1 0 1 UNIVERSIDADE ESTADUAL PAULISTA “JÚLIO DE MESQUITA FILHO” FACULDADE DE FILOSOFIA E CIÊNCIAS - MARÍLIA ANA BEATRIZ MAIA NEVES MULHERES NA FRENTE E ATRÁS DAS TELAS Gênero e direitos das mulheres no ensino de Sociologia: Possibilidades de abordagem a partir de filmes. MARÍLIA - SP Março de 2020 sssss sssss sssss sssss sssss 2 UNIVERSIDADE ESTADUAL PAULISTA “JÚLIO DE MESQUITA FILHO” FACULDADE DE FILOSOFIA E CIÊNCIAS ANA BEATRIZ MAIA NEVES MULHERES NA FRENTE E ATRÁS DAS TELAS Gênero e direitos das mulheres no ensino de Sociologia: Possibilidades de abordagem a partir de filmes. Dissertação apresentada ao Programa de Pós-Graduação em Sociologia - MESTRADO PROFISSIONAL DE SOCIOLOGIA EM REDE NACIONAL da Faculdade de Filosofia e Ciências da Universidade Estadual Paulista - UNESP - Campus de Marília, para o obtenção do título de Mestra em Sociologia Área de concentração: Ensino de Sociologia Orientador: Prof. Dr. Paulo Eduardo Teixeira. MARÍLIA- SP Março, 2020 http://www.profsocio.ufc.br/ http://www.profsocio.ufc.br/ 3 Sistema de geração automática de fichas catalográficas da Unesp. Biblioteca da Faculdade de Filosofia e Ciências, Marília. Dados fornecidos pelo autor(a). Essa ficha não pode ser modificada. N518 m Neves, Ana Beatriz Maia Mulheres na frente e atrás das telas: gênero e direitos das mulheres no ensino de Sociologia - possibilidades de abordagem a partir de filmes / Ana Beatriz Maia Neves. -- Marília, 2020 102 p. Dissertação (mestrado profissional) - Universidade Estadual Paulista (Unesp), Faculdade de Filosofia e Ciências, Marília Orientador: Paulo Eduardo Teixeira 1. Ensino de Sociologia. 2. cinema e educação. 3. estudos de gênero. 4. Tela Crítica. I. Título. . 4 ANA BEATRIZ MAIA NEVES MULHERES NA FRENTE E ATRÁS DAS TELAS Gênero e direitos das mulheres no ensino de Sociologia: Possibilidades de abordagem a partir de filmes. Dissertação apresentada para o obtenção do título de Mestra em Sociologia ao Programa de Pós-Graduação em Sociologia - MESTRADO PROFISSIONAL DE SOCIOLOGIA EM REDE NACIONAL da Faculdade de Filosofia e Ciências da Universidade Estadual Paulista - UNESP - Campus de Marília na área de concentração Ensino de Sociologia. Aprovado em Marília, 23 de março de 2020. BANCA EXAMINADORA Orientador: _________________________________________________________________ Prof. Dr. Paulo Eduardo Teixeira - UNESP MARÍLIA 1º Examinador: ______________________________________________________________ Prof. Dr. Giovanni Alves - UNESP MARÍLIA 2ª Examinadora:______________________________________________________________ Profª. Drª. Julia Polessa Maçaira – UFRJ 23 de março de 2020. http://www.profsocio.ufc.br/ http://www.profsocio.ufc.br/ 5 Dedico este trabalho à memória de Raquel Stern, cineasta niteroiense. 6 AGRADECIMENTOS À Deusa, Deus, Luz, Javé, Poder Superior, Olorum, Mãe Natureza ou outros nomes que esta força tenha, pelas oportunidades que me foram dadas na vida, mas também por ter me ajudado a superar ilesa (ou quase ilesa) estes últimos anos de ascensão do fascismo no Brasil. Anos difíceis, sem dúvida, mas que acabaram por se tornar matérias-primas de aprendizado e amadurecimento individual. À minha grande família, especialmente aos meus pais, Luiz Geraldo e Maria do Amparo, porto seguro por muitos anos, que hoje em dia, com a sofrida inversão de papéis, me proporcionam a oportunidade de me tornar uma pessoa melhor e mais forte. À minha irmã Claudia, ao Cunhado Claudio e à sobrinha Marcelle, por me acolherem generosamente na masmorra, onde pude me dedicar quase sossegada à leitura necessária para a escrita deste trabalho. À minha irmã Rita que, mesmo com toda minha impaciência, foi solícita e firme em cumprir o papel de administradora logística das idas e vindas à Marília. Sem essa ajuda, nada disso seria possível. À amiga niteroiense Monique, que por estas coincidências da vida, se mudou para Marília meses antes de eu iniciar o curso na UNESP e que me acolheu em seu “cafofo”. Às primas-amigas Marta e Fabiana, parceiras fiéis na leitura de mundo, na troca de ideias, na escuta e nos programas culturais que me tiravam da solidão da masmorra nesses últimos dois anos. À Fabiana agradeço também pela primorosa (prima-amorosa) revisão deste trabalho. Às pessoas amigas, antigas e novas, de perto e de longe, presenciais ou aquelas que só consigo ver e falar pela internet, em especial à Giselle Mendes, quem me deu a dica do edital do PROFSOCIO 2018. Às pessoas companheiras e camaradas de labuta e luta na educação pública estadual do Rio de Janeiro, em especial, às amigas Lídice Guerrieiro e Bruna Lucila. Agradeço às amigas e amigos de luta do CEAPJ, pois com nosso grupo heterogêneo e animado, vamos superando e nos fortalecendo nas batalhas diárias (e nas risadas) do magistério público estadual. Preciso registrar e agradecer o apoio da Profª. Ana Conde, diretora geral da unidade escolar onde leciono, que, num contexto assustador de desmonte e de falta de sensibilidade por parte da gestão estadual, sempre me deu força durante o curso de mestrado, além de apoiar minhas ideias pedagógicas malucas (só gostaria de registra que esse apoio tem que ser uma prática comum para todo o corpo docente). 7 A Cuba, a ilha, por me fazer continuar acreditando no socialismo e ao Cuba, parceiro de mesa de bar, de tretas e de alcova, meu céu e meu inferno. Às amigas Rafaela, Shirley e Stella, “malucas” como eu, mulheres especiais com as quais partilho as angústias e as conquistas da vida adulta. Com elas posso ser eu mesma e partilhar as ideias e os sentimentos mais vis, sem me sentir uma ET. Ao amigo Zé, companheiro de longa data, um dos poucos homens que me ouvem com atenção e valoriza de verdade o que tenho a dizer, mesmo que discordemos veementemente na maioria das vezes. A todas as outras pessoas amigas que me inspiram, cada uma à sua maneira, e àquelas que facilitam a minha vida pelo simples fato de existirem. Agradeço muitíssimo às muitas pessoas amigas que contribuíram financeiramente nas minhas viagens a Marília. Aos amigos e parceiros do NuCiNi, Miguel Vasconcellos e Guilherme Ornellas, pela honra de termos promovido a defesa dos direitos humanos por meio do audiovisual brasileiro na nossa amada cidade de Niterói. À gestão do Prefeito Rodrigo Neves por tudo o que fez por esta mesma cidade. Às professoras e professores do PROFSOCIO UNESP Marília, em especial ao Prof. Paulo Eduardo Teixeira, pela serena e ao mesmo tempo firme orientação. Às/aos colegas do mestrado, pelas ideias trocadas. Às Professoras e amigas Anita Handfas e Julia Polessa Maçaira, ambas da Faculdade de Educação da UFRJ, guerreiras na promoção do debate sobre o ensino da Sociologia no Rio de Janeiro e na árdua defesa da educação pública de qualidade. À Professora Miriam Leite, da Faculdade de Educação da UERJ, por ter me mostrado um caminho rumo à vida acadêmica comprometida socialmente. À molecada estudante que me formou, forma e continuará formando na professora que sou, muito obrigada! 8 Eu adoro essa parte! A luz vai se apagando devagarzinho. O mundo lá fora vai se apagando devagarzinho. Os olhos da gente vão se abrindo e daqui a pouco a gente num vai nem mais lembrá que tá aqui." Lisbela, em Lisbela e o Prisioneiro1 Cena do cinema com Douglas “Otro mundo és possible”.2 EZLN 1 Dirigido por Guel Arraes, 2003, Brasil. Comédia. Duração: 106 minutos. Livre para todos os públicos. 2 Nome original: Autonomia Zapatista – Otro Mundo és Possible. Escrito por Cristina Híjar e dirigido por Juan E. García, 2009, México. Documentário. Duração: 70 minutos. 9 RESUMO O presente trabalho tem por objetivo apresentar às professoras e professores que lecionam Sociologia na educação básica algumas possibilidades de uso de filmes como ferramenta pedagógica para a abordagem da temática “gênero e direitos das mulheres” a partir de suas respectivas narrativas, relacionando-as com conceitos e teorias de autoras das Ciências Sociais. Foram selecionados cinco filmes contemporâneos de curta e média metragem, concebidos e realizados por mulheres brasileiras, que abordam algumas das principais pautas do movimento feminista contemporâneo, inclusive algumas demandas do feminismo interseccional. Utilizando a metodologia Tela Crítica proposta por Giovanni Alves (2010), são apresentados relatórios de análises dos filmes, as quais, por sua vez, foram feitas sob a perspectiva teórica do feminismo decolonial. São apresentadas também discussões acerca da relação entre juventude e escola, gênero e direitos das mulheres, ensino de Sociologia e cinema e educação. Acredita-se que ensinar/estudar gênero e direitos das mulheres na escola a partir de filmes pode vir a contribuir para que as e os estudantes percebam a necessidade da promoção da igualdade de gênero em suas mais variadas dimensões, além de alertar sobre a obrigação coletiva de se combater as diversas formas de violência impostas às mulheres. Palavras-chave: cinema e educação; estudos de gênero; ensino de Sociologia; Tela Crítica. 10 ABSTRACT This research aims at presenting to Sociology school teachers some possibilities for the use of movies as a pedagogical tool to discuss the topic “gender and women’s rights”, relating its narratives to concepts and theories of female authors in Social Sciences. Five contemporaneous movies were selected, both short and average feature movies, all planned and directed by Brazilian women. They focus on some of the main issues of feminism, including intersectional feminism. According to the “Tela Crítica” methodology, proposed by Giovanni Alves (2010), we present analytic reports about these movies, based on the decolonial feminism perspective. Discussions about the relations among youth and school, gender and women’s rights, the teaching of Sociology, cinema and Education are also presented. We believe that teaching/studying gender and women’s rights through movies can contribute to the perception, by students, that it is necessary to promote gender equality in its various dimensions. Moreover, it can help call attention to the collective obligation of fighting against the different kinds of violence women suffer. Key words: cinema and education; gender studies; teaching of Sociology; Tela Crítica. 11 SUMÁRIO Apresentação ........................................................................................................................... 11 Introdução ................................................................................................................................. 17 Capítulo 1: A temática “gênero” no ensino de Sociologia ...................................................... 30 1.1. Gênero: uma categoria de e em análise ............................................................. 30 1.2. A discussão de “gênero” na escola e na Sociologia: ideologizar o que já é ideológico ................................................................................................................. 37 Capítulo 2: Cinema, Educação e Ensino de Sociologia............................................................ 44 2.1. Caminhos percorridos............................................................................................44 2.2. Cinema, ensino de Sociologia e feminismo: possibilidades de interfaces.............46 2.3. Tela Crítica – A metodologia.................................................................................55 Capítulo 3: Mulheres na frente e atrás das telas........................................................................61 3.1. Filmografia.............................................................................................................62 3.2. Relatórios de análises críticas dos filmes...............................................................69 Considerações Finais ................................................................................................................95 Referências bibliográficas ........................................................................................................98 12 Apresentação “É esse!”