositivos ritualísticos durante o velório e o fu- neral, como ornamentos e objetos pessoais do morto, possibilitavam 6 Franciscanos, dominicanos, agostinianos e carmelitas. 7 Esses serviços consistiam em um certo número de missas a serem celebradas em memória do morto em dias específi cos do ano; muitas vezes tratava-se de missas diárias. 8 Quadros de bronze que eram fi xados nas paredes da Igreja ou próximas ao local da inumação, nos quais o morto se apresentava e registrava os serviços de perpetuidade “contratados”. 28 ANA CAROLINA BISCALQUINI TALAMONI sua identifi cação e personifi cação. Além dos costumes supracitados, a realização das pompas fúnebres conforme instruções testamentárias mostravam que um corpo, ao ser privado de sua autonomia, deixava de ser um ser vivo para transformar-se em um fenômeno sociocultural, fonte de inúmeras fantasias e também de direitos (Thomas, 1980). O uso dessas fi guras representativas foi de fundamental im- portância no processo de personalização do defunto, o que até en- tão importava bem menos do que o local onde ele seria enterrado. Por outro lado, essa prática pode ser entendida como expressão de uma recusa geral em ver o corpo morto. O horror ao cadáver estava menos associado à negação da individualidade física do morto do que à aceitação da sua decomposição. Nesse sentido, o cadáver não representava apenas a morte específi ca de alguém, mas a morte em geral e de cada um, portanto, a condição humana de mortalidade, que tende a ser silenciada por constituir-se em tabu. Desse horror ao cadáver advém uma plausível explicação para a forma como o mes- mo vai ser paulatinamente coberto pelas mortalhas, encoberto pelo caixão e dissimulado sob os cadafalsos,9 cada vez mais exuberantes e monumentais. Dos préstitos ao cadafalso houve um distanciamento gradual e crescente entre os familiares e o morto. A personifi cação do cadáver através de uma identidade a ser cada vez mais preservada, “cultua- da” na posteridade, foi uma tendência ascendente em consonância com a negação e dissimulação progressiva do corpo, engendrada pe- los próprios dispositivos utilizados, como as máscaras mortuárias. Carlos V, da Espanha, não hesitou em ensaiar o seu próprio fune- ral com carpideiras enlutadas, o enorme cadafalso já projetado e ele mesmo como observador do espetáculo macabro. O cadafalso de Alexandre Magno VI, segundo uma descrição de Diodoro Sículo,10 assim como o do ex-presidente norte-americano James Garfi eld, do 9 Catafalso: “estrado alto sobre o qual se põe o féretro” (Ferreira, 2001, p.147). 10 Disponível em: http://eltamiz.com/elcedazo/2011/03/16/las-conquistas-de- alejandro-magno-vi/. Acesso em: 28 jun. 2012. NO ANFITEATRO DA ANATOMIA: O CADÁVER E A MORTE 29 século XIX,11 representam bem a ornamentação e exuberância dos préstitos. O principal problema no que tange à questão da morte e do morto na Idade Média consistiu primeiramente na elaboração, e subsequentemente na superação, de um modelo de pensamento que permitisse o entendimento desse fenômeno tanto do ponto de vista coletivo quanto do individual. O modelo de pensamento reli- gioso/cristão permitiu, até certo ponto, que os sujeitos situassem a morte no tempo da vida e a “salvação” no tempo da morte, de modo que a preocupação com a morte nesse período era menos de cunho fi losófi co e existencial e mais de fundo religioso, esgotando-se no momento do trespasse. Paralelamente a essa tendência religiosa de pensamento, obser- vou-se na Europa renascentista o surgimento do modelo de raciona- lidade cartesiano a partir do qual a alma e o corpo foram cindidos. Esse dualismo penetrou a sensibilidade coletiva, culminando na re- presentação da “morte ruptura”, e nos esforços pela elaboração de uma arte de viver, em oposição às ars moriendi. A mortalidade em geral e o fato indubitável da morte foram se tornando conceitos densos, atemporais, fontes de refl exão, a qual foi potencializada, por um lado, pelos progressos da “dúvida metódica” de Descartes, e por outro, pelo crescente sentimento de desconfi ança perante a Igreja. Esse movimento foi bem retratado pelas expressões artísticas do século XIX que, ao “reinventarem” a Idade Média, le- varam o tema da morte às ultimas consequências. Segundo Hauser (2003, p.663), “aquilo a que o romântico se agarra não tem, em úl- tima análise, a menor importância; o essencial é o medo do presente e do fi m do mundo”. As produções artísticas desse período foram importantes, portanto, por fazer fl uir vários discursos, que visavam tanto à racionalização quanto à divagação dos indivíduos sobre te- mas até então sancionados. Enfi m, os velhos temas não desaparece- 11 Acervo do Liebich Photography Gallery, Cleveland, Ohio. Disponível em: http:// store03.prostores.com/servlet/ynpcollectorstereoviews/the-2493/stereoview- -stereograph-stereogram-antique/Detail. Acesso em: 28 jun. 2012. 30 ANA CAROLINA BISCALQUINI TALAMONI ram, mas surgiram renovados entre os séculos XVI e XIX (Burke, 2010). Paralelamente à atenção dada à morte pelo romantismo,12 elabo- rou-se uma série de ponderações que se baseavam em uma revisão dos hábitos de vida e dos costumes, visando o seu prolongamento. A sobriedade e a parcimônia foram salientadas como valores genuínos que remetiam ao “cuidado de si”. A “parcimônia”, longe de ser uma imposição social, foi incorporada ao modo de pensar e de viver. Era um estilo de vida que valorizava o decoro e a força do cará- ter: quanto maior fosse o poder de domínio do homem sobre suas “paixões”, maior o seu “valor” na sociedade (Foucault, 1999). Es- tes foram alguns dos indícios do surgimento do indivíduo e de uma sociedade pautada pelo individualismo, à medida que passou a ser tarefa do indivíduo construir a sua identidade. Outra possibilidade é que os discursos sobre a morte, ela mes- ma considerada uma forma de sanção, recuperaram e evidenciaram seus laços estreitos com o prazer, os dois interditos que marcaram o processo de civilização ocidental. Esses interditos, instaurados por instâncias normativas e proibitivas como a religião e a Igreja, foram expressos pela sociedade vitoriana através de uma curiosidade co- mum, de uma necessidade de falar constantemente sobre seu pró- prio silêncio, decorrendo desse fenômeno o esgotamento dos temas do amor e da morte pela arte e pela literatura românticas. A curiosidade frente ao mórbido culminou, por um lado, em um excesso de pudor e zelo nos hábitos e costumes, uma espécie de dissimulação, e por outro, nas expressões da arte barroca13 do século XVII. Estas buscaram expressar o desejo de amor, de morte, de so- frimento e prazer no cerne de sua ambiguidade. 12 Tendência à romantização dos eventos, e, sobretudo, de temas transcendentais como o amor e a morte. É marcado por uma visão unilateral, radical, de situações impregnadas por tensões e confl itos. Leva ao extremo a expressão dos sentimentos. 