ELIANE BIANCHI A proficiência escrita nos 9º anos do Ensino Fundamental: as possíveis contribuições de um material didático ASSIS 2020 ELIANE BIANCHI A proficiência escrita nos 9º anos do Ensino Fundamental: as possíveis contribuições de um material didático Dissertação apresentada à Universidade Estadual Paulista (UNESP), Faculdade de Ciências e Letras, Assis, para a obtenção do título de Mestra em Letras (Área de Conhecimento: Linguagens e letramentos) Orientador(a): Dr. Odilon Helou Fleury Curado Bolsista: Coordenação de aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior – Brasil (CAPES) – Código de Financiamento 001 ASSIS 2020 AGRADECIMENTOS Primeiramente a Deus, pela sua bondade em minha vida, pela força de vontade que me deu para não desistir; A minha família, em especial, meus pais, Azor Bianchi e Lindaura Fogaça Bianchi, pela dedicação aos filhos e por deixar um dos maiores legado que eu poderia receber: o ensinamento de que o estudo é a maior arma contra a pobreza, a ignorância e a discriminação; Ao meu professor orientador pelas importantes contribuições e pela paciência comigo; Aos meus amigos, colegas de curso, Míriam, Rúbia e Leandro pelos trabalhos realizados, em especial a Claudinéia pela força que nos uniu no momento de escrita da dissertação; Ao meu filho Lorenzo Bianchi Aguiar, por ter trazido tanta alegria, amor, forças e renovo na minha vida. É por ele que luto sempre! Ao meu enteado João Pedro Michelini Aguiar, pelas muitas conversas, trocas de experiência e cafés filosóficos; Ao meu grande amor Rogério Antônio de Aguiar que, desde sua chegada na minha vida, só tem me dado amor, apoio nas minhas escolhas e acreditando nas minhas conquistas. Obrigada por existir na minha vida! "O presente trabalho foi realizado com apoio da Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior - Brasil (CAPES) - Código de Financiamento 001” BIANCHI, Eliane. A proficiência escrita nos 9º anos do Ensino Fundamental: as possíveis contribuições de um material didático. 2020. Dissertação f. 103 (Mestrado Profissional em Letras). – Universidade Estadual Paulista (UNESP), Faculdade de Ciências e Letras, Assis, 2020. RESUMO Esta pesquisa tem como propósito central investigar o tratamento que os materiais didáticos de Língua Portuguesa, Caderno do Aluno e caderno do Professor (CA/CP) de uso obrigatório no Ensino Fundamental, ciclo II, adotados em 2018, dispensam aos processos de desenvolvimento e produção da escrita, nas escolas da Rede Pública do Estado de São Paulo, partindo da hipótese de que este tratamento não tem colaborado para a progressão letrada do sujeito autor/discursivo nos anos finais do referido ciclo. A análise, à luz de orientações teórico-metodológicas de base dialógica, oferece, como resultado, uma contribuição à utilização, pelo material didático, de alternativas que mostram perspectivas mais favoráveis àquela progressão, construindo-se uma relação parceira entre tal progressão e os materiais didáticos. Para tanto, com base em uma pesquisa bibliográfica, foram examinados documentos e materiais didáticos oficiais, constituídos como objetos de estudo, na identificação de princípios de natureza monológica, voltados à busca de formação de um domínio do português escrito formal, mas que, em contraposição, dada essa orientação monológica, reconhecidamente dificultam a assunção, por parte do estudante, de sua condição de sujeito autor do discurso. Palavras-chave: Material didático; Desenvolvimento e produção escrita; Sujeito autor/discursivo; Sociointeracionismo. BIANCHI, Eliane. Eliane. Written proficiency in the 9º years of elementary school: the possible contributions of teaching materials. 2020. Dissertation. f.103 (Masters in Languages). – São Paulo State University (UNESP), School of Sciences, Humanities and Languages, Assis, 2020. ABSTRACT This research aims at investigating the treatment that Portuguese language teaching materials, Student Notebook and Teacher Notebook (SN/TN), which are required in cycle II of Elementary School and were used in 2018, dispense with the development and production writing processes in public schools in the State of São Paulo, starting from the hypothesis that this treatment has not been collaborating with the literate progression of the discursive subject during the final years of the referred cycle. The analysis, which is based on theoretical and methodological orientations with a dialogical basis, offers, as a result, a contribution to the use, by teaching materials, of alternatives that reflect more favorable perspectives to that progression, setting up a partner relationship between such progression and the teaching materials. Therefore, based on a bibliographic search, official documents and teaching materials were examined, constituted as study objects in the identification of monological nature principles, aimed at the formation of a formal written Portuguese domain, but which, on the other hand, given this monological orientation, they are known to make it difficult for the student to assume his condition as a discursive subject KEYWORDS: Teaching material; Writing development and production; Discursive subject; Sociointeractionism. : LISTA DE FIGURAS Figura 1: proposta de atividade de produção escrita........................................... 46 Figura 2: proposta de atividade de produção escrita........................................... 66 Figura 3: proposta de atividade de produção escrita........................................... 68 Figura 4: proposta de atividade de produção escrita........................................... 69 Figura 5: proposta de atividade de produção escrita........................................... 69 Figura 6: proposta de atividade de produção escrita........................................... 71 Figura 7: proposta de atividade de produção escrita........................................... 72 Figura 8: proposta de atividade de produção escrita........................................... 73 Figura 9: proposta de atividade de produção escrita........................................... 74 Figura 10: proposta de atividade de produção escrita......................................... 74 Figura 11: proposta de atividade de produção escrita......................................... 76 Figura 12: proposta de atividade de produção escrita......................................... 77 Figura 13: proposta de atividade de produção escrita......................................... 79 Figura 14: proposta de atividade de produção escrita......................................... 80 Figura 15: proposta de atividade de produção escrita......................................... 82 Figura 16: proposta de atividade de produção escrita......................................... 83 Figura 17: proposta de atividade de produção escrita......................................... 83 Figura 18: proposta de atividade de produção escrita......................................... 85 Figura 19: proposta de atividade de produção escrita......................................... 86 Figura 20: proposta de atividade de produção escrita......................................... 86 Figura 21: proposta de atividade de produção escrita......................................... 94 SUMÁRIO PRIMEIRAS PALAVRAS................................................................................ 11 Capítulo I - Implicações Memoriais e Acadêmicas.................................... 14 1.1 Das Inquietações de uma Professora de Língua portuguesa................... 14 1.2 Abordagem Metodológica: Caminho Percorrido ...................................... 19 Capítulo II – Produção Escrita e suas Concepções................................... 23 2.1 Concepções de Linguagem: Breve Histórico............................................ 23 2.2 Concepções de Língua e Texto................................................................ 26 2.3 Dialogismo e Monologismo....................................................................... 33 2.4 O Sujeito histórico/autor/Discursivo e o Sujeito Enunciador...................................................................................................... 36 2.5 A Teoria Bakhtiniana dos Gêneros Discursivos........................................ 39 2.6 Agrupamento dos Gêneros segundo os Pesquisadores de Genebra....... 44 2.7 A Produção Escrita no Contexto Escolar ................................................. 48 Capítulo III – Material Didático: Corpus e Análise ..................................... 60 3.1. Introdução 60 3.2 O Material Didático dos Anos Finais do Ensino Fundamental do Currículo do Estado de São Paulo – 2008-2018............................................................. 60 3.3 A Configuração do Material Destinado ao 9º Ano..................................... 65 3.4 À guisa de reflexão.................................................................................... 87 3.5 Formas de Encaminhamentos................................................................. 89 Capítulo IV – Proposta de Intervenção: sugestão de remodelamento de uma proposta de produção de texto de uma Sequência Didática............ 93 CONCLUSÃO................................... ............................................................. 97 REFERÊNCIAS .............................................................................................. 99 11 PRIMEIRAS PALAVRAS Esta pesquisa discute as propostas de produção escrita, presentes no material didático da Secretaria de Educação do estado de São Paulo, destinados aos 9º anos do ensino Fundamental, partindo da hipótese de que o material pouco colabora com o desenvolvimento da proficiência escritora dos alunos. O ensino Fundamental, como já pressuposto em sua designação, tem papel crucial na formação do jovem aprendiz, entre elas, a de sujeito do discurso, escrevente e leitor, se pensarmos, mais especificamente, em termos de modalidade escrita formal da língua, interesse compreensível ao nos lembrarmos de que vivemos em uma sociedade grafocêntrica. De acordo com as Diretrizes e Bases da Educação Brasileira (LDB/1996), a escola deveria assegurar o direito à educação em igualdade de condições de entrada e permanência pela oferta de ensino público e gratuito e de qualidade em todos os níveis de ensino. Uma das principais funções da escola é, ano a ano, capacitar o aluno no que se refere à habilidade letrada, para que, ao longo dos anos de sua formação, revele, entre outros, domínio crescente do seu idioma materno, ou seja, consiga, além de ler com proficiência, expressar-se por escrito de forma cada vez mais clara, objetiva e fluente, constituindo-se, neste processo, como locutor/interlocutor, e, pois, desenvolvendo-se como sujeito autor do discurso. Essa constituição, sabemos, não se verifica na realidade, infelizmente. O aluno, tratado na escola como tal, ainda se firma como sujeito enunciador, reprodutor de regras e postulados do discurso escolar (cf. TFOUNI, 2012). Investe a escola no estudante (sujeito enunciador) e não no sujeito autor. A língua materna se configura para aquele como uma mera disciplina escolar, com características que lhe dificultam ver na língua portuguesa um mecanismo cultural de comunicação sociointerativa. Não obstante, desde a inserção da teoria dos gêneros na escola, muito material didático tem sido reformulado, elaborado a partir de pesquisas e postulados teóricos que surgiram, redimensionando a funcionalidade discursiva e ressignificando o ensino da língua materna, em particular, segundo o nosso objeto de estudo, o da escrita. 