. Foi a primeira coisa que passou pela minha cabeça quando li, em meados de janeiro de 2018, o edital de seleção para a formação da primeira turma do Mestrado Profissional de Sociologia em Rede Nacional - PROFSOCIO. Ao tomar conhecimento da área de concentração do curso, vislumbrei a possibilidade de unir meu antigo desejo - e necessidade - de pesquisar de maneira mais aprofundada questões relativas ao Ensino de Sociologia na educação básica à minha prática profissional. Até então não conseguia ficar seduzida em fazer essas duas discussões descoladas, uma característica presente nos programas acadêmicos de Sociologia ou de Educação e nas linhas de pesquisa que tive oportunidade de conhecer. Sentia a necessidade de fazer as duas discussões concomitantemente e com enfoque na prática docente, como é o caso dos programas de mestrado profissional. Dessa forma, mesmo com todas as dificuldades práticas e de logística que se apresentavam, resolvi aproveitar o pequeno prazo de um mês desde que soube do processo seletivo para escrever a carta de intenções, preparar a documentação e fazer as leituras indicadas para a realização da prova escrita em Marília, aonde cheguei em fevereiro de 2018 exausta, depois de uma longa e desgastante viagem. Após a prova fiquei desanimada e descrente de minha aprovação. Contudo, ao saber que tinha passado para a entrevista, renovei a motivação e em abril, já matriculada, parti na viagem de cerca de 1.800 km Niterói-Marília- Niterói para a aula inaugural. A partir dela, a viagem passou a fazer parte da minha rotina semanal. A solenidade de abertura contou com a presença e a palavra da Profª. Dra. Sueli Guadelupe de Lima Mendonça, coordenadora do polo; do Prof. Dr. Marcelo Tavella Navega, diretor da Unidade; e do Prof. Dr. Marcos Tadeu Del Roio, coordenador do Programa de Pós-Graduação em Ciências Sociais - PPGCS da FFC. Na ocasião, foi ministrada a palestra ProfSocio e a Formação de Professores: compromisso político e acadêmico, ministrada pela Professora Sueli. No dia seguinte, tivemos o nosso primeiro de muitos sábados de aula. No primeiro semestre de 2018, as manhãs de sábado eram reservadas à disciplina Metodologia de Pesquisa, ministrada pela Profª. Maria Valéria Barbosa, que nos propôs 13 discutir o processo de organização da pesquisa, bem como de nossos respectivos projetos e suas etapas de elaboração. Muitas vezes submetemos os nossos objetos à discussão coletiva, o que foi enriquecedor, afinal, a maioria de nós era composta por professoras e professores que já atuam na educação básica e que, por isso, têm muitas reflexões em comum e outras tantas experiências específicas. A Profª. Valéria também contribuiu ao nos fazer debruçar sobre elaboração de nossos respectivos projetos de dissertação, de intervenção didática ou de materiais didáticos ou instrucionais. Foi nessa disciplina que, pela primeira vez, ouvi falar sobre as epistemologias do sul3 como possibilidade de análise teórica e científica a partir de grupos históricos, social e culturalmente dominados. Como a bibliografia era vasta e demandava uma grande carga de leitura, nos dividimos em grupos para a realização de seminários sobre metodologia científica e suas abordagens mais relevantes, além das principais técnicas de coleta de dados, análise e interpretação dos referidos dados. Participei do grupo Métodos e Técnicas de Pesquisa Qualitativa. Mais uma “primeira vez” proporcionada pela disciplina: construir um trabalho coletivo feito à distância, por meio do Google Drive. Já em Teorias e práticas do teatro e a sala de aula: recursos e possibilidades, ministrada pela Profª. Ana Paula Cordeiro, fomos apresentados à concepção de arte teatral por meio de jogos teatrais, inspirados no Teatro do Oprimido, de Augusto Boal (1991), além de exercícios de movimento e de processo lúdico. Tenho que assumir que me inscrevi na disciplina apenas por causa do horário favorável; contudo, as tardes de sábado se revelaram uma valiosa experiência teórica, como também de expressão corporal, que me fizeram compreender o teatro como importante recurso pedagógico voltado a uma formação que extrapola a fragmentação do conhecimento e que fornece condições para o trabalho de temas relevantes da Sociologia. Por meio da indissociabilidade entre teorias, das quais nos aproximamos de Ernest Ficher (1971), que propunha a discussão da arte como conhecimento, elaborei em conjunto com a colega de turma Danielle Marreira Dantas e da professora da rede municipal do Rio de Janeiro, Patricia G. Oliveira Rodrigues, um trabalho de análise do filme 3“A expressão Epistemologias do Sul é uma metáfora do sofrimento, da exclusão e do silenciamento de povos e culturas que, ao longo da História, foram dominados pelo capitalismo e colonialismo. Colonialismo, que imprimiu uma dinâmica histórica de dominação política e cultural submetendo à sua visão etnocêntrica o conhecimento do mundo, o sentido da vida e das práticas sociais. Afirmação, afinal, de uma única ontologia, de uma epistemologia, de uma ética, de um modelo antropológico, de um pensamento único e sua imposição universal”. Fonte: http://www.scielo.mec.pt/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S1645-72502009000100012 acessado em 20 de outubro de 2019. http://www.scielo.mec.pt/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S1645-72502009000100012 14 Como faz para lavar, de Charles Pereira e Hiago de Freitas, aliando-o à discussão sobre o direito à identidade racial e o combate ao racismo. Tal texto foi submetido à seleção de trabalhos e, depois de aprovado, foi apresentado no 6º Encontro Estadual de Ensino de Sociologia - ENSOC, realizado pelo Laboratório de Ensino de Sociologia Florestan Fernandes - LABES em setembro de 2018, na UFRJ. Para fechar o primeiro semestre de aulas, em julho de 2018, tivemos a experiência de passar quatro dias inteiros imersos na UNESP Marília para termos acesso à disciplina Teoria das Ciências Sociais I, ministrada pelo Prof. Fabio Ocada. A disciplina procurou apresentar conexões entre indivíduo e sociedade sob diferentes modelos analíticos da Sociologia contemporânea, os processos de socialização e a gênese do sujeito social de acordo com diferentes abordagens teóricas, além de apresentar perspectivas, indicadores e múltiplas formas de (re)produção de desigualdades sociais. Neste sentido, discutimos autores clássicos como Karl Marx e Max Weber, além de Wright Mills, Walter Benjamin, Pierre Bourdieu e representantes do pensamento social brasileiro, como Florestan Fernandes, Otavio Ianni, José de Souza Martins, dentre outros. Mesmo com uma dinâmica pesada de discussão teórica e reflexões acerca da realidade política, econômica e educacional do Brasil, a disciplina contribuiu significativamente para a construção do referencial teórico do meu trabalho. O segundo semestre de 2018 obedeceu a uma dinâmica bem parecida com a do período anterior. Tivemos contato com duas disciplinas aos sábados, alternando entre Metodologia de Ensino e Teoria das Ciências Sociais II, além da disciplina Sociologia da Educação, concentrada em quatro dias do mês de dezembro. Em Metodologia de Ensino, a Profª. Sueli Guadelupe de Lima Mendonça tinha por objetivo nos subsidiar teoricamente em nossas respectivas práticas docentes, tanto na dimensão sociológica, quanto na pedagógica. Sendo assim, começamos por discutir a trajetória e os desafios da Sociologia, fazendo um retrospecto histórico da disciplina na educação básica, levando-se em consideração as diferentes concepções e disputas. Tivemos acesso também às discussões sobre currículo e materiais didáticos, além dos documentos que normatizam a educação brasileira, como as Orientações Curriculares Nacionais – OCNs, a Base Nacional Comum Curricular – BNCC e o Plano Nacional do Livro Didático - PNLD. Por fim, fizemos uma interessante discussão sobre aprender a ensinar Sociologia e as diferentes tendências pedagógicas e práticas educativas. Como produto das discussões, a 15 professora Sueli nos exigiu dois trabalhos que demandaram tempo para leitura, reflexão e sistematização. Apesar de ter ficado contrariada com a demanda que, a princípio, julgava exagerada, a realização dos trabalhos - que consistiam na análise de livros didáticos e na elaboração de uma sequência didática (escolhi fazê-la sobre Movimentos Sociais) - muito contribuiu para minha formação e reflexão sobre a prática docente. Cabe ressaltar que o trabalho no qual analisamos a abordagem da temática “gênero e direitos das mulheres” em dois livros aprovados pelo PNLD Sociologia, escrito em parceria com a colega Juliana Miranda Zasciurinski, foi enviado, aprovado e apresentado no Encontro Nacional de Ensino de Sociologia na Educação Básica - ENESEB, na Universidade Federal de Santa Catarina - UFSC, em julho de 2019. Já sobre o segundo trabalho, aproveitei parte dele para escrever um artigo que foi aprovado e publicado na Revista Perspectiva Sociológica do Departamento de Sociologia do Colégio Pedro II, sob o título Os sambas-enredo da Mangueira e da Vila Isabel 2019 como recurso pedagógico nas aulas de Sociologia do ensino médio. Outra versão deste mesmo trabalho foi apresentada no I Seminário Ciências Sociais e Educação, realizado em maio, na UERJ. Ambos os trabalhos também contêm reflexões que fiz a partir da leitura dos textos indicados pelo Prof. Marcelo Totti na disciplina Sociologia da Educação. A leitura de parte das obras de Florestan Fernandes, Gaudêncio Frigotto, Nadir Zago, Michael Apple, José Clovis Azevedo, além da análise sobre O Manifesto dos Pioneiros da Educação, constam tantos dos trabalhos como do texto da dissertação que seguirá esta apresentação. A disciplina propôs o estudo da educação como objeto de pesquisa da Sociologia nas teorias clássicas e contemporâneas. Pretendeu, ainda, garantir o desenvolvimento de instrumentos teórico- metodológicos para os professores compreenderem o espaço da sala de aula e as dinâmicas das escolas e para propiciar a atualização dos debates a respeito dos temas emergentes nas pesquisas sobre escola e sistemas de ensino. O mesmo aconteceu com as leituras e reflexões sobre cultura, identidade e juventude sob a perspectiva dos estudos culturais, que teve como maior referência o sociólogo jamaicano Stuart Hall, além de outras referências da Antropologia, atividades realizadas por meio da disciplina Teoria das Ciências Sociais II. A disciplina teve por objetivo nos fornecer elementos para a inclusão de conteúdos e pontos de vista antropológicos nas aulas de Sociologia no Ensino Médio. Tanto a Profª. Lidia Possas, quanto o Prof. Daniel Lopes nos 16 proporcionaram importante debate sobre aquelas e tantas outras questões bastante pertinentes, como a perspectiva decolonial da análise do conceito de gênero, que acabei por adotar em meu trabalho. Em Teoria das Ciências Sociais III, ministrada pelo Prof. Jefferson Rodrigues Barbosa, em julho de 2019, nos dedicamos aos estudos voltados à compreensão da dimensão dos fenômenos políticos na sociedade brasileira contemporânea, com ênfase na dialética dos conflitos entre Estado e sociedade, nas práticas políticas em sua dimensão histórica e nas ações organizadas no âmbito da sociedade civil, no sentido da ampliação e transformação no campo da democracia e da conquista de direitos de cidadania. Cabe ressaltar, por fim, as contribuições da disciplina Cinema, audiovisual, práticas e projetos, ministrada pela Professora Eliany Salvatierra Machado, do Programa de Pós- Graduação em Cinema – PPGCine do Instituto de Comunicação Social da Universidade Federal Fluminense - UFF, que cursei como aluna externa e da qual requeri aproveitamento de créditos. A proposta da disciplina é analisar o papel do cinema na educação e levantar questões como: o que pode o cinema fazer pela educação? O cinema tem um papel no processo educativo? A proposta é, a partir das teorias já sistematizadas pelo campo do cinema, refletir sobre qual cinema estamos propondo para a educação. Com relação ao campo da educação, o