13 A arte barroca é caracterizada pela presença simultânea de tendências consideradas opostas, como os enfoques naturalistas, antinaturalistas, classicistas ou anticlassi- cistas. Até o século XVII, aplicava-se às formas artísticas consideradas extravagan- tes (Hauser, 2003). NO ANFITEATRO DA ANATOMIA: O CADÁVER E A MORTE 31 Em contrapartida ao prazer mortífero, a imagem do cadáver putrefato, sujo, que representa também a “morte-sanção”. Uma matéria veiculada pela mídia no ano de 2010, apesar da defasagem temporal, sintetiza a problemática supracitada: A estátua de um anjo no cemitério de Bornstedt (Alemanha) fi cou sem pênis. O roubo aconteceu no jazigo da família de Wolfgang Joop, fa- moso estilista alemão. O anjo havia sido levado da mansão de Joop para o cemitério após a morte do seu pai, em 2008. Desde então, a adminis- tração do local vinha recebendo várias queixas de pessoas incomoda- das com a exposição do membro angelical. “Minha mãe sugeriu que eu baixasse um pouco o pênis. Mas decidi não fazer isso, e algumas vezes senhoras cobriam o pênis com fl ores”, disse Joop poucos dias antes do roubo (Roubado..., 2010). Essa alteração das sensibilidades frente à vida e à morte resul- tou, em parte, de uma série de circunstâncias que solaparam as so- ciedades europeias a partir do século XV, especialmente Paris. O signifi cativo aumento demográfi co das populações urbanas, além das epidemias de peste, fez que medidas sanitárias fossem tomadas. Uma delas referia-se ao deslocamento dos cemitérios para fora das cidades, em função de sua insalubridade. Do sagrado ao insalubre. Os termos que a partir de então mediaram o indivíduo e a morte fo- ram cada vez mais técnicos; a assepsia e a higiene, medidas a serem adotadas em todas as dimensões da vida humana. As medidas higienistas que deslocaram os cemitérios para fora das cidades enfraqueceram substancialmente os laços Igreja/cemi- tério. Um dos fatores que potencializaram esse distanciamento foi a laicização da morte,14 a partir da qual a inumação tornou-se incum- bência dos órgãos públicos. Essa medida visou não só o princípio da sepultura como garantiu o direito ao enterro para o sujeito, cidadão de direito. O destino do cadáver era, sobretudo, uma questão de saú- de pública. 14 Democratização da morte, que, de uma perspectiva religiosa, passou a ser pensada em termos administrativos. 32 ANA CAROLINA BISCALQUINI TALAMONI Com o deslocamento dos cemitérios, os rituais fúnebres sofre- ram mudanças substantivas. Ao longo dos séculos XVII e XVIII, um “desejo de simplicidade” deu origem aos churchyards na Inglaterra e ao cemetery nos Estados Unidos. Além do desejo de simplicidade, esse movimento de remodelação foi pautado por uma alteração na sensibilidade dos viventes frente aos mortos. Tratou-se de uma época em que o medo dos mortos, dos cadáveres, dos fantasmas e assombra- ções tornou-se acentuado, e a defesa da saúde pública confi gurou-se, nesse cenário assombrado, como mais um pretexto para mudanças. Os túmulos e cadafalsos caíram em desuso e foram substi- tuídos por lápides, ossos entrecruzados formando uma cruz,15 e headstones,16 que se mostravam mais apropriados à paisagem alme- jada para os campos santos, nos quais deveriam prevalecer os verdes campos, repletos de árvores, como uma alegoria à “morte regresso” à natureza. Ao mesmo tempo, colocava literalmente uma “pedra so- bre a morte” e sobre o morto. A proposta desses cemitérios era permitir aos viventes um mo- mento de refl exão, de reencontro e “diálogo” com o morto, que o “ouvia” de seu jazigo subterrâneo. Tratava-se de um lugar onde “o esposo entregar-se-ia sem receios a todo encanto da sua dor e pode- ria visitar a sombra de uma esposa adorada” (Ariès, 1988b, p.250). Ao mesmo tempo em que muitos indivíduos e famílias optavam por túmulos simples nos cemitérios de campo, havia, principalmen- te na Itália renascentista, a preocupação de tantos outros indivíduos em “erigir” grandes túmulos. Para Burckhardt (2009), o desenvolvi- mento da noção de indivíduo criou uma nova modalidade de mérito, circunscrito no túmulo, voltado à glorifi cação moderna do sujeito individual. Esses túmulos luxuosos permitiam a exibição do status social do morto, mas também exerciam uma função psicológica im- portante: “a pompa ajudou a matar a tragédia” (ibid., p.294). Os tú- mulos tornaram-se, de fato, locais de visitação e culto, de forma que 15 As cruzes eram utilizadas com o objetivo de permitir ao morto “encontrar o caminho de casa” (Delumeau, 2009, p.132). 16 Grandes pedras depositadas sobre o túmulo. Segundo Delumeau (op. cit., p.132), tinham o objetivo de impedir que os mortos perturbassem os vivos. NO ANFITEATRO DA ANATOMIA: O CADÁVER E A MORTE 33 Vovelle (2008, p.285-6) encontrou evidências de culto às almas em catacumbas de Nápoles ainda na década de 1970. A laicização da morte contribuiu para a modernização dos servi- ços funerários e mostrou-se consoante com as necessidades geradas pelo novo tempo. O pragmatismo com o qual essas mudanças foram implementadas, bem como a objetividade requerida na reorganiza- ção dos espaços urbanos, não signifi caram, no entanto, que a morte tinha se tornado mais tolerável. Ela apenas passou a ser mais discreta e silenciosa: “a sociedade expulsou a morte, exceto a dos homens do Estado. Nada avisa já nas cidades, que se passou qualquer coisa” (Ariès, 1988b, p.310). Tratava-se, pois, de um momento crítico das sensibilidades, que tanto poderiam ser mediadas por um sentimento religioso da morte quanto por sua “naturalidade”: Bastava uma fl exão da fé (a descristianização?), ou melhor, como pen- so, uma fl exão da preocupação escatológica no interior da sua fé, para que o equilíbrio fosse rompido e que o nada dominasse; estão abertas as comportas por onde podem passar todos os fascínios do nada, da natureza, da matéria (ibidem, p.66). A dessacralização do cadáver em decorrência de sua naturali- zação permitiu o surgimento da Anatomia patológica e o desenvol- vimento de uma medicina “pré-científi ca”, a qual buscará indagar o cadáver. As duas teses principais dessa medicina se referiam: 1) à possibilidade da sobrevivência do cadáver; 2) à sensibilidade do cadáver. Tanto a tese da sobrevivência do cadáver quanto a de sua sensibilidade foram geradas por medos comuns, como o receio de ser enterrado vivo, ou de “falar demais” perto do morto. A primeira tese foi negada com base no desenvolvimento da própria Anatomia patológica e, mais precisamente, na constatação dos processos de cadaverização e putrefação. A segunda tese, a da sensibilidade do cadáver,17 consistia em uma tentativa de compreen- 17 Teve como precursor o médico alemão Garmann, que na época propôs a elaboração de um tratado de Medicina pós-morte (Le Breton, 2006). 