12 Objeto desta pesquisa, o material didático da escola pública do estado de São Paulo, em 2008, também foi elaborado a partir da teoria dos gêneros, segundo a perspectiva do letramento, conforme orientação dada aos professores na parte introdutória dos cadernos do professor e do aluno (SEE/SP, p.5). A pesquisa está centrada nas propostas de letramento, da teoria da enunciação e do sociointeracionismo, ao promover uma reflexão acerca dos tratamentos, dialógico e monológico, dispensados pela escola e seu material didático, no desenvolvimento de atividades relacionadas à produção escrita dos alunos do 9º ano do ensino Fundamental. O objetivo geral é o de confirmar, ou não, a hipótese de que o material pesquisado não tem ─ ou pouco tem ─ contribuído para a formação e o desenvolvimento da proficiência escritora dos alunos dos Anos Finais do Ensino Fundamental da rede pública do estado de São Paulo. Também, busca investigar o tratamento que os materiais didáticos de língua portuguesa, Caderno do Professor e do Aluno, dispensam aos processos de desenvolvimento da escrita e oferecer alternativas de remodelação de atividades que ofereçam perspectivas mais favoráveis à proficiência escritora dos alunos. Para tanto, busca-se demonstrar a orientação metodológica do material didático, Caderno do Professor (CP) e Caderno do Aluno (CA), que priorizam o chamado “sujeito enunciador” em detrimento do sujeito autor, discursivo, cujas práticas favorecem a perda da proficiência escritora nos Anos Finais do Ensino Fundamental. O material analisado oferece alternativas de reflexão teórico- metodológica que discutem procedimentos monologizantes inadequados a uma aprendizagem efetiva de língua escrita, como também embasa uma remodelação, do material citado, em práticas de produção textual relacionadas dialogicamente. No primeiro capítulo, de natureza introdutória, Implicações memoriais e acadêmicas, a autora pesquisadora justifica sua proposta investigativa no percurso histórico pelo qual nos reporta de princípio à sua infância, fase de alfabetização, começo de tudo, até aos dias atuais, no momento do curso de pós-graduação em Letras – Profletras. Esse caminho escolhido vai desde os primeiros contatos com as letras às inquietações de uma professora de língua portuguesa em sua trajetória de vida profissional. Também, neste capítulo, está a metodologia do trabalho realizado. No segundo capítulo, Produção escrita e suas concepções, busca-se a fundamentação teórica para a análise proposta, cujo embasamento, dialógico, 13 envolve as concepções de linguagem, de língua e texto; o sujeito autor/discursivo e o enunciador; a teoria bakhtiniana dos gêneros discursivos; os agrupamentos dos gêneros segundo os pesquisadores de Genebra; e a produção escrita no contexto escolar. No terceiro capítulo é apresentado o material didático da Secretaria da Educação do Estado de São Paulo, com vigência entre 2008 e 2018. O capítulo descreve a organização deste material e do específico para o 9º ano, seguido da análise das propostas de escrita. Também são feitas reflexões acerca de pontos importantes, pertinentes ao material apresentado, as orientações aos professores e aos fundamentos teóricos, além de se sugerirem alguns encaminhamentos. Ao final, no quarto capítulo, Proposta de Intervenção, com sugestão de remodelamento de uma proposta de produção de texto nos contornos de uma Sequência Didática, segundo as perspectivas do chamado Grupo de Genebra. O capítulo traz ainda, trabalhada, proposta de mudança de posicionamento do professor quando de sua transposição didática. Não foi realizada uma proposta em forma de produto, pois a intenção primeira da pesquisa são as reflexões que possibilitem a mobilização de atitudes por parte dos professores, além de tentar mostrar que, mesmo de forma aparentemente mínima, um olhar mais crítico do professor sobre a sua prática em sala de aula e sobre as limitações do material didático que muitas vezes rege essa prática, pode fazer uma diferença significativa no trabalho com base em uma linha que se assuma dialógica e sociointerativa. 14 Capítulo I - Implicações Memoriais e Acadêmicas 1.1. Das inquietações de uma professora de Língua Portuguesa O estudo em causa encontra raízes na história de vida pessoal dessa pesquisadora, criada na cidade de Maracaí, interior de São Paulo, numa família pobre, mas que sempre deu a maior importância aos estudos. Filha de pais analfabetos, fui1 alfabetizada pela minha mãe, que nunca frequentou um banco de escola e se auto alfabetizou a partir de comparações dos hinos ouvidos na Igreja Presbiteriana do Brasil com o hinário (Livro de Hinos e Louvores) e da Bíblia lida pelo pastor, ao compará-la com um exemplar, em casa. Aos sete anos, entrei já no primeiro ano, sem precisar frequentar a pré-escola, obrigatoriedade da época, após fazer um teste de proficiência. Sabia ler, escrever, ver as horas, conhecia dinheiro, sabia fazer alguns cálculos matemáticos básicos e conhecia muitas histórias bíblicas, mitológicas e lendárias, pois minha mãe sempre foi uma contadora de histórias e me incentivava a ler e conhecer belas e intrigantes histórias, até hoje presentes na memória. Isso tudo foi muito mais mérito de minha genitora do que meu. Era uma analfabeta, mas me alfabetizou e, pode-se dizer, me inicializou no processo de letramento. Foi sempre a minha incentivadora e a minha motivação para sempre buscar além, ao lado do meu pai, que também, à época, não tinha estudo; no entanto, exigia sempre de nós, filhos, o compromisso e a responsabilidade com os estudos. Poderia dizer que o gosto pelas letras também é genético, pois meu pai sempre foi amante de poesia, sendo ele um bom recitador e poeta anônimo. A decisão pelo curso de Letras, após o Ensino Médio, deve-se a essa minha história e à história de meus pais. Minha mãe, uma pessoa que não se alfabetizou, por nenhuma metodologia convencional, sistemática, e por nenhuma pessoa, uma vez que morava com os avós doentes, foi autodidata; alfabetizou-se e, depois, alfabetizou a filha. Isso sempre foi para mim algo intrigante, principalmente quando se discutiam, no curso de Letras, as concepções e metodologias de alfabetização e de letramento. Ao lado dela, havia meu pai, um amante nato da musicalidade das palavras em forma de poesia, que me inspirava nas aulas de literatura. 1 O uso da primeira pessoa do singular atende aqui às necessidades específicas de relato na seção. 15 Quando estava cursando o último ano do curso de Letras, na UNESP, câmpus de Assis, ingressei na rede pública estadual paulista, como professora de Língua Portuguesa de um 3º ano do Ensino Médio. Sorte e desafio de principiante. Era o ano de 1996, na mesma escola que estudei durante boa parte da minha vida. Ainda havia boas turmas na rede pública e isso foi muito desafiador para mim. Ao assumir, numa atribuição de aulas, essa sala do 3º ano, a diretora informou-me tratar-se da “queridinha da escola”, pois ali estudavam filhos “das pessoas mais importantes da cidade” – não havia ainda escola particular no município de Maracaí – e os alunos eram muito participativos, interessados. O fato me deixou apreensiva e fez com que eu recusasse qualquer outra sala, mesmo como professora eventual, pois queria dar a essa turma o melhor. Originária dela, hoje temos uma doutora em Letras, duas mestres e vários formados em nível superior. A minha gana de ensinar o melhor fez com que eu até exigisse uma “monografia” sobre uma obra literária, ao final do ano, construída com eles em sala e até mesmo em horários diferentes. Essa ousadia foi possível porque a escola não adotava um livro didático específico, havia apenas um rol de conteúdos a ser trabalhado e a Secretaria de Estado da Educação do Estado de São Paulo ainda não havia implantado o seu currículo atual. Talvez tenha sido exagero e entusiasmo de principiante, mas ainda me orgulho da exigência e encontro hoje ex-alunos que falam desse trabalho com muito carinho, ressaltando que isso teve muita importância na formação deles. Claro que o mérito de esses alunos terem avançado e progredido em sua vida acadêmica não foi só meu; entretanto, toda uma trajetória de estudo e o desenvolvimento deles como sujeitos discursivos, comprometidos, revelaram-se para mim fato importante e motivador, na crença, cada vez maior, em um trabalho com a escrita a partir da construção interativa e, pois, dialógica do processo de produção. Após o término da graduação, mantive-me por um tempo como professora substituta em várias escolas da cidade, sem aulas fixas. Em 1998, trabalhei no Paraná, no distrito de Paranagí, cidade de Sertaneja, onde fiquei por um ano. Ministrei aulas de Língua Portuguesa para uma 5ª e uma 6ª série, numa mesma sala, hoje correspondentes, respectivamente, ao 6º e ao 7º ano, no período noturno, turma participante de um projeto de correção de fluxo, projeto que mais tarde viria a ser adotado pelo estado de São Paulo como salas de Aceleração. Neste lugar, a 16 escola adotava material didático específico da correção de fluxo, livros consumíveis (que podem ser preenchidos pelos alunos), com folhas destacáveis e preenchimento de respostas, cujas atividades eram monitoradas, corrigidas, pelo Núcleo de Ensino, equivalentes às diretorias regionais de ensino do Estado de São Paulo. Nesta experiência, não consegui êxito, pois o enfoque era muito tradicional e gramatical, embora tivesse o texto sempre como pretexto para as atividades desenvolvidas, realizadas em sala de aula. A frustração era muito grande; não via progressão dos alunos na escrita, pois não havia tempo para um trabalho, de forma construtiva, um trabalho de retextualização, de interação. Ao término deste ano, prestei concurso para ingresso de docentes promovido pela Secretaria da Educação do Estado de São Paulo, um dos maiores, até então, em números de vagas. Com a aprovação, assumi uma vaga na cidade de Lins, onde me encontro até os dias de hoje. Em Lins, as experiências foram das mais variadas, com saldo muito mais positivo que negativo. Trabalhei um ano na E. E. “Prof. Octacílio Sant’Anna”, sendo removida para o antigo Centro de Específico de Formação e Aperfeiçoamento para o Magistério - CEFAM, onde trabalhei por quatro anos. Essa escola era um projeto do governo estadual, cujo propósito maior era dar uma oportunidade aos alunos do Ensino Médio da rede pública estadual para cursar a 2ª série, já na formação para a habilitação específica (curso normal) ao exercício do magistério na educação infantil e nas quatro primeiras séries do Ensino Fundamental. Esse projeto oferecia uma formação do curso normal em nível médio, em período integral, com estágio ao longo do processo de aprendizagem e concedia bolsa de estudo para todos os alunos matriculados e frequentes. As aulas de língua portuguesa eram divididas em duas partes: no período da manhã, quatro aulas com os conteúdos próprios de Ensino Médio; no período da tarde, quatro aulas de complementação, com aplicação prática da língua portuguesa, aprofundamento, leituras, teatro, projetos e outros. Ali fui feliz. Pude realizar o meu sonho de professora, o meu ideal de ensino. Aprendi muito. Ousei, trabalhei e pude ver de perto uma progressão no trabalho com a produção textual a partir do oral e escrito, sem ainda ter muito claras as noções do que era o interacionismo, a dialogia e as concepções bakhtinianas; porém, creio que, na prática, eu as utilizava ou, pelo menos, havia uma tentativa de uso. Destas turmas (eram 4), também, “coleciono” grandes realizações dos meus ex-alunos: 17 mestres e doutores em educação, professores da rede pública municipal e estadual, advogados, psicólogos, médicos, dentistas, entre outros. Cabe dizer aqui que o CEFAM também não utilizava nenhum material didático específico, apenas planos de ensino e de aula. Cabia ao professor a tarefa de montar sua prática de sala de aula, o que facilitava o trabalho com base na escrita. No ano de 2004, com a extinção do CEFAM, voltei, removida ex officio, para a E.E. Prof. Octacílio Sant’Anna”, em Lins, na qual estou até os dias atuais. Atuei como Professora Coordenadora Pedagógica (PCP) por oito anos, depois me afastei para trabalhar como Professora Coordenadora do Núcleo Pedagógico (PCNP) da Diretoria de Ensino da Região de Lins, por dois anos, quando voltei às aulas regulares do meu cargo para fazer o mestrado. Durante vários anos acumulei com o Estado aulas em instituições como FATEC, ETEC, Fundação Paulista, Prefeitura