UNIVERSIDADE ESTADUAL PAULISTA “JÚLIO DE MESQUITA FILHO” FACULDADE DE FILOSOFIA E CIÊNCIAS - FFC O IMPACTO DA CONFERÊNCIA DE SANTIAGO DO CHILE DE 1923 NAS RELAÇÕES BRASIL-ARGENTINA Autor: Alfredo Perozo Romeiro Orientadora: Profa. Dra. Noemia Ramos Vieira MARÍLIA 2022 ALFREDO PEROZO ROMEIRO O IMPACTO DA CONFERÊNCIA DE SANTIAGO DO CHILE DE 1923 NAS RELAÇÕES BRASIL-ARGENTINA Texto apresentado como Trabalho de Conclusão de Curso como parte das exigências para obtenção de título de Bacharel em Relações Internacionais pela Faculdade de Filosofia e Ciências (FFC), Universidade Estadual Paulista, campus de Marília. Área de concentração: Relações Internacionais Orientadora: Profª Dra. Noemia Ramos Vieira MARÍLIA 2022 Sistema de geração automática de fichas catalográficas da Unesp. Biblioteca da Faculdade de Filosofia e Ciências, Marília. Dados fornecidos pelo autor (a). Essa ficha não pode ser modificada. R763i Romeiro, Alfredo Perozo O impacto da conferência de Santiago do Chile de 1923 nas relações Brasil-Argentina / Alfredo Perozo Romeiro. -- Marília, 2022 54 p. Trabalho de conclusão de curso (Bacharelado - Relações Internacionais) - Universidade Estadual Paulista (Unesp), Faculdade de Filosofia e Ciências, Marília Orientadora: Noemia Ramos Vieira 1. Politica internacional. 2. Pan-americanismo. 3. Relações exteriores. I. Título. ALFREDO PEROZO ROMEIRO O IMPACTO DA CONFERÊNCIA DE SANTIAGO DO CHILE DE 1923 NAS RELAÇÕES BRASIL-ARGENTINA Texto apresentado como Trabalho de Conclusão de Curso como parte das exigências para obtenção de título de Bacharel em Relações Internacionais pela Faculdade de Filosofia e Ciências (FFC), Universidade Estadual Paulista, campus de Marília. Área de concentração: Relações Internacionais BANCA EXAMINADORA Assinatura:__________________________________________________________ Orientadora: Profª Dra. Noemia Ramos Vieira Universidade Estadual Paulista “Júlio de Mesquita Filho” Faculdade de Filosofia e Ciências, Campus de Marília Assinatura:__________________________________________________________ Profª Dra. Rosângela de Lima Vieira Universidade Estadual Paulista “Júlio de Mesquita Filho” Faculdade de Filosofia e Ciências, Campus de Marília Assinatura:__________________________________________________________ Mestra Ana Carolina Lirani Mazarini Universidade Estadual Paulista “Júlio de Mesquita Filho ” Faculdade de Filosofia e Ciências, Campus de Marília Marília, 22 de abril de 2022 DEDICATÓRIA Dedico este trabalho à minha amada avó Doris Rodriguez Bello, cuja serenidade, paciência e sabedoria me iluminaram desde a mais tenra infância, e cujo exemplo de bravura e lealdade sempre me inspirou a marchar, como ela, “a los lugares donde nadie quiera ir”. AGRADECIMENTOS Estendo os mais sinceros agradecimentos à Professora Dra. Noemia pela pronta aceitação do meu pedido de tê-la como orientadora, e pelo atento, paciente e cuidadoso aconselhamento acadêmico ao longo da confecção desta monografia. Da mesma forma, agradeço às Professoras da douta banca pelo privilégio de poder contar com sua participação e disponibilidade. Agradeço ainda o inabalável apoio de familiares e amigos, constantes fonte de inspiração e, sobretudo, a benção e suporte de meus pais, estrelas-guia nesta e em outras páginas de meu percurso. Finalmente, mas jamais por último, agradeço aos funcionários da Biblioteca do campus, que com grande zelo guardam essa fortaleza do saber como sentinelas que são, e cujo impecável profissionalismo viabilizou tanto o meu trabalho como incontáveis outros. Alfredo Perozo, Marília, 2022. “O Brasil é país de interesses globais, mas seus recursos de poder são limitados.” (Chanceler Ramiro Saraiva Guerreiro) “La América es una entidad política que no existe, ni es posible constituir por combinaciones diplomáticas.” (Chanceler Rufino Jacinto de Elizalde) “Un boulet de canon ne fait que six cents lieues par heure; la lumière fait soixante-dix mille lieues par seconde. Telle est la superiorité de Jésus-Christ sur Napoléon.” (Victor Hugo) RESUMO Este trabalho analisa os impactos da V Conferência Pan-Americana de Santiago do Chile de 1923 para as relações bilaterais Brasil-Argentina. O objetivo desta monografia é apurar os potenciais danos causados ao entendimento entre esses dois Estados devido a controvérsias ocorridas antes, durante e depois da Conferência em questão. O método utilizado para tal será o estudo e análise bibliográfica da literatura disponível sobre o tema, fazendo uma síntese dos dados existentes a respeito do fenômeno pan-americano e das relações bilaterais Brasil-Argentina com a V Conferência Pan-Americana como principal ponto de intersecção. Os resultados apontam para uma série de grandes reveses para as relações entre os dois Estados, que ocorreram lado a lado, contudo, com importantes gestos de aproximação, cooperação e amizade entre Brasil e Argentina. Conclui-se, portanto, que enquanto de fato o saldo da V Conferência Pan-Americana foi negativo para as relações Brasil-Argentina, os danos dela decorrentes foram limitados, e restritos ao curto prazo. Palavras-chave: Conferências Pan-Americanas; Política Externa Brasileira; Relações Brasil-Argentina. ABSTRACT This monography analyses the impacts of the 5th Pan-American Conference of Santiago de Chile of 1923 for the bilateral relations of Brazil and Argentina. The goal of this monography is to investigate the potential damages caused to the mutual understanding between both countries due to controversies which took place before, during and after the Conference in question. The method employed for this task is the bibliographical study and analysis of the avaliable literature on the topic, formulating a synthesis of the existing data on the pan-american phenomenon and the bilateral relations of Brazil and Argentina, with the 5th Pan-American Conference as the main point of overlap. The results thus obtained point to a series of major setbacks to the relations between those two States, which happened side by side, however, with important gestures of rapproachement, cooperation and friendship between Brazil and Argentina. It is concluded, therefore, that while the balance of the 5th Pan-American Conference was negative for relations between Brazil and Argentina, the damages stemming from it were limited, and restricted to the short term. Keywords: Pan-American Conferences; Brazilian Foreign Policy; Brazil-Argentina Relations. SUMÁRIO 1 INTRODUÇÃO 9 2 O PAN-AMERICANISMO E AS CONFERÊNCIAS PAN-AMERICANAS 12 2.1 O PAN-AMERICANISMO 12 2.2. AS CONFERÊNCIAS PAN-AMERICANAS 18 2.3 A V CONFERÊNCIA PAN-AMERICANA 23 3 AS RELAÇÕES BRASIL-ARGENTINA NO INÍCIO DA DÉCADA DE 1920 28 3.1 BREVE HISTÓRICO DAS RELAÇÕES BRASIL-ARGENTINA 28 3.2 RELAÇÕES BRASIL-ARGENTINA E A QUESTÃO DOS ARMAMENTOS 32 3.3 A V CONFERÊNCIA: BRASIL VERSUS ARGENTINA 37 4 A V CONFERÊNCIA NAS RELAÇÕES BRASIL-ARGENTINA 41 4.1 PRINCIPAIS PONTOS DE TENSÃO 41 4.2 PRINCIPAIS PONTOS DE DISTENSÃO 44 4.3 O SALDO DA V CONFERÊNCIA 47 5. CONCLUSÃO 49 REFERÊNCIAS 52 9 1 INTRODUÇÃO No âmbito do estudo das Relações Internacionais no Brasil, poucos assuntos ocupam o mesmo patamar de importância que as relações desse País com a Argentina. Desde o início da história do Brasil independente, a vizinha Argentina e as relações com essa República sempre foram assuntos de primeira ordem para a Política Externa brasileira. Investigar essas relações, e em especial a história delas, é de perenal relevância para o estudo das relações internacionais do Brasil de maneira geral. A V Conferência Pan-Americana, celebrada em 1923 na cidade de Santiago do Chile, e a década de 1920 em geral, representam alguns dos diversos capítulos relativamente pouco estudados da longa história das relações bilaterais Brasil-Argentina, se comparados ao abundante volume de produção acadêmica e literária dedicado ao estudo dessa mesma história. Ao estudar um recorte de um capítulo como esses, busca-se oferecer alguma contribuição para um maior esclarecimento do conjunto e, indiretamente, para debates mais recentes em torno de temáticas que lhe dizem respeito. Este é um assunto que sintetiza várias facetas importantes do estudo de Relações Internacionais no Brasil: as Conferências Pan-americanas e o pan-americanismo, a historia política externa brasileira, e as relações Brasil-Argentina. Uma vez que a presente pesquisa busca debruçar-se sobre um evento que aparentemente testou a resiliência das relações Brasil- Argentina, os resultados obtidos poderão ser inseridos num panorama mais amplo de diversas crises e dificuldades atravessadas pelas relações entre os dois países ao longo de sua secular história, concorrendo para a sua melhor compreensão. Dessa forma, o tema desta monografia consiste numa tentativa de, efetivamente, contribuir para o esclarecimento de uma área tão cara ao conhecimento em Relações Internacionais no Brasil, abordando, justamente, um assunto ao qual se deu relativamente pouca atenção até o presente momento – havendo, contudo, uma considerável bibliografia sobre a qual construir algum entendimento a mais acerca desta temática. Para tal, o objetivo geral deste trabalho consistirá em buscar apurar se houveram danos às relações Brasil-Argentina em decorrência dos embates entre os dois Estados na conferência de Santiago e, em havendo, a significância, extensão, e natureza de tais danos. No bojo da Conferência em questão, tiveram lugar embates entre as delegações dos dois países em torno da questão do desarmamento, questão que gerou grande polêmica ao longo dos trabalhos e 10 colocou de lados opostos os dois vizinhos sul-americanos, sem que qualquer das tentativas de superar o impasse por meio de um acordo tivesse sucesso. Ao menos superficialmente, uma rápida passagem em revista da literatura até agora produzida sobre o tema poderia levar a crer que existiria um consenso formado em torno da questão ora