34 ANA CAROLINA BISCALQUINI TALAMONI der e explicar alguns fenômenos observados, geradores de muitas fantasias e medos, como os espasmos e as contrações musculares, mais precisamente as ereções; essa segunda tese deu origem a uma série de superstições, tais como a de que o morto “ouve e se lembra”, diluindo as fronteiras entre o natural e o sobrenatural. Na Idade Média, por exemplo, os corpos de papas e santos eram considerados miraculosos, e partes deles podiam ser verdadeiras re- líquias. Em 2004 foi noticiada pela mídia a localização do coração do jovem rei Luis XVII, que estava perdido há 209 anos. Segundo uma reportagem, O médico que fez a autópsia secretamente retirou o coração real se- guindo a tradição de preservar os corações de reis separados de seus corpos. O médico contrabandeou o órgão para fora da prisão envolto em um lenço e o guardou como curiosidade. O legista o colocou em um vaso de cristal com álcool em uma prateleira e o bizarro souvenir acabou sendo roubado por um de seus alunos. Em seu leito de morte, o ladrão pediu à esposa que devolvesse o coração à família do pequeno rei (Coração..., 2011). O cadáver também foi investido de propriedades terapêuticas: o suor dos mortos era bom para estancar hemorragias; o toque da mão podia curar; os ossos tinham poder profi lático, motivo pelo qual se recomendava o uso de adornos feitos com ossos humanos, ou ainda, carregar um dedo junto de si; um membro do morto podia curar o mesmo membro do vivo, por equivalência; o crânio seco ali- viava sintomas epiléticos; a terra onde havia túmulos tinha poderes curativos e o cozimento de cadáveres inteiros era parte de receitas para a elaboração de “águas divinas” e outras beberagens18 com fi ns terapêuticos, propriedades benéfi cas e até mesmo afrodisíacas. As roupas dos mortos podiam curar dores de cabeça, hemorroidas etc. (Ariès, 1988b). 18 Remédio preparado geralmente por um curandeiro a partir do cozimento de ervas e outras substâncias. NO ANFITEATRO DA ANATOMIA: O CADÁVER E A MORTE 35 Quando o fi lho do rei da Espanha, Filipe II, adoeceu, 3 mil es- panhóis desfi laram de torso nu infl igindo-se açoites, por acreditar que o sacrifício poderia levar à melhoria do estado do menino. Mais notáveis ainda foram os cidadãos da cidade de Alcalá, onde se en- contrava o príncipe, que levaram o corpo mumifi cado de um frade franciscano, o frei Diego, que tinha morrido vários séculos antes, para deitar-se ao lado do enfermo (Friedman; Friedman, 2001). Os cadáveres tiveram, até o fi nal do século XVII, uma utilidade prática dentro de um sistema de conhecimentos tradicionais e pré- -científi cos. A incorruptibilidade dos mesmos foi, nesse período, alvo de acaloradas discussões, de modo que, ao fi nal do século XIX, diversas práticas mortuárias eram utilizadas. O desmembramento de corpos para inumação através do método da maceração ou “cozimento” era tão comum quanto a mumifi cação e o embalsamamento. A doação de corpos para o estudo da Anatomia, em testamento, era relativamente comum na época, já que grande parte das pessoas abastadas possuía um gabinete particular de dissecação, os famosos “laboratórios da morte”, bem retratados na obra de Mary Shelley, Frankenstein ou o Moderno Prometeu, de 1816. Igualmente corri- queiros eram os “túmulos de coração”.19 Um bom exemplo da variedade de tratamentos dirigidos ao ca- dáver consiste no destino dado aos despojos de Descartes. Segundo Schultz e Schultz (1992), dezesseis anos após sua morte na Suécia, em 1650, decidiram enviar seu corpo para a França. Como o ataúde era muito pequeno, seu corpo foi desmembrado, e a cabeça foi “perdi- da”. Por ocasião dos preparos para o envio dos despojos, um embai- xador da França na Suécia decidiu que queria uma lembrança, e cor- tou o indicador direito. O corpo, sem cabeça e com um dedo a menos, foi sepultado na França. O crânio, por sua vez, fi cou desaparecido até 1821, quando o químico sueco Berzelius, ao saber que o mesmo ia ser leiloado em Estocolmo, convenceu o proprietário a devolvê-lo a Pa- ris. O crânio encontra-se exposto atualmente no Museu do Homem. 19 Nos túmulos de coração o cadáver não tinha sido enterrado necessariamente inteiro. Muitas vezes tratava-se de um órgão, como o coração, ou de um pertence que identifi cava o morto. 36 ANA CAROLINA BISCALQUINI TALAMONI Exemplos mais atuais advêm da Universidade de Heidelberg, na qual os estudantes de Medicina utilizam cadáveres de vítimas do nazismo para seus estudos anatômicos, ao mesmo tempo em que são impelidos a lembrar da própria história de sua nação (Le Breton, 2006). Ainda é possível mencionar o sucesso de bilheteria das expo- sições itinerantes de anatomia ao redor do mundo, que dão indícios de que uma série de novos mecanismos psicológicos tem sido en- gendrada, a partir do século XIX, na tentativa de superar o medo e o horror que a morte suscita. Sobre o cadáver, o peso inegável de uma cultura milenar que não pode ser negada. No máximo, sublimada. A morte na atualidade A morte foi se tornando cada vez mais discreta, na tentativa de preservar a estabilidade e a mobilidade da vida social, o que se mostrou conveniente a uma sociedade que nega a realidade de sua própria fi nitude, e que faz dessa negação uma estratégia psicológica e social de sobrevivência. A mesma estratégia foi paulatinamente in- corporada pelo próprio moribundo, que não se deixa “sensibilizar” mais pelo prenúncio da morte, de modo que não existe mais aquele “último adeus” característico da morte domada. As últimas palavras foram suprimidas defi nitivamente do ritual da morte. A partir da modernidade, a morte praticamente não tem mais lugar de expressão. Tudo tende a se passar como se nada estivesse acontecendo, ninguém sabe de nada, ou, como diria Ariès (1998b, p.313), “a morte deixou de ser um momento”. Uma forma de com- preender essa aparente alteração das sensibilidades frente à morte pode ser atribuída ao fenômeno da ascensão do sujeito individual em uma sociedade individualista. A morte do indivíduo, do ponto de vista social, equivale a uma perda para o todo do sistema socioeco- nômico. Por outro lado, escancara ao outro, igualmente indivíduo, a dura realidade da sua própria vida, cujo fi m é a morte. Como resultado desse “embaraço” e constrangimento provoca- dos pela morte do outro, desenvolve-se uma série de comportamen- NO ANFITEATRO DA ANATOMIA: O CADÁVER E A MORTE 37 tos e atitudes até então incomuns frente a ela, projeções de mecanis- mos de defesa psicológicos, de modo que ela possa não só ser negada, mas ridicularizada, objetivada, sublimada etc. As implicações desse fato no ensino e pesquisa em Anatomia residem justamente na prer- rogativa de que, tanto estudantes quanto professores, monitores e técnicos desenvolvem, em algum momento de seu contato com as peças cadavéricas, mecanismos de defesa que permitem a sua ressig- nifi cação, tornando possível tanto o ensino quanto a aprendizagem. Motivo de curiosidade, mas, sobretudo, fonte de angústias que já não encontram formas “apropriadas” de expressão, a morte foi pau- latinamente submetida a um processo de distanciamento, assepsia, domesticação. Os horrores, as dores, os odores da morte tornaram-se insuportáveis para a família. A morte em casa já não é mais algo to- lerável, motivo pelo qual foi transferida para os hospitais, locais mais apropriados para se morrer. Soma-se a isso o advento da medicaliza- ção. Medicalização do moribundo, que já não é o possuidor de sua pró- pria morte; medicalização da família, para amenizar as dores da perda. Os velórios, por sua vez, tornaram-se ocasiões quase