Municipal de Lins e Rede Objetivo de Ensino. Durante os períodos de afastamento da sala de aula para o trabalho de coordenação, trabalhei diretamente com professores, no início na Implantação da Proposta Pedagógica do Estado de São Paulo em 2008, cujo trabalho voltou-se para o estudo da referida proposta e implantação da mesma na escola em que atuava. A proposta foi implantada e está ativa até os dias atuais, embora no ano de 2018 tivessem início os estudos sobre a Base Nacional Curricular Comum (BNCC), para confecção de um material transitório para o ano de 2019, chamado Currículo Paulista. Diante de toda a minha vida profissional, algo sempre me intrigou: a produção escrita na sala de aula. Como aluna, na década de 80, produzia muitos textos na escola e recebia muita devolutiva por parte dos professores, apesar de um ensino totalmente tradicional. Na Universidade, também era exigida a produção textual de forma muito intensa. Porém, enquanto professora, vi, relegados a um segundo plano, as atividades textuais, voltados à sua produção. Na atuação como coordenadora pedagógica, assustaram-me a pouca ou nenhuma importância dada a esse assunto por alguns professores e por órgãos superiores à escola. Hoje, após algumas reflexões a respeito do trabalho com texto em sala de aula, a partir da leitura recente de Escrita, uso e avaliação, de João Wanderley Geraldi (1984), cujo conteúdo tematiza uma inquietação muito comum entre os professores do ensino básico da rede pública, relacionada à avaliação de redações 18 e a que redações avaliar, preocupam-me ainda mais certos fatos presentes na escola, como um currículo que não privilegia a produção escrita. Além disso a perpetuação, através do currículo, do ensino gramatical descontextualizado, camuflando uma contextualização por meio do ensino da língua dividido em uma cota de gêneros a cada ano e por suas habilidades de análise, cobrados por uma avaliação objetiva que ocorre bimestralmente, sem que isso se mostre eficaz ao aprendiz no desenvolvimento de um domínio da modalidade escrita formal de expressão da sua língua materna. Convencera-me de que havia aqui uma enorme e embaraçosa lacuna. Enquanto lia o texto de Geraldi (1984), nas suas colocações da época, comecei a refletir sobre o hoje. As questões, embora ainda muito frequentes, não são exatamente as mesmas, ou seja, a preocupação é muito mais acentuada, pois, no lugar de nos incomodarmos com o que avaliarmos na redação, se estamos focando mais o erro que o acerto e como (e se) ocorre a evolução da escrita do aluno, estamos lutando por espaço para o trabalho com a produção escrita em sala de aula, sobretudo se levarmos em conta a noção de produção aí implicada, afinal, na contraparte disso, vivemos em uma sociedade letrada, cujas práticas sociais são também, naturalmente, letradas, logo, mediadas pela escrita. Caberia perguntar qual o impacto sobre a formação do aprendiz-cidadão gerado pelas limitações concernentes ao domínio ineficaz da escrita formal do português. Quanto maior a proficiência da linguagem, maiores as condições de inserção social, conforme discussão no capítulo II. Em tempos de discussão do conceito de letramento, da função social da escrita, da condição do aluno como sujeito discursivo, ainda estamos aquém do exercício simulado da produção de textos, no qual, em relação às “atividades desenvolvidas em sala de aula, o primeiro deslocamento a fazer, de um lado, é o da função-aluno que escreve uma redação para uma função-professor que avalia e, de outro lado, o próprio ato de produção escolar de textos”, nas palavras de Geraldi. (op. cit., p.121). A impressão que se tem é de um progresso com retrocesso, isto é, na introdução da teoria dos gêneros, a partir da década de 90, como prática social dentro da escola, privilegiaram-se, em alguns sistemas de ensino, as habilidades de reconhecimento estruturais dos mesmos em detrimento da habilidade de escrita e 19 reescrita. Isso pode caracterizar a responsabilidade do Estado, que impôs equivocadamente um currículo, ou dos professores, que não o enfrentam na luta diária por um compromisso político da aula de língua portuguesa, qual seja, oportunizar o domínio da variedade padrão, sem anular a voz do sujeito aprendiz, “devolvendo-lhe o direito à palavra”, conforme Geraldi (p.121). Diante dessa perplexidade, da atual realidade, da escassez de materiais didáticos voltados para o trabalho dialógico que leva em conta as práticas discursivas e a atuação nelas do sujeito discursivo, ficando as atividades de produção escrita restritas ao preenchimento de lacunas, modelos pré-estabelecidos e simulação de situações reais e do impacto social que gera, inquieto-me e busco respostas através de atualizações, como cursos de formação continuada em diversas áreas do meu campo de trabalho, cursos de extensão, cursos de pós- graduação Lato-sensu e, atualmente, o Mestrado Profissional em Letras – Profletras – um curso que busca “formar professores de língua portuguesa voltados para a inovação na sala de aula, ao mesmo tempo que, de forma crítica e responsável, possam refletir acerca de questões relevantes sobre diferentes usos da linguagem presentes contemporaneamente na sociedade” (CAPES, 2013). 1.2 Abordagem metodológica: caminho percorrido A presente pesquisa insere-se no contexto educacional do ensino de Língua Portuguesa, segundo ciclo do ensino Fundamental, de uma escola da rede pública do Estado de São Paulo, em Lins, interior de São Paulo, e surgiu da necessidade de investigar a eventual responsabilidade e a efetiva contribuição do material didático, a saber, o Caderno do aluno e do Professor, (CA/CP), a se pressupor o seu uso regular em sala de aula, na reconhecida e notória perda de habilidades do sujeito letrado em termos de sua produção escrita, quando consideramos o último dos anos finais do ensino Fundamental. Uma investigação dessa natureza deve levar-nos à descrição e ao exame do conteúdo desse material, particularmente no que diz respeito às questões centradas no desenvolvimento da proficiência escrita. Caber-nos-ia analisar, neste caso, se o que neste material tem sido proposto, (do 9º ano), poderia favorecer (ou não) a 20 formação de uma progressiva proficiência escritora. Nossa hipótese é a de que o material didático (CA/CP) implantado pela SEE/SP, utilizado pela referida escola, indisponibiliza, quanto ao seu uso, condições favoráveis a essa progressão. Ao ingressar no curso Mestrado Profissional em Letras – Profletras -, na Universidade Estadual Paulista, câmpus de Assis, encontrei a oportunidade de pesquisar a respeito de um assunto que me intrigou desde o início da minha carreira de professora: a intervenção de aparatos escolares exatamente no desenvolvimento da proficiência escrita do jovem aprendiz, que deveria ser buscado e alcançado pelo emprego conjunto de fatores diretamente ligados à vida escolar e à realidade dos materiais didáticos presentes neste contexto. A pesquisa aqui apresenta, sucintamente, algumas discussões dos conceitos do letramento ideológico, da teoria da enunciação e do sociointeracionismo, promovendo reflexão acerca dos tratamentos, dialógico e monológico, dispensados pela escola no desenvolvimento de atividades relacionadas à produção escrita de alunos dos Anos Finais do Ensino Fundamental, especialmente através dos seus materiais didáticos. Baseou-se, assim, na compreensão da importância do tratamento dialógico das atividades de produção escrita para o desenvolvimento da proficiência escritora em detrimento da prática “monológica” no ensino formal do português, referendada pelos materiais didáticos, que sabidamente dificulta a formação do sujeito discursivo, cujo padrão de comportamento linguístico tem se revelado pela perda, progressiva, ano a ano, da competência escritora. Desse modo, entende-se que a prática predominantemente monológica do ensino da escrita não favorece ao aluno a sua inclusão em um processo de produção que privilegie as suas reais e proeminentes condições contextuais, onde os discursos são efetivamente construídos e lidos. Ao contrário, por várias e até compreensíveis razões, valorizam-se atividades que são meras reproduções de modelos pré-estabelecidos e de reconhecimento da estrutura tipológica estudada numa determinada série/ano (cf. letramento autônomo, em STREET, 2014). Alternativas que “dialogizam” o ensino da produção escrita, apoiados em um conceito de letramento e nas perspectivas sociointeracionistas, possibilitam, cremos, o uso positivo, pelo professor, do material didático (CA/CP), alicerçado em princípios dialógicos quando de suas transposições didáticas. 21 Para Tfouni (2012, p. 81/2), convém dizer, a ausência de uma orientação didático--pedagógica apoiada em conceitos de letramento, com fundamentos dialógicos, limita a questão discursiva “à investigação de textos escritos” que geralmente se circunscrevem ao âmbito da sala de aula. Afinal, o letramento define- se em termos de um processo sociohistórico amplo. As estratégias metodológicas da pesquisa decorrem de uma orientação qualitativa, cuja referência se baseia nos princípios teórico-epistemológicos em que os sujeitos sociais são seres reflexivos, que (res)significam suas experiências, ações e posicionamentos nos diferentes e vários contextos que atuam. Entendemos como pesquisa qualitativa a que “busca a interpretação em lugar da mensuração, a descoberta em lugar da constatação, assumindo que fatos e valores estão intimamente relacionados, onde a tornando-se inaceitável a postura neutra do pesquisador” (LUDKE; ANDRÉ, 1986, p. 49). Dentro da pesquisa qualitativa optou-se em trabalhar com a pesquisa bibliográfica, cuja centralidade é dada à natureza dos documentos, isto é, segundo Alves Mazzotti (2000, p. 169), "qualquer registro escrito que possa ser usado como fonte de informação”. Documento é “aquilo que ensina”, ou aquilo que pode ser utilizado para ensinar alguma coisa a alguém, apresentado como “suporte de informações”. O olhar para o material selecionado se fará conforme técnicas da Análise de Conteúdo, embasada em Bardin (2011). De acordo com essa autora (2011, p. 52), “é a manipulação de mensagens (conteúdo e expressão desse conteúdo) para evidenciar os indicadores que permitam inferir sobre uma outra realidade que não a da mensagem”. Para Bardin (2011), a análise de conteúdo procura conhecer aquilo que está por trás das palavras sobre as quais se debruça. É uma busca de outras realidades por meio das mensagens. O desenrolar do referido método inclui, segundo Bardin (2011), três fases: pré-análise (fase das decisões); a exploração do material e o tratamento dos resultados (fase dos resultados significativos e fiéis); a inferência e interpretação que se referem aos objetivos e a outras descobertas. A análise documental torna-se, neste caso, descritiva, exploratória e interpretativa do principal material didático da Língua Portuguesa, CA/CP referente ao 9º ano do Ensino Fundamental, com algumas inserções teóricas fundamentadas 22 pelos documentos orientadores da prática escolar estadual paulista, como os Parâmetros Curriculares Nacionais. Como já foi mencionado, possivelmente objeto de estudos posteriores, no ano de 2019, a Secretaria de Estado da Educação do estado de São Paulo iniciou uma série de estudo e orientações técnicas com a rede estadual, municipal e particular com a finalidade de orientar as escolas estaduais na elaboração da Proposta Pedagógica “de maneira a que se promova, em cada uma delas, a necessária organização dos tempos e dos espaços, bem como de práticas pedagógicas e de gestão compatíveis com as aprendizagens essenciais que se pretende garantir a todos os estudantes” (Secretaria de Estado da educação, 2008) O resultado desses estudos e orientações é a implantação do Currículo Paulista que contempla as competências gerais discriminadas pela Base Nacional Comum Curricular (BNCC – 2018), os currículos e as orientações curriculares das redes de ensino públicas e privadas, definindo e explicitando a todos os profissionais da educação que atuam no Estado, as competências e as habilidades essenciais para o desenvolvimento cognitivo, social e emocional dos estudantes paulistas e considera sempre sua formação integral na perspectiva do desenvolvimento humano. (Currículo Paulista, 2019, p. 11). Passamos, assim, às reflexões acerca da produção escrita e suas concepções, das abordagens dialógica e monológica do ensino da língua materna escrita, da distinção entre sujeito autor (discursivo) e sujeito enunciador e da teoria que fundamenta Teoria da Enunciação para observar, nos materiais didáticos observados, a sua relevância e aplicabilidade. 