objetivo é identificar, nas Diretrizes Curriculares Nacionais – DCNs, quais são as orientações para as escolas no que diz respeito à organização, articulação, desenvolvimento e avaliação de suas propostas pedagógicas, observando as indicações com relação ao ensino de Arte, as quais pretendi articular com o Ensino de Sociologia. A disciplina analisou, também, projetos que atuam no campo emergente denominado Cinema e Educação e pretendeu identificar os pressupostos, objetivos e procedimentos. Neste sentido, Stam (2003), autor sobre o qual nos debruçamos com afinco durante o curso, contribuiu para a reflexão quando me apresentou uma visão abrangente, mas bastante pessoal, de acordo com ele próprio, da teoria do cinema. Segundo ele, “a evolução da teoria do cinema não pode ser narrada como uma progressão linear de fases e movimentos. O perfil da teoria varia conforme o país e a época, e movimentos e ideais podem ser convergentes em lugar de sucessivos ou mutuamente excludentes” (STAM, 2003, p. 16). Vale mencionar o meu ingresso, em abril de 2019, no Programa Institucional de Bolsas de Iniciação à Docência - PIBID UFRJ, na modalidade Professora Supervisora. Em 17 alguns meses de atividade, participei de reuniões semanais com as estagiárias e com a coordenação do programa. Participei também do Seminário de Abertura realizado no Instituto de Filosofia e Ciências Sociais – IFCS UFRJ, em abril, e da 10ª Semana de Integração Acadêmica – SIAc UFRJ, em outubro de 2019, na qual foram apresentados trabalhos (no formato e-posters) pelas pidibianas, sob minha orientação e supervisão. Por fim, cabe citar minha participação nas oficinas e nas reuniões preparatórias para a I Olimpíada de Sociologia do Rio de Janeiro, promovida pela unidade regional do Rio de Janeiro da Associação Brasileira de Ensino de Ciências Sociais – ABECS - e na própria Olimpíada, ocasião em que orientei uma equipe de oito estudantes do C.E. Antonio Prado Junior, que obteve a segunda colocação num total de 26 escolas participantes. Tanto a menção ao PIBID Sociologia UFRJ quanto a realização da Olimpíada devem-se à relevância dessas atividades para o campo no qual estamos todas/todos inseridas/os. 18 Introdução O presente trabalho, intitulado “MULHERES NA FRENTE E ATRÁS DAS TELAS - Gênero e direitos das mulheres no ensino de Sociologia: possibilidades de abordagem a partir de filmes”, tem por objetivo apresentar às professoras e professores que lecionam Sociologia na educação básica algumas possibilidades de uso de filmes como ferramenta pedagógica para a abordagem da temática “gênero e direitos das mulheres”, a partir de suas respectivas narrativas, relacionando-as com conceitos e teorias de autoras das Ciências Sociais. Foram selecionados cinco filmes contemporâneos de curta e média metragem, concebidos e realizados por mulheres brasileiras, que abordam algumas das principais pautas do movimento feminista contemporâneo, inclusive algumas demandas do feminismo interseccional. Utilizando a metodologia Tela Crítica, proposta por Giovanni Alves, são apresentados relatórios de análises dos filmes, que, por sua vez, foram feitas sob a perspectiva teórica do feminismo decolonial. Os filmes selecionados são: As minas do rap, de Juliana Vicente; Kbela, de Yasmin Thayná; #MENINAPODETUDO, do Coletivo ÉNóis; Mucamas, do Coletivo Nós, Madalenas; Ou isso ou aquilo, de Hadija Chalupe e Raquel Stern. A escolha pelo tema deu-se pela compreensão da importância e da necessidade de tal discussão com jovens estudantes do Ensino Médio para que elas e eles percebam a invisibilidade histórica, social e cultural imposta às mulheres, inclusive como sujeitas das ciências. Acredita-se aqui que ensinar/estudar gênero e direitos das mulheres na escola a partir de filmes pode vir a contribuir para que as e os estudantes percebam a necessidade da promoção da igualdade de gênero em suas mais variadas dimensões, além de refletir sobre a obrigação coletiva de combater as diversas formas de violência impostas às mulheres. O debate em torno de temas relacionados ao feminino do significado de ser mulher, inclusive na escola, propõe-se a buscar a igualdade, o respeito e a quebra de estereótipos que limitam a mulher. Contudo, é importante dizer que há estereótipos que atingem também o gênero masculino, o que tem como consequência a chamada masculinidade tóxica, que se refere a uma série de ideias associadas ao que significa ser homem. Algumas dessas características são, por exemplo, o bloqueio para falar sobre sentimentos, o desprezo a comportamentos que transmitam fragilidade, a necessidade de mostrar coragem a qualquer custo, baseada na crença de que isso lhes confere status e poder, além do uso abusivo de bebidas alcoólicas e outras drogas, o autocontrole das emoções afetivas, reações impulsivas e agressivas, inclusive com o 19 uso de violência física diante da percepção de ameaças e/ou conflitos, entre outros aspectos comumente associados à virilidade. São apresentadas também discussões acerca da relação entre juventude e escola, gênero e direitos das mulheres, ensino de Sociologia e cinema e educação. Como referencial teórico na discussão de gênero e direitos das mulheres nas análises dos filmes selecionados, privilegiarei o diálogo com autoras das Ciências Sociais que mantêm a perspectiva decolonial das teorias feministas, nas quais o conceito de gênero se apresenta como uma variante analítica e como elemento constitutivo das relações sociais, desmontando o universalismo das teorias dominantes (mecanismos políticos, acadêmicos e cognitivos) e a visão eurocêntrica que desautoriza e condena às margens outras opções “não ocidentais”, impedindo e silenciando a existência do conhecimento (POSSAS; LOPES, 2018 apud ACHARYA; BUZAN, 2007). Ao adotar tal perspectiva, tentei me distanciar da natureza androcêntrica, heterossexual e patriarcal da produção do conhecimento. Tais discussões constituem o capítulo 1 do trabalho, mas estarão presentes, principalmente, nas análises dos filmes propriamente ditas. No capítulo 1 constará ainda a discussão sobre a presença da temática “gênero” nos documentos oficiais que regem a educação brasileira e no ensino da Sociologia na educação básica, com enfoque no estado do Rio de Janeiro, onde atuo como professora efetiva desde 2005. Quanto ao uso de filmes como ferramenta pedagógica, parto da ideia de que eles são capazes de nos levar a perceber aspectos da vida cotidiana de maneira crítica e poética ao mesmo tempo. Dessa forma, é preciso ressaltar que cada uma e cada um de nós aprende a ler imagens antes mesmo de conseguir expressar-se acerca delas; nesse sentido, aqui cabe uma alusão a Paulo Freire, ao afirmar que “a leitura de mundo precede a leitura da palavra” (FREIRE, 1989, p. 9). Sendo, portanto, imagem em movimento permeada por uma narrativa, o filme, quanto tomado como mediador do conhecimento na escola ou por meio dela, pode adquirir dupla função: seja como fonte, seja como objeto de estudo. Sem pretender fazer o resgate da historiografia do cinema, vale lembrar que ele foi criado em fins do século XIX e acabou por se tornar um dos símbolos da sociedade contemporânea, adquiriu status de bem cultural e passou a ser chamado de “a sétima arte”. Neste sentido, o capítulo 2 propõe-se a apresentar a discussão sobre Cinema e Educação e o uso do filme como ferramenta pedagógica na educação brasileira em geral, mas mais 20 especificamente no e a partir do ensino da Sociologia. Neste capítulo, apresentaremos a metodologia Tela Crítica, de Giovanni Alves (2010), autor que é a principal referência metodológica na produção de relatórios de análise dos filmes, fruto material deste trabalho, tendo em vista o caráter profissional do Programa de Pós-graduação em Sociologia - PROFSOCIO. Alves considera o filme “não apenas como representação ideológica ou projeção subjetiva, mas como reflexo estético da vida social. É esta peculiaridade da obra de arte realista que dá legitimidade à proposta do cinema como experiência crítica” (ALVES, 2010, p. 11). Segue afirmando que o uso do cinema como exame crítico “visa formar sujeitos humanizados capazes de resgatar o sentido da experiência humano-genérica desefetivada pela relação-capital” (ALVES, 2010, p. 12). Ainda no capítulo 2, propomos uma brevíssima discussão sobre a Lei Nº. 13.006, de 26 de junho de 2014, que acrescenta o § 8 ao artigo 26 da Lei nº 9.394/96 - Lei de Diretrizes e Bases da Educação – LDB, o qual estabelece que “a exibição de filmes de produção nacional constituirá componente curricular obrigatório complementar integrado à proposta pedagógica da escola, sendo a sua exibição obrigatória por, no mínimo, 2 (duas) horas mensais” (BRASIL, 2014). O capítulo 3, intitulado Mulheres na frente e atrás das telas, consiste na apresentação de relatórios de análises críticas dos filmes selecionados, relacionando-os aos conceitos, teorias e autoras que discorrem sobre gênero e feminismo produzido no campo das Ciências Sociais, sob a perspectiva decolonial. Há de se ressaltar que a pesquisa está inserida no campo Ensino de Sociologia e, portanto, antes de entrar nas questões específicas do trabalho, procuro contextualizá-lo, proponho uma Sociologia da Sociologia Escolar, que apresento nos parágrafos a seguir. Florestan Fernandes, no Simpósio de Problemas Educacionais, realizado no Centro Regional de Pesquisas Educacionais de São Paulo, em setembro de 1959, afirmou que o problema central colocado aos cientistas sociais que atuam no campo da educação incide em encontrar meios para ajustar a capacidade de intervenção aos recursos fornecidos pelo conhecimento científico e aos requisitos ou às exigências da vida moderna. Dessa forma, para 21 o autor, o grande dilema da educação brasileira é que ela está atrelada a um modelo educacional colonial e que seria necessário romper com esse sistema servil para haver avanço na área. Sendo assim, o autor defende a introdução da ciência numa perspectiva educacional: desde a escola deve-se aprender a fazer ciência. Em outro trabalho, Florestan Fernandes (1954) assegurou que o cientista precisa tomar consciência da utilidade social e do destino prático reservado às suas descobertas; dessa forma, sobre a presença da Sociologia na educação básica, afirma: [...] o ensino da sociologia no curso secundário representa a forma mais construtiva de divulgação dos conhecimentos sociológicos e um meio ideal, por excelência, para atingir as funções que a ciência precisa desempenhar na educação dos jovens na vida moderna (FERNANDES, 1954, p. 89). Diz ainda que o objetivo do ensino da Sociologia deve ser, [...] antes de tudo, munir o estudante de instrumentos de análise objetiva da realidade social; mas também, complementarmente, o de sugerir-lhes pontos de vista mediante os quais possa compreender o seu tempo, e normas para construir a sua atividade na vida social (FERNANDES, 1954, p. 91). A delimitação do que seja a finalidade da Sociologia na educação básica apresentada por Florestan Fernandes inspira e é referência para autoras e autores contemporâneos que atuam na área, inclusive eu mesma. Em minha monografia apresentada ao fim do Curso de Especialização Saberes e Práticas na Educação Básica, modalidade Ensino de Sociologia – CESPEB UFRJ - apresentei uma análise de como foi/foram criada(s) a(s) identidade(s) da disciplina a partir da percepção de professoras e professores que atuavam na rede estadual do Rio de Janeiro.4 Na ocasião, propus cinco tipos ideais (WEBER, 1999) de professoras e professores de Sociologia: 1) professora(o) descomprometida(o); 2) professora(o) revolucionária(o); 3) professora(o) erudita(o); 4) professora(o) cidadania; 5) professora(o) desnaturalizador/a. Ao contrastar estes tipos ideais com as falas de professoras e professores entrevistadas(os) constatei que alguns tipos confirmam-se na realidade obsevada, outros não, mas, na maioria das vezes, se fundem apresentando características de todos e/ou quase todos (NEVES, 2015, pag. 89). Vale ressaltar que o quinto tipo ideal, ou seja, a(o) professora(o) desnaturalizador/a, é o que mais se aproxima da minha prática docente e o que entendo ser o objetivo do ensino da 4 A monografia foi apresentada para obtenção do título de especialista do Curso de Especialização em Saberes e Práticas na Educação Básica – CESPEB UFRJ, modalidade Ensino de Sociologia, que depois ganhou versão publicada em capítulo de livro (HANDFAS; MAÇAIRA; FRAGA, 2015). 