insuportá- veis. Deparar-se com o defunto é, de certa forma, uma maneira de se confrontar com a própria morte. Demanda uma encenação enfa- donha, cansativa para todos, já que a expressão da dor é percebida como fonte de constrangimentos impossíveis. O luto e os rituais fu- nerários foram se tornando, assim, cada vez mais privados. As coisas da morte foram defi nitivamente interditadas (Ariès, 1988b). O silêncio passou a ser sinal de respeito pela dor, em um mo- mento em que as pessoas já não querem, não podem, não sabem mais o que dizer. Inclusive, falar sobre a morte passou a ser deselegante, de mau gosto e um tanto sinistro. O “silenciar”, além de remeter à negação da morte, pode ser entendido, nessa perspectiva, como a única forma de responder ao cadáver, incapacitado de falar. Assim, é apenas no discurso social, e em seus estreitos limites, que se tornou possível elaborar formas aceitáveis de lidar com a morte e o morto. Esses momentos de despedida passaram a ser fortemente evi- tados, rejeitados e, se possível, suprimidos, o que se pode verifi car através do aumento considerável de cremações na modernidade em 38 ANA CAROLINA BISCALQUINI TALAMONI detrimento dos rituais funerários tradicionais. A cremação também possibilitou o afastamento dos indivíduos dos cemitérios. Para Hanus (2006), a questão da opção pela cremação é parte de um debate mais amplo acerca das relações estabelecidas entre o indivíduo e a sociedade. O autor relatou que, no ano de 2006, na França, havia mais de 100 mil contratos assinados por indivíduos com idade a partir de 72 anos, nos quais a cremação e o ritual fúne- bre que a antecede ou sucede eram preestabelecidos. Esse fenôme- no sugere que os indivíduos querem, em vida, optar por seu destino após a morte, contrariando a tendência, ou mesmo a crença, de que o sujeito, por ser portador de uma identidade social, pertence ao grupo em seu post mortem, sendo, portanto, de responsabilidade de familiares ou do próprio Estado. Do ponto de vista simbólico, a morte sempre foi e continua a ser concebida como uma das mais trágicas rupturas da vida, certamente a última e a mais dolorosa, porque “deixa um cadáver humilhante e repugnante”, que é a face objetiva da morte (Thomas, 1980 p.7). Uma das estratégias discursivas que buscam acalentar a difícil reali- dade da morte é aquela que tende a remeter à ideia de continuidade, em oposição à ruptura objetiva que ela própria estabelece. Está ba- seada na esperança de sobrevivência através da descendência ou da memória dos vivos. Porém, mais efi ciente que essas ideias é a crença generalizada na ciência, que poderá um dia impedir “a triste neces- sidade de morrer”, pois, de qualquer modo, “o que nos importa é persistir no ser, perdurar na individualidade e, sobretudo, não mor- rer” (ibid., p.7). A preocupação das sociedades com relação ao seu próprio des- tino e o tratamento que elas dirigem aos seus cadáveres é, portan- to, indício das fantasias de destruição, abandono ou de conservação suscitadas pela morte e pelo morto dentro de uma mesma rede de signifi cados que constitui a esfera cultural mais ampla. Nesse enca- minhamento, deve responder a duas demandas: a social, que exige a inumação do corpo por razões sanitárias e higiênicas, e a psicológica, que exige que a demanda social seja cumprida da forma mais ade- quada e suportável possível do ponto de vista simbólico. NO ANFITEATRO DA ANATOMIA: O CADÁVER E A MORTE 39 Tais sistemas de pensamento buscaram mais do que oferecer explicações plausíveis para o fenômeno da vida e da morte – fonte de angústia e mola propulsora da curiosidade humana –, mas esta- belecer parâmetros que permitissem a modelação e/ou contenção das sensibilidades no que se refere ao evento da morte. Assim, a ritualização da morte nas sociedades mais primitivas e tradicionais deu indícios de como a morte poderia ser suportada, sendo que esses rituais foram alterados de acordo com a cultura e seu tempo, estando sempre presentes e sendo sempre dirigidos ao cadáver. No que diz respeito ao fenômeno social, a morte consiste no tra- balho de retirar, desagregar o morto de uma esfera/domínio dos vivos, para introduzi-lo em outro. Segundo Rodrigues (1979, p.52), “a feiura deste trabalho exige toda uma desestruturação e uma reorganização das categorias mentais e dos padrões de relacionamento social”. Os rituais funerários cumprem a função social, secular, de assegurar à comuni- dade que essa transição está sob controle, mensagem esta que se faz necessária para que os sentimentos de segurança e de ordem sejam pre- servados, mesmo perante o drama fundamental da fi nitude humana. O cadáver e a legislação A incorruptibilidade dos corpos, fruto de mumifi cações natu- rais e/ou de comas prolongados, foi considerada, ao longo da Idade Média, o signo de uma interferência maligna destinada aos corpos excomungados, ou, pelo contrário, uma obra de Deus, e, portanto, motivo de beatifi cações. De qualquer forma, o “cadáver presente” historicamente representou a morte, pois é o signo aparente de uma ausência (Thomas, 1980). É nesse encaminhamento que os ritos cumprem seus papéis sociais, psicológicos, emocionais e religiosos. No contexto brasileiro, diante do evento da morte o indivíduo deixa de ser um sujeito de direito. No entanto, Os “direitos do cadáver” se manifestam por meio do respeito à sua in- tegridade física, considerando-se que o desligamento da força anímica 40 ANA CAROLINA BISCALQUINI TALAMONI do corpo não o transforma em uma “coisa”, mesmo levando em conta o fato de que, a partir desse momento, deixou de existir a personalidade jurídica, ou seja, a pessoa reconhecida como sujeito de direitos (Lou- reiro, 2009, p.43). O cadáver, prolongamento da personalidade humana que o ani- mou e do sujeito de direito que um dia existiu, deve ser resguardado e permanece sendo elemento de discussões no sistema jurídico: Em sentido afetivo, o cadáver pertence à família, cabendo, de início, aos parentes, responsáveis ou terceiros, a iniciativa das honras fúnebres e do sepultamento, dentro do que preceituam as normas sanitárias e legais. Todavia, em qualquer tempo, tem o Estado direitos sobre essa posse. Em suma: o cadáver pertence ao Estado (Queiroz, 2005, p.50). Trata-se, portanto, de uma produção, um investimento simbó- lico dos vivos sobre o destino que os espera. Se não é possível falar do cadáver sem remeter à extenuação da vida, também não é possí- vel distinguir os ritos funerários da necessidade de falar à morte, de transcendê-la. O cadáver infl ui no imaginário individual e coletivo de forma consciente ou inconsciente, como resposta às pulsões humanas mais profundas; situa-se entre o feio e o belo, o limpo e o sujo, o vivo e o morto: ou é um “cadáver coisa” ou um “cadáver pessoa” (Thomas, 1980). Nesses estreitos limiares encontra-se o discurso “coisifi cado” do cadáver, o qual tem sido utilizado recorrentemente pelas socieda- des modernas e pós-modernas para, sobretudo, negar-lhes o valor e a humanidade. Segundo Thomas (op. cit.), negar a pessoa através do poder de tratá-la como “coisa” signifi ca