23 Capítulo II - Produção escrita e suas concepções 2.2 Concepções de linguagem: breve histórico A linguagem é fundamental para o desenvolvimento humano, concordam os especialistas, Marcuschi, Tfouni, Koch, Geraldi, Kleiman, no Brasil; Vygotsky, Bakhtin, Bronckart e o chamado Grupo de Genebra, no exterior, para citar apenas alguns nomes. Muitas são as razões por eles enumeradas. Podemos destacar aqui, em um viés mais dialógico, a possibilidade de construção de categorias conceituais, além do domínio de saberes basilares para a compreensão da realidade que nos cerca, qualificando-nos, assim, para nela agir. Portanto, concluímos, quanto maior a apropriação linguística proficiente, maiores as condições de inserção social, ou seja, quanto maiores as habilidades de manuseio proficiente da linguagem, especialmente a verbal, maiores as qualificações para a construção do conhecimento, facultado por aquelas categorias. A linguagem, ao longo da sua história, tem sido concebida como representação do pensamento, como instrumento de comunicação ou como forma, processo de interação social. As duas primeiras concepções veem a linguagem de dentro (homem) para fora (mundo), enquanto a terceira, a vê de fora para dentro, pois é entendida a partir da interação dos diversos discursos entre os interlocutores, um jogo de interlocução, como diz Koch (2000), em que o ser humano tem a capacidade de interagir socialmente por meio da língua das mais diversas formas e com os mais diversos propósitos e resultados. Inicialmente, a concepção mais tradicional sobre a linguagem, expressão do pensamento, considera a língua como um canal condutor do que se construía internamente nas mentes, para depois se exteriorizar. Segundo Koch (2005, p.13), dentro desta perspectiva, o sujeito corresponde à imagem de um sujeito psicológico, individual, dono de suas vontades e de suas ações. Ainda de acordo com Koch, esse sujeito é visto como ego construtor de uma representação mental e desejoso de que esta seja captada pelo interlocutor da maneira como foi mentalizada. Dessa perspectiva, decorre que se coloca em foco o caráter da individualidade, no locutor, cuja mente torna-se a instância central desse modelo 24 de concepção, concebendo a linguagem como um ato monológico e isolado, em que a comunicação é substituída pela expressão construída exatamente no interior da mente do indivíduo, interpretação que despreza as circunstâncias de produção. O texto, para Travaglia (1998, p. 22), nesse período da história, não considerava a situação comunicativa de onde, quando, para que/quem se fala/escreve, por exemplo. Em consonância com Travaglia (1996), nessa concepção o ensino da língua dá-se de forma prescritiva, que objetiva levar o aluno a valorizar a variedade da língua chamada padrão, considerada como “correta” e “aceitável” em detrimento da linguagem que traz de casa, ou seja, os padrões linguísticos do aluno e a sua fala são considerados “errados” e “inaceitáveis”. A segunda noção de linguagem é a de que a língua se constitui como um mero instrumento de comunicação, que focalizava a emissão de uma mensagem de um emissor para um receptor. A base desse pensamento é a forma ou a estrutura da língua, surgida com o estruturalismo de Saussure (Curso de Linguística Geral, 1996). Para Marcuschi (2008, p.27), este modelo de estudo concebe a língua como um código e um sistema de signos, desfocando o aspecto de sua realização na fala ou no seu funcionamento em textos. Porém, conforme salienta Marcuschi (2008, p. 22), por se situar no uso, o texto não pode ser tratado como mera unidade do sistema, o que, para o autor, dificulta a observação do seu funcionamento. Essa concepção de linguagem ainda não rompe com a anterior, pois desconsidera ainda a situação comunicativa, os aspectos socio-históricos e culturais da linguagem. Travaglia (1996) diz que essa concepção prioriza o ensino descritivo da língua, procurando demonstrar o funcionamento das habilidades linguísticas adquiridas sem alterá-las. Outra perspectiva pela qual se pode entender a língua é através da noção de linguagem como um processo de interação (Bakhtin, 1995), em que não é apenas a exteriorização do que pensamos, tampouco a transmissão unilateral de uma mensagem que vai de um emissor para um receptor. Ao contrário, para esse modelo, a linguagem é vista como um produto além do cognitivo, quer dizer, ela se 25 instaura a partir de uma atividade socio-histórica e sociointerativa, nos dizeres de Marcuschi (2008, p. 61). Essa visão bakhtiniana da linguagem relaciona-se diretamente com a construção do sujeito que se constitui ouvindo e assimilando o discurso do outro, pois o diálogo é um conceito básico, como veremos mais a frente sobre o conceito de dialogismo. Desse modo, as ações humanas sobre a linguagem são consideradas em seus aspectos sociais, culturais e cognitivos, de maneira que a ação situacional é condição para a elaboração do texto. Embora não se deva esquecer a sistemática formal da língua sob essa visão, é o contexto sócio- histórico e a produção de sentidos dele advinda que dará lugar à produção de textos, sejam eles, orais e/ou escritos. O ensino da língua, nesta perspectiva, dá-se de forma produtiva, pois objetiva também ensinar novas variedades que contribuem para o aumento do uso da língua materna de modo variável, de maneira que o aluno possa se expressar, adequadamente, em todas as circunstâncias da vida social. Nessas três fases, o conceito de texto e, portanto, sua metodologia de ensino assume significados diferentes; consequentemente, o que se desenvolveu em relação à produção de textos deu-se dentro de cada um destes vieses. Assim, não se deve falar em erros ou acertos, mas em realidades divergentes, conforme cada época em que se viveu e em que se maturou a sociedade. Atualmente, a educação de uma maneira geral, passa por profundas transformações. Elas também demandam dos profissionais da educação reflexões acerca do que é inserir nosso aluno numa sociedade cada vez mais letrada, na qual a troca e o ritmo de informações não se esgota jamais. Neste contexto, ler e escrever torna-se essencial para o bom desempenho das atividades diárias dos professores e dos seus alunos. Na verdade, salientando- se aqui a noção de letramento como “processo socio-histórico”, cujas investigações, lembra-nos Tfouni (2012, p. 78), devem remetê-lo “às transformações que ocorrem em uma sociedade quando suas atividades passam a ser permeadas por um sistema de escrita”, temos como consequência imediata uma questão fundamental, qual seja, a de que “em uma sociedade 26 letrada as práticas sociais encontram-se inevitavelmente baseadas no letramento, sendo que a escrita passa a funcionar como mediadora entre estas e o sujeito” (TFOUNI, idem, Ibidem. Grifos nossos). Então, os docentes, enquanto produtores de textos ou como educadores, ao assumirem determinada posição teórica (por isso mesmo, uma abordagem metodológica), assumem também a responsabilidade pelo caminho que conduzirão suas práticas pedagógicas. Isso significa dizer que do fruto das suas reflexões e consequentes ações dependerão, pelo menos a princípio, o bom andamento do processo de produção dos próprios textos e dos textos dos seus alunos no futuro. O que seria, então, um texto e como seria a sua escrita a partir de cada um desses paradigmas apresentados? As concepções de escrita de textos estão vinculadas às várias abordagens de ensino que, por sua vez, refletem as concepções de escrita, sobretudo, nos Anos Finais do Ensino Fundamental. Seria demasiado extenuante buscar um conceito que englobasse todas as nuances que hoje a Linguística Textual, por exemplo, usa para explicar o que é um texto. Mas, antes de fazer qualquer afirmação sobre um determinado conceito, deve- se primeiramente delimitar, ou melhor, dizendo, evidenciar o que se entende por ensinar e aprender uma língua, ou seja, que abordagem conduz o pensamento do professor sobre ensino-aprendizagem. Fica patente que se deve pautar numa abordagem que entenda a língua como um produto socio-histórico e cognitivo. A partir desta noção, o texto é concebido, no dizer de Marcuschi (2008), como um produto ou processo da interação que se realiza entre os interlocutores de uma determinada situação comunicativa, visto que esta interação é fruto de fatos da linguagem que têm caráter eminentemente social. 2.2 Concepções de língua e texto A linguagem constitui um horizonte mais amplo que a língua, abrangendo todas as línguas e sistemas simbólicos; já a língua constitui um recorte, um sistema particular realizado histórica e culturalmente, ou seja, um sistema singular de signos 27 verbais particular, historicamente realizado, da linguagem humana, constitui uma língua. Para maior entendimento da concepção dialógica que baliza a presente pesquisa, vamos ampliar algumas noções de língua, para melhor compreensão da noção aqui adotada: língua na perspectiva sociointerativa. Marcuschi (2008, p.59) mostra-nos a concepção de língua a partir de vários ângulos teóricos, que vão desde o entendimento de língua como forma ou estrutura, como instrumento ou sistema de codificação, como atividade cognitiva e como atividade sociointerativa situada. A primeira noção, a de língua como forma ou estrutura, segundo o linguista (2008), equivale a um sistema de regras, cuja autonomia é defendida diante das condições de produção. Ainda conforme o autor, a língua, dentro desta visão formalista e entidade abstrata, é Tomada como código ou sistema de signos e sua análise desenvolve-se na imanência do objeto. Esta perspectiva foi inaugurada no século XIX, tendo-se consolidado com Saussure e Chomsky; não se buscam explicações transcendentes para o fenômeno linguístico, desleixando-se o contexto e a situação, bem como os aspectos discursivos, sociais e históricos. Aqui há uma certa dificuldade de tratar a questão da significação e os problemas relativos à compreensão. Também fica muito difícil observar o funcionamento do texto, que não é uma unidade do sistema, pois, como se verá, o texto situa-se no uso do sistema (MARCUSCHI, p. 59, 2008). Assim, a língua é compreendida como um sistema homogêneo, em que se distinguem níveis de análise formal, não ultrapassando a unidade máxima da frase, dedicando-se aos níveis estruturais fonológico, morfológico, sintático e semântico, cujas unidades são, respectivamente, o fonema, o morfema, o sintagma ou oração e o sema ou conceito ou proposição. Todas elas fora de qualquer contexto situacional. A língua, enquanto instrumento ou sistema de codificação, parte de uma visão mais simplista, pouco útil, mas muito comum nos materiais didáticos. Ela não atinge nenhuma abstração desejável por desvincular a língua de suas características importantes, os aspectos cognitivos e sociais. 