22 Sociologia na educação básica, pois acredito que as discussões, teorias, metodologias e recursos didáticos propostos pela disciplina fornecem às e aos estudantes do ensino médio ferramentas que lhes possibilitem uma compreensão crítica da realidade na qual estão inseridas/os. O principal objetivo da(o) professor(a) desnaturalizador/a seria levar a/o estudante a estranhar e problematizar o senso comum. Ao ser constituída dessa forma, a Sociologia escolar apresenta-se como uma ciência capaz de despertar e/ou estimular na/o estudante de ensino médio a “imaginação sociológica”, ou seja, (OCEM, 2006) a possibilidade de obter uma perspectiva compreensiva do mundo em que vive, ampliando o seu horizonte intelectual. Dessa maneira, a disciplina contribui para que as/os estudantes consigam perceber o espaço escolar como um espaço da ciência e, assim, sejam capazes de questionar as explicações tradicionais e religiosas do mundo, tidas como absolutas e inquestionáveis, assim como de amortecer os efeitos sedativos do discurso midiático sobre a realidade social. Nas palavras de Wright Mills, a “imaginação sociológica é uma qualidade que parece prometer mais dramaticamente um entendimento das realidades íntimas de nós mesmos, em ligação com realidades sociais amplas” (MILLS, 1969, p. 22). Cabe ressaltar que o despertar e/ou o desenvolvimento da imaginação sociológica contempla o texto da Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional – LDB 1996 quanto ao objetivo do ensino médio, explícito em seu artigo 35, que é justamente: [...] o aprimoramento do educando como ser humano, sua formação ética, desenvolvimento de sua autonomia intelectual e de seu pensamento crítico, sua preparação para o mundo do trabalho e o desenvolvimento de competências para continuar seu aprendizado (BRASIL, 1996). Dessa forma, partilho da posição de Sarandy (2007) quando afirma que “todos estes elementos são necessários para a formação de uma pessoa, de um cidadão e de um profissional, seja em que área for, consciente de sua posição, potencialidades e capacidade de ação” (SARANDY, 2007, p. 163). Já para o profissional da Sociologia, a obrigatoriedade do ensino da disciplina representa uma grande conquista no que diz respeito à abertura de mercado de trabalho e de legitimidade frente a outras disciplinas escolares. Contudo, o futuro próximo que se desenha para o Brasil, para a educação e para o ensino de Sociologia são rascunhos mal traçados de tempos passados, pois, decorridos mais de dez anos desde a aprovação da Lei Nº. 11.684 de 23 2008, que torna obrigatório o seu ensino (e também o de Filosofia) nas três séries do Ensino Médio, a efetivação, a legitimação e a permanência da disciplina estão longe de ser uma realidade, haja vista a recente aprovação da Reforma do Ensino Médio e da Base Nacional Comum Curricular - BNCC. Entrando em vigor em 2017, apenas um ano após a conclusão dos debates a respeito da BNCC, a Reforma do Ensino Médio se baseia no Projeto de Lei de Conversão 34/2016, oriundo da Medida Provisória 746/2016, de 22 de setembro de 2016, de autoria do presidente Michel Temer, que assumiu a presidência da República após o impeachment da Presidenta Dilma Rousseff, em 31 de agosto de 2016. Ou seja, a MP da Reforma do Ensino Médio foi assinada menos de um mês após o afastamento da presidenta eleita. Tal reforma apresenta-se como um conjunto de diretrizes com vistas à alteração da atual estrutura do Ensino Médio. Sancionada em fevereiro de 2017, a MP foi criada em setembro do ano anterior com a Medida Provisória Nº. 746, alterando a Lei nº 9.394 - Lei de Diretrizes e Bases da Educação – LDB, e a Lei nº 11.494 de 20 de junho 2007, que regulamenta o Fundo de Manutenção e Desenvolvimento da Educação Básica e de Valorização dos Profissionais da Educação – FUNDEB. Por ter sido apresentada como medida provisória, a reforma já surge com força de lei. Um primeiro problema já se apresenta aqui, pois tal medida não foi discutida pela sociedade. Os principais pontos da Reforma ou “Novo Ensino Médio”, como foi chamado pelo governo federal, são: 1) Aumento da carga horária; 2) Flexibilização do currículo, que leva as/os estudantes a terem que direcionar seus estudos a partir de “itinerários normativos” de cinco diferentes áreas (Linguagens, Matemática, Ciências da Natureza, Ciências Humanas e Sociais aplicadas e a Formação Técnica e Profissional); 3) Ênfase na preparação para o mercado de trabalho; 4) No currículo, mantém-se apenas Língua Portuguesa e Matemática como disciplinas obrigatórias, deixando todas as outras como “estudos e práticas”, sendo sua oferta definida pela BNCC; 5) No caso do itinerário de formação profissional, abre-se a possibilidade para que profissionais com “notório saber” ministrem os conteúdos. Já a BNCC do Ensino Médio foi enviada para análise do Conselho Nacional de Educação – CNE e, na sequência, submetida à discussão em audiências públicas on line num único dia (02/08/2018), chamado pelo governo de Michel Temer de “Dia D”. Sancionado em agosto de 2018, o documento ratifica que somente as disciplinas de Matemática e Língua Portuguesa seriam obrigatórias nas três séries do Ensino Médio e que as demais apareceriam 24 de forma “interdisciplinar”, organizadas por “competências” e “habilidades” e divididas em três áreas de conhecimento: Ciências Humanas, Ciências da Natureza e Linguagens e suas tecnologias. Diferente do que era previsto, o documento não detalha o que deverá ser ensinado nos itinerários formativos antevistos na reforma do ensino médio. Além da falta de ampla e aprofundada discussão, tanto da Reforma do Ensino Médio quanto da BNCC, há outras questões que merecem reflexão: Para Celso Ferretti, pesquisador aposentado da Fundação Carlos Chagas e ex- professor da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP), a organização por competências e a ênfase em Português e Matemática apontam claramente o direcionamento pautado pelos interesses do setor empresarial para a educação: uma formação voltada para as necessidades do mercado de trabalho. Para Ferretti, a implementação da BNCC deve significar um empobrecimento da educação ofertada aos estudantes do ensino médio5. Todavia, a despeito da conjuntura desfavorável para os rumos da educação brasileira, de maneira geral, e para o ensino de Sociologia, de maneira específica, no início de 2018 houve a concretização do Mestrado Profissional de Sociologia em Rede Nacional – PROFSOCIO e a formação das primeiras turmas, distribuídas em oito das nove instituições associadas6. A área de concentração do programa “Ensino de Sociologia” destaca a necessidade da compreensão da realidade social e educacional brasileira a partir das ferramentas teóricas, metodológicas e didáticas relacionadas com as três áreas que compõem as Ciências Sociais (Antropologia, Ciência Política e Sociologia). Dessa forma, o programa propõe o desenvolvimento de pesquisas sobre e para a docência da disciplina no Ensino Médio, uma reflexão detalhada acerca das(os) atrizes/atores sociais envolvidos neste campo, além de questões específicas relacionadas às/aos estudantes da educação básica. Nota-se um esforço das coordenações locais do programa em investir na produção acadêmica por parte das/dos discentes do curso, na construção de materiais didáticos e em propostas pedagógicas por quem está na ponta no processo, ou seja, professoras e professores que lecionam Sociologia na educação básica. Pode-se supor que a sistematização dessa produção e sua 5 Citado em http://www.epsjv.fiocruz.br/noticias/tag/base-nacional-curricular-comum. Acessado em 28 de janeiro de 2019. 6 Fundação Joaquim Nabuco (FUNDAJ); Universidade Estadual de Londrina (UEL); *Universidade Estadual de Maringá (UEM); Universidade Estadual do Vale do Acaraú (UVA); Universidade Estadual Paulista Júlio de Mesquita Filho (UNESP) – campus Marília; Universidade Federal de Campina Grande (UFCG) – campus Campina Grande; Universidade Federal de Campina Grande (UFCG) – campus Sumé; Universidade Federal do Ceará (UFC); Universidade Federal do Paraná (UFPR); Universidade Federal do Vale do São Francisco (UNIVASF). *Não ofertou turmas para 2018. http://www.epsjv.fiocruz.br/noticias/tag/base-nacional-curricular-comum 25 consequente socialização venham a contribuir para o fortalecimento do campo “Ensino de Sociologia”, ainda em formação. Sobre o referido campo de estudo, Handfas e Maçaira (2014) oferecem elementos importantes para a compreensão do estado da arte da produção científica sobre o ensino de Sociologia na educação básica. Segundo as autoras, essa produção cresceu a partir do momento em que se intensificaram os debates sobre o retorno da disciplina aos currículos escolares, no início da década de 2000, sem, contudo, ter sido “acompanhado de balanços críticos que possam fazer um diagnóstico, no sentido de levantar lacunas dessa produção” (HANDFAS; MAÇAIRA, 2014, p. 45). Além disso, as autoras questionam a própria condição do ensino de Sociologia na educação básica como objeto de estudo e sugerem que sejam desenvolvidas pesquisas que identifiquei como sendo uma proposta de incentivo à realização de estudos voltados à “Sociologia da Sociologia escolar”. Tais pesquisas contribuiriam nas reflexões sobre aprender a ensinar Sociologia na educação básica. Em outras palavras, indagamos se muitas das lacunas identificadas na análise não se devem à impossibilidade de tomar o ensino de sociologia na educação básica como objeto de estudo. Com efeito, as ciências sociais já atingiram um patamar de desenvolvimento, abrindo assim uma infinidade de possibilidades analíticas a partir de diferentes dimensões, sejam política, social ou educacional, o que nos faz levantar a hipótese de que as pesquisas sobre o ensino de sociologia na educação básica podem encontrar um campo bem mais fértil para o desenvolvimento e aprofundamento teórico-metodológico quando inseridas nas grandes temáticas já estabelecidas das ciências sociais. Essa é uma questão em aberto para a qual não temos a resposta, mas que os resultados da análise da produção acadêmica nos levaram a formular. Caberá agora às pesquisas seguintes sobre o estado da arte do ensino de sociologia na educação básica apresentar novos elementos para a análise. (HANDFAS & MAÇAIRA, 2014, págs. 56-57). Sobre os pressupostos metodológicos para o ensino de Sociologia na educação básica, as Orientações Curriculares Nacionais - OCN (Brasil, 2006) apontam que: [...] pode-se verificar que pelo menos três tipos de recortes são reiterados nas propostas construídas para o ensino de Sociologia no nível médio e encontráveis nos parâmetros curriculares oficiais, nos livros didáticos e mesmo nas escolas. São eles: conceitos, temas e teorias (BRASIL, 2006, p. 117). [...] o recurso aos temas visa a articular conceitos, teorias e realidade em que se vive. A ideia de recorte aqui não significa “colcha de retalhos” nem fragmentos, mas uma perspectiva de abordagem: há costura e composição, viabilizadas pela intervenção do professor com o auxílio das teorias e dos conceitos (BRASIL, 2006, p. 121). De acordo com o mesmo documento, a vantagem de adotar a abordagem por temas é evitar que as/os estudantes vejam a disciplina como algo que lhes é alheio, abstrato, árido, ou 26 apenas como mais uma disciplina no currículo, sem compreender, de fato, sua função. Já a desvantagem, segundo o documento, é a imposição ao/à professor/a de uma grande capacidade analítica e um amplo conhecimento da realidade, para não se correr o risco de cair na banalização e num senso comum melhorado. “Não se pode reduzir essa abordagem