posta, qualificando unanimemente como negativo o impacto da conferência de Santiago nas relações Brasil-Argentina, e tornando dispensável este esforço de pesquisa. Contudo, um exame mais atento de tal literatura acusa certa ambiguidade a respeito da real extensão dos danos supracitados, uma vez que ao mesmo tempo em que as fontes apontam o saldo negativo da Conferência em questão para as relações em tela, elas também revelam gestos e atos de entendimento cooperação entre os dois Estados, em aparente contradição com a noção de uma relação tão fortemente abalada como, à luz do exposto, se poderia supor. Assim sendo, torna-se necessário dar um especial enfoque a esse assunto, visando aclarar a questão. Com essa meta em mente, os objetivos específicos desta monografia consistem em: a) identificar os principais traços do fenômeno pan-americano em geral e da V Conferência Pan-Americana em particular; b) contextualizar esta temática no percurso das relações bilaterais Brasil-Argentina, com especial enfoque para a primeira metade da década de 1920; e c) analisar essas informações de maneira a melhor elucidar o impacto dessa Conferência para as relações Brasil-Argentina. Com tais objetivos em mente, esta monografia procurará alcança-los através de três capítulos principais. No primeiro capítulo, serão apresentadas a conceituação e as origens históricas do pan-americanismo e o papel do Brasil dentro deste fenômeno, para então analisar o quadro geral das Conferências Pan-Americanas e, mais detidamente, a V Conferência Pan-Americana. No segundo capítulo, buscar-se-á o contexto do tema em questão na história das relações bilaterais Brasil-Argentina, com enfoque particular na primeira metade da década de 1920. No terceiro capítulo, uma vez de posse das informações supracitadas, será construída uma análise dos pontos positivos e negativos identificados, de modo a melhor compreender os impactos da Conferência nas relações Brasil-Argentina. Ao longo desta monografia, se trabalhará com a hipótese de que, embora tenham ocorrido de fato danos consideráveis às relações bilaterais Brasil-Argentina devido aos 11 embates na V Conferência e seu período temporal imediato, tais danos foram limitados em sua intensidade e extensão, tendo-se restringido ao curto prazo. A presente pesquisa será desenvolvida tendo em conta o método hipotético-dedutivo quanto à abordagem, e o método bibliográfico quanto ao procedimento, por meio da modalidade monográfica. Recorrer-se-á às principais fontes bibliográficas relacionadas ao tema que puderem ser obtidas e levantadas, por meio de um critério de seleção analítica. Serão também usadas como eventuais fontes informações obtidas a partir de arquivos de periódicos disponíveis em bases de dados acessíveis através da internet. Ao final desta monografia, conclui-se que é alcançado o objetivo geral de apurar se houveram danos às relações Brasil-Argentina em decorrência dos embates entre os dois Estados na conferência de Santiago e aferir a extensão e seriedade de tais danos, como também são alcançados os objetivos específicos de identificar as principais características do pan-americanismo, contextualizar o tema nas relações bilaterais Brasil-Argentina, e analisar os dados obtidos de forma a responder ao problema de pesquisa abordado, uma vez que a análise das informações discutidas resulta na confirmação da hipótese proposta acima, constatando-se que, de fato, as relações bilaterais Brasil-Argentina sofreram danos devido à V Conferência Pan-Americana, mas tais danos foram de natureza limitada, e restritos ao curto prazo. 12 2 O PAN-AMERICANISMO E AS CONFERÊNCIAS PAN-AMERICANAS 2.1 O PAN-AMERICANISMO A expressão “pan-americanismo”, segundo Hélio Lobo (1939, p.1) e Leslie Bethell (2015, p.1), tem origem nos Estados Unidos, onde o periódico noturno New York Evening Post, na sua edição de 27 de junho de 1890, teria cunhado o termo ao tratar da I Conferência Internacional Americana, que se reunira em Washington no começo daquele ano. O Minidicionário da Língua Portuguesa (BUENO, S., 2007, p. 568) define o pan- americanismo como “doutrina, princípio ou pensamento de solidariedade entre os países das Américas”. E o Dicionário Aurélio: “doutrina ou sistema estabelecido no séc. XIX e baseado na solidariedade de todos os países das Américas; Cooperação entre as nações americanas.” (1988, p.477). O exato significado do termo, contudo, foi objeto de debates por décadas após a sua aparição. Faz-se necessário, para fins de clareza, passar brevemente em revista algumas das principais definições do termo presentes na literatura. Leslie Bethell (2015, p.1) aponta para o parentesco semântico do termo “pan- americanismo” com tais conceitos como “pan-eslavismo, pan-germanismo e pan-helenismo”. E define o pan-americanismo propriamente dito em termos de uma “relação especial” entre os Estados das Américas, tal como concebida por pensadores dos Estados Unidos. Assim, o conceito expressaria uma manifestação de hegemonia americana: Era uma extensão da ideia de Hemisfério Ocidental de Thomas Jefferson, Henry Clay e outros no começo do século. As Américas e a Europa, o Novo e o Velho Mundo eram distintos. E havia um relacionamento especial entre os povos e os governos do Hemisfério Ocidental. (BETHELL, 2015, p. 1) Já na definição de Hélio Lobo (1939), o pan-americanismo seria o resultado de uma busca pelo “bem comum”, seja na cooperação em relação a assuntos de interesse comum dos Estados do continente, seja na defesa comum contra ameaças provenientes de fora dele. Em contraste com posições que viam a hegemonia dos Estados Unidos como cerne do pan- americanismo, portanto, estaria a visão do pan-americanismo como uma forma genuína de cooperação entre as nações do continente: Pan-americanismo é, antes de mais nada, aspiração, entendimento continental para o bem comum; e como variam os meios de se chegar a isso, as outras definições contém alguma expressão dele, quer na sua evolução histórica, quer na sua forma atual, tais: aliança política, forma democrática de governo, exclusão de soberanias estranhas, no sentido de senhorio territorial ou outro fim. (LOBO,1939, p. 2-,3.) 13 Para o diplomata Afonso Arinos de Melo Franco (1955), filho e biógrafo do também diplomata Afrânio de Melo Franco, chefe da delegação brasileira na V Conferência Pan- Americana, o sentido do pan-americanismo seria, sobretudo, de natureza jurídica, consistindo na construção de um ordenamento jurídico comum entre os Estados do continente americano, através do qual outras formas de cooperação interamericana poderiam ocorrer. Concebendo do pan-americanismo, desta forma, a partir de um ponto de vista institucional: ao invés de uma ideia baseada na hegemonia ou no bem comum, este se trataria, sobretudo, da construção de instituições para o continente: O pan-americanismo, esse complexo aparelho que integra doutrinas, tratados, recomendações e organismos, visando à formação de uma solidariedade continental efetiva, econômica, política e cultural, tudo dentro de um vasto e justificativo sistema jurídico. (MELO FRANCO, 1955, p.1114.) Já na definição de Joaquim Nabuco, segundo Alonso (2013, p.378), o pan- americanismo seria, sobretudo do ponto de vista brasileiro, sinônimo de aliança estreita com os Estados Unidos, vista pelo diplomata pernambucano como melhor alternativa para a preservação dos interesses nacionais. Assim, se por um lado o papel de Washington seria ponto fundamental do pan-americanismo, por outro lado a atuação neste âmbito, ao menos no que se refere ao Brasil, deveria consistir em uma aliança entre iguais, respeitando suas respectivas soberanias mutuamente: “Para nós a escolha é entre o Monroísmo e a recolonização europeia”. Se como intelectual monarquista preferira a proximidade política com a Europa, como embaixador da República elegeu a outra opção: “Eu falo a linguagem monroísta”. [...] Nabuco a adotou [a palavra “pan-americanismo”], mas usou-a menos para frisar a integração continental, que para denotar a aliança Brasil-Estados Unidos. Sua “política americana” era “no sentido de uma inteligência perfeita com este país [os Estados Unidos]” (ALONSO, 2013, p.378, grifos no original). Desta forma, é possível afirmar, em linhas gerais, que existe certo consenso a respeito do pan-americanismo como um ideal de solidariedade, cooperação, integração, e mesmo aliança entre todos Estados do continente americano. Há divergências, contudo, a respeito de como tal ideal poderia ser alcançado. Como será exposto adiante, tais divergências remontam às mesmas origens do pan-americanismo. O pan-americanismo tem suas raízes históricas em dois eventos principais: a mensagem enviada ao Congresso dos Estados Unidos em 1823, pelo então presidente americano James Monroe, que ficou conhecida como Doutrina Monroe (DULCI, 2008, p.24) 14 e o Congresso Anfictiônico, celebrado na Cidade do Panamá por iniciativa de Simón Bolívar, em 1826 (MORGENFELD, 2009, p.69). De fato, já em 1820, pouco antes que Monroe e Bolívar fizessem suas respectivas contribuições para a fundação do projeto pan-americano, o presidente da Câmara dos Representantes dos Estados Unidos, Henry Clay, defendia a formação de uma liga que incluísse todos os Estados do continente americano, “da Baía de Hudson ao Cabo Horn” (MORGENFELD, 2009, p.57). Fica evidente, assim, a relevância dos Estados Unidos para tal projeto, desde os primeiros passos da sua concepção. Segundo Dulci (2009, p.24) a Doutrina Monroe confirmava o pensamento dos ex- presidentes George Washington, defensor do isolacionismo, e Thomas Jefferson, segundo o qual haveria um fundamental contraste entre os hemisférios Ocidental e Oriental. Nem os Estados Unidos interviriam em questões envolvendo potências europeias, nem aceitariam que estas, por sua vez, interviessem nas suas ex-colônias nas Américas, ou criassem outras novas. Naturalmente, como