28 Já a noção de língua como atividade cognitiva confina a língua à sua condição exclusiva de fenômeno mental e sistema de representação conceitual, o que dificulta o entendimento da influência, nela, da cultura, de experiências e da realidade cotidiana. Desta forma, mais adequada aos nossos interesses, podemos chegar à visão de língua como uma atividade sociointerativa, contemplando-a em seu funcionamento social, cognitivo e histórico, ou seja, textual-interativa, desenvolvida em contextos comunicativos socio-históricos. Como nas palavras de Marcuschi (2008, p.61), “a língua é um conjunto de práticas sociais e cognitivas historicamente situadas”. O pensar sobre a prática pedagógica leva ao conceito que os professores possuem sobre língua, sem radicalizá-lo; e, somado a isso, considerando todos os conceitos que a língua passa a ter, é possível trabalhar com ela numa perspectiva mais responsiva e responsável, do ponto de vista de seu domínio. Se o conceito de língua for voltado para o código, corre-se o risco da priorização do ensino formal, baseado apenas em teorias gramaticais, distante da realidade de uso do idioma nativo do aluno, valorizando, por exemplo, questões de ortografia, na medida em que escrever é visto como expressão em grafia correta. Se a língua for concebida como sistema, pode-se ensiná-la a partir da ótica de que escrever é usar corretamente as regras gramaticais. Se a língua é vista como estrutura, para o professor escrever, ele deve saber organizar um texto coerente e coeso em suas partes formais constitutivas. Todos são conceitos importantes, imprescindíveis ao sujeito discursivo, mas a língua vai além disso tudo: a língua é discurso, a língua é interação, envolve o outro, envolve contextos que vão muito além da sala de aula, envolve situações que determinam os gêneros a serem utilizados. Enfim, a língua é viva, é a usada no nosso cotidiano. Partindo da perspectiva de língua sociointerativa, a noção de texto, por esta pesquisa entendido, é a de enunciado como materialização do discurso que, por meio da linguagem socio-historicamente determinada, gera significação. Portanto, texto não é gênero, consequentemente tipos de texto também não o são. Estes, 29 segundo Marcuschi (2002), são definidos pela natureza linguística da sua composição, enquanto os discursos o são por características sociocomunicativas. No âmbito da sala de aula, o texto é representado pelos chamados “gêneros escolares”, lidos e produzidos dentro de pelo menos seis “formatos” (narrativo, descritivo, expositivo, argumentativo, injuntivo e da ordem de relatar), enquanto os gêneros discursivos são “entidades da vida” em textos, materializados em números que tendem ao infinito, relacionados às atividades sociais humanas. Desse modo, a entidade “texto” costuma ser considerada em seu aspecto organizacional interno; já o seu funcionamento, sob o ponto de vista enunciativo, vai além da frase, constituindo uma unidade de sentido, compondo a unidade máxima de funcionamento da língua. Para Koch, Falar de texto é falar de sentido, ou melhor, de sentidos. Ainda mais quando levamos em conta que esse sentido é construído na relação que se estabelece entre autor, texto e o leitor. Isto significa dizer que, para essa atividade, concorre uma série de conhecimentos provenientes de uma intricada relação envolvendo aqueles três elementos (1997, p.190). Tomam-se aqui os princípios da Teoria da Enunciação, baseada em Bakhtin (2010), em que se leva em conta a enunciação como evento único, jamais repetido, de produção de enunciado. Assim, quando algo é dito, vêm junto, determinadas, as condições de produção que constituem o sentido do que é expresso, como o modo como se diz e as marcas do enunciador que determinam o sentido; a entonação; o tempo; o lugar; o contexto; papéis representados; as relações sociais e a atitude. Charles Bazerman (2011), no texto Gêneros textuais, tipificação e interação, traduzido e adaptado por Judith C. Hoffnagel, fornece meios para identificar as condições sob as quais o trabalho realizado pelo texto na sociedade se concretiza, partindo de uma abordagem analítica numa série de conceitos. E quais seriam aqueles meios? Fatos sociais, atos de fala, gêneros, sistemas de gêneros e sistemas de atividades, enumera Bezerman. E ainda esclarece: Os fatos sociais consistem em ações sociais significativas realizadas pela linguagem, ou atos de fala. Esses atos são realizados através 30 de formas padronizadas, típicas e, portanto, inteligíveis, ou gêneros, que estão relacionados a outros textos, e gêneros que ocorrem em circunstâncias relacionadas. Juntos, os vários tipos de textos se acomodam em conjuntos de gêneros, os quais fazem parte dos sistemas de atividades humanas. (2011, p. 22) Trazendo cada conceito para a situação pragmática, podemos conceber fatos sociais como eventos tidos como verdadeiros que interferem na definição de situação, pois podem estar relacionados com a compreensão de mundo, matéria de compreensão social e exemplares textuais aceitáveis, cujas palavras são consideradas como atos completos respeitados como feitos (documentos comprobatórios). Todo enunciado é realizado por atos de fala, cujos níveis se encontram no ato locucionário (o que se diz), no ato proposicional (proposição dada) e no ato ilocucionário (intenção que se quer atingir). Devem convergir para o efeito perlocucionário (aceitação da proposição, por parte do ouvinte/leitor, como fato). Desse modo, chega-se à compreensão de gênero como Fatos sociais sobre tipos de atos de fala que as pessoas podem realizar e sobre os modos como elas realizam. Gêneros emergem nos processos sociais em que pessoas tentam compreender umas às outras suficientemente bem para coordenar atividades e compartilhar significados com vistas a seus propósitos práticos. Os gêneros tipificam muitas coisas além da forma textual. São parte do modo como os seres humanos dão forma às atividades sociais (BAZERMAN, 2011, p. 32). Alguns conceitos envolvendo aspectos diferentes demonstram como os gêneros (noção mais detalhada no item 2.5) se configuram e se enquadram em organizações, papéis e atividades, a partir da ideia de conjunto de gênero, que “é a coleção de tipos de textos que uma pessoa num determinado papel tende a produzir” (BAZERMAN, 2009, p. 32). Assim, nas ações de linguagem, do ato mais simples de rabiscar um bilhete ao mais complexo, como a escrita de um texto de opinião, palavras e enunciados revelam o caráter semiótico essencialmente social, cuja elaboração textual se direciona a um interlocutor previsto. É Pereira quem explica: 31 Quantas vezes, também, pensamos em um destinatário específico, com o qual nos comprometemos, estabelecendo laços de uma cumplicidade que, quando não compartilhada e, então, ignorada por esse leitor específico, acaba por despertar outros leitores e outros laços de cumplicidade. Tudo isso acontece porque não enunciamos no vazio das relações interpessoais, estamos inseridos, sim, desde sempre, em situações de práticas sociais de linguagem que vão construindo, ampliando e compartilhando os sentidos do que falamos e escrevemos (2012, p. 13). Produção de texto, de qualquer gênero, em qualquer modalidade, oral ou escrita, não é apenas o exercício da escrita vista pelo viés monológico, produz-se texto lendo, falando, ouvindo e escrevendo. As situações podem ser formais ou informais. O indivíduo é um sujeito discursivo na medida em que ele tem e vivência experiências linguísticas. Sabe-se que a oralidade surgiu antes da escrita; porém, esta se tornou, ao longo do tempo, mais valorizada e seu domínio, compondo as sociedades letradas, tornou-se um passaporte para a civilização moderna e para o conhecimento. Visão que talvez justifique o tratamento dicotômico dado pela escola com relação à oralidade e ao letramento, conferindo à escrita a noção de supremacia cognitiva. Contudo, é preciso partir de uma concepção de língua e texto como conjunto de práticas sociais com usos distribuídos na vida cotidiana tendo a intenção sociocomunicativa como fundamento do uso da língua. É importante distinguir as dimensões de relações no tratamento da língua falada e escrita. Quando a referência é feita por meio da distinção entre práticas sociais, utiliza-se a terminologia oralidade e letramento; quando por meio da distinção entre modalidades de uso da língua, tem-se a fala e escrita. Cada uma com suas especificações, características, semelhanças e diferenças, o que não faz delas dicotômicas, ainda que, no decorrer da história, várias tendências lhes favorecessem tratamentos dicotomizados, como a perspectiva dicotômica estrita, de maior tradição entre os linguistas, cuja análise se volta para o código e não para o fato linguístico dividindo a língua falada e a língua escrita em blocos distintos a partir da prescrição de uma norma padrão. 32 Quando se trabalha a relação modalidade falada e modalidade escrita, tende- se tradicionalmente a analisar a primeira sob a ótica da segunda e esta, a partir da gramática codificada e das características de um sistema normativo da língua. Prática, portanto, em que não se observa a língua enquanto texto e discurso numa perspectiva interacionista a se preocupar com os processos de produção de sentido, “tomando-os sempre como situados em contextos socio-historicamente marcados por atividades de negociação ou por processos inferenciais” (MARCUSCHI, 2010, p. 34). Na observação da relação das expressões oral e escrita entendemos que se devem levar em conta alguns aspectos relevantes para os usos do código e não o código em si, a fim de eliminar a dicotomia estrita entre ambas para uma diferenciação gradual e escalar. Fala e escrita são modos de representação cognitiva e social que se revelam em práticas específicas, uma não é superior a outra, nem a fala apresenta propriedades intrínsecas negativas, nem a escrita propriedades intrínsecas privilegiadas. Numa sociedade que valoriza mais a escrita, a fala tende à estigmatização do indivíduo; porém, a oralidade e a escrita fazem parte do mesmo sistema de língua, são realizações de uma gramática única com peculiaridades de cada uma, com diferenças acentuadas, de modo que a escrita não representa a fala, ainda que se possa admitir, como Corrêa (2004), a chamada heterogeneidade constitutiva daquela em relação a esta. Há práticas sociais mediadas pela escrita e outras pela tradição oral, como também há gêneros discursivos que podem permear tanto a fala quanto a escrita, pois, segundo Marcuschi (2010), a língua se realiza de forma heterogênea, variada, histórica e socialmente e de forma indeterminada, ou seja, se manifesta em múltiplas formas, dinâmica, suscetível a mudanças, frutos de práticas sociais e históricas, indeterminados sob o ponto de vista semântico e sintático em situações de uso concreto como texto e discurso. É sob esse aspecto que importa refletir sobre a heterogeneidade da língua e suas duas abordagens, dialogia e monologia, que convergem para o mesmo objeto: a linguagem. Tais abordagens se aproximam porque a linguagem é produto da criação humana e não há como ignorar a dimensão humana na linguagem. Através dela, por exemplo, construímos um meio que nos possibilite sermos seres sociointerativos, dotados de história. 33 2.3 Dialogismo e monologismo Partimos de uma concepção sociointeracionista de linguagem, teoria de aprendizagem com foco na interação entre os sujeitos a partir de contextos históricos, sociais e culturais, sendo o conhecimento real do sujeito em aprendizagem o ponto que fundamenta o conhecimento potencial. Trabalhar sob essa perspectiva de ensino significa fazer questionamentos sobre a noção tradicional de língua, ainda em uso, e impetrar uma visão socio-histórica e dialógica dessa língua e do conhecimento. Desse modo, provocam-se atitudes reflexivas no docente e, este, em seus alunos, ou seja, o professor constantemente reflete sobre sua ação pedagógica a partir das teorias e, na realidade de sala de aula, busca desenvolver maior proficiência dos seus alunos em práticas de oralidade, de leitura e de escrita. A escrita, em situações reais de uso, favorecendo a progressão do domínio linguístico, revela-se, sabemos, mediadora de práticas interlocutivas. Ora, A interação tende a provocar mudanças tanto no sujeito quanto no destinatário, porque agimos sobre os outros e os outros sobre nós. A língua não se separa do indivíduo. Aprendê-la significa, a nosso ver, criar situações sociais idênticas às que vivenciamos no cotidiano. Em outros termos, o ato interlocutivo não deve se isolar das atividades cotidianas, visto que a linguagem não está dissociada de nossas ações e, portanto, aprender uma língua significa participar de situações concretas de comunicação (GONÇALVES, 2004, p. 2). Entende-se o conceito de dialogismo, nestes termos, como fundamental para a questão da produção escrita, pois ele, segundo Bakhtin (1986, p.85), permeia a concepção de linguagem, de mundo, de vida e de discurso. Para Bakhtin, o discurso é a “linguagem em ação”, constituída nas relações sociais, via interação verbal, realizada por meio de enunciações. O discurso não é individual, faz parte de um jogo entre interlocutores, seres sociais que constroem relações com vários discursos não atrelados à necessidade de diálogo face a face. Segundo Fiorin (2006, p. 166), “todo enunciado possui dimensão dupla, pois revela duas posições: a sua e a do outro”. 