a coletar informações em jornais e revistas sobre esta ou aquela temática, pois é necessário fundamentar o debate em bases teóricas e construir um discurso sobre os temas com bases conceituais rigorosas” (BRASIL, 2006, p. 121). Dessa forma, o recorte de gênero e direitos das mulheres torna-se cada mais relevante, inclusive pela recente onda de aprovação, em diversas casas legislativas municipais, estaduais e no congresso nacional, de projetos ligados ao Programa Escola Sem Partido – PESP, que esquentaram a disputa histórica do espaço escolar como um campo político-ideológico. Percebe-se que tais projetos emergem como demonstração de força dos setores conservadores da sociedade no atual momento histórico, apresentando-se nos seguintes termos: (...) é um conjunto de medidas previstas num anteprojeto de lei elaborado pelo Movimento Escola sem Partido, que tem por objetivo inibir a prática da doutrinação política e ideológica em sala de aula e a usurpação do direito dos pais dos alunos sobre a educação moral dos seus filhos7. Visando a tal objetivo, o programa - fruto de um movimento político que age contra a educação, pois vê a escola como espaço de educação moral, pervertendo o sentido desta instituição - define uma série de diretrizes sobre o papel da professora e do professor em sala de aula. De acordo com Leite, Neves e Santos (2018) é possível observar que a questão de gênero é um dos pontos mais atacado pelo PESP. Entre as muitas outras questões problemáticas contidas nos projetos ligados ao PESP, está a suposição de que as/os estudantes são desprovidas/os de capacidade de reflexão e discernimento sobre a realidade social e, por isso, seriam alvo facilmente manipulável por docentes “esquerdistas”. Entretanto, a passividade juvenil pressuposta pelo PESP foi explícita e amplamente contestada nas entrevistas realizadas durante a pesquisa realizada pelo Grupo de Estudos sobre Diferença e Desigualdade na Educação Escolar da Juventude/DDEEJ, coletivo de pesquisa8 ao qual estive vinculada durante os anos de 2014 a 2016. Tal grupo desenvolvia pesquisa-ação9, num 7 https://www.programaescolasempartido.org/faq Acessado em 1 de setembro de 2018. 8 Coordenado pela professora Miriam Leite, do Programa de Pós-Graduação em Educação da Universidade do Estado do Rio de Janeiro, na linha de pesquisa Infância, Juventude e Educação. 9 Etapa empírica do projeto Diferença e desigualdade na educação escolar do jovem mais jovem: desconstruções, denominada O grêmio e outros espaços-tempos de diálogo político na escola: possibilidades 27 colégio da rede pública estadual, situado na zona norte da cidade do Rio de Janeiro, acompanhando estudantes e a comunidade escolar na reestruturação do grêmio estudantil, até então desativado. Tinha-se o intuito de investigar a formação e a participação política da juventude no âmbito da escola. Contudo, no decorrer da pesquisa, o grupo se deparou com o movimento de ocupação de escolas no Rio de Janeiro e decidiu-se incluir o movimento como objeto de nossa análise. Dessa forma, visitamos colégios ocupados espalhados por diferentes regiões do Grande Rio para conversar com as/os ocupantes. Os trechos das entrevistas a seguir, citados no artigo de Leite, Neves e Santos (2018), membros do referido coletivo de pesquisa, confrontam aquela suposição do Programa Escola Sem Partido: Acho que isso é até uma ofensa para os alunos, porque você querer dizer que não pode falar de um certo assunto em um colégio é você querer dizer que o aluno não tem a capacidade de pensar sozinho... Tipo... O professor tá ali só para me dar uma base... Pô, cara! Você não tem a capacidade de pensar sozinho? [...] A gente tá vivendo uma ocupação! Eu tenho a capacidade de desenvolver projetos, posições políticas, mesmo sendo novo, entendeu? (Estudante, 16 anos; Niterói apud LEITE; NEVES; SANTOS, 2018, p. 293). Na verdade, essa lei não é pra proteger aluno de... de ser doutrinado não. É pra proteger o aluno de ser consciente. Quer alienar mesmo. Querem eliminar todas as formas que a gente teria pra abrir a nossa mente, pra conhecer algo novo. (Estudante, 18 anos; zona norte, Rio de Janeiro apud LEITE; NEVES; SANTOS, 2018, p. 296). Os relatos dessas/es estudantes que participaram do movimento de ocupação de escolas no Rio de Janeiro, em 2016, mostram que muitas/os tomam a identidade juvenil como uma forma de resistência. Neste sentido, a reflexão proposta por Castells (1999) é apropriada ao afirmar que a “identidade de resistência” é criada por atores sociais que se encontram em desvantagens e estigmatizados pela lógica de dominação, criando barreiras para a sua sobrevivência com base em princípios diferentes que norteiam as instituições sociais. Neste sentido, entendemos que as/os estudantes usam a identidade juvenil como elemento de luta contra a opressão e a hostilidade que a escola e, no caso, o movimento do PESP, querem impor. Dessa forma, Leite, Neves e Santos (2018), afirmam que, para além dos fragmentos reproduzidos acima, o conjunto das falas registradas nas entrevistas é conclusivo: “o Programa Escola Sem Partido é mesmo ‘uma ofensa para os alunos’, que, quando não se contemporâneas, e desenvolvida com apoio financeiro da FAPERJ (Edital 36/2014 – Melhoria das Escolas Públicas). Ambos os projetos foram submetidos e aprovados pela CONEP-Comissão Nacional de Ética em Pesquisa, e os participantes nos colégios pesquisados e/ou seus responsáveis, quando foi o caso, concordaram com o Termo de Consentimento Livre e Esclarecido que apresentamos, também aprovado pela CONEP (parecer n. 624.354, de 10/4/2014 e n. 993.195, de 19/3/2015, respectivamente). 28 encontram limitados pelas estruturas escolares tradicionais, são capazes até mesmo de reinventar a própria escola” (LEITE; NEVES; SANTOS, 2018, p. 295). Tal constatação se aproxima das conclusões a que chega Dayrell (2007). O autor parte da reflexão sobre a condição juvenil atual, sua cultura, as demandas das/dos jovens e suas próprias necessidades para discutir as relações entre juventude e escola. Dayrell busca problematizar o lugar que a escola ocupa na socialização da juventude contemporânea, em especial dos jovens das camadas populares. Afirma ele: [...] a relação da juventude com a escola não se explica em si mesma: o problema não se reduz nem apenas aos jovens, nem apenas à escola, como as análises lineares tendem a conceber. Tenho como hipótese que as tensões e os desafios existentes na relação atual da juventude com a escola são expressões de mutações profundas que vêm ocorrendo na sociedade ocidental, que afetam diretamente as instituições e os processos de socialização das novas gerações, interferindo na produção social dos indivíduos, nos seus tempos e espaços (DAYRELL, 2007, p. 1106). Dayrell procura compreender as “práticas e símbolos da juventude como a manifestação de um novo modo de ser jovem, expressão das mutações ocorridas nos processos de socialização, que coloca em questão o sistema educativo, suas ofertas e as posturas pedagógicas que lhes informam” (DAYRELL, 2007, p. 1107). Assim, Dayrell, da mesma forma que Leite, Neves e Santos, propõe uma mudança do eixo da reflexão, “passando das instituições educativas para os sujeitos jovens, onde é a escola que tem de ser repensada para responder aos desafios que a juventude nos coloca” (DAYRELL, 2007, p. 1107). O autor nos leva a questionar em que medida a escola “faz” a juventude, uma vez que é imprescindível levar em consideração os conflitos e as contradições experimentadas pela/pelo jovem, ao se constituir como estudante num dia a dia escolar que não leva em conta a sua condição juvenil. Acreditamos que tanto a Sociologia da Sociologia Escolar como a presença da discussão de gênero sob a perspectiva dos estudos feministas a partir da Sociologia na escola básica possuem importante papel, uma vez que para elas (a ciência e a disciplina escolar), a crítica pode ser compreendida não apenas como o atributo de um método, teoria ou “escola” de pensamento, mas sim como uma questão de postura, muito bem colocada por Louro (1997): Coloca-se aqui, no meu entender, uma das mais significativas marcas dos Estudos Feministas: seu caráter político. Objetividade e neutralidade, distanciamento e isenção, que haviam se constituído, convencionalmente, em condições indispensáveis para o fazer acadêmico, eram problematizados, subvertidos, 29 transgredidos. (...) Pesquisadoras escreviam na primeira pessoa. Assumia-se, com ousadia, que as questões eram interessadas, que elas tinham origem numa trajetória histórica específica que construiu o lugar social das mulheres e que o estudo de tais questões tinha (e tem) pretensões de mudança (LOURO, 1997, p. 20). Este fazer científico “engajado” e preocupado em resistir às políticas de um Estado reacionário e autoritário que se instaurou recentemente no Brasil se alinha ao que Cunha e Totti mostraram quando analisaram o Manifesto dos Pioneiros da Educação Nova. Afinal, tal documento propunha um método científico que se distanciava: [...] da tradição intelectual especulativa, ensaística, genérica e abstrata, selando o início de uma nova era nas relações entre o discurso oriundo das ciências sociais e o trabalho pedagógico, propondo que as práticas educativas escolares fossem desenvolvidas por intermédio do conhecimento direto e objetivo da realidade social, no interior de um quadro analítico construído por novos recursos científicos. (CUNHA & TOTTI, 2002, p. 258). Por fim, cabe ressaltar que a pesquisa que desenvolvi no PROFSOCIO UNESP Marília levou em conta a atual conjuntura de disputa político-ideológica no Brasil e, por isso, posiciono-me de maneira diametralmente oposta à onda reacionária e conservadora que assola o país. Coloco-me cada vez mais academicamente e politicamente engajada na defesa do ensino público, que atende, majoritariamente, estudantes oriundas/os de camadas populares. Essas/es estudantes sofrem diariamente as consequências de uma sociedade dividida em classes sociais, com resquícios patriarcais e machistas, que relegam aos pobres, de maneira geral, e às mulheres, de maneira mais contundente, papéis de subalternidade, expondo-as a situações de violência, tanto simbólica (Bourdieu, 1998), quanto física. 30 Capítulo 1: A temática “gênero” no ensino de Sociologia Neste capítulo, procuro apresentar a discussão teórica de autoras com as quais faço um diálogo sobre o conceito de gênero – o que é, como se constrói, como ganha legitimidade nos meios acadêmicos e qual o sentido desse termo não só para os movimentos feministas, mas também para a produção de conhecimento. Além disso, faço a apresentação da perspectiva decolonial. Com base nessa discussão, parto para a contextualização da abordagem do tema na escola, a partir do Ensino de Sociologia. 