matá-la uma segunda vez e, com isso, abolir os fantasmas e as angústias que a morte do outro potencializa. Essa negação, no entanto, só se mostra satisfatória à medida que o próprio corpo é representado como uma “máquina”. Os cadáveres dos laboratórios de Anatomia e dos institutos mé- dicos legais (IMLs) ilustram essa percepção do corpo “resíduo”, que NO ANFITEATRO DA ANATOMIA: O CADÁVER E A MORTE 41 pode ser manipulado e dissecado; corpo de uma pessoa que já esta- va socialmente morta ou excluída, motivo pelo qual seu cadáver foi condenado a ser insignifi cante, ou, na melhor das hipóteses, contri- buir para estudos práticos. O cadáver anônimo, não reclamado (Go- doy et al, 2003) e desprovido de funeral, foi banido do mundo dos vivos e dos mortos. Seu destino está, portanto, sob os desígnios do Estado, que, através da Lei 8.501, de 30 de novembro de 1992, art. 1o, visa “disciplinar a destinação de cadáver não reclamado junto às autoridades públicas, para fi ns de ensino e pesquisa” (Brasil, 1992). *** A revisão bibliográfi ca realizada neste capítulo intentou de- monstrar as relações que se estabelecem entre as representações da morte de uma determinada sociedade e os tratamentos ou rituais que a mesma destina a seus cadáveres. A partir da análise destes últimos se tornou possível depreender algo acerca das ideias relativas à morte e ao morto que pontuaram o processo de desenvolvimento das sensi- bilidades ocidentais frente ao trespasse. Agora, resta discorrer mais especifi camente acerca das técnicas utilizadas para a manipulação, destruição ou conservação de cadáveres que subjazem aos rituais su- pracitados, o que será tema do próximo capítulo. 2 OS TRATAMENTOS DIRIGIDOS AO CADÁVER Os tratamentos mais comumente destinados ao cadáver têm ba- sicamente três objetivos: 1) conservar o corpo por meio de técnicas que se dirigem ao defunto, caso do embalsamamento, das mumi- fi cações e, mais recentemente, da criogenização, o que signifi caria garantir a incorruptibilidade do corpo para um “futuro renascimen- to”; 2) conservar o corpo através de tratamentos temporários, diri- gidos aos sobreviventes, caso da tanatopraxia; 3) ser destruído e/ou incorporado por meio da cremação e dos diversos usos possíveis dos restos mortais. O canibalismo O canibal é considerado um “selvagem” pelas sociedades civi- lizadas. Ele é “radicalmente o outro”, à medida que come carne hu- mana, um dos interditos dessas mesmas sociedades. O canibalismo, portanto, tende a corresponder a uma “selvageria generalizada”, in- compatível com a ideia de humanidade e civilização. No entanto, o canibalismo deve “instigar uma forma de pensar mais do que de comer”, pois é dentro de sistemas simbólicos específi - cos que esse costume é empreendido e pode ser compreendido (Kila- 44 ANA CAROLINA BISCALQUINI TALAMONI ni, 2006). Trata-se de uma prática mortuária comum nas sociedades mais primitivas e nelas há respeito a algumas contingências, como quem e como se deve comer. Ocorre fundamentalmente em dois ca- sos específi cos e com funções simbólicas bastante diferentes. No caso do cozimento de membros da família, ou endocanibalismo, trata-se de um ritual de comunhão, cuja intenção é evitar ao morto o horror da lenta putrefação através da apropriação total do cadáver. É uma forma de reverenciar o morto. No exocanibalismo, ou canibalismo praticado a indivíduos não pertencentes à própria família, o objetivo é a incorporação simbólica do “outro”, que geralmente é o inimigo combatido, um guerreiro dotado de força e de outras qualidades de- sejáveis; é fruto da dialética e se constitui em uma linguagem de iden- tidade, já que o corpo concretiza a personalidade do indivíduo. Mumificação, embalsamamento e tanatopraxia A mumificação, o embalsamamento e a tanatopraxia cons- tituem um conjunto de práticas e procedimentos que visam à conservação do cadáver pelo maior tempo possível, na tentati- va de reter de qualquer forma a vida que se esvai, ou ainda, de constituir um significado para que o significante, aquilo que permanecerá, tenha um sentido (Thomas, 1980). Essas práticas foram encontradas por historiadores e etnólogos nas mais diver- sas culturas e civilizações, sendo que em cada uma delas foram observadas técnicas específicas de conservação dos corpos, tais como o uso de vinagre, aguardente e azeite vegetal, substâncias aromáticas com as quais o corpo pode ser injetado ou untado; o uso de técnicas de opressão do ventre ou de incisões abdominais para evitar flatulências; a retirada das vísceras, a incisão de veias e artérias para a sangria etc. O embalsamamento, como desenvolvido pioneiramente por Jean-Nicolas Gannal (1791-1854), em meados do século XIX, con- fi gurou-se em uma técnica inédita e revolucionária, que consistia na injeção de fl uidos de propriedade evacuante, antisséptica e con- NO ANFITEATRO DA ANATOMIA: O CADÁVER E A MORTE 45 servadora nos cadáveres. A composição desses fl uidos foi alterada diversas vezes desde o ano de 1840, tendo sido utilizados o fosfato de cálcio, o nitrato de potássio, o cloreto de sódio e o ácido de arsê- nico. Em 1848, uma mescla de acetato de alumínio a 10% e cloreto de alumínio a 20%, em partes iguais, injetada na artéria femoral e na carótida, complementada por uma drenagem venosa, permitiu o envio de soldados mortos na Guerra de Secessão para serem sepul- tados em suas cidades natais. Mais tarde, Gannal redefi niu uma vez mais o composto injetado, chegando, fi nalmente, à mescla de fenol, sulfato de creosoto, alumínio, acetato de chumbo e sulfato ou cloreto de zinco. No início da década de 1970, tinham sido identifi cadas e listadas pelo menos trinta fórmulas diferentes de líquidos conservadores no Brasil, entre ácidos (fênico, pícrico, acéptico, crômico, bórico, salicí- lico etc.), sais (cloreto de sódio, hipocloritos de sódio, nitrato, nitrato de potássio, sulfato ferroso etc.), além do álcool etílico ou isopro- pílico, a glicerina, o clorofórmio, o enxofre, o carvão, entre outras substâncias comumente utilizadas (Brasil, 1973). Gannal teve forte infl uência no alargamento das técnicas tana- topráticas, como os procedimentos adotados pelo Instituto Fran- cês de Tanatopraxia (IFT), fundado em 1964, e suas injeções para embalsamamento foram fundamentais para o desenvolvimento da tanatopraxia como hoje é concebida. Os procedimentos do IFT ti- nham duplo objetivo: suspender o início do processo de putrefação através da injeção arterial, da drenagem venosa, da lavagem e injeção das cavidades do tórax e abdome, e por fi m, oferecer um tratamento estético destinado a reduzir ou camufl ar alguns sinais da tanatomor- fose, restaurando a aparência do defunto. As técnicas de tanatopraxia, de restauro (no caso de corpos mutilados por acidentes ou por exames de necropsia), e, mais re- centemente, de rejuvenescimento póstumo foram amplamente di- fundidas ao redor do mundo através de dois discursos básicos: 1) o discurso interpessoal, que apresenta os benefícios emocionais para os sobreviventes de se proporcionar uma melhor apresentação do defunto, o “ente querido”, no momento