34 A língua funciona na relação entre indivíduos, na intersubjetividade, ou seja, nas relações sociais que envolvem os interlocutores do discurso, tendo cada um o seu repertório, valores sociais, ideologias, elementos sociais e linguagem próprios. Logo, podemos considerar a interação como um “espaço dialógico no qual as significações se constituem e se objetivam, no qual os sujeitos devem responder pelos sentidos mobilizados pela linguagem” (MORATO, 2007, p. 342). Vygotsky (1993) destaca muito apropriadamente que a conexão entre o sujeito e a realidade dá-se pela relação oriunda da significação simbólica, ou seja, através da linguagem, que, segundo Geraldi (1993, p. 45.), “é a condição sine qua non na apreensão de conceitos por meio dos quais os sujeitos compreendem a realidade do mundo e podem nele agir”. A construção dos sentidos, então, dá-se pelo intercruzamento de elementos linguísticos e não linguísticos em que os fatores linguísticos podem ser determinados pelos não-linguísticos. Quando se constrói um texto, representa-se nele toda essa gama de elementos que se cruzam, segundo Bakhtin (1986), de forma responsiva; todo texto origina-se de alguém e destina-se a alguém, constituindo a dinâmica intersubjetiva. Para Bakhtin (1986), mesmo a enunciação monológica constitui um elemento inalienável da comunicação verbal, sendo uma resposta a alguma coisa e só se realiza no processo de compreensão ativa e responsiva. Ainda, segundo o autor, a compreensão, dentro da perspectiva socio-histórica e dialógica da linguagem, se configura como uma atitude ativa e deve conter o germe de uma resposta. Outro fator presente na construção dos sentidos é a representatividade da linguagem no texto dentro do contexto que o motiva. O texto é a instância da reconstituição do contexto, pois, para Bakhtin (1986), a linguagem é heterogênea na dimensão histórico-ideológica, no sentido em que medeia as relações e práticas sociais onde circulam valores, crenças e ideologias, reflexos das estruturas sociais; portanto, se elas se modificam, a língua também se modifica. Kleiman e Sepulveda (2014) discorrem sobre o dialogismo como forma de despertar a interação, a curiosidade e o desejo dos alunos através de uma abordagem didático-pedagógica com enfoque na dialogia, interação (professor- aluno, aluno-aluno e aluno-professor), nas atitudes responsivas para a construção 35 do conhecimento sobre a língua. Assim, os alunos são orientados a partir de suas respostas, configurando uma situação de comunicação. Ou seja, [...] o contexto da aula pode ser constantemente redefinido na interação, porque, primeiro, o contexto não é algo que já está dado, e, segundo, porque a interação é uma atividade de produção de sentidos e através dela professor e alunos, particularmente o professor, pela desigual distribuição de poder na instituição, criam realidades e modificam o mundo (KLEIMAN e SEPULVEDA, 2014, p. 18). Já Cerutti-Rizzatti (2012) acrescentam, além da importância da interação didática, o engajamento entre os sujeitos participantes, numa interação dialógica. Não é o que, geralmente, ocorre nas escolas públicas, onde as práticas e abordagem pedagógicas são, predominantemente, ainda, monológicas. Isso, de fato, estimula o que entendemos ser uma dicotomização da relação entre o estudante (que a escola coloca na posição de um mero sujeito enunciador cujos dizeres simplesmente reproduzem os discursos escolares) e o sujeito autor, numa dimensão discursiva (detentor consciente da capacidade de controlar a unidade textual), em questões atinentes ao ensino da língua portuguesa escrita (cf. TFOUNI, 2012, p. 89-92). Uma das principais razões dessa dicotomização, no nosso entendimento, está em um ensino que “monologiza” a linguagem, abstraindo-lhe o usuário, retirando-a de seu contexto de uso por meio de um conjunto de procedimentos metodológicos e de conteúdos, inclusive os oriundos do material didático, quase sempre distantes das condições reais e concretas de interação social. A língua materna se configura aí como uma genuína disciplina escolar, com características que dificultam ao estudante ver no português, desse modo, um mecanismo cultural de comunicação sociointerativa. O monologismo refere-se a um discurso único, definitivo e uniforme, não deixando revelar outros discursos (portanto, sem uma conexão explícita com o seu contexto de produção). Se através de uma interação dialógica se pode interagir ativamente, intervir e transformar a realidade, por outro lado, a relação monológica 36 diante do mundo implica uma redução de possibilidades de intervenção da realidade. Os materiais didáticos, em geral, ainda têm o texto como o exercício da escrita, texto como pretexto, visto pelo viés monológico, cuja prática exclui toda a circunstância discursiva, com atenção predominante na estrutura linguística, facilitando a perpetuação do sujeito autor, reprodutor ou enunciador do discurso dominante. 2.4 O sujeito autor/histórico/discursivo e sujeito enunciador Quando o trabalho com a produção textual, via material didático ou não, dá-se isento da circunstância discursiva, com atividades de mera reprodução e/ou identificação de partes gramaticalmente “corretas” da construção de um texto, o estudante, a partir daqui, também visto como sujeito, em sua missão de reproduzir ou apontar as respostas “corretas”, é dado como um simples enunciador de práticas requeridas. Tais práticas são consideradas como as “ideais” para a produção textual, em tempo e espaço dominado pelo professor enunciador, através de uma aula tradicional, “monológica”, em que ele, professor, detém o saber, conhecimento e o que pode ou não constar no texto do aluno, polo passivo neste processo. Historicamente, a designação do aluno como sujeito parte da concepção de sujeito advinda de várias experiências, desde as sociedades primitivas, perpassando pela visão sobre o homem a partir de uma perspectiva cosmológica, teológica, mecânica e histórica. Para Ferreira-Rosa (2012), na Antiguidade Clássica, através da visão cosmológica, o sujeito é compreendido por meio da busca constante de si mesmo pela interioridade. Na Idade Média, pelo viés teológico, o sujeito é visto como submisso aos dogmas e preceitos religiosos para se salvar da perdição religando a Deus. Na modernidade, Ferreira-Rosa (2012) afirma que o sujeito passa a cuidar de si mesmo por positividade e mecanismos científicos e tecnológicos, prescindindo-se dos cuidados divinos. 37 Já vindo para a contemporaneidade, o sujeito é visto como histórico, o que descentra da sua interioridade, centrando-se na sua exterioridade, na busca do homem em relação a si mesmo, aos outros e ao mundo, mediados pela linguagem. É a partir desse sujeito histórico que se propõe a conceber o estudante como um sujeito, um ser dotado de experiências, presente num mundo com multiplicidades de saberes, dotado da capacidade, através da linguagem, de revisitar um passado, alterar o presente e previr um possível futuro. Voltando o olhar para a Linguística, relacionando com o que já foi dito sobre a linguagem em 2.1 deste mesmo capítulo, a noção de sujeito pode ser melhor entendida ao se lançar um olhar sobre as vertentes linguísticas estruturalista, gerativista, funcionalista, enunciativa e de Análise do Discurso. Parece ser esta última a que mais se ajusta à noção que esta pesquisa se propõe a considerar quando em trabalho de análise do material didático, proposto na introdução do estudo que a pesquisa se dispõe a desenvolver. Ainda, baseado em Ferreira-Rosa (2012, p.12), dentro da vertente estruturalista saussuriana, em que é a língua, em detrimento da fala, que deve ocupar o lugar de objeto de estudo por ser sistêmica, delimitada e homogênea, o sujeito é concebido como usuário desse “sistema abstrato regido por regras próprias para o estabelecimento de comunicação com outros indivíduos, servindo esse sistema como mediador entre pensamento e som, um construtor de unidades para as massas amorfas e nebulosas do pensamento”, pois, para Saussure (2006 p.22), a “língua é a parte social da linguagem, exterior ao indivíduo, que, por si só, não pode nem criá-la, nem modificá-la, ela não existe senão em virtude de uma espécie de contrato estabelecido entre os membros da comunidade”. Com Chomsky (2006), na teoria gerativista, não há distinção entre língua e linguagem, considerada um componente da mente humana, uma faculdade inata ao homem, já que o sujeito é indivíduo dotado de capacidades de usar a linguagem, de forma criativa, e competências para o desempenho linguístico. O sujeito escolhe as estruturas que harmonizam com suas intenções comunicativas. Na vertente funcionalista, acrescenta-se ao estudo da língua a interação social, cujo objetivo é o estabelecimento de relações comunicativas entre os usuários. Aqui, segundo Ferreira-Rosa (2012) baseado em Benveniste (1989), esclarece-nos: 38 , [...] o sujeito é entendido como um usuário linguístico, que manipula a língua de acordo com intenções próprias para interagir no social. Assim, o indivíduo, porque portador de uma individualidade e intencionalidade, constitui um senhor de seu dizer que domina o sistema, o qual, por sua vez, torna-se sensível às pressões de uso e, portanto, dinâmico e instável às realizações da interação social, estabelecendo relações comunicativas. (p. 13) Mesmo tendo a interação social como fundamental para a noção de sujeito, a corrente mantém ainda uma visão mecanicista, pois continuam as descrições classificatórias, ou seja, utiliza-se de mecanismos técnicos científicos para explicar a natureza da linguagem mediante realizações concretas, sem considerar o espaço e o tempo. A atenção, aqui, é voltada para o uso da língua pelo indivíduo. A partir da vertente enunciativa, o sujeito é entendido como o que coloca a língua em funcionamento, mecanismo determinante dos caracteres linguísticos da enunciação. Ainda Ferreira-Rosa (2012, p.14), baseado em Benveniste (1989), esclarece-nos: Somente após a enunciação é que a língua se torna uma instância do discurso, entendido como um ato único, produzido cada vez que se realiza um enunciado, ou seja, é o próprio ato de se produzir um enunciado e não o texto do enunciado (portanto, diferente da fala) que se torna objeto nodal da teoria enunciativa. Importa a manifestação da enunciação. Essa vertente ainda refuga fatores importantes como influxos exteriores que não aqueles produzidos pelo sujeito quando da apropriação da língua, como unidade gerativa de sentido, enquanto a Teoria do Discurso considera esses influxos levando em consideração os saberes teóricos-conceptuais sobre o sujeito a partir de uma concepção socio-histórica e ideológica para a linguagem. Nesta medida, ganha relevo a noção (cf. TFOUNI, 2012) de sujeito autor/ discursivo, em oposição a de sujeito enunciador, lugares, um e outro, que o jovem aprendiz pode assumir, quase sempre sob a decisiva influência da escola. Em linhas gerais, a autora (2012) caracteriza o primeiro com base no nível de controle, ou seja, de consciência em relação ao processo discursivo, exercido pelo escrevente/falante sobre o texto que produz, de modo a lhe manter a clareza, a 39 precisão, a unidade de sentido, com a capacidade, portanto, de escolher