1.1. Gênero: uma categoria de e em análise Gênero não pretende significar o mesmo que sexo. Enquanto sexo se refere à identidade biológica de uma pessoa a partir do órgão sexual, gênero está ligado à construção social de sujeitos masculinos e femininos. Neste sentido, Louro (1996) diz que, entendendo gênero fundamentalmente como uma construção social, e, portanto, histórica, teríamos que supor que esse conceito é plural, ou seja, haveria construções de identidade feminina e masculina social e historicamente diversas. A ideia de pluralidade implicaria admitir não apenas que sociedades diferentes teriam diferentes concepções de homem e mulher, como também que, no interior de uma mesma sociedade, tais concepções seriam diversificadas, conforme a classe, a religião, a raça, a idade, etc.; além disso, implicaria admitir que as ideias de masculino e feminino se transformam ao longo do tempo. Assim, o conceito de gênero busca se contrapor a todas as análises que se baseiam em argumentos essencialistas. Dessa forma, Louro aponta não para uma essência (natural, universal, imutável) feminina ou masculina, mas para o processo de construção ou formação histórica, linguística e socialmente determinadas e, então, múltiplas. A autora acrescenta que foi na década de 1980 que o conceito de gênero começou a ser utilizado por várias estudiosas feministas. Surgido pouco tempo antes, no contexto anglo-saxão, entrou nos meios acadêmicos brasileiros disputando espaço com os “estudos da mulher”, área que ainda sofria para impor sua legitimidade no campo universitário. Contribuindo na discussão sobre o conceito de gênero e identidade de gênero, Berenice Bento (2011) problematiza os limites das instituições sociais em lidar com os sujeitos que fogem às normas de gênero, procurando analisar, principalmente as respostas da escola às/aos estudantes que apresentam performances que fogem ao considerado normal. A 31 autora parte da discussão sobre transexualidade e travestilidade, afirmando que essas identidades revelam convenções sociais significativas sobre masculinidade e feminilidade. A autora aponta que, cotidianamente, as/os profissionais da saúde, juízas/es, advogadas/os, professoras/es, parlamentares, amigas/os e familiares são solicitados/as a se posicionar e encontrar sentidos para as demandas de pessoas que reivindicam o pertencimento ao gênero distinto daquele que lhes foi imposto culturalmente. Neste contexto, Bento usa a gravidez de uma mulher como uma ferramenta analítica para explicar a construção da identidade de gênero a partir da revelação do sexo biológico do feto. Segundo ela, conforme os meses de gravidez avançam, cresce a ansiedade para saber o sexo do bebê. Quando é, então, revelado, aquele ser que antes era uma abstração passa a ter concretude: O feto já não é feto, passa a ser um menino ou uma menina. Essa revelação evoca um conjunto de expectativas e suposições em torno de um corpo que ainda é uma promessa. Quando a criança nasce, encontrará uma complexa rede de desejos e expectativas para seu futuro, levando-se em consideração para projetá-la o fato de ser um/a menino/menina, ou seja, ser um corpo que tem um/a pênis/vagina. Essas expectativas são estruturadas numa complexa rede de pressuposições sobre comportamentos, gostos e subjetividades que acabam por antecipar o efeito que se supunha causa. Os brinquedos, as cores das roupas e outros acessórios que comporão o enxoval são escolhidos levando-se em conta o que seria mais apropriado e natural para uma vagina e um pênis. No entanto, como é possível afirmar que todas as crianças que nascem com vagina gostam de rosa, de bonecas, de brinquedos que não exigem muita força, energia e inteligência? Aquilo que evocamos como um dado natural, o corpo-sexuado, é resultado das normas de gênero. Como afirmar que existe um referente natural, original, para se vivenciar o gênero, se ao nascermos já encontramos as estruturas funcionando e determinando o certo e o errado, o normal e o patológico? O original já nasce “contaminado” pela cultura. Antes de nascer, o corpo já está inscrito em um campo discursivo. (BENTO, 2011, p. 550). Portanto, para a autora, “gênero” é o resultado de tecnologias sofisticadas que produzem corpos-sexuais. As observações da/o médica/o fazem parte de um projeto mais amplo que não antecede ao gênero, mas o produz. Assim, a suposta descrição do sexo do feto opera como um “batismo” que admite que um corpo (antes abstrato) adentre na categoria “humanidade”. Paul B. Preciado (2017) parte da crítica da distinção entre gênero e sexo para cunhar uma análise contrassexual: “a contrassexualidade é também uma teoria do corpo que se situa fora das oposições homem/mulher, masculino/feminino, heterossexualidade/homossexualidade. Ela define a sexualidade como tecnologia, e considera os diferentes elementos do sistema sexo/gênero denominados “homem”, “mulher”, “homossexual”, 32 “heterossexual”, “transexual’, bem como suas práticas e identidades sexuais, não passam de máquinas, produtos, instrumentos, aparelhos, truques, próteses, redes, aplicações, programas, conexões, fluxos de energia e de informação, interrupções, e interruptores, chaves, equipamentos, formatos, acidentes, detritos, mecanismos, usos, desvios... (PRECIADO, 2017, p. 22) Dentro da perspectiva feminista adotada neste trabalho, a finalidade do uso do conceito de gênero ao invés de sexo tem o intuito de contribuir para a desconstrução da ideia de um possível determinismo biológico sobre o que seria “ser mulher” e “ser homem”. Ao empregar a categoria gênero e ao destacar seu caráter social, a intenção é problematizar a posição inferiorizada da mulher na sociedade e, principalmente, problematizar o “ser mulher” e o “ser homem”. Assim, gênero é empregado como questionamento, como categoria que nos impõem colocar em xeque os sujeitos – culturais, sociais, históricos, políticos possuidores de direitos. Essa posição, contudo, ainda não nos afastaria inteiramente da criação de sujeitos universais e, por isso, o uso do conceito de gênero como categoria de análise é aqui submetido à perspectiva decolonial. O termo decolonial deriva de uma perspectiva teórica em que algumas/alguns autoras e autores defendem a possibilidade de suscitar reflexões e paradigmas a partir dos subalternizados pela modernidade capitalista. No bojo dessa perspectiva, surge a tentativa de construção de um projeto teórico voltado para o repensamento crítico e transdisciplinar, caracterizando-se também como força política para se contrapor às tendências acadêmicas dominantes de perspectiva eurocêntrica de construção do conhecimento histórico e social: A questão central num projeto de emancipação epistêmica é a coexistência de diferentes epistemes ou formas de produção de conhecimento entre intelectuais, tanto na academia, quanto nos movimentos sociais, colocando em evidência a questão da geopolítica do conhecimento [...], entende-se geopolítica do conhecimento como a estratégia da modernidade europeia que afirmou suas teorias, seus conhecimentos e seus paradigmas como verdades universais e invisibilizou e silenciou os sujeitos que produzem conhecimentos “outros”. Foi esse o processo que constituiu a modernidade que não pode ser entendida sem se tomar em conta os nexos com a herança colonial e as diferenças étnicas que o poder moderno/colonial produziu (OLIVEIRA; CANDAU; 2010, p. 23). Ao ser entendido dentro do olhar eurocêntrico-moderno, o conceito de gênero acaba limitando as relações de opressões pautadas apenas pelo olhar das desigualdades entre homens e mulheres, silenciando outras desigualdades como a de classe, de raça e de orientação sexual. De acordo com Sartore, Santos e Silva (2015), [...] o Feminismo Hegemônico do Norte e do Sul têm reproduzido a lógica de dominação instaurada com o colonialismo, tendo em vista que enxergam as 33 mulheres latino-americanas através dos olhos do colonizador branco, europeu, heterossexual e cristão. Isto ocorre quando as mulheres da América Latina são tratadas como objeto de estudos e não como sujeitas produtoras de suas experiências históricas, políticas e epistemológicas (SARTORE; SANTOS; SILVA, 2015, p. 92). Dessa forma, o feminismo decolonial tem realizado o revide epistêmico por meio de rupturas políticas e epistemológicas, indicando outro caminho possível na medida em que articula raça, etnia, classe e sexualidade como categorias constitutivas da colonialidade, propondo analisar a opressão de gênero, ligando-o a essas outras categorias a partir de uma epistemologia de fronteira. Para isso, levanta questões como “quem pode falar e por quem?”; “quem escuta?”; “como nos representamos e como representamos os ‘outros’?”, muito bem colocadas por Gayatri Spivak em Pode o subalterno falar? (2010). O feminismo decolonial propõe, enfim, a cisão com o feminismo estatal, institucional, branco e heterossexual para fazer uma leitura feminista a partir de mulheres negras, indígenas, pobres, lésbicas, trabalhadoras rurais e urbanas, militantes dos movimentos populares e comunitários, mulheres jovens, idosas, dentre tantas outras, levando em conta suas experiências, conhecimentos, necessidades e visões de mundo. Essas mulheres são protagonistas na frente e atrás das telas dos filmes que selecionei e cujas análises críticas apresento mais adiante. No entanto, não se trata de invalidar e deixar de lado o que já foi produzido no eixo epistêmico hegemônico (EUA-EUROPA). Afinal, ali se encontram importantes referências teóricas que, pela constituição do próprio campo de estudo e da construção do conceito de gênero, não podem ser ignoradas, como, por exemplo, as norte-americanas Joan Scott e Judith Butler. Joan Scott, historiadora feminista, contribuiu na discussão de gênero, quando escreveu seu célebre artigo Gênero: uma categoria útil de análise histórica (1995), publicado originalmente em 1986, texto que se tornou um clássico já na ocasião de sua publicação, sendo indiscutível sua influência não só nos EUA, como em todo o ocidente. Nele, Scott associa a categoria gênero aos limites das correntes teóricas do patriarcado, do marxismo e da psicanálise para explicar a subordinação da mulher e a dominação dos homens. A autora analisa o gênero como elemento constitutivo das relações sociais baseadas nas diferenças entre os sexos e como a primeira forma de manifestar poder a partir de quatro dimensões inter-relacionais: simbólica, organizacional, normativa e subjetiva. A dimensão simbólica enfatiza as múltiplas e contraditórias representações tidas como essencialmente femininas, 34 como a pureza e a bondade na figura de Maria, em oposição à de Eva, que simboliza o pecado e, consequentemente, o mal. A dimensão normativa confirma interpretações expressas nas doutrinas religiosas, educativas, científicas, políticas e jurídicas reforçando o binarismo masculino-feminino. A dimensão organizacional diz respeito às instituições sociais, como a escola, que reforçam as diferenças entre os gêneros. Finalmente a dimensão subjetiva trata das configurações de gênero sociais, históricas e culturalmente situadas. Gomes (2018), ao discutir gênero do ponto de vista do feminismo decolonial, revisita Joan Scott e nos traz alguns questionamentos bastante pertinentes: A autora [referindo-se a Joan Scott] toma o gênero como uma categoria de análise histórica: não uma resposta, mas uma pergunta, um modo de fazer perguntas. Ele é, para autora, “fazer perguntas históricas”, um convite a se pensar criticamente como corpos sexuados são produzidos, implantados, modificados e, também, como sobrevivem (Scott, 2010, p. 9). Na primeira parte do conceito por ela apresentado aparece a relação diferença sexual/gênero: “o gênero é um elemento constitutivo de relações sociais baseado nas diferenças percebidas entre os sexos” (Scott, 1990, p. 86), um pouco parecida com a ideia de algum modo inaugurada por Simone de Beauvoir. Tal fato nos faz perguntar: há um natural do ser mulher correspondente ao sexo e um cultural do ser mulher correspondente ao gênero? O que diferencia sexo e gênero? Seria a mesma oposição natureza e cultura? É o gênero um efeito do sexo? (GOMES, 2018, p. 67) Gomes chama atenção para o problema em se colocar a ideia de gênero baseada na “diferença percebida entre os sexos” e na oposição natureza-cultura. Ressalta que isso rendeu uma longa e vasta herança ao campo, muitas vezes não se atentando para os riscos e as possíveis críticas. Uma delas afirma que a análise de Scott acaba por reforçar justamente aquilo que quer combater: firmar algum tipo de essencialismo constitutivo das relações sociais baseado nas diferenças entre os sexos; dessa forma, o gênero seria uma forma primeira de significar as relações de poder. Gomes chama atenção, porém, para o fato de Scott posteriormente recolocar e esclarecer os termos com que apresentara gênero em 1986, o que haveria gerado, como a própria Scott nomeia, alguns “usos e abusos” (SCOTT, 2012) de tal conceito. Lembra, inclusive, que, para ler e analisar o texto de Scott hoje, deve-se levar em consideração que esse texto, referência para os estudos de gênero, foi escrito há quase trinta anos. Suas produções posteriores, segundo Gomes, contam outra história sobre o conceito e nos fornecem outra forma de leitura, mostrando que suas ideias foram, muitas vezes, usadas incorretamente, reforçando certo essencialismo ou apresentando inclinações que não se adéquam ao que pretendeu dizer. 