da derradeira despedida; 46 ANA CAROLINA BISCALQUINI TALAMONI 2) o discurso público acerca do papel sanitário da tanatopraxia, que salienta os benefícios da desinfecção bacteriológica promovida por seus procedimentos específi cos contra os riscos gerados pelo cadá- ver, que se constitui em “um perigo potencial para a higiene e a saú- de pública”: A tanatopraxia é a mais moderna técnica de conservação de corpos, utilizada em quase todos os países do mundo. Não é necropsia nem re- tirada de órgãos. A tanatopraxia não traz apenas vantagens à aparência da pessoa, oferece à família o melhor dos benefícios, que se constitui em recordar de seu ente querido como ele era verdadeiramente em vida. Isto, psicologicamente, se constitui de um valor incalculável. Quando passamos pelo processo de perda de um ente querido, a úl- tima aparência é aquela que fi ca para sempre na nossa memória. A realização da tanatopraxia se constitui num gesto de amor e carinho, pois além de amenizar as transformações próprias do corpo sem vida, contribui no processo de difícil adaptação da ausência do ser amado. Trata-se de uma técnica que, nos últimos anos, revolucionou o setor funerário, que consiste na prática de higienização e conservação de corpos humanos através da injeção de líquidos. O objetivo é propor- cionar uma melhor apresentação do corpo no momento do velório, tendo esta prática se tornado num serviço essencial para o setor fune- rário. A tanatopraxia é realizada com aplicação de produtos químicos no corpo do falecido, uma maneira bem menos agressiva e mais efi caz que os antigos métodos, como o embalsamamento. Terminada a apli- cação, o corpo fi ca com a aparência serena e corada, como antes da morte. Técnica que terá de ser feita em locais apropriados, designados por tanatórios, tendo em conta todas as medidas de segurança. Mas, contudo, poderá ser feita a domicílio. O responsável pela tanatopra- xia é o tanatopractor, que para estar apto para desenvolver essa função necessita de um curso técnico avançado, que é ministrado de várias formas e por várias entidades, relativamente a cada país (Tanatopra- xia, 2010). Entre as técnicas mais comuns utilizadas na tanatopraxia é pos- sível descrever o “método de conservação em sólidos”, que visa à NO ANFITEATRO DA ANATOMIA: O CADÁVER E A MORTE 47 conservação do cadáver ou de peças cadavéricas por até vinte dias, com o processo de putrefação sendo interrompido no terceiro dia. A técnica consiste em misturar 5 quilos de serragem e 500 gramas de carvão vegetal, permanganato de potássio, cânfora e naftalina, com as quais serão cheios um colchão e um travesseiro, posteriormente colocados dentro da urna. Tanto o colchão quanto o travesseiro de- vem ser regados com 2 a 5 litros de uma mistura de timol, formol, álcool e ácido benzoico em partes iguais. Depois de colocado o cadá- ver, a urna deve ser fechada hermeticamente. Dentre as vantagens dessa técnica salienta-se a ausência de qualquer tipo de intervenção cirúrgica, a suspensão do processo de putrefação e a possibilidade de transporte do cadáver a lugares distantes (Brasil, 1973). Os funerais temáticos, por outro lado, tornaram-se relativamen- te comuns em uma indústria que, sobretudo nos Estados Unidos, cresceu vertiginosamente. González-Crussi (1990, p.33-4) relatou o caso de um empresário norte-americano que organizou sua cerimô- nia em torno do conceito de “drive-in”: o cadáver e o cadafalso foram alocados dentro de um carro ornamentado com cruzes feitas de luz neon azul. Segundo o mesmo autor, o costume de embalsamar ca- dáveres de cidadãos norte-americanos alcança êxito tão grande que uma pessoa que vive nos Estados Unidos está estatisticamente mais propensa a passar mais tempo em uma funerária do que em um de- partamento de polícia ou de bombeiros ao longo de sua vida. Um funeral sincrético foi destaque na mídia internacional no ano de 2010: Um velório inusitado fez com que o porto-riquenho David Morales Colón, 22, ganhasse destaque na mídia internacional. Morto a tiros na última quinta-feira (29), seu corpo foi velado sobre uma moto Hon- da CBR 600 F4. Morales era entregador e havia acabado de ganhar o veículo de um tio quando foi baleado. Funcionários da funerária Ma- rin tiveram que embalsamar o corpo do rapaz para que ele pudesse ser mantido sobre a moto, em uma posição como se estivesse pilotando. David foi morto durante um tiroteio no Caribe. A família obedeceu a um desejo do falecido (Morto..., 2010). 48 ANA CAROLINA BISCALQUINI TALAMONI A cremação A cremação, assim como o canibalismo, tem o intuito de, com a destruição do cadáver, evitar a putrefação. No entanto, é necessário diferenciar a incineração tradicional da cremação e da incineração moderna de cadáveres. A incineração tradicional surgiu como uma prática dos povos nômades, e entre soldados feridos e mortos em batalha. Os moti- vos da utilização dessa técnica estiveram, portanto, relacionados à distância da “terra natal” ou à falta de um local apropriado para a inumação. No entanto, observa-se que o objetivo da prática da cremação moderna relaciona-se mais com a preservação do bem-estar men- tal, social e físico dos sobreviventes, que devem ser “poupados” da inquietação gerada pela decomposição do corpo outrora querido. Trata-se de uma relação ambivalente do indivíduo com o morto: ao mesmo tempo em que precisa encerrá-lo através de um rito, procura fazê-lo da forma mais distante e impessoal possível. A es- colha pela cremação também perpassa questões éticas e fi losófi cas, tomando uma dimensão simbólica religiosa. Pode ser concebida como um ato de purifi cação, como em algumas religiões indianas, ao mesmo tempo em que não é bem vista por religiões ortodoxas (Hanus, 2006). Bacqué (2006) faz uma distinção importante no que tange à cremação e à “incineração moderna”, a partir dos eventos ocorridos no Holocausto.1 Segundo a autora, que se baseou no depoimento de sobreviventes dos campos de concentração, os judeus foram exter- minados durante a Segunda Guerra Mundial através da incineração, e não da cremação dos corpos. Essa defi nição relaciona-se com a in- tenção da prática – a destruição de um agrupamento étnico-cultural –, estando fora de quaisquer tipos de categorias até então utilizadas 1 Termo utilizado especifi camente para se referir ao extermínio de milhões de pessoas, sobretudo de judeus, que faziam parte de grupos politicamente indesejados pelo então regime nazista, capitaneado por Adolf Hitler. NO ANFITEATRO DA ANATOMIA: O CADÁVER E A MORTE 49 para justifi car a cremação ao longo do processo de desenvolvimento da civilização ocidental moderna. A cremação conforme concebida na atualidade exime os viventes do constrangimento originado pelo cadáver, dando lugar a uma série de dispositivos mais assépticos, oferecidos à exaustão por cemitérios, crematórios e agências funerárias. No site da Associação Cemitério dos Protestantes (Acempro), da cidade de São Paulo, foi possível en- contrar uma propaganda da arte picto-crematória realizada pela artis- ta plástica brasileira Claudia Eleutério. O próprio site