adequadamente as estratégias do que dizer e o modo de fazê-lo. Reforça-se, assim, o fator social da linguagem como a que permite a inserção do sujeito discursivo na sociedade. O sujeito discursivo, cujos saberes partem de uma concepção socio-histórica e lógica da linguagem, leva a evidenciar a discussão sobre o conceito de “gêneros”, discutido no próximo item. 2.5 A teoria bakhtiniana dos gêneros discursivos Historicamente, a discussão de conceito de “gêneros” vem desde a Grécia antiga com Platão e Aristóteles. O primeiro trata dos gêneros literários (épico, lírico e o dramático) e o segundo, além das espécies de poesia (gêneros literários) em Poética, trata também, em A Retórica, da linguagem relacionada à política em três gêneros de oratória pública: o deliberativo (caráter exortativo – refere-se ao futuro); o judiciário (acusativo ou de defesa – refere-se ao passado); e o epidítico (elogio ou censura – refere-se ao presente). A partir do século XX, Bakhtin e seu círculo estendem a reflexão sobre gêneros a todos os textos e discursos em distinção ou divisão, tanto na vida cotidiana como da arte, discutindo com os formalistas russos a abordagem dos gêneros poéticos através da divisão dos gêneros literários versus gênero visto como entidade da comunicação, da interação e do funcionamento da vida social. A partir da obra Marxismo e filosofia da Linguagem, (Bakhtin, 1929), estende-se o conceito de gênero a todas as produções discursivas humanas, ou seja, gênero dá forma a um discurso, a uma enunciação (efeito de sentidos discursivos, ecos ideológicos, as vozes, as apreciações de valor): Todas as esferas da atividade humana, por mais variadas que sejam, estão sempre relacionadas com a utilização da língua. Não é de surpreender que o caráter e os modos dessa utilização sejam tão variados como as próprias esferas da atividade humana […] A utilização da língua efetua-se em forma de enunciados (orais e escritos), concretos e únicos, que emanam dos integrantes duma ou doutra esfera da atividade humana. O enunciado reflete as condições 40 específicas e as finalidades de cada uma dessas esferas […] cada esfera de utilização da língua elabora seus tipos relativamente estáveis de enunciados, sendo isso que denominamos gêneros do discurso. (BAKHTIN, 1997, p. 290) O excerto acima resume os conceitos principais bakhtinianos acerca da teoria dos gêneros: língua, enunciado e gêneros do discurso. Ou seja, toda comunicação se dá por meio da utilização da língua, através de enunciados, que são formas de comunicação dentro de cada esfera de atividade humana. Esta elabora tipos relativamente estáveis de enunciados denominados gêneros do discurso. Segundo Rojo (2005), os gêneros discursivos possuem três dimensões, quais sejam, tema, forma composicional e estilo, determinados pelos parâmetros da situação dos enunciados e, sobretudo, pela apreciação valorativa do locutor a respeito do(s) tema(s) e do(s) interlocutor(es) de seu discurso. Nas palavras de Bakhtin/Volochinov (2004, p.134-135), “o valor apreciativo serve, antes de mais nada, para orientar a escolha e a distribuição dos elementos mais carregados de sentido de enunciação. Não se pode construir uma enunciação sem a modalidade apreciativa”; portanto, as dimensões citadas por Rojo (2005) sofrem modificações em função da apreciação do falante. Cada esfera de atividade humana possui uma diversidade de gênero do discurso que, em função das várias situações de comunicação que a língua possibilita, pode ampliar, diferenciar-se, tornar-se mais complexa. Dentro dessa diversidade os gêneros são inúmeros e infinitos: A riqueza e a diversidade dos gêneros do discurso são infinitas, porque são inesgotáveis, as possibilidades da multiforme atividade humana e porque em cada campo dessa atividade é integral o repertório de gêneros do discurso, que cresce e se diferencia à medida que se desenvolve e se complexifica um determinado campo (Bakhtin, 2003, p.262). Em termos de análise do enunciado, tendo em vista que a língua está num processo contínuo de evolução em função das influências socio-históricas, Bakhtin (2004) propõe um método sociológico: 41 1. As formas e os tipos de interação verbal em ligação com as condições concretas em que se realiza. 2. As formas das distintas enunciações, dos atos de fala isolados (gêneros), em ligação estreita com a interação de que constituem os elementos, isto é, as categorias de atos de fala na vida e na criação ideológica que se prestam a uma determinação pela interação verbal. 3. A partir daí, exame das formas da língua na sua interpretação linguística habitual. É nessa mesma ordem que se desenvolve a evolução real da língua: as relações sociais evoluem (em função das infra-estruturas), depois a comunicação e a interação verbais evoluem no quadro das relações sociais, as formas dos atos de fala evoluem em consequência da interação verbal, e o processo de evolução reflete- se, enfim, na mudança das formas da língua (p. 124). Como forma relativamente estável de enunciar, os gêneros, através de sua materialização, texto/enunciado, expressam por meio da língua uma significação que vai desde uma interjeição a uma compreensão responsiva de um romance através de limites precisos (fronteiras) dados pela alternância entre os falantes. Tais limites referem-se ao “dixi”, sinais de turnos de fala e acabamento, o que permite ao ouvinte/leitor a compreensão responsiva (réplica). O enunciado constitui-se de três fatores, segundo Bakhtin (1997), resumidos abaixo: 1) Alternância dos sujeitos do discurso – todo enunciado tem um início e fim absoluto, ou seja, antes do seu início já existiam enunciados dos outros e ao terminar o seu enunciado, o falante passa a palavra ao outro e espera a compreensão ativamente responsiva do seu interlocutor. Essa relação somente é possível durante o processo de comunicação verbal, em contexto real de diálogo. 2) Acabamento do enunciado – é a alternância dos sujeitos vista internamente, isto quer dizer a possibilidade de resposta ao fim de um enunciado determinada pelos critérios; o tratamento do objeto do sentido (tema); o intuito discursivo; o querer-dizer do locutor acoplado às formas do gênero do acabamento. O primeiro tem uma relatividade por ser determinado pela conclusibilidade de certos objetivos ou ideias. O segundo alude à vontade discursiva do falante, cuja intencionalidade verbalizada determina a conclusibilidade do enunciado, ou seja, o interlocutor é capaz de perceber quando o outro finalizou seu turno, para 42 que possa tomar o seu. Já o terceiro fator relaciona-se à escolha do gênero discursivo pelo sujeito, de acordo com sua intenção comunicativa, caracterizada em relação à esfera pela qual o discurso transitará, por seu conteúdo temático, pelas condições de produção e pela composição dos participantes. 3) Relação do enunciado com o próprio locutor e com os outros parceiros da comunicação verbal - é a execução do sentido intencional do locutor que vai determinar a escolha do gênero discursivo apropriado à determinada esfera de comunicação pelo locutor, escolha da composição e do estilo, dependendo da necessidade de expressividade do locutor ante o objeto de seu enunciado. Para Bakhtin (1979) se os gêneros do discurso não existissem e nós não os dominássemos, se tivéssemos que criá-los pela primeira vez no processo do discurso, de construir livremente pela primeira vez cada enunciado, a comunicação discursiva seria quase impossível. (p.283) Sendo assim, fica notório que os gêneros do discurso organizam as falas e norteiam a enunciação, pois o falante fala através de enunciados estruturados. Oportuno, neste momento, retomar os conceitos bakhtinianos inter- relacionados aos gêneros, ligados ao fator de acabamento do enunciado concreto: o tema, a construção composicional e o estilo, já mencionados anteriormente. O tema, uma particularidade do enunciado, é uma expressão de uma situação histórica concreta que origina o enunciado, assumindo um sentido específico de comunicação, para o qual devem ser considerados os elementos verbais, mas, principalmente, os extra verbais, como a identidade, o papel dos interlocutores, a esfera de circulação, o momento histórico, ideologia e a intencionalidade do falante. A exemplo do exposto acima, Bakhtin (1979) cita o enunciado “Que horas são?”, cuja significação depende de diferentes situações históricas concretas. Basta imaginar essa enunciação feita por um professor em sala de aula, ou por um aluno também na sala de aula ou ainda por uma criança à sua mãe, em uma cozinha. Têm-se aí diferentes sentidos, respectivamente, o de quanto tempo o professor tem para terminar de passar o seu conteúdo; o de revelar a vontade do aluno do término 43 da aula; e o de que a criança está com fome e quer saber a hora do almoço. Portanto, o tema é determinado em função da situação histórica concreta, como as três vistas, além dos elementos linguísticos presentes, como palavras, escolhas sintáticas, fonética, entonação. O conceito construção composicional refere-se à forma ou estrutura composicional dos enunciados. Seria o esquema geral do texto, a estruturação textual em partes. Bakhtin (1979) faz uma comparação entre a forma arquitetônica, projeto de dizer do autor, e a forma composicional, a textualização do projeto, que seria, em certo sentido, o acabamento geral de um texto e se configuraria como algo próximo ao que se denomina gênero discursivo. O conceito estilo trata-se do tipo de linguagem que se pode utilizar, é a apreciação valorativa do falante que determina o seu aspecto expressivo por meio da escolha dos recursos lexicais, gramaticais e composicionais do enunciado. Essa escolha pode se caracterizar por alguns princípios, conforme Rojo (2015), sintetizado abaixo: 1) Princípio expressivo do discurso expresso no enunciado concreto; 2) Princípio da expressividade marcada pela relação emotivo-valorativa, por meio da entonação expressiva, do locutor com o objeto do discurso; 3) Significação de uma palavra dentro do enunciado, através dos recursos lexicais, gramaticais que guiam as intenções ao todo do enunciado; 4) Dialogicidade com outros enunciados; 5) Relação do locutor com seu interlocutor; 6) Percepção/recepção do interlocutor na escolha dos gêneros presumindo uma compreensão responsiva ativa; 7) Individualidade e coletividade refletidas nos gêneros. Finalizando, para Rojo (2015, p.187), O conceito de gênero discursivo dentro da perspectiva bakhtiniana é definido e diferenciado do “tipo de texto”, “textos” e “enunciados”. Gêneros são entidades que funcionam em nossa vida cotidiana ou pública para nos comunicar e interagir com as outras pessoas (universais concretos). 44 Assim, percebemos o gênero discursivo através de uma ativação prévia do que já conhecemos e utilizamos na nossa vida cotidiana (seja oral ou escrito), desde uma saudação simples (gêneros primários) à linguagem que serve a finalidade pública (gêneros secundários). Desse modo, no ensino da língua materna, é importante ter clara a distinção de que tratam os parágrafos anteriores para o trabalho, em sala de aula, com a produção textual escrita, pois o estudo dos gêneros deve ocorrer numa perspectiva discursiva, ou seja, enquanto materialidade linguística que se manifesta em diferentes formas de textualização. Os materiais didáticos devem favorecer uma análise de textos possibilitando a reconstrução dos sentidos/tema do texto ao levar em conta o diálogo entre seus elementos constituintes (sintaxe, léxico etc) e seu contexto de produção; o diálogo entre o gênero a que o texto pertence e a esfera em que o mesmo circula; os aspectos enunciativos (momento histórico, lugar social etc) e discursivos (relação entre interlocutores, lugar social, intenções do locutor) e a dialogicidade com outros textos. Visando a prática a partir da perspectiva discursiva, segue um estudo feito por Schneuwly e Dolz (2004) por meio de agrupamento de gêneros que oferece uma organização de ensino para que se chegue a uma aprendizagem. 