desenvolvido mais adiante, tal doutrina seria constantemente reinterpretada e revisada ao longo do tempo. Por um lado, a Doutrina Monroe não surtiu efeitos práticos imediatos, em virtude da baixa capacidade de projeção de poder econômico e militar dos Estados Unidos naquele momento (DULCI, 2009, p.24). Por outro lado, esta doutrina exprimia uma preocupação real com uma possível tentativa da Santa Aliança, que reunia as principais potências reacionárias europeias com o objetivo de reprimir futuros levantes revolucionários, de reconquistar as ex- colônias americanas. Portanto, a mensagem de Monroe foi, num primeiro momento, recebida com entusiasmo em boa parte América Latina, com a notável exceção de Buenos Aires (MORGENFELD, 2008, p. 67). Assim, ao menos no início, a Doutrina Monroe foi interpretada como uma promessa desinteressada de solidariedade, ainda que tal expectativa viesse a ser, em breve, frustrada. Em 1824 veio a convocação de uma assembleia continental a ser reunida no Panamá foi pautada por Simón Bolívar, ocorrendo apenas em 1826. Ideais de unidade americana já haviam sido também expressados por diversos outros líderes de movimentos independentistas latino-americanos, tais como os argentinos Mariano Moreno, Bernardo de Monteagudo e José de San Martin, os chilenos Juan Martinez e Bernardo O'Higgins, e o centro-americano José del Valle (INMAN, 1921, p.239). Portanto, por mais que os Estados Unidos estivessem desde 15 o início envolvidos com tais ideais, nem por isso a América Latina deixou de ter pensadores que, até certo ponto, partilhavam deles. Da mesma forma que a doutrina de Monroe, a assembleia do Panamá tinha como pano de fundo o risco de uma tentativa de reconquista dos Estados americanos recém- independentes pelos antigos colonizadores, pelo que Bolívar defendia uma união de Estados americanos sob a proteção do Reino Unido liberal como fórmula para assegurar a defesa do continente contra possíveis desígnios reacionários da Santa Aliança (MORGENFELD, 2008, p. 69). Naturalmente, tal concepção via com certa desconfiança os Estados Unidos. Embora contando com um ambicioso programa de cooperação militar e jurídica entre os Estados do continente, e resultando em importantes acordos para o direito internacional das Américas (LOBO, 1939, p.13), o Congresso do Panamá foi um relativo fracasso. Compareceram delegados somente do México, Grã-Colômbia, Peru e América Central. Enquanto o Reino Unido participou como observador, Estados Unidos e Províncias Unidas (atual Argentina), apesar de convidados, não chegaram a enviar representantes (MORGENFELD, 2008, p. 69-70). Tal Congresso inauguraria uma perene característica de diversas outras reuniões de similar natureza ao longo da história do Pan-Americanismo, a saber, a dificuldade em sequer reunir todos ou mesmo a maior parte dos Estados americanos, quando menos lograr acordos entre esses Estados. Entre os motivos da ausência das Províncias Unidas estava o receio que o tratado de confederação negociado no Panamá beneficiasse o Brasil, contra o qual o governo de Buenos Aires se encontrava em conflito. (MORGENFELD, 2008, p.70). Para Lobo (1939, p.15), esse governo também se opunha à possível imposição de uma autoridade supranacional sobre sua soberania. Tal posicionamento refletia, assim, o objetivo da elite portenha de conduzir uma política independente e pró-europeia (MORGENFELD, 2008, p.76). Também aqui se verifica outra característica recorrente que, mais adiante, se verificará na construção do pan- americanismo, isto é, a reticência argentina a respeito de certos aspectos desse projeto. É importante notar a posição marginal do Brasil nesses primeiros debates a respeito da integração americana, que mais tarde dariam origem ao pan-americanismo. Tal se deveria a certa desconfiança mútua entre o Brasil e os demais Estados do continente, em razão, sobretudo, da forma de governo monárquica do primeiro em contraste com estes últimos, republicanos (LOBO, 1939, p.12). Como será aprofundado mais adiante, sobretudo até a 16 abolição da escravatura e da monarquia no Brasil, tais diferenças virtualmente alienaram o País dessa primeira fase da construção pan-americana. Assim sendo, resta claro que os ideais de unidade continental americana, já na primeira década desde a sua concepção, apresentavam características que permaneceriam ao longo do tempo e, de certa forma, o fazem até hoje. O pan-americanismo já nasceria com fins e meios difusos, encontrando resistências, e mesmo esboços de projetos alternativos. Enquanto os Estados Unidos apresentavam para a liderança continental e, por consequência, para a liderança do pan-americanismo, uma “vocação precoce” (MORGENFELD, 2009, p.61), já despontavam em outras partes do continente, sobretudo no Brasil e na Argentina, teses divergentes a respeito de qual unidade americana deveria ser construída, e como isso haveria de ser feito. A participação do Brasil na construção daquilo que viria a ser o projeto pan-americano começou logo após a divulgação da Doutrina Monroe. Na mesma linha de diversos outros Estados do continente, a Doutrina foi recebida positivamente também pelo governo brasileiro, que instruiu seu Encarregado de Negócios em Washington a sondar a posição dos Estados Unidos a respeito de uma aliança militar com o Brasil (LOBO, 1939, p.8) à qual as repúblicas hispano-americanas também seriam convidadas a participar (INMAN, 1921, p.640). Como já dito, entretanto, a política externa dos Estados Unidos se encontrava naquele momento sob um paradigma isolacionista (DULCI, 2009, p.24). Portanto, aquele Estado não se encontrava aberto a alianças desse tipo. Contudo, essa proposta brasileira revela um ponto de vista que, segundo Lobo (1939, p.7-9) deriva da existência de duas interpretações distintas da Doutrina Monroe: uma de aplicação unilateral por parte dos Estados Unidos, e outra de aplicação mútua, com base na igualdade de soberania entre os diferentes Estados. O Brasil, daquele momento em diante, passaria a adotar consistentemente a segunda interpretação, ou seja, a enxergar a Doutrina Monroe não como um protetorado americano sobre o continente, mas sim um compromisso de defesa mútua. Os Estados Unidos nem sempre, como mínimo, corresponderiam a tais expectativas. Se por um lado o Brasil buscava aproximar-se dos Estados Unidos, por outro lado tinha reservas quanto à iniciativa de Bolívar. Convidado ao Congresso do Panamá, o Brasil não chegou a participar. Alegando um foco maior na negociação do reconhecimento de sua independência pelo Reino Unido (MORGENFELD, 2008, p.70), mas também receando 17 internamente as intenções antimonárquicas de Bolívar (LOBO, 1939, p.12) acabou por abster- se. Aqui também emergia um modus operandi brasileiro de abstenção que perduraria, praticamente, até o final do período monárquico. Não só da parte brasileira se encontravam objeções a uma união continental que englobasse todos os Estados das Américas. O expansionismo territorial dos Estados Unidos à custa do México entre 1836 e 1848 gerou uma forte reação contrária entre os Estados hispano- americanos, onde ganharam forças propostas de uma fórmula de união que excluísse os Estados Unidos, no que ficou conhecido como “pan-iberismo”, “hispano-americanismo” ou “pan-latinismo” (LOBO, 1939, p.17). De fato, algumas interpretações desta fórmula “pan- latinista”, argumentando que a monarquia brasileira seria demasiado próxima da Santa Aliança e representasse de fato um potencial gendarme desta contra as repúblicas americanas, propunham a exclusão também do Brasil (LOBO, 1939, p.18). Outras tentativas de congressos que reunissem os diversos Estados americanos ocorreram entre o Congresso do Panamá de 1826 e a Primeira Conferência Interamericana de 1889, que inauguraria o pan-americanismo propriamente dito. Todas essas iniciativas partiriam de Estados latino-americanos. O México buscou, sem sucesso, promover congressos dessa natureza em 1831, 1838 e 1840, enquanto o Chile viu malograda sua própria iniciativa em 1842 (MORGENFELD, 2008, p. 78). Somente em 1847, com uma real ameaça de invasão espanhola fomentada pelo ex- presidente deposto do Equador, general Juan José Flores, é que se logrou reunir um Congresso de Estados americanos na capital peruana (LOBO, 1939, p. 22). Compareceram Colômbia, Chile, Peru, Equador e Bolívia. Apesar da gravidade da situação, devido ao desacordo entre os cinco Estados, nenhum dos tratados ali acordados foi ratificado (MORGENFELD, 2008, p. 79). Nem a Argentina, nem o Brasil compareceram (LOBO, 1939, p. 24). Assim, percebe-se que, enquanto a perspectiva de agressão externa foi condição necessária para a aglutinação de ao menos parte dos Estados americanos em torno de uma conferência, não foi condição suficiente para o seu êxito. Um congresso tripartite entre Equador, Peru e Chile teria lugar na capital deste último em 1856, enquanto que outro se reuniu em Washington nesse mesmo ano com a presença de Costa Rica, Guatemala, Colômbia, Honduras, El Salvador, México, Peru e Venezuela, em parte motivados pela invasão da Nicarágua pelo mercenário americano William Walker. Em ambos os casos, foram elaborados tratados de aliança, mas nenhum dos dois congressos teve 18 algum resultado prático (MORGENFELD, 2008, p.79). Uma trajetória similar àquela da conferência precedente, portanto, se verificou também neste caso. Na década seguinte, verificou-se uma multiplicação das ameaças de segurança às Américas. Os Estados Unidos estavam mergulhados na guerra civil desde 1860, a Espanha ocupara as Ilhas Chinchas no Peru e reconquistara a República Dominicana em 1861, a França intervira militarmente no México e instalara uma monarquia fantoche em 1862, e todo o continente se via às voltas com séria instabilidade econômica e política (MORGENFELD, 2008, p.80). Assim, em meio a tal quadro, novo Congresso reuniu-se em Lima em 