disponibiliza um vídeo de aproximadamente seis minutos, no qual a artista realiza a pintura de um retrato de óleo sobre tela, assim apresentado/narrado: A arte picto-crematória é uma obra de arte que tem como principal matéria-prima as cinzas resultantes do processo crematório. Como proposta original e única, estas cinzas são adicionadas a tinta a óleo, conservantes e outros produtos manipulados com técnicas especializa- das que resulta em uma obra a óleo sobre tela personalizada. A artista plástica Claudia Eleutério, além da arte, torna-se uma alquimista, pin- celando ou espatulando com precisão suas telas em variadas formas ar- tísticas como o retrato, paisagem, fl oral, abstrato entre outras, podendo desenvolver além das cores, o monocromismo, a sépia, e detalhes com ouro em pó, valorizando cada vez mais sua obra de arte. A tela estará disponível em vários tamanhos. Assim como existem pessoas que li- bertam as cinzas de seus entes queridos ao mar, outras em jardins, ou- tras simplesmente as guardam. Claudia Eleutério transforma sua arte em uma urna cronológica que condensa e armazena com segurança as cinzas, preservando a memória do ente em um invólucro seguro e ao mesmo tempo em uma linda obra de arte (Arte..., 2010). A arte picto-crematória também é oferecida pelo Crematório Vaticano, da cidade de Curitiba. No dia 2 de novembro de 2009, Dia de Finados, os primeiros dez trabalhos do gênero foram apresenta- dos às famílias dos mortos e à comunidade: O Dia de Finados, no dia 2 de novembro, será diferente para dez famílias de Curitiba. Em vez de missa, como de costume, os familiares dos mor- 50 ANA CAROLINA BISCALQUINI TALAMONI tos terão uma experiência diferente: o Crematório Vaticano vai apresen- tar às famílias onze obras de artes feitas com as cinzas de seus parentes. Segundo a diretoria do Crematório, a intenção do projeto é aproximar as pessoas de seus entes queridos. “Percebemos que muitas pessoas não querem se desfazer das cinzas totalmente. Querem ter algo por perto. Então por que não ter uma obra de arte em vez de uma urna com as cinzas?”, diz Mylena Cooper, diretora do local. As obras – esculturas e telas – foram feitas por sete artistas plásticos que tiveram o cuidado de adequar a criação ao gosto de cada morto. O artista João Moro, por exemplo, prepara uma tela com motivo sacro. O escultor Tony Reis produz três esculturas de cunho religioso e fundamentadas nos amores e desejos dos “donos” das cinzas (Obras..., 2009). Esse tipo de trabalho, que em um primeiro momento mostra-se bastante original, ao menos no contexto brasileiro, de certa forma remete ao projeto apresentado pelo arquiteto do Palácio da Justiça de Paris, Pierre Giraud, em 1801, no período em que ocorreu o pro- cesso de remanejamento dos cemitérios. Naquela ocasião, o esvazia- mento das grandes fossas do Cemitério dos Inocentes (também de- nominado por “come carne”) permitiu a constatação de um acúmulo de certo tipo de gordura humana, vitrifi cada. A verificação de que essa gordura poderia ser manipula- da e ganhar forma inspirou Giraud a propor o uso da referida substância na confecção de múmias, medalhões e outros tipos de recordações, além de poder ser aproveitada na construção dos novos cemitérios; seria uma forma de homenagear aqueles cujos despojos estavam sendo redistribuídos. Segundo o arquiteto, com esse material seria possível erigir colunas e outras escultu- ras. O projeto foi considerado mórbido e rejeitado pelas instân- cias responsáveis. A transmissão da cerimônia de cremação on-line também se constituiu em um dos tantos serviços disponibilizados, este sendo oferecido, por exemplo, pelo Crematório Metropolitano Prima- veras, em Guarulhos, SP. Através do site, é possível ao internauta acender uma “vela virtual”, participando, a distância, de todo o rito funerário. Este certamente é mais um dos dispositivos modernos de NO ANFITEATRO DA ANATOMIA: O CADÁVER E A MORTE 51 negação da concretude da morte e uma forma de poupar os indiví- duos dos embaraçosos rituais funerários. Retomando a história social da morte e do morto, sobre as quais se versou até então, percebeu-se que, das práticas mortuárias como a mumifi cação e o embalsamamento aos longos funerais ou cortejos fúnebres, passando por outras práticas como a incineração, a crema- ção e a antropofagia, todas essas ações buscaram tanto a preservação ou prolongamento do tempo do morto no mundo dos vivos quanto uma cisão defi nitiva entre “os dois mundos”. O funeral, como foi visto no decorrer do capítulo anterior, pos- sui um efeito terapêutico à medida que permite a decodifi cação e expressão cultural da dor, sendo que a sua supressão também pode ser interpretada como uma maneira de lidar com a consternação gerada pela morte. Os ritos de passagem, como os rituais fúnebres, foram historicamente engendrados a fi m de preparar o morto para seu “novo destino”, cumprindo também com a função de conceder à família e aos amigos a oportunidade de um “último adeus” – uma derradeira tentativa de reter o defunto, mesmo que por um último momento (Thomas, 1980, p.9-10). Outras práticas de tratamento dirigido ao cadáver foram encon- tradas, sobretudo aquelas que utilizam de alguma forma o sangue ou a pele humana. No entanto, foram priorizadas neste capítulo as prá- ticas mortuárias mais comuns, circunscritas na história, e que não prescrevem os direitos de inviolabilidade do cadáver. Enfi m, não é possível falar do cadáver sem remeter à história da morte e das sensibilidades. As representações do cadáver encontram- -se sempre em uma fronteira muito tênue entre a realidade e a fi cção, a natureza e a cultura, a ciência e a arte/literatura. Um estudo mais minu- cioso sobre o tema poderia explicitar uma recorrência de alegorias bem conhecidas, demonstrando que as práticas mortuárias se alteraram mais do que as angústias e confl itos humanos frente à morte. Estabelecidas essas relações, procurar-se-á agora inserir a traje- tória da disciplina anatômica no plano social e histórico, tomando por base as representações da morte e do morto e suas alterações ao lon- go do processo civilizacional. Este será o tema do terceiro capítulo. 