35 (...) suas ideias trazem em si um ponto fundamental: se gênero é um conceito, também mulher o é. E se mulher é um conceito (Scott, 2010, p. 9-10), assim também homem. [...]. Usar o gênero como categoria de análise é compreender que este funciona como um desestabilizador de conceitos como mulher, homem, sexo e mesmo corpo. Adotar uma posição essencialista ou firmada no sexo como categoria fixa não se alinharia com o que se propõe quando se diz gênero como categoria de análise. Sua crítica [referindo-se a Berenice Bento, 2006] é a de que com o gênero sendo utilizado como um conceito ou um instrumento para explicar as relações entre homens e mulheres – gênero como relação socialmente construída e sexo como atributo natural – ocorreu o contrário do que se pretendia: homem e mulher continuaram a ser identificados como realidades dadas e fixas e apenas as “relações” estabelecidas entre estes seriam mutáveis ou capazes de serem transformadas. Gênero seria um conceito, uma categoria de análise, submetido, portanto, à reconstrução, discussão, problematização. Analisado diante do contexto histórico, social, cultural, homem e mulher seriam realidade, estariam fora da história, fora de qualquer contexto. Seriam natureza. Pois não. O uso dessa categoria implica que homem e mulher são conceitos social, corporal e historicamente inscritos tal qual “gênero”. Nos encontramos aqui, contudo, com um segundo limite: nada disso bastará se, falando de conceitos historicamente inscritos, não articularmos a raça, categoria fundamental dos estudos decoloniais. (GOMES, 2018, págs. 68, 69) Cabe ainda trazer para esta discussão Judith Butler, autora referência dos estudos contemporâneos de gênero. Butler10 se coloca como uma intelectual a serviço dos movimentos sociais, oferecendo suporte teórico sobre fatos da conjuntura. “Às vezes, isto serve como ponto de referência para aqueles que buscam refletir sobre suas posições políticas e sociais. Talvez nós devamos adicionar o movimento queer a esta lista, assim como a minha filiação nas políticas anti-guerra”, afirmou em entrevista11. Butler (2003) aponta a indefinição do conceito de gênero como um possível problema para o debate feminista. Contudo, afirma que “ser um problema” não é, necessariamente; algo negativo, ao contrário, a criação de problemas é, segundo a autora, uma forma de resistência, de se contrapor a uma ordem estabelecida. Assim, sugere que, uma vez que “problemas são inevitáveis é nossa incumbência descobrir a melhor maneira de criá-los, a melhor maneira de tê-los” (BUTLER, 2003, p. 7). Butler, que se alia à perspectiva pós-estruturalista, propõe ainda problematizar as categorias que reforçam as hierarquias de gênero e a heterossexualidade compulsória. Nesse sentido, a principal contribuição de Butler é desenvolver a noção de “gênero performativo”, ou seja, segunda ela, a identidade de gênero não derivaria de um suposto sexo biológico, uma vez que ambos procederiam de fixações provisórias e circunstantes de sentido, e não de descrições de uma realidade objetiva e 10Recentemente a filósofa norte-americana enfrentou forte resistência de setores conservadores em sua vinda ao Brasil, em novembro de 2018, ocasião em que iria proferir uma palestra em São Paulo, quando foi “acusada” de querer promover a chamada ideologia de gênero. 11https://www.cartacapital.com.br/diversidade/judith-butler-o-ataque-ao-genero-emerge-do-medo-das-mudancas/ acessado em 4 de maio de 2019. https://www.cartacapital.com.br/diversidade/judith-butler-o-ataque-ao-genero-emerge-do-medo-das-mudancas/ 36 independente das nossas disputas sociais. Em outras palavras, Butler inova ao trazer a crítica ao modelo binário a respeito da distinção sexo-gênero nos corpos e na construção de identidades: ela nos leva a refletir, por exemplo, sobre a possibilidade da existência de homens com vagina e mulheres com pênis, existências essas tão válidas e possíveis quanto a das pessoas cisgênero12. É o que entendo quando autora afirma: “talvez o sexo sempre tenha sido o gênero, de tal forma que a distinção entre sexo e gênero revela-se absolutamente nenhuma” (BUTLER, 2003, p. 25). Butler sugere, então, que o sexo não é natural, mas um elemento discursivo e cultural, assim como o gênero. Cabe ressaltar que Butler problematiza o próprio conceito “mulheres”, mesmo quando utilizado no plural. A adesão ao plural não satisfaz Butler, que ainda vê normatização nessa troca da categoria mulher para mulheres; afinal, segundo ela, “o próprio sujeito das mulheres não é mais compreendido em termos estáveis e permanentes” (BUTLER, 2003, p.18). Mais adiante, afirma: Seria errado supor de antemão a existência de uma categoria de “mulheres” que apenas necessitasse ser preenchida com os vários componentes de raça, classe, idade, etnia e sexualidade para tornar-se completa. A hipótese de sua incompletude essencial permite à categoria servir permanentemente como espaço disponível para os significados contestados. A incompletude por definição dessa categoria poderá, assim, servir com um ideal normativo, livre de qualquer força coercitiva (BUTLER, 2003, p. 36). Estas e muitas outras colocações em diferentes obras consagram Judith Butler como a grande teórica do movimento queer. De acordo com Pereira (2015), a teoria queer nasceu como crítica aos efeitos normalizantes das constituições identitárias e como possibilidade de formação de corpos dissidentes. Dessa forma, a teoria apresentou invenções “infratoras” e probabilidades diferentes da constituição binária dos sexos, repensando ontologias e resistindo às epistemologias heterossexuais que dominam a produção da ciência. Sendo assim, queer pode ser pensado como um importante aliado da perspectiva decolonial, pois, ao buscar se contrapor às lógicas da colonialidade, apresenta outras experiências políticas, culturais, econômicas e de produção do conhecimento. Apostando na multiplicidade de perspectivas e corpos, a teoria queer e o pensamento decolonial se 12 “O termo cisgênero foi utilizado pela primeira vez por um homem trans holandês chamado Carl Buijs para falar de pessoas que não são trans, ou seja, para se referir a pessoas as quais sua identidade de gênero está em concordância com o gênero que lhe foi atribuído ao nascer (vale recordar que a anatomia é desde sempre gendrada, cirurgiada pela cultura do gênero e pelas formas de conhecer e representar nos termos binários)”. Fonte: http://www.editorarealize.com.br/revistas/enlacando/trabalhos/TRABALHO_EV072_MD1_SA2_ID903_17072017205519.pdf http://www.editorarealize.com.br/revistas/enlacando/trabalhos/TRABALHO_EV072_MD1_SA2_ID903_17072017205519.pdf 37 aproximam, pois ambos não só questionam as pretensões teóricas que generalizam pressupostos totalizantes como também fazem surgir formulações outras, específicas e particulares. Sendo assim, o pensamento de Butler levanta grande expectativa, pois tem a audaciosa possibilidade de acenar para transformações políticas, sociais e culturais. Se não se desviar deste objetivo, a teoria (e a prática) queer poderá servir para formular de maneira inclusiva um pacto que extinguiria a subordinação de todos os grupos desfavorecidos, sejam mulheres, imigrantes ou minorias sexuais e seria um motivo de esperança para todas e todos que entendemos o feminismo como peça imprescindível para a construção de um mundo mais justo. 1.2. A discussão de “gênero” na escola e na Sociologia: ideologizar o que já é ideológico O acesso universal à escolarização vem sendo reivindicado, tanto no discurso governamental quanto na vida cotidiana do povo brasileiro, como o fator mais importante para a democratização de nossa sociedade. Contudo, na prática, percebemos que, embora a educação formal promova mobilidade social, paradoxalmente ela reproduz e reforça a divisão social em classes fortemente hierarquizadas. Essa contraditória coexistência entre inclusão e exclusão por meio da educação merece uma breve reflexão sobre o sistema educacional brasileiro. Compreendemos a educação escolar como fruto de um processo histórico e das relações sociais de produção que dividiram e ainda dividem a sociedade em grupos econômicos antagônicos. De acordo com Guzzo e Euzébios (2005), os interesses e as necessidades de uma classe social específica passaram a demarcar a educação como uma instituição a serviço da dominação de poucos sobre muitos. Segundo a perspectiva teórica adotada pela autora e pelo autor, compreende-se que a gênese da instituição escolar surgiu a partir do momento em que a dominação militar e política não surtiam mais os efeitos desejados em uma sociedade com urbanização crescente, que, por isso, se tornava cada vez mais complexa e multifacetada. Dessa forma, segundo os autores, a necessidade de se apropriar da atividade intelectual e das técnicas refinadas de produção passou a compor o rol da divisão social do trabalho; nesse sentido, a classe dominante passou a compreender a escolarização como um elemento fundamental para a manutenção da desigualdade social, uma vez que os conhecimentos científicos e tecnológicos passaram a ser compreendidos como 38 necessários para o desenvolvimento do sistema produtivo. Assim, o acesso à escolarização das classes sociais economicamente subalternizadas passa a assumir um papel essencial de sustentação da alienação e da divisão social do trabalho, na medida em que as escolas têm se configurado como um espaço estratégico de socialização da classe trabalhadora, pautado pela reprodução da dinâmica da sociedade capitalista. Neste contexto, de acordo com Costa, Rodrigues e Vanin (2011), mesmo com o processo de universalização do ensino e da construção de novas práticas pedagógicas, a escola permanece sendo uma instituição que cria, reproduz e alimenta, por meio do processo de socialização, ideologias e práticas discriminatórias excludentes. Para as/o autoras, o dia a dia escolar se encarregou de trazer consigo um exercício que divide, separa e discrimina, tanto internamente quanto externamente, tratando de apartar os sujeitos por meio de múltiplos mecanismos de classificação, ordenamento e hierarquização, a exemplo das classificações baseadas no gênero, na classe e na raça/etnia. Por meio de sua própria organização, dos currículos, das práticas pedagógicas, da estrutura física, do corpo docente, das regras e avaliações, a escola, implícita e explicitamente, “produz as diferenças entre os indivíduos, incutindo valores, normas e concepções interiorizadas de forma a concebê-las como “naturais”, ainda que provenham das relações sociais estabelecidas culturalmente” (COSTA; RODRIGUES; VANIN, 2011, p. 7). Ainda de acordo com as/o autoras, a educação contribui para estabelecer o modo de ser das pessoas e indicar os papéis que os indivíduos vão ocupar na sociedade. Contudo, a educação é, ao mesmo tempo, como dito anteriormente, ferramenta fundamental tanto para a transformação das condições de vida de uma população, como, paradoxalmente, um instrumento de preservação e reforço de valores arcaicos, de mentalidades subalternas e/ou autoritárias. Podemos afirmar que, de maneira geral, este tem sido historicamente o papel da educação no que se refere à condição feminina: É através da reprodução de estereótipos sexistas que a educação vem mantendo as mulheres em uma condição de subalternidade e opressão, reproduzindo valores e ideias que as mantêm excluídas da vida política e expostas às diversas manifestações de exclusão e subalternidade, dessa forma, garantindo a reprodução do domínio patriarcal na sociedade. (COSTA; RODRIGUES; VANIN, 2011, p. 8). 