1864, tendo acudido o Estado anfitrião, a Colômbia, o Chile, a Bolívia, o Equador, a Venezuela e El Salvador. O Brasil, novamente, absteve-se, por não desejar nem envolver-se no conflito entre o Peru e a Espanha, nem que os demais Estados americanos interviessem de alguma forma no seu próprio conflito com o Paraguai. Embora tal postura tenha sido contestada no Parlamento com o argumento de que conviria mais ao Brasil participar dos congressos que reuniam os Estados americanos, o governo alegou, no caso de Lima, que dar aos demais Estados voz a respeito de questões referentes ao Brasil feriria a soberania nacional (LOBO, 1939, p.28). E, de resto, como dito, tal distância do Brasil para com esses congressos persistiria até o final do período monárquico. Tal posicionamento se repetiu com a celebração de novas conferências em Lima em 1878, e em Caracas em 1883. Apesar de participar de uma conferência de caráter jurídico em Montevidéu em 1888, o Brasil deixou de ratificar as convenções nela acordadas. Se por um lado, como exposto acima, isso se devia a diversas reservas por parte do Estado brasileiro, por outro lado o Brasil se via alienado do restante do continente por uma série de fatores: a postura brasileira nas guerras platinas e do Paraguai foi percebida como agressiva, sua preservação da escravidão e do regime monárquico eram perenes razões de desconfiança, as questões de limites e de navegação das bacias do Prata e do Amazonas geravam atritos. (LOBO, 1939, p.39). Durante todo o período do assim chamado “antigo pan-americanismo”, o Brasil permaneceu relativamente isolado de quaisquer projetos de integração continental, até a proclamação da República no final do ano seguinte. 2.2 AS CONFERÊNCIAS PAN-AMERICANAS 19 O pan-americanismo propriamente dito só viria a efetivamente tomar forma a partir das Conferências Internacionais Americanas ou, como passaram a serem conhecidas, Conferências Pan-Americanas. Foram ao todo dez conferências, celebradas entre 1889 e 1954 em diversas capitais das Américas, e que em geral contaram com a participação de grande parte dos Estados do continente, salvo pontuais exceções. Cumpre passá-las brevemente em revista, avaliando seus principais resultados. A I Conferência, celebrada em Washington, (1889-90) foi idealizada, sobretudo por Thomas Blaine, ex-secretário de Estado, que, após anos de esforços nesse sentido, obteve do Congresso dos Estados Unidos autorização para que o então presidente Cleveland a convocasse (BETHELL, 2015, p.3). Esta primeira Conferência teve na sua agenda a fundação do Bureau Comercial das Repúblicas Americanas que seria o embrião da futura OEA, e, sobretudo, o debate da questão do arbitramento obrigatório de litígios entre Estados americanos e a discussão de uma possível união aduaneira continental. (LOBO, 1939, p.52- 53). Pela primeira vez em sua história, o Brasil decidira participar da Conferência, indo contra a prática da monarquia brasileira de, até então, abster-se de reuniões desse tipo. Durante os trabalhos da Conferência, entretanto, ocorreu a proclamação da República, ocasionando a troca do chefe da delegação brasileira (BETHELL, 2015, p.3). A II Conferência reuniu-se na Cidade do México, em 1901. Discutiram-se pautas como patentes e direitos autorais, a criação de um banco interamericano e a construção de uma estrada de ferro continental, questões aduaneiras e sanitárias, extradição e, principalmente, a questão do arbitramento, junto à qual o Brasil propôs o debate da codificação do direito internacional do continente (LOBO, 1939, p. 59). Contudo, apesar de terem sido aprovadas diversas resoluções referentes a estes temas, poucas delas chegaram a ser ratificadas, pelo que a Conferência teve poucos resultados práticos. (BETHELL, 2015, p.3-5). Como será visto em breve, tal seria o caso em muitas das primeiras Conferências. A III Conferência teve lugar no Rio de Janeiro, em 1906, sob a chancelaria de Rio Branco. Tanto o intervencionismo europeu como o dos Estados Unidos foram motivos de preocupação na Conferência. Os anos entre esta Conferência e a precedente haviam visto uma intervenção naval do Reino Unido, Império Alemão e Reino da Itália contra a Venezuela sob o pretexto de cobrança de dívida externa (LOBO, 1939, p.66), enquanto que os Estados 20 Unidos haviam intervindo na Nicarágua e, numa disputa relacionada a direitos de mineração, apresentado um ultimato ao Chile (LOBO, 1939, p.77). A Doutrina Drago, formulada pelo chanceler argentino de mesmo nome, propunha garantias contra a extração violenta do pagamento de dívidas tal como ocorrera na Venezuela, mas sua discussão na Conferência foi suprimida com sucesso pelos Estados Unidos (MORGENFELD, 2009, p. 186). A Doutrina dividiu opiniões no Brasil, sendo firmemente oposta por alguns diplomatas, como Joaquim Nabuco (ALONSO, 2013, p.382) e apoiada por outros, como Oliveira Lima (SILVEIRA, 2013, p.591). Outros pontos da agenda incluíram, novamente, questões comerciais, de patentes, arbitramento obrigatório, codificação do direito internacional americano. (LOBO, 1939, p. 67- 68) Contudo novamente os resultados práticos foram muito limitados, para além da promoção das boas relações entre os Estados participantes (BETHELL, 2015, p.6). Também esta conferência seria considerada, portanto, de pouca importância (ALONSO, 2013, p. 385). Destacou-se a III Conferência pela inédita presença do secretário de Estado americano, Elihu Root, articulada em grande parte pelo presidente da Conferência, Joaquim Nabuco, que seguia com sua visão do pan-americanismo como sinônimo de alinhamento com os Estados Unidos (ALONSO, 2013, p. 382). A IV Conferência Pan-Americana ocorreu em Buenos Aires, em 1910. Com pauta em grande parte similar às Conferências precedentes, tratou-se mais uma vez das questões de econômicas, alfandegárias e de arbitramento, ainda sem grandes resultados concretos (LOBO, 1939, p.78-79). Contudo, um progresso maior foi alcançado nas áreas de cooperação em saúde pública e na codificação do direito internacional americano (BETHELL, 2015, p.7). Caracterizou-se essa Conferência, à diferença das outras, por ter um programa que buscava um mínimo denominador comum entre as diversas delegações, de forma a buscar um maior consenso e evitar conflitos, ainda que ao preço de limitar-se ainda mais no seu potencial de gerar resultados práticos (MORGENFELD, 2009, p. 224). A V Conferência Pan-Americana, celebrada em Santiago do Chile entre março e maio de 1923, após ser adiada em razão da Primeira Guerra Mundial. Foi dentre as mais produtivas dos congressos e conferências pan-americanos reunidos até aquele momento, tendo discutido e aprovado medidas relacionadas à cooperação na saúde pública, infraestrutura, comércio e 21 cultura (LOBO, 1939, p.93). A reformulação da União Pan-Americana e a perene discussão do arbitramento também figuraram na pauta (LOBO, 1939, p. 85). Assim como na IV Conferência, tendo as Conferências anteriores contido pautas mais polêmicas que representaram obstáculos ao seu funcionamento, buscou-se também em Santiago uma pauta conducente a uma maior convergência entre os participantes (LOBO, 1939, p. 86). Contudo, tal tentativa foi frustrada devido à introdução no programa do tema do desarmamento – que, como se verá mais adiante, foi causa de fricção no bojo da V Conferência. Desde o fim da Primeira Guerra Mundial, vinha ganhando força no cenário internacional a defesa do desarmamento dos Estados como garantia contra futuras guerras (GARCIA, 2003, p. 173). Tal temática veio a predominar nos debates da V Conferência (LOBO, 1939, p. 91), porém conduziu a um debate infrutífero em que se digladiaram, sobretudo, o Brasil, Argentina, Estados Unidos e Chile, resultando apenas numa resolução em favor do desarmamento sem quaisquer efeitos práticos. (BETHELL, 2015, p.8). O principal resultado concreto da V Conferência foi o Pacto Gondra, que recebeu o nome do ex- presidente e delegado paraguaio, para prevenir conflitos entre Estados americanos. (LOBO, 1939, p. 92). A VI Conferência Pan-Americana reuniu-se em Havana, em 1928, e caracterizou-se por uma extensa produção jurídica. Na área da codificação do direito internacional, tanto público como privado, a VI Conferência votou e aprovou diversos tratados e convenções, ratificados pela grande maioria dos Estados americanos. Questões econômicas e sociais foram abordadas, e diversos avanços culturais, diplomáticos e jurídicos foram alcançados (LOBO, 1939, p. 97-99). De grande impacto foi, também, a adoção do Código Bustamante, no âmbito do direito internacional privado, contribuindo para a sua uniformização no continente (LOBO, 1939, p.102). Não obstante as conquistas jurídicas e outros acordos alcançados, novamente a questão do intervencionismo americano se fez sentir no bojo da Conferência. A declaração do secretário de Estado, Hughes, de que os Estados Unidos se reservavam ao direito de intervir para defender seus cidadãos caso os demais Estados americanos não os pudessem proteger, teve péssima repercussão na América Espanhola. Desse ponto de vista, “a Conferência de 22 Havana pode ser considerada como o marco do ponto mais baixo nas relações interamericanas durante a Primeira República" (BETHELL, 2015, p.9). Outrossim, foi notável o progresso, conquistado na Conferência, em relação à questão feminina: Assim, quanto aos direitos da mulher, assinou-se uma convenção, determinando que não haveria discriminação de sexo quanto à nacionalidade; e recomendou-se o máximo de igualdade entre homens e mulheres, na legislação civil e política dos países americanos. Na conferência seguinte se incluiriam delegados do sexo feminino em todas as delegações (LOBO, 1939, p.109). A VII Conferência Pan-Americana, sediada em Montevidéu, ocorreu sob a égide de uma mudança de paradigma na política externa dos Estados Unidos, já a essa altura em transição para a