3 UM ESBOÇO DA TRAJETÓRIA ANATÔMICA Como vimos nos dois capítulos anteriores, não é possível falar sobre a morte, cujo signo é o cadáver, sem falar na maneira como as sociedades vêm cuidando de seus mortos. Dessa constatação depreende-se que a dissecação, técnica primordial para o desenvol- vimento do conhecimento anatômico, só se tornou possível como prática legítima à medida que se procedeu à relativização do caráter sagrado do corpo humano. O estabelecimento da disciplina científi - ca Anatomia e suas derivações na modernidade são, portanto, pro- dutos de uma alteração das mentalidades e das sensibilidades frente não só ao corpo, mas à morte e à necessidade de novos conhecimen- tos, mais consoantes com a racionalidade nascente. O objetivo deste capítulo é realizar um esboço do processo de desenvolvimento da ciência anatômica desde a Antiguidade até os dias atuais, enquadrando-a nas dimensões históricas e culturais em que foi produzida, a fi m de compreendermos a Anatomia como um processo de objetivação do corpo e, sobretudo, uma construção dis- ciplinar sócio-histórica. Essa temática mostrou-se de interesse por: a) permitir a cons- tatação de que a indagação acerca do corpo humano não é um fenô- meno moderno, mas uma preocupação milenar do Homem acerca de sua origem, de sua “natureza”; b) auxiliar no entendimento dos 54 ANA CAROLINA BISCALQUINI TALAMONI processos sócio-históricos, cognitivos e emocionais que retiraram o cadáver de uma condição interdita, inviolável e ameaçadora para ser objeto de curiosidade e indagações racionalizadas. Este capítulo não tem a pretensão de retraçar a “história da Anatomia”, mas, antes, de apresentar alguns elementos científi cos, sociais, históricos e culturais que contribuíram para o surgimento e desenvolvimento da referida disciplina. Busca, sobretudo, ampliar o entendimento de como o conhecimento anatômico constituiu-se e avançou ao longo dos séculos, fundamentando o ensino de Anato- mia na atualidade. Procurar-se-á também, ao longo deste capítulo, ratifi car que a disciplina anatômica, bem como a descoberta do corpo em sua di- mensão “objeto de estudo”, são produções culturais, uma vez que são científi cas, de conhecimento. Nesse encaminhamento, tanto o conhecimento científi co produzido pela Anatomia como as técnicas de investigação por ela frequentemente utilizadas – como a mace- ração e a dissecação – prenunciam que a Anatomia é também fru- to de uma tradição científi ca, um dos motivos pelos quais tem um espaço-tempo consolidado nos currículos dos cursos de licenciatura e bacharelado em Ciências Biológicas e da Saúde, tradição esta que se perpetua através de aulas igualmente tradicionais e isomórfi cas. A fi gura do anatomista, por sua vez, também é uma construção sócio-histórica que perpetua a tradição característica da comunidade anatômica. Esse encontro de elementos sociais, históricos e culturais confl ui para a aula de Anatomia, mas transcende os aspectos didáti- co-pedagógicos da aula, que acaba por realizar-se enquanto um fato social no qual cada sujeito tem um papel culturalmente determinado a desempenhar. O percurso dessa área da ciência comportou uma série de difi - culdades e, por que não, de imposturas éticas e fi losófi cas que desa- fi aram o conhecimento tradicional/religioso acerca do corpo e cul- minaram em outra história: a da dissecação. Os entraves enfrentados para a legalização da prática anatômica se deram em nível prático, moral, legal, mas, sobretudo, no nível simbólico, tendo sido neces- sária uma reorientação das sensibilidades. NO ANFITEATRO DA ANATOMIA: O CADÁVER E A MORTE 55 O processo de dessacralização do corpo permitiu que se assu- misse explicitamente a ambiguidade do cadáver, fonte de curiosida- de e ao mesmo tempo de horror e repugnância. O estabelecimento da Anatomia ocorreu em consonância com o desejo humano de com- preender o próprio corpo e de superar seus temores mais profundos. Uma das primeiras difi culdades suscitadas pelo tema refere- -se à literatura, que é bastante escassa, sobretudo no período que compreende os séculos XIX e XX. O livro de Charles Singer (1996), Uma breve história da Anatomia e Fisiologia – desde os gregos até Harvey, originalmente publicado em 1956, balizou as pesquisas bi- bliográfi cas subsequentes que compuseram este capítulo. Com re- lação à Anatomia dos séculos XIX e XX, coube à autora selecionar na literatura disponível sobre a história da Biologia e da Medicina os elementos que se acredita tenham contribuído para a composição, ou melhor, a “decomposição” da Anatomia moderna. Os princípios do saber anatômico Mediante os artefatos e inscrições que datam da pré-história, é possível inferir que já nesse período existiam alguns conhecimen- tos anatômicos. Estes foram perpetuados ao longo da história, por exemplo, através de desenhos, como as fi guras que representam a anatomia humana encontradas nas montanhas de Tassili, no Saara, datadas de aproximadamente 3000 a.C. Alguns desenhos paleolí- ticos retratam uma posição aproximada do coração e outros órgãos vitais em ilustrações rudimentares de animais, provavelmente reali- zadas por indivíduos com algum conhecimento anatômico derivado da caça. Fósseis de crânios humanos perfurados permitem a inferên- cia de que, por volta do ano 3000 a.C., a trepanação1 era realizada tanto em pessoas vivas como em cadáveres, com fi nalidades místico- -terapêuticas (História da Medicina, 1969a). 1 Consiste em uma técnica de perfuração do crânio, utilizada no período pré-históri- co com o objetivo de livrar o indivíduo de demônios e maus espíritos. Atualmente, é uma técnica cirúrgica que visa efeitos terapêuticos. 56 ANA CAROLINA BISCALQUINI TALAMONI Segundo Singer (1996), encontrou-se material de interesse médico e anatômico em escritos de Homero (cerca de 900 a.C.) e Hesíodo (cerca de 750 a.C.). Os registros mais antigos de observações anatômicas reais realizadas no Ocidente datam de 500 a.C., nos fragmentos de escritos de Alcmêon, na Grécia antiga. As obras artísticas desse período, em es- pecial as esculturas, pela riqueza de detalhes relativos à musculatura corporal, sugerem a existência de um conhecimento anatômico relati- vamente acurado, o que só pôde ser efetivamente confi rmado a partir de produções posteriores ao ano 200 a.C., período em que possivelmente já existia uma tradição anatômica de dissecação de animais. Das inúmeras obras de Anatomia deixadas pela civilização an- tiga, destaca-se a Coleção Hipocrática, que abarca tratados de um vasto período, de 600 a.C. até cerca de 300 a.C. Aponta-se também para as contribuições de Aristóteles (384-22 a.C.), tanto no que tan- ge à sua fi losofi a quanto às descrições anatômicas por ele ilustradas, que se constituíram em ferramentas importantes para o posterior desenvolvimento do conhecimento anatômico. Além disso, atribui- -se ao fi lósofo grego a criação da Anatomia comparada. A civilização grega deixou um legado signifi cativo para a Ana- tomia, sobretudo no que tange à fi losofi a aristotélica. A doutrina da constituição da matéria, formulada por Aristóteles, propunha a existência de quatro qualidades primárias essencialmente opostas – o quente e o frio, o molhado e o seco –, cujas combinações binárias permitiam a origem das quatro essências que constituíam toda a ma- téria. A doutrina da constituição da matéria, aliada mais tarde à dou- trina hipocrática dos quatro humores (sangue, fl euma, bile preta e bile amarela) fez-se presente em grande parte da história da Medici- na ocidental. Tal lógica combinatória persistiu na Medicina popular e ainda mostra-se presente nos séculos XX e XXI. A Anatomia na Antiguidade Sediada na cidade de Alexandria, no Egito, a escola de Alexan- dria constituiu-se na maior escola científi ca da Antiguidade Clás- NO ANFITEATRO DA ANATOMIA: O CADÁVER E A MORTE 57 sica. Reduto de reis ptolomaicos, a escola comportava bibliotecas e museus, e foi o local no qual a Anatomia alcançou, pela primeira vez, o status de disciplina. Segundo os registro