39 Desse modo, problematizando este papel subalternizado ocupado pela mulher, a Sociologia, como componente disciplinar relativamente recente nos currículos escolares, vem contribuindo na transposição didática13 da produção acadêmica sobre o tema gênero. Nesse contexto, cabe ressaltar o documento Gênero e Educação: Fortalecendo uma agenda para as políticas educacionais, publicado em 2016 como fruto da parceria entre diversas entidades14. A partir do documento, foi elaborado um folheto educativo, destinado às escolas brasileiras, que discorre sobre a importância da promoção da igualdade de gênero na educação. O folheto foi lançado publicamente na IV Conferência Nacional de Políticas para as Mulheres, realizada em maio de 2016. De acordo com as autoras do documento, na elaboração do material levaram-se em conta as ameaças sofridas por escolas públicas em vários estados brasileiros, protagonizadas por grupos religiosos fundamentalistas e por outros grupos contrários às agendas de direitos humanos, como, por exemplo, o movimento Escola Sem Partido, já mencionado na introdução deste trabalho. Vale lembrar que tais grupos apresentaram projetos que chegaram a tramitar em diferentes casas legislativas propondo a revisão de planos de educação tanto municipais, quanto estaduais, no intuito de promover a exclusão da temática gênero, sexualidade e raça do texto dessas leis. Em resposta a essa situação, o folheto aborda os marcos normativos nacionais e internacionais que dão sustentação às ações e aos programas de educação para a promoção da igualdade de gênero, raça e sexualidade, além de apresentar um conjunto de argumentos sobre o porquê da necessidade de tais programas em escolas públicas. Indica ainda materiais de subsídios para as escolas e orienta-as sobre como proceder em caso de ameaças feitas por grupos contrários às agendas de direitos humanos, em especial, por meio de notificações extrajudiciais. O folheto está disponível no site15 Gênero e Educação e vem sendo reproduzido em vários lugares do Brasil por sindicatos, organizações, gestões públicas, entre outras instituições. 13 Não cabe o aprofundamento neste trabalho, mas acredito ser necessário mencionar o conceito de transposição didática (CHEVALLARD, 1991), que aborda a dimensão cognitiva do processo de ensino-aprendizagem no âmbito dos campos disciplinare,s e é comumente discutido dentro do campo das teorias do currículo, da nova Sociologia do currículo e do enfoque da epistemologia escolar. 14 Ação Educativa; CLADEM – Comitê da América Latina e do Caribe para a Defesa dos Direitos da Mulher, ECOS – Comunicação em Sexualidade; Geledés – Instituto da Mulher Negra e Fundação Carlos Chagas. 15http://generoeeducacao.org.br/ - acessado em 08 de maio de 2019. http://generoeeducacao.org.br/ 40 O documento é dividido em artigos que foram construídos pela sociedade civil e constituiu a base para o desenvolvimento das ações do projeto Gênero e Educação: fortalecendo uma agenda para as políticas educacionais. Destaca-se o artigo Informe Brasil – Gênero e Educação: da Conae às Diretrizes Nacionais, no qual Denise Carreira (2016) levanta as principais recomendações e desdobramentos deste que foi o documento base do Projeto. Elaborado em 2011 e atualizado em 2013, o Informe foi desenvolvido no marco da Campanha por uma Educação Não Sexista e Antidiscriminatória. Apresentado em 2011 ao Congresso Nacional e, no mesmo ano, em audiência pública à Comissão Interamericana de Direitos Humanos da Organização dos Estados Americanos (OEA), o Informe foi atualizado em 2013 e constituiu uma das principais referências para os debates ocorridos no processo que culminou na segunda Conferência Nacional de Educação (CONAE), realizada em novembro de 2014, em Brasília/DF. Com base na incidência política articulada de vários movimentos sociais, a CONAE 2014 deliberou a favor da construção de Diretrizes Curriculares Nacionais de Educação, Gênero e Diversidade Sexual, uma das principais recomendações do Informe. De acordo com Carreira, [...] foi proposto no Informe Brasil – Gênero e Educação (2011 e 2013) um conjunto de recomendações visando fortalecer e tornar mais precisa uma agenda estratégica para a promoção da igualdade de gênero nas políticas educacionais. Nesse sentido, considerou-se fundamental abordar as desigualdades de gênero em uma perspectiva interseccional, reconhecendo tanto as possibilidades de agência como o fenômeno das multidiscriminações (raça/etnia, renda, orientação sexual, deficiência, origem regional, etc.) vividas pelos sujeitos concretos. Entendeu-se que somente com base em uma perspectiva interseccional é possível compreender vários dos obstáculos que impactam a trajetória educacional de mulheres e homens em nossas sociedades latino-americanas. (CARREIRA, 2016, p. 33) Dentre estas recomendações, chamo a atenção para os itens 7 e 9, analisados pela autora. Item 7: “Garantir os conteúdos referentes à promoção da igualdade de gênero e de diversidade sexual na formação inicial e continuada” (CARREIRA, 2016, p. 38). Carreira afirma que os conteúdos referentes ao gênero, à raça, à orientação sexual, à regionalidade campo/cidade e aos direitos sexuais e reprodutivos ainda estão pouco presentes – ou aparecem de forma fragmentada ou restrita a disciplinas opcionais – nos currículos de formação inicial das universidades públicas e privadas. Dessa forma, de acordo com a autora, defende-se que o Ministério da Educação e os Conselhos Universitários devam atuar de forma incisiva nessa situação, visando ao cumprimento das normativas educacionais, e que o Sistema Nacional de 41 Avaliação do Ensino Superior (SINAES) seja aprimorado no sentido de induzir à incorporação desses conteúdos não somente como critério de observação, mas também como critério de pontuação na avaliação. Com relação à formação continuada, para Carreira, é imprescindível consolidar os programas já existentes no Ministério da Educação – como parte de políticas de Estado – e considerar seus conteúdos como questões estratégicas e estruturantes da Política Nacional de Formação dos Profissionais de Educação. Item 9: “Garantir os conteúdos referentes à promoção da igualdade de gênero e de diversidade sexual na formação inicial e continuada. Promover uma política nacional de educação em sexualidade, suspender o veto ao kit Escola sem Homofobia e elaborar as Diretrizes Nacionais Curriculares sobre Educação, Gênero e Sexualidade para a Educação Básica e Ensino Superior pelo Conselho Nacional de Educação” (CARREIRA, 2016, p. 40). A autora ressalta que o estudo preparado pela organização ECOS – Comunicação em Sexualidade (2008) destacou a necessidade urgente da construção de uma política de educação em sexualidade a partir do reconhecimento dos acúmulos e do fortalecimento de projetos e programas governamentais desenvolvidos nos últimos anos, entre eles, o Escola sem Homofobia. É necessário destacar que dele faz parte o kit de materiais educativos Escola sem Homofobia, vetado pelo governo brasileiro em 2011 em resposta à pressão de grupos religiosos fundamentalistas e em desrespeito ao processo de construção participativa dos materiais – como parte de uma política – e às normas internacionais das quais o Brasil é signatário. Outra ação importante é a construção de Diretrizes Nacionais sobre Educação, Gênero e Sexualidade, com recorte racial, que fortaleceria e tornaria mais preciso o marco normativo educacional e, para além dele, que sustenta os projetos, programas e políticas públicas de promoção da igualdade de gênero na educação, em um contexto adverso caracterizado pelo crescimento da atuação política de grupos religiosos fundamentalistas e de outros contrários às agendas de direitos humanos. Há de se destacar que tais recomendações datam de 2016, ano em que já se vivia no Brasil uma conjuntura adversa, mas longe do projeto político do atual governo, que leva a cabo um verdadeiro e assustador retrocesso em diferentes setores do Estado brasileiro, principalmente na área de promoção dos direitos humanos e na educação. Contudo, é preciso registrar, como bem colocado por Carreira, que: O direito à educação para a igualdade de gênero, raça e sexualidade tem base legal na Constituição Brasileira (1988), na Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional (LDB/1996), nas Diretrizes Nacionais de Educação e Diversidade e nas 42 Diretrizes Curriculares do Ensino Médio (Art. 16), elaboradas pelo Conselho Nacional de Educação, e na Lei Maria da Penha (2006). Esse direito também está previsto nos tratados internacionais de direitos humanos com peso de lei dos quais o Brasil é signatário: a Convenção Internacional sobre os Direitos das Crianças (1989), a Convenção Relativa à Luta contra a Discriminação no Campo do Ensino (1960), a Convenção para a Eliminação de Todas as Formas de Discriminação contra a Mulher (1979), a Convenção Internacional sobre a Eliminação de Todas as Formas de Discriminação Racial (1968) e o Pacto Internacional dos Direitos Econômicos, Sociais e Culturais (1966), entre outros. O próprio Plano Nacional de Educação (2014-2024), em seu artigo 2º, prevê a implementação de programas e políticas educacionais destinados a combater “todas as formas de discriminação” existentes nas escolas. No mesmo artigo, o PNE prevê a promoção dos direitos humanos e da diversidade na educação brasileira. (CARREIRA, 2016, p. 40) No âmbito do Rio de Janeiro, em 2011, a Secretaria de Estado de Educação – SEEDUC RJ elaborou o Currículo Mínimo, que, após revisão, foi reformulado e publicado em nova versão em 2012, em vigor até hoje. De acordo com a SEEDUC RJ, tal documento pretende servir como referência a todas as escolas da rede estadual, apresentando as competências e habilidades que, segundo a Secretaria, devem estar nos planos de curso e nas aulas. A finalidade é orientar quanto aos itens que não podem faltar no processo de ensino- aprendizagem em cada disciplina, ano de escolaridade e bimestre. Com isso, segundo a instituição, pode-se garantir uma essência básica comum a todos, que esteja alinhada com as atuais necessidades de ensino, identificadas não apenas nas legislações vigentes, Diretrizes e Parâmetros Curriculares Nacionais, mas também nas matrizes de referência dos principais exames nacionais e estaduais. De acordo com o documento, consideram-se também as compreensões e tendências atuais das teorias científicas de cada área de conhecimento e da Educação e, principalmente, as condições e necessidades reais encontradas pelos professores no exercício diário de suas funções. É importante ressaltar que, segundo a SEEDUC RJ, o Currículo Mínimo visa a: [...] estabelecer harmonia em uma rede de ensino múltipla e diversa, uma vez que propõe um ponto de partida mínimo - que precisa ainda ser elaborado e preenchido em cada escola, por cada professor, com aquilo que lhe é específico, peculiar ou lhe for apropriado. O trabalho fundamentou-se na compreensão de que a Educação Básica pública tem algumas finalidades distintas que devem ser atendidas pelas escolas da rede estadual, muitas vezes através da elaboração do currículo. Isto é, o Currículo Mínimo apresentado busca fornecer ao educando os meios para a progressão no trabalho, bem como em estudos posteriores e, fundamentalmente, visa assegurar-lhe a formação comum indispensável ao exercício da cidadania. Entendemos que o estabelecimento de um Currículo Mínimo é uma ação norteadora que não soluciona todas as dificuldades da Educação Básica hoje, mas que cria um solo firme para o desenvolvimento de um conjunto de boas práticas educacionais, tais quais: o ensino interdisciplinar e contextualizado; a oferta de recursos didáticos adequados; a inclusão de alunos com necessidades especiais; o respeito à diversidade em suas manifestações; a utilização das novas mídias no ensino; a incorporação de projetos e temáticas transversais nos projetos pedagógicos das escolas; a oferta de formação continuada aos professores e demais profissionais da 43 educação nas escolas; entre outras — formando um conjunto de ações importantes para a construção de uma escola e de um ensino de qualidade (Rio de Janeiro, 2012, p. 2). Mesmo não sendo prevista a abordagem da temática “gênero e direitos das mulheres” de maneira explícita no currículo mínimo, a professora e/ou o pr