fórmula de Franklin Delano Roosevelt de “política de boa vizinhança”. (MORGENFELD, 2009, p. 624). A doutrina Monroe não foi necessariamente eliminada, mas antes reinterpretada sob a ótica da ascensão dos totalitarismos na Europa. O secretário de Estado Cordell Hull comparou o absolutismo das monarquias reacionárias dos tempos de Monroe com os Estados totalitários emergentes, apontando estes últimos como uma releitura “muito mais poderosa e opressiva” dos primeiros (LOBO, 1939, p. 114). Dessa forma, a VII Conferência destacou-se por, em contraposição à usual interpretação unilateral da Doutrina Monroe por parte dos Estados Unidos, adotar uma visão do pan-americanismo como um arranjo de segurança continental contra ameaças externas em que todos os Estados do continente teriam vez e voz. "Qualquer perturbação de paz no continente, ou, ainda, qualquer guerra externa que ameace essa paz, obriga a uma consulta entre as repúblicas americanas, para necessário remédio." (LOBO, 1939, p. 117). Feição similar teve a VIII Conferência Pan-Americana, em Lima. Às portas de uma nova conflagração mundial, a matéria da segurança foi de grande importância durante a Conferência. A questão feminina também teve destaque, sobretudo no tocante à qualidade de vida das mulheres do campo (LOBO, 1939, p. 130). Um trecho do periódico francês Le Temps, diante da escalada das tensões na Europa, nota a mudança de paradigma que já se esboçava desde a Conferência anterior: Aparenta claramente que os Estados Unidos, dos quais se podia outrora suspeitar de buscar colocar os outros países do continente ocidental sob a tutela mal dissimulada de Washington, agora se esforçam para organizar um sistema de segurança coletiva. (LOBO, 1939, p. 125, tradução nossa). 23 O secretário Hull, novamente, alertou para a ameaça que os totalitarismos europeus representavam para os Estados das Américas: “Não tenhamos ilusões: essas alternativas são reais e concretas nas partes do mundo vizinhas dos países onde renascem as forças de ameaça. Sua sombra de mau agouro se estende mesmo até nosso continente. [...] Tais medidas baseiam-se sobre teorias falsas de superioridade de classe ou de raças, e ainda de hegemonia nacional, ressuscitadas nalgumas partes do mundo.” (LOBO, 1939, p. 126-127). Durante a Segunda Guerra Mundial, diversos encontros diplomáticos e conferências com foco na segurança pan-americana ocorreram no Panamá, Havana, Rio de Janeiro e Cidade do México, enquanto que duas outras Conferências Pan-Americanas tiveram lugar: a IX Conferência em Bogotá (1948) marcando a fundação da Organização dos Estados Americanos, e a X e última em Caracas, em 1954 (BETHELL, 2015, p.10). 2.3 A V CONFERÊNCIA PAN-AMERICANA A V Conferência Pan-Americana de Santiago de 1923 deu-se em um delicado contexto internacional. Inicialmente programada para 1914, a Conferência foi adiada em razão da Primeira Guerra Mundial, e da decisão dos Estados Unidos de evitar a discussão da neutralidade continental nesse fórum, diferente do que era defendido por outros Estados americanos (MORGENFELD, 2009, p.265). Com o final da Grande Guerra, o trauma da destruição por esta deixada deu força a teses a favor do pacifismo e do desarmamento ao redor do mundo (GARCIA, 2003, p.174). Além disso, na frente diplomática, o desfecho da guerra, com o vácuo de poder deixado pelo colapso de diversas grandes potências, assim como fenômenos tais quais a hiperinflação alemã de 1921-1923 e da emergência da União Soviética, impôs às potências vitoriosas a necessidade de reorganizar a ordem internacional. Tal necessidade resultou nos primeiros passos em direção ao multilateralismo, notoriamente a fundação da Liga das Nações. (RICUPERO, 2013, p. 336). Domesticamente, o Brasil atravessava um período não menos incerto. Em 1922, ano que precedeu a V Conferência, comemorou-se o centenário da proclamação da Independência com um polêmico desfile militar, que repercutiu negativamente no exterior com acusações de belicismo (MELO FRANCO, 1955, p.1121). Em meio ao turbulento período eleitoral que resultaria na posse de Artur Bernardes, que governou de 1922 a 1927, ocorreu a fundação do 24 Partido Comunista e estourou a revolta do forte de Copacabana, que prenunciava os grandes levantes armados tenentistas de dois anos depois. (RICUPERO, 2013, p. 353). Mesmo antes da Conferência, o Brasil já se via às voltas com o tema do desarmamento. A questão do desarmamento dos Estados, antes considerada de foro interno de cada um deles, passou a ser regularmente discutida nos meios diplomáticos em razão, como se disse, da mudança de paradigma ocasionada pela Grande Guerra (MELO FRANCO, 1955, p.1115). Os Estados Unidos, em particular, vinham defendendo a tese do desarmamento, sobretudo com o Tratado Naval de Washington, que limitou a tonelagem e armamentos das marinhas de guerra das grandes potências mundiais (GARCIA, 2003, p.179). O Brasil encontrou-se numa posição contraditória. Se, por um lado, defendia em princípio a tese do desarmamento em face ao crescente movimento internacional a favor desta em decorrência da destruição causada pela Grande Guerra, por outro lado essa mesma guerra e o breve envolvimento brasileiro nela evidenciaram o quadro de despreparo militar do País e a necessidade urgente de saná-lo (GARCIA, 2003, p.176). Assim, do ponto de vista brasileiro, era injusta a ideia de que todos os Estados deveriam desarmar-se por igual, visto que algumas grandes potências possuíam um excesso de armamentos, enquanto o Brasil, com uma grande extensão territorial e litorânea, carecia deles. Já no governo de Epitácio Pessoa (1919-1922), medidas nesse sentido foram tomadas, como a contratação da Missão Militar Francesa para a modernização do Exército Brasileiro em meio a um programa mais amplo de revitalização deste (MELO FRANCO, 1955, p.1121) e a negativa, em assembleia da Liga das Nações, em relação a quaisquer medidas que limitassem os armamentos brasileiros abaixo do mínimo compatível com a segurança nacional, (GARCIA, 2003, p.177), embasando-se, para isso, no artigo 8º do estatuto da própria Liga. Tal postura seria a mesma adotada, como será visto adiante, ao longo do governo de Artur Bernardes. Foi nesse contexto nacional e internacional que, nos meses anteriores à celebração da V Conferência, o programa desta foi elaborado em Washington, sede da então União Pan- Americana. Notavelmente, o secretário de Estado americano, Hughes, conduziu a elaboração do programa da Conferência enquanto a representação argentina se encontrava ausente, excluindo-a das deliberações (MORGENFELD, 2009, p. 268). Um dos pontos discutidos, a chamada Tese XII, referia-se justamente à questão do desarmamento. Por iniciativa do Chile, 25 foi proposta a “adoção de uma convenção destinada a reduzir em proporção igual os gastos militares e navais” (GARCIA, 2003, p. 178). Como visto anteriormente, existia certa tendência a evitar tópicos excessivamente polêmicos nas Conferências Pan-Americanas, de maneira a garantir um mínimo de consenso entre os participantes. Em virtude disso, e por recear que essa matéria prejudicasse o interesse nacional, o Brasil preferia que a questão fosse ignorada por completo e, de não ser assim, que ao menos não fosse seriamente abordada. Portanto, o Brasil defendeu a retirada da Tese XII do programa. Ao final, de comum acordo com os Estados Unidos e o Chile, o Brasil aceitou que Hughes inserisse um substitutivo à Tese XII, conferindo-lhe uma redação mais vaga que falava em “consideração da redução e limitação de despesas militares e navais em uma base justa e praticável” (MELO FRANCO, 1955, p.1118). Na Conferência propriamente dita, a estratégia do governo brasileiro era que a questão dos armamentos se concluísse com uma fórmula vaga, que permitisse aos Estados obter os armamentos que julgassem necessários à sua defesa, e assim expiasse o Brasil de possíveis suspeitas de armamentismo ao mesmo tempo em que lhe garantiria o direito de prosseguir com seus planos de modernização militar. (GARCIA, 2003, p. 186). Tal postura era, em geral, muito similar às dos demais Estados, implicitamente no caso de seus representantes civis, e explicitamente no caso dos militares (MELO FRANCO, 1955, p.1127), fazendo com que a tese do desarmamento fosse, na prática, mais uma ferramenta retórica das diversas partes envolvidas do que uma agenda concreta destas. Uma vez iniciada a Conferência, as delegações constituíram-se em comissões destinadas a discutir os diversos pontos do programa: política, jurídica, higiene, comunicações, comércio, agricultura, limitação de armamentos e educação, tendo a discussão do tema dos armamentos sido adiada em favor das demais, enquanto os delegados negociavam previamente a questão nos bastidores (GARCIA, 2003, p.187). Da parte do Chile, autor da Tese XII, havia uma preocupação, de um lado, discutir decisivamente o problema dos armamentos, mas, de outro, que isso fosse feito de forma, sobretudo, a evitar um fracasso da Conferência. Já a Argentina pretendia uma fórmula que preservasse o status quo dos armamentos, que considerava favorável a si própria, e o Brasil, como se disse, perseguia uma fórmula geral que mantivesse sua liberdade de ação sem prejudicar sua imagem internacional (MELO FRANCO, 1955, p. 1129). 