2.6. Agrupamento dos gêneros segundo os pesquisadores de Genebra Um grupo de pesquisadores de Genebra, representado pelos didaticistas Bernard Schneuwly2 e Joaquim Dolz3, estuda a prática de ensino de língua através dos gêneros textuais, equivalente aos gêneros discursivos na perspectiva bakhtiniana, e propõe um agrupamento de gêneros ancorados nas capacidades de linguagem globais às tipologias existentes. 2 Professor catedrático na Faculdade de Psicologia e Ciências da Educação (PASE) da Universidade de Genebra (hoje aposentado). Graduou-se em Psicologia Genética Experimental e fez Doutorado em Ciências da Educação. Juntamente com Dolz, coordena projetos de pesquisa do GRAFE. Université de Genève. Uni Mail, 40 bd du Pont-d´Arve, CH – 1205 Genève 4, Suisse. 3 Professor catedrático na Faculdade de Psicologia e Ciências da Educação (PASE) da Universidade de Genebra. Em parceria com Schneuwly, coordena o GRAFE (Groupe de recherche pour l’analyse du français enseigné), dirigindo pesquisas sobre a formação de professores e o ensino do oral na Suíça romanda. Université de Genève. Uni Mail, 40 bd du Pont-d´Arve, CH – 1205 Genève 4, Suisse. 45 Por meio desse agrupamento e com base em três critérios, quais sejam, domínio social da comunicação a que os gêneros pertencem; as capacidades de linguagem envolvidas na produção; e compreensão desses gêneros e sua tipologia geral, os pesquisadores procuram demonstrar uma sistematização de um trabalho articulado que pode propiciar novas propostas de progressão, isto é, segundo Dolz & Schneuwly (2004), que pode oferecer uma organização temporal de ensino para que se chegue a uma aprendizagem, seja por meio de Sequência Didática (SD), cujo modelo desenvolvido por eles não será aqui aprofundado, ou outra estratégia didática definida pelo professor ou pelo sistema a que ele está ligado. Para uma melhor visualização e compreensão, segue o quadro construído a partir do agrupamento de gêneros do grupo de Genebra: Agrupamentos de gêneros Domínios sociais de comunicação Aspectos tipológicos Capacidades de linguagens dominantes Gêneros orais e escritos Cultura literária ficcional Narrar Mimeses de ação através da criação da intriga no domínio verossímil Conto maravilhoso Contos de fadas Fábulas Lenda Narrativa de aventura Romance Novela Piada Paródia Conto Narrativa de ficção científica Narrativa mítica Documentação e memorização das ações humanas Relatar Representação pelo discurso de experiências vividas situadas no tempo Relatos de experiência de vida; Relatos de viagem; Diário íntimo; Testemunho; Anedota; Autobiografia; Notícia; Reportagem; Curriculum vitae; Crônica mundana; Crônica esportiva; Biografia; Discussão de problemas sociais Argumentar Sustentação, refutação e Texto de opinião; Diálogo argumentativo; Carta de leitor; Carta de reclamação; 46 controversos negociação de tomadas de posição Carta de solicitação; Deliberação informal; Debate regrado; Editorial; Discurso de defesa; Requerimentos; Ensaio; Resenhas críticas Transmissão e construção de saberes Expor Apresentação textual de diferentes formas de saberes Texto expositivo; Conferência; Artigo enciclopédico; Entrevista de especialista; Texto explicativo; Tomada de notas; Resumo de textos expositivos e explicativos; Resenhas; Relatório científico; Relatos de experiências científicas; Instruções e prescrições Descrever ações Regulação mútua de comportamentos Instrução de montagem; Receita; Regulamento; Regras do jogo; Instruções de uso Comando diversos Textos prescritivos Figura 1 quadro baseado em Schneuwly (2004) Para Schneuwly (2004, p.121), o agrupamento dos gêneros, conforme o quadro acima, trata-se de capacidades globais que se devem construir ao longo da escolaridade, isto é, devem-se “construir, com os alunos, em todos os graus de escolaridade, instrumentos, visando ao desenvolvimento das capacidades necessárias para dominar os gêneros agrupados”. Schneuwly (2004) propõe ainda que cada agrupamento seja trabalhado em todos os níveis da escolaridade, justificado pelas seguintes razões, abaixo descritas resumidamente: • Princípio pedagógico: oferece vias diferentes de acesso à escrita; capacidades de escrita de cada aluno não se distribuem uniformemente, ou seja, cada aluno tem uma afinidade com determinado agrupamento, e a escrita aparece como um domínio que se pode abordar por diversos caminhos, mais ou menos fáceis. • Ponto de vista didático: diversificação dos gêneros, regulada pelos agrupamentos, trabalho de comparação de textos, isto é, princípio elementar de construção por confronto com o mesmo e o diferente. 47 • Aspecto psicológico: numerosas operações de linguagem ligadas a um agrupamento de gêneros que exigem um ensino-aprendizagem direcionado, em diferentes níveis de mestria. • Finalidades sociais: desenvolvimento das capacidades dos alunos em domínios tão diversos quanto a linguagem como instrumento de aprendizagem a serviço da relação do homem com o mundo e consigo mesmo. Sucintamente, as ideias de Schneuwly (2004) priorizam a diversidade de gêneros, um modelo de ensino modular (mais aplicável às SDs), aplicável a todos os anos de aprendizagem, organização da progressão no ensino através dos diferentes segmentos do Ensino Fundamental e o processo de ensino-aprendizagem em espiral. Salienta-se ainda, o poder de transformação do funcionamento da escola com relação à produção escrita que se pode multiplicar na sala de aula entre os alunos, entre salas da mesma escola, entre escolas através da situação de comunicação, vista como geradora dos gêneros. Schnewly e Dolz (2011) tratam do ensino de gêneros através de S.D, já mencionado neste subitem, do agrupamento de gêneros (vide quadro de agrupamentos dos gêneros p. 45/46) e da progressão. Importa, neste momento, retomar a progressão através dos ciclos/séries. Os princípios da progressão são a organização em torno de agrupamento dos gêneros, progressão em espiral, gêneros tratados de acordo com os ciclos/séries, aprendizagem precoce e níveis de complexidade gradual evitando a repetência. Desses, três sãos primordiais ao trabalho com gêneros textuais em sala de aula: a organização em torno dos gêneros, o ensino em espiral e os níveis de complexidade gradual. O agrupamento organizado em torno dos gêneros é possível em cada uma das cinco tipologias: narrar, relatar, argumentar, transmitir conhecimento e regular comportamentos. Há a possibilidade de um mesmo gênero ser trabalhado em diferentes ciclos/séries com objetivos cada vez mais complexos ou trabalhar diferentes gêneros de um mesmo agrupamento. 48 A progressão em espiral possibilita o melhor domínio do mesmo gênero em diferentes níveis [...]. O que varia de um nível para outro são os objetivos limitados a serem atingidos em relação a cada gênero: as dimensões trabalhadas, a complexidade dos conteúdos e as exigências quanto ao tamanho e ao acabamento do texto. Em cada nível, o aluno terá se exercitado na produção de gêneros pertencentes a diversos agrupamentos. (SCHNEWLY, 2011, p.104) A abordagem de cada gênero pode ser dada em diferentes níveis de complexidade e “em diferentes etapas do ensino fundamental; porém, com objetivos graduados, tanto do ponto de vista da organização e da construção de personagens típicas como das unidades linguísticas que o caracterizam” (SCHNEWLY, 2011, p.105). Na prática, vejamos como ocorre o trabalho com os gêneros a partir da atividade de produção escrita no contexto escolar, mais especificamente nos 9º anos do Ensino Fundamental. 2.7 A produção escrita no contexto escolar Com decisivas influências na organização social, econômica, política, a escrita, nos moldes como hoje a conhecemos, é uma atividade que pertence ao contexto da vida humana há milhares de anos, desde quando a evolução do homem permitiu a criação de códigos de comunicação. No mundo contemporâneo, caracterizado por uma sociedade eminentemente letrada, a ausência do domínio do código escrito, mediador de práticas sociais letradas, tende a comprometer uma comunicação eficiente, com prejuízos diversos a mobilidades sociais, ao acesso a possibilidades de crescimento profissional, representando, portanto, um relevante fator de exclusão social. Torna-se essencial, desse modo, que a escola desenvolva essa habilidade e prepare os alunos para o uso da escrita, nos diversos gêneros textuais e nas mais diferentes situações, observando a promoção de interações sociais e o desenvolvimento profissional, fora do âmbito escolar. 49 Mesmo sendo esta uma tarefa crucial da escola, muitas são as evidências de que ela não tem conseguido obter êxito na formação dos alunos, membros plenos da sua comunidade, de modo a torná-los leitores e escritores com níveis de proficiência adequados à idade/ano escolar em que se encontram. Entretanto, dadas as especificidades e limites deste estudo, vamos nos ater a questões mais diretamente relacionadas à prática didático-pedagógica. Sob tal perspectiva, ponderamos inicialmente que o trabalho com a produção escrita vai exigir do professor o conhecimento e o domínio de base teórica consistente, a formação constante, além da disposição para trabalhar de maneira diversificada, com a responsabilidade de procurar desenvolver nos educandos aptidões cuja finalidade seja claramente a de levá-los a apreender, com os mais diversos gêneros discursivos, gêneros textuais, diferentes assuntos. Nessa linha de análise, segue um referencial teórico embasando a concepção de produção escrita para compreender este processo de aprendizagem no contexto dos diversos documentos que norteiam o processo de ensino no Estado de São Paulo, com destaque para a Base Nacional Comum Curricular e o Currículo Paulista do Estado de São Paulo, em vigor até 2018, especialmente no Ensino Fundamental – Anos Finais – 9º ano, além de algumas referências à implantação do Currículo Paulista, assunto para um próximo trabalho. Ao se tratar da importância dos gêneros textuais é necessário promover uma reflexão contextualizada da produção oral: a produção da fala, que está intrinsecamente ligada a um contexto. A mesma situação ocorre com a escrita. Fique evidente que, se o texto representa o contexto do qual é oriundo, e nele significa, qualquer prática pedagógica destinada à aprendizagem do idioma materno (ou mesmo de uma segunda língua) não poderia prescindir de um trabalho que explorasse e estudasse a relação vital entre o texto (oral ou escrito) e o seu contexto. Neste sentido, a se considerar esta conexão, “a aprendizagem da língua oral e escrita se faz pela confrontação com um universo de textos que já nos são dados de antemão. É uma apropriação de experiências acumuladas pela sociedade” (DOLZ; GAGNON; DECÂNDIO; 2008, p.40). Como já especificado anteriormente, o mundo contemporâneo exige do indivíduo habilidades de leitura e de escrita para o melhor desempenho das práticas sociais, de modo que o uso dessas competências pode estabelecer condições 50 favoráveis ao aluno se tornar um leitor crítico e um produtor de textos competente e autônomo, ou seja, um sujeito discursivo. É certo que a ação de escrever, para ser efetivada, mobiliza várias habilidades e estratégias, como a coordenação motora, a atenção, o conhecimento enciclopédico, dentre outras. Ou seja, [...] a escrita mobiliza múltiplos componentes cognitivos. É por isso que ela pode ser considerada como uma atividade mental. Para escrever, o aprendiz precisa de conhecimentos sobre os conteúdos temáticos a abordar, mas também de conhecimentos sobre a língua e sobre as convenções sociais que caracterizam o uso dos textos a serem redigidos (DOLZ; GAGNON; DECÂNDIO; op. Cit). A valorização dos conhecimentos construídos ao longo do tempo pelo aluno é relevante, uma vez que estes conhecimentos (contextuais) de mundo (enciclopédico) estão presentes em seu cotidiano. Porém, é preciso que esta valorização ocorra de forma conjugada numa relação na qual autor e leitor compartilhem referências e possam participar de um processo de compreensão mútua, que é o ponto central da escrita como interação de diferentes p