26 O presidente da Conferência, o chileno Agustín Edwards, insistia numa resolução definitiva da questão, posição ecoada por parte da imprensa chilena. Já o relator da comissão de armamentos, o também chileno Antonio Huneeus, que em coordenação com o chefe da delegação brasileira, Melo Franco, elaborava um parecer mais próximo da posição brasileira, no que era apoiado pelo presidente chileno Arturo Alessandri, que governou de 1920 a 1925 e de 1932 a 1938. O chefe da delegação americana, Fletcher, assumia uma posição intermediária, mas também pendente para o lado brasileiro (MELO FRANCO, 1955, p.1131). Assim, num primeiro momento, parecia formar-se certo consenso em torno da posição brasileira a respeito da questão dos armamentos que, contudo, não se materializou. Para além da questão dos armamentos, que acabou por fracassar, a Conferência trabalhou em outras frentes. Por iniciativa do ex-presidente e delegado paraguaio Manuel Gondra, apresentou-se uma proposta, na própria comissão de armamentos, de um tratado continental que viria a ser conhecido como Pacto Gondra (MELO FRANCO, 1955, p.1136- 37). Durante a discussão de um dos pontos do parecer Huneeus, recomendando a adesão “aos métodos preventivos da guerra, e, especialmente, que consultem à investigação e ao exame dos conflitos internacionais, previamente ao rompimento de hostilidades”. Por sugestão de Gondra, constituiu-se uma subcomissão, presidida por ele próprio, para transformar essa fórmula em tratado pan-americano (MELO FRANCO, 1955, p.1149). Além de ter de conciliar objeções de diversos Estados, incluindo a Argentina, que foram em parte mediadas pelo Brasil, a elaboração do Pacto esbarrou na oposição dos Estados Unidos (MELO FRANCO, 1955, p.1150). Se, por um lado, o Pacto era parcialmente inspirado por uma convenção anterior, assinado entre os Estados Unidos e diversos Estados da América Central (MORGENFELD, 2009, p. 268), de forma a tranquilizar estes últimos a respeito do intervencionismo do primeiro, por outro lado os americanos tinham, historicamente, sido opositores do arbitramento nas Conferências Pan-Americanas, enquanto a Argentina o havia defendido enfaticamente. Por julgarem que o Pacto Gondra envolveria o arbitramento obrigatório, os Estados Unidos inicialmente se opuseram a ele (MORGENFELD, 2009, p. 272). Enquanto os Estados Unidos propuseram adiar a questão, a Argentina insistiu que ela fosse definitivamente resolvida já em Santiago. (MORGENFELD, 2009, p. 275). Apesar de ter sido aprovado pela Conferência, e ter sido o principal produto desta, o Pacto Gondra não foi ratificado por todos os Estados participantes, como a Argentina, e de 27 qualquer forma jamais foi de fato aplicado ou implementado em qualquer parte das Américas pelos signatários (MORGENFELD, 2009, p. 272), como evidenciado pelo fato de a Guerra do Chaco e diversas intervenções dos Estados Unidos na América Central não terem observado os termos do tratado. A sua grande importância foi, portanto, o precedente que representou para o direito internacional tanto das Américas como do mundo, pelo que, apesar de não ter sido posto em prática, o Pacto Gondra possa ser considerado o maior resultado concreto da Conferência. Outros temas de menor importância discutidos no bojo da Conferência foram de natureza institucional, como a reforma da União Pan-Americana e futuras conferências; questões jurídicas, referentes ao arbitramento no direito internacional público e privado, e à codificação; acordos comerciais, aduaneiros, e de comunicações; cooperação em âmbito sanitário, cultural, acadêmico e científico (MORGENFELD, 2009, p. 267-268). 28 3 AS RELAÇÕES BRASIL-ARGENTINA NO INÍCIO DA DÉCADA DE 1920 3.1. BREVE HISTÓRICO DAS RELAÇÕES BRASIL-ARGENTINA Segundo Candeas (2005, p.179) a história das relações bilaterais Brasil-Argentina compreende três fases principais: uma fase primordial, da formação desses Estados até o final do século XIX, caracterizada por uma instabilidade estrutural; uma fase intermediária ou de transição, de 1898 a 1961, marcada por uma instabilidade conjuntural em meio à busca pela cooperação; e a fase atual, de movimento em direção à estabilidade estrutural pela via da integração. Um fator comum às três fases foi uma lógica de rivalidade que, permeando essas relações, se refletiu amplamente no pensamento e na literatura a respeito do tema, em grande parte produzida em círculos militares e diplomáticos de ambos os lados (MIYAMOTO, 1999, p. 84). De fato, o Barão do Rio Branco chegou a classificar os dois Estados como “rivais permanentes” (RICUPERO, 2013, p. 346). Enraizada nas disputas territoriais, econômicas, políticas e militares entre Espanha e Portugal e seus respectivos domínios durante os tempos coloniais, tal rivalidade foi continuada por Brasil e Argentina enquanto Estados independentes (GUIMARÃES, 2013, p. 184-185). Esse histórico de conflitos, e o fato de que a Argentina recém-independente adotava um projeto político republicano e americanista enquanto o Brasil conservava o modelo monárquico e escravista, foram fatores que alimentaram temores em Buenos Aires a respeito de ambições expansionistas por parte do Brasil (CANDEAS, 2005, p.183-184). O Brasil, por sua vez, receava similares intenções expansionistas por parte do Estado portenho, que buscaria reconquistar o antigo Vice-Reinado do Rio da Prata, que incluía os territórios hoje pertencentes a Uruguai e Paraguai (RICUPERO, 2013, p.406). Do ponto de vista argentino, a oposição brasileira a tais desígnios visaria conservar a Argentina como uma “nação amputada”, alienando-a de territórios aos quais teria direito (CANDEAS, 2005, p.184). Tais tensões e desconfianças mútuas, remontantes aos anos formativos de ambos Estados, passaram a pautar as relações entre eles ao longo de décadas. Na visão do diplomata Oliveira Lima, a política brasileira em relação à Argentina teria consistido, após o primeiro choque da Guerra da Cisplatina (1825-1828), que opôs ambos os lados na disputa pelo 29 controle do atual Uruguai, num esforço pela predominância na bacia do Prata e, mais tarde, numa busca pelo equilíbrio com a República vizinha na medida em que esta ascendia econômica e militarmente (SILVEIRA, 2013, p. 587). Como será visto adiante, ao longo do século XIX, tal política de equilíbrio por parte do Brasil envolveu uma série de aproximações e afastamentos, ora através de meios políticos e diplomáticos, ora por meio de intervenções militares. Ao longo das décadas de 1830 e 1840, tanto Brasil como Argentina assistiram a convulsões internas, em meio aos seus respectivos processos de consolidação enquanto Estados-nação. A Argentina atravessou um ciclo de guerras civis, durante o qual ascendeu ao poder em Buenos Aires o general Juan Manuel de Rosas, cujo governo se viu às voltas com conflitos tanto internos, nas províncias do interior argentino, quanto externos, envolvendo o Uruguai e um bloqueio naval anglo-francês ao Rio da Prata, imposto por essas duas potências europeias, com o pretexto da invasão portenha do Uruguai e com o intuito de forçar a abertura dos rios da bacia do Prata ao livre comércio (MORGENFELD, 2009, p.82). Tendo Rosas consolidado sua posição política em razão de seu sucesso na resistência ao bloqueio, passou o Brasil a recear um subsequente esforço expansionista de seu regime, pelo que se aliou às forças rebeldes argentinas das províncias de Entre Rios e Corrientes e do general José Justo Urquiza, que com o apoio de tropas brasileiras derrocaram o regime de Rosas. Argentina (CANDEAS, 2005, p.184-185). Tal intervenção abriu caminho para a fundação do Estado argentino moderno com Urquiza como seu primeiro presidente, pelo que houve certa aproximação entre Brasil e Argentina, que chegaram a firmar um tratado de comércio e outro de limites, embora este último não fosse ratificado pela Argentina (CANDEAS, 2005, p.185). Também durante o governo do general Bartolomé Mitre, Brasil e Argentina se aproximaram e estabeleceram uma estreita cooperação que se consumou com a Tríplice Aliança com o Uruguai na guerra contra o Paraguai. (CANDEAS, 2005, p.185). Apesar da proximidade política e ideológica relativamente maior entre os governos dos dois Estados no período, a liderança argentina seguiu tendo ressalvas em relação a possíveis metas expansionistas do Império. (CANDEAS, 2005, p.186). O Brasil, por sua vez, temeroso de que a Argentina buscasse anexar completamente o Paraguai após a vitória aliada na guerra contra este último, ocupou-o militarmente até que houvesse um acordo sobre a questão dos novos limites do Estado guarani, com mediação dos Estados Unidos (CANDEAS, 2005, p.186). 30 As décadas finais do século XIX viram um progressivo melhoramento das relações bilaterais entre os dois Estados, sobretudo, graças à abolição da escravatura e a substituição do Império brasileiro pela República, removendo duas das principais instituições que inspiravam desconfiança em relação ao Brasil entre os argentinos (CANDEAS, 2005, p.187- 188). A mudança de regime no Brasil traduziu-se em uma reorientação da política externa do país, que passou a pleitear a aproximação tanto de seus vizinhos latino-americanos quanto com os Estados Unidos (RICUPERO, 2013, p. 340). Fato está, contudo, que essas mudanças não excluíram a existência de tensões. A questão fronteiriça era um dos pontos de atrito nas relações entre Rio de Janeiro e Buenos Aires, em particular em torno à região de Palmas, localizada entre a província argentina de Missiones e os estados do Paraná e Santa Catarina, que foi inicialmente partilhada pelos dois lados em acordo celebrado pouco depois do reconhecimento da República brasileira pela Casa Rosada (RICUPERO, 2013, p.242). Contudo, passado o entusiasmo inicial, a questão só teve uma resolução definitiva por meio da arbitragem dos Estados Unidos em 1895 (CANDEAS, 2005, p. 188). O laudo arbitral americano foi favorável ao Brasil, gerando certo ressentimento na argentina e inaugurando a futura rivalidade entre os futuros chanceleres Estanislao Zeballos e Rio Branco, que representaram seus respectivos governos durante o arbitramento (XAVIER, 2001, p. 112). Também no âmbito das Conferências Pan-Americanas verificaram-se empecilhos nas relações bilaterais Brasil-Argentina. Como aludido no capítulo anterior, a fórmula pan- americana encontrava sérias resistências em Buenos Aires, onde predominava uma visão alternativa, latino-americana, da solidariedade continental, que pleiteava um papel de liderança para a Argentina em detrimento das aspirações americanas e brasileiras (LOBO, 1939, p.17). Desta maneira, segundo Bueno, a Argentina “desenvolvia um relacionamento especial com a Grã-Bretanha, e era reativa às pretensões norte-americanas de aumento de influência sobre o hemisfério, sob a égide do pan-americanismo” (2003, p.165). A balança do comércio bilateral Brasil-Argentina era modesta e consistia num amplo déficit brasileiro em relação à vizinha platina: As relações comerciais entre os dois países seguiam um fluxo praticamente invariável, com saldos amplamente favoráveis ao país do Sul. Se pouca coisa mudava naquelas relações, o mesmo não ocorria nas de 31 natureza política, como que a contrariar a lógica econômica. Houve momentos de aguda rivalidade, entremeados por aqueles de cordialidade (BUENO, C., 2003, p.165). Tendo um volume de comércio muito mais elevado com a Europa e, sobretudo, com o Reino Unido em detrimento dos Estados Unidos e de seus vizinhos latino-americanos, a Argentina conferia à sua política externa uma orientação europeia, contrastando a divisa pan- americana “América para os americanos” com “América para a humanidade” (CANDEAS, 2005, p.189). o Barão do Rio Branco viria a classificar tal projeto pan-hispanista de “irrealizável” e “ridículo” (RICUPERO, 2013, p. 421). Uma importante materialização da posição argentina neste particular se verificou com a formulação da chamada Doutrina Drago, à qual já se aludiu no capítulo anterior, que representou uma contestação da Doutrina Monroe e o Corolário Roosevelt a esta última, e que consistia na oposição à cobrança de dívidas dos Estados americanos por meio da força, como em 1902 de fato ocorreu com a Venezuela, que sofreu um bloqueio naval ítalo-anglo- germânico, com aval dos Estados Unidos (CANDEAS, 2005, p.188). Tal posicionamento refletiu-se na postura latino-americanista da Argentina no bojo das Conferências Pan- Americanas (ALONSO, 2013, p.382). O Brasil, em contraste com a Argentina, assumiu uma postura de aproximação com os Estados Unidos, buscando uma aliança com Washington como forma de consolidar sua própria posição no continente americano, e adotando, como já se disse, a interpretação de pan- americanismo como sinônimo dessa aliança, tese defendida com afinco, sobretudo, por Joaquim Nabuco (ALONSO, 2013, p. 378). Enquanto algumas vozes dentro do Itamaraty se ergueram a favor da Doutrina Drago, com destaque para a de Oliveira Lima (SILVEIRA, 2013, p. 591) houve um amplo consenso de rejeição à proposição do chanceler argentino, tendo sido esta última posição prevalecido no Itamaraty (CANDEAS, 2005, p.188). Tal postura implicou numa rejeição por parte do Brasil da Doutrina Drago, em articulação entre o Catete e a Casa Branca, apesar de solicitações diretas de apoio à doutrina por parte da diplomacia argentina (BUENO, C., 2003, p.149-150). Ao mesmo tempo em que esta a fase das relações bilaterais assistiam tensões dessa natureza, cumpre destacar que, perpendicularmente a elas, importantes passos dados em direção à aproximação entre ambos Estados: a assinatura do Tratado de Fronteira em 1898 e a 32 troca de visitas oficiais entre os presidentes, com Julio Roca no Brasil em 1899 e Campos Sales na Argentina em 1900, enquanto que o presidente Sáenz Peña faria o mesmo dez anos mais tarde, lançando a célebre máxima “tudo nos une, nada nos separa” (CANDEAS, 2005, p.189). Este mesmo presidente argentino e seu sucessor, La Plaza, buscaram articular com o Brasil e o Chile um tratado de arbitramento que unisse três principais Estados sul-americanos, conhecido como Pacto do ABC -- que, contudo, fracassou (CANDEAS, 2005, p.191). Apenas o Brasil chegou a ratificar o tratado (RICUPERO, 2013, p. 421). Também na frente diplomática verificaram-se certos atritos, como exemplificado, durante a chancelaria de Rio Branco, pela elevação da legação brasileira em Washington à categoria de embaixada em 1905, de maneira que o Brasil passou a ser o primeiro Estado sul- americano a possuir um embaixador creditado junto aos Estados Unidos (BUENO, C., 2003, p.158). Enquanto do ponto de vista brasileiro tal movimento visava elevar o prestígio da diplomacia nacional no exterior e consolidar a reorientação desta em direção à federação do Norte (RICUPERO, 2013, p. 337), setores da imprensa portenha interpretaram o ocorrido como uma tentativa de aliança entre Brasil e Estados Unidos contra o resto das Américas, ou um gesto de submissão do primeiro em relação ao segundo (BUENO, C., 2003, p.158-159). 3.2 RELAÇÕES BRASIL-ARGENTINA E A QUESTÃO DOS ARMAMENTOS Outrossim, o principal pomo da discórdia entre Brasil e Argentina no período em tela foi o tema da defesa militar e dos armamentos, principalmente os armamentos navais, uma vez que ambos Estados buscavam modernizar e expandir suas Forças Armadas e, sobretudo, suas respectivas Marinhas, gerando, novamente, desconfianças mútuas (CANDEAS, 2005, p.190). Tanto o Catete quanto a Casa Rosada passariam a perceber os próprios meios de defesa como inadequados e os do vizinho como superiores, gerando uma atmosfera de rivalidade militar e corrida armamentista (RICUPERO, 2013, p.347.) Da parte brasileira, existia a preocupação com a ascensão econômica e militar da Argentina e o consequente crescimento de sua influência política nos países da região, em detrimento do Brasil (PONTES, 2013, p.555). Nas palavras de Clodoaldo Bueno (2003, p.165), “a Argentina de 1900, com uma população de 5 milhões de pessoas, era uma nação orgulhosa e otimista, e conheceu um despertar de imperialismo”. 33 Desde a gestão ministerial de Rio Branco, o Itamaraty passou a preocupar-se com o que percebia como uma deficiência dos armamentos brasileiros, sobretudo os navais, percebidos como inadequados tanto à defesa nacional quanto à posição internacional à qual aspirava o Brasil (RICUPERO, 2013, p.418). Em discurso ao Clube Militar no Rio de Janeiro, afirmou o chanceler: [...] Limitei-me a lembrar [...] a necessidade de, após vinte anos de descuido, tratarmos seriamente de reorganizar a defesa nacional, seguindo o exemplo de alguns países vizinhos, os quais, em pouco tempo, haviam conseguido aparelhar-se com elementos de defesa e ataque muito superiores aos nossos (RICUPERO, 2013, p. 419). No ambiente político-diplomático nacional, também a voz de Rui Barbosa se ergueu a favor da reestruturação dos meios militares e, sobretudo, da expansão do Poder Naval brasileiro, por meio de diversos artigos e intervenções na imprensa, e uma carta endereçada ao presidente Afonso Pena, congratulando seu governo pela encomenda de três navios encouraçados para a Marinha do Brasil (CARDIM, 2013, p. 496). Outros, como Euclides da Cunha, propunham também a competição aberta com a Argentina na área econômica, através do investimento na expansão da malha ferroviária nacional em direção a Oeste, ligando o Brasil à Bolívia e eventualmente ao Pacífico (PONTES, 2013, p. 555). Tais gestos da parte brasileira, contudo, provocaram reações negativas tanto por parte da Argentina, que passou a sentir-se ameaçada, quanto dos Estados Unidos, que ao longo das próximas décadas passariam a ver com maus olhos a possibilidade de uma corrida armamentista na América do Sul (BUENO, C., 2003, p.161). De fato, do ponto de vista da Argentina, a expansão naval de Pena deixara Buenos Aires em situação de inferioridade, levando o Congresso argentino a aprovar seu próprio pacote de expansão naval em 1910. Mesmo dentro do Brasil, tal política não era uma unanimidade, como exemplificado, novamente, pela oposição de Oliveira Lima a tal postura armamentista (SILVEIRA, 2013, p.594). Concorreu também para este acirramento de tensões a eclosão da Primeira Guerra Mundial, durante a qual a política de Buenos Aires consistiu na promoção de uma neutralidade continental latino-americana em oposição à postura intervencionista assumida pelos Estados Unidos e Brasil nos últimos anos da conflagração global (HILTON, 2013, p.443). Tal posicionamento argentino refletia a orientação europeia da política externa argentina, que visava a manutenção das correntes comerciais e migratórias com o Velho Continente, sem tomar lados no conflito (CANDEAS, 2005, p.191). 34 A Grande Guerra teve, entre seus inúmeros desdobramentos, uma significativa contração do comércio mundial, assim como a reestruturação deste, abrindo espaço para uma transição hegemônica do Reino Unido para os Estados Unidos na medida em que aquele perdia sua posição de preponderância financeira, comercial e industrial e era suplantado por este último (MORGENFELD, 2009, p. 237-238). Na América Latina, com a abrupta interrupção dos investimentos europeus, os capitais americanos avançaram a passos largos, sobretudo na Argentina, Brasil e Chile (MORGENFELD, 2009, p.243-244). Especialmente para a Argentina, tal contexto internacional de transformações econômicas significou, no plano interno, um período de significativas mudanças políticas, com uma progressiva democratização do regime político em que as oligarquias conservadoras foram afastadas do poder pela ascensão eleitoral da União Cívica Radical do presidente Hipólito Yrigoyen, que governou de 1916 a 1922 e de 1928 a 1930 (CANDEAS, 2005, p.191). Enquanto nesse período as relações bilaterais assistiram a uma série de aproximações tanto por meio de iniciativas governamentais quanto da sociedade civil em diversos setores, desde viagens e turismo (GUIMARÃES, 2013, p.178) até jornalismo e imprensa (RODRIGUES, 2017, p.562), as tensões pré-existentes permaneceram. Segundo Candeas, “a abertura democrática argentina não significou maior abertura em relação ao Brasil” (2005, p.191). Em razão do exposto, resta claro que tal permanência das tensões entre os dois Estados, apesar de todos os esforços de aproximação, girava em torno da questão dos armamentos, que se agravaria durante a década de 1920, e, sobretudo, no bojo da V Conferência Pan-Americana. De modo a melhor contextualizar o peso da questão dos armamentos para os dois Estados, é possível apresentar um conjunto de dados relativos aos potenciais militares de parte a parte no começo da década de 1920 e, consequentemente, obter maior clareza sobre as posições tanto do Catete quanto da Casa Rosada a respeito da perspectiva de uma limitação ou redução de seus meios bélicos, assim como os reflexos de tais posições nas relações bilaterais antes, durante, e depois da V Conferência Pan-Americana. No capítulo anterior, já se aludiu à contratação da Missão Militar Francesa com vistas e modernizar o Exército Brasileiro (XAVIER, 2001, p. 113). O chefe desta missão, o general francês Maurice Gamelin, relatou em documento secreto que as despesas argentinas com suas 35 Forças Armadas em termos absolutos superavam em 400% as do Brasil (HILTON, 2013, p.445). Em termos relativos, contudo, o periódico portenho La Razón em 1923 citou fontes militares segundo as quais a porcentagem do gasto público brasileiro no setor de defesa representava 20% do orçamento nacional (12,9% no Exército e 9,1% na Marinha) contra 16,7% da Argentina (9,2% no Exército e 7,5% na Marinha), configurando uma inferioridade desta última (GARCIA, 2013, p.182). No tocante ao Poder Terrestre, o diplomata Melo Franco afirmava que, proporcionalmente ao seu volume territorial e populacional, o Exército brasileiro seria “o mais reduzido das Américas, com exceção apenas do Panamá” (GARCIA, 2003, p. 195). Em 1923, a proporção de efetivos permanentes para cada cem mil habitantes era 1,5 homens no Brasil e 3 na Argentina, ou seja, o dobro, e um estudo secreto do Exército Brasileiro apontava uma superioridade numérica da artilharia argentina e relação à brasileira na proporção de 2,5 para 1, além de uma vantagem qualitativa na sua instrução militar, velocidade de mobilização e disponibilidade de infraestrutura (GARCIA, 2003, p. 175). Do ponto de vista argentino, contudo, a situação era diversa. Em mensagem endereçada ao Congresso Nacional em 1923, o então presidente Marcelo Alvear, que governou de 1922 a 1928, aponta uma série de deficiências no Exército Argentino, com ênfase para gastos militares deficitários, treinamento insuficiente tanto para as tropas como para o alto comando, e a necessidade de dar atenção à capacitação técnica dos quadros intermediários para o uso de modernos equipamentos militares, e defendendo para este fim a urgência de um amplo programa de investimentos, reformas estruturantes e modernização da Força de terra argentina (ARGENTINA, 1923, p. 67). Para esse fim, o mandatário argentino obteve do Congresso a aprovação de um projeto prevendo o investimento de 100 milhões de pesos-ouro na modernização do Exército (DI BIASSI, 2012, p. 22). Como já exposto anteriormente, a principal área de contenda entre Brasil e Argentina no plano militar era a de armamentos navais. Enquanto em 1923 a Marinha argentina contava com 29 navios totalizando 108.375 toneladas, a Marinha do Brasil possuía 17 navios deslocando 59.193 toneladas, uma inferioridade de 59% e 55% respectivamente, sem levar em conta a defasagem tecnológica das unidades brasileiras, mais antigas (GARCIA, 2003, p.176). 36 Enquanto que no ano de 1923 ambos Estados possuíam dois encouraçados cada, as naves argentinas deslocavam 54.000 toneladas diante das 42.000 das unidades brasileiras, superioridade que a Argentina manobrou para conservar durante a discussão de limites aos armamentos navais na V Conferência Pan-Americana, de forma a consagrar um status quo que lhe parecia, em princípio, favorável (GARCIA, 2003, p. 191). Neste período, ambos os governos tinham ambiciosos programas de construção naval em suas respectivas agendas. Na mesma mensagem ao Congresso argentino em que defendia investimentos e melhorias no Exército, Alvear também enfatizava a necessidade de expandir e modernizar a Armada argentina em razão do seu elevado volume de comércio marítimo, propondo a expansão da Marinha mercante e a aquisição de diversos novos vasos de guerra e atualização dos já existentes, além de um extenso plano de construção e expansão de portos, bases navais e centros de instrução da Marinha (ARGENTINA, 1923, p. 67-8). Também o presidente brasileiro Artur Bernardes falou ao Congresso Nacional no Rio de Janeiro sobre a importância de ampliar e renovar a frota brasileira, tanto mercante como de guerra (BRASIL, 2009, p. 42). Os resultados práticos de tais planos, contudo, foram extremamente contrastantes. A Argentina, colhendo os frutos de uma fase de bonança econômica, pôde investir 75 milhões de pesos-ouro, representando entre 11,34% e 7,14% da arrecadação anual total durante o mandato de Alvear, somente no seu programa de expansão naval, que representou um salto de 405% a 316% no investimento total do Estado argentino em sua Marinha (DI BIASSI, 2012, p.12). Já no lado brasileiro, houve uma proposta de expansão naval articulada em memorando do almirante americano Vogelgesang, chefe da Missão Naval Americana junto ao Brasil, que previa a adição de 151.000 toneladas à Marinha brasileira distribuídas em vasos de várias classes, mas jamais foi posto em prática não somente devido a uma forte reação negativa por parte da Argentina e dos Estados Unidos quando da divulgação do memorando, mas também devido à aguda crise econômica e política atravessada pelo Brasil no período, que em todo caso inviabilizava qualquer programa de construção naval do ponto de vista orçamentário (GARCIA, 2003, p. 195). Cumpre destacar que tal assimetria de resultados não decorreu exclusivamente de razões de ordem econômica. Alvear, pertencente a uma tradicional família de políticos e militares do alto escalão, e tendo ele próprio contato com a instituição militar através de seu 37 período de serviço militar assim como por meio de seus círculos sociais, era próximo do meio militar e percebido como tal pelos oficiais superiores e subalternos, de forma que durante seu governo os militares adquiriram um patamar de influência política muito mais elevado, incluindo no tocante ao orçamento nacional (DI BIASSI, 2012, p. 14). Bernardes, por outro lado, não só enfrentou uma conjuntura interna extremamente precária ao longo de todo o seu mandato, como também tinha péssimas relações com os setores militares, com tensões que remontavam à sua eleição e que culminaram com diversos levantes armados entre 1922 e 1926 (RICUPERO, 2013, p. 353). Outro ponto de assimetria a ser levado em conta não se refere aos resultados das políticas dos dois Estados na questão dos armamentos, mas dos pressupostos estratégicos por trás delas. Como exposto acima, um pressuposto estratégico comum às duas partes consistiu numa percepção de inferioridade militar de uma em relação à outra, levando a esforços para retificar o balanço de poder, ao mesmo tempo em que gestos dessa natureza partindo da parte oposta eram em geral interpretados como ações visando aprofundar desigualdades de poder existentes, com intenções hostis. É importante apontar o fato de que o Brasil projetava apenas a Argentina como rival e potencial agressor, tomando, portanto, apenas a vizinha do Sul como principal medida de comparação de poderio bélico (MIYAMOTO, 1999, p. 83-84). Por outro lado, não só as forças brasileiras figuravam nos cálculos argentinos, mas também as do Chile, considerado potencial inimigo por Buenos Aires especialmente desde a disputa fronteiriça e a corrida armamentista entre os dois Estados no final do século XIX (DI BIASSI, 2012, p. 9). Em 1923, o Chile destinava mais de 30% de sua despesa pública às Forças Armadas, com 9,7% para o Exército e 20,4% para a Marinha (GARCIA, 2013, p.182) e a proporção de militares da ativa era de 5 para cada cem mil habitantes, contra os mencionados 3 da Argentina (GARCIA, 2003, p. 175). O planejamento militar argentino não contava somente com um potencial ataque apenas de um ou outro rival, mas também de um possível ataque em duas frentes por parte de uma aliança entre Brasil e Chile contra a Argentina (DI BIASSI, 2012, p. 11). 3.3 A V CONFERÊNCIA: BRASIL VERSUS ARGENTINA Uma vez devidamente situado, no capítulo anterior, o papel do pan-americanismo e das Conferências Pan-Americanas na política externa de Brasil e Argentina, e tendo, no 38 capítulo presente, traçado um breve perfil das relações bilaterais entre os dois Estados e dos principais desafios por elas enfrentados na primeira metade da década de 1920, é necessário aprofundar-se sobre as interações entre elas no âmbito da V Conferência Pan-Americana. Nesse contexto, a chancelaria do governo Artur Bernardes, comandada por Félix Pacheco, se propunha a convocar uma reunião preliminar à Conferência de Santiago a ser reunida em Valparaíso, no Chile, para tratar exclusivamente da questão do desarmamento. Participariam apenas Brasil, Argentina e Chile, uma vez que, por serem os Estados mais bem armados da América Latina, seriam, do ponto de vista brasileiro, eram os únicos aos quais o tema realmente dizia respeito (GARCIA, 2003, p.182). Tendo sondado os Estados Unidos e o Chile a respeito e obtido reações positivas, o Brasil buscou um parecer argentino antes de enviar um convite formal. Consultadas, as autoridades argentinas responderam com reticência, concordando em princípio com a proposta brasileira, mas propondo alternativas a ela e expressando objeções com base, sobretudo, do receio de que a exclusão dos Estados menores e mais fracos da discussão do tema pudesse ser mal vista no continente (MELO FRANCO, 1955, p.1118). Contudo, Félix Pacheco interpretou incorretamente tais objeções, e apresentou o convite do mesmo modo. O gesto foi recebido negativamente em Buenos Aires (GARCIA, 2003, p. 182). Melo Franco (1955, p. 1119) imputou à formação inadequada do chanceler Pacheco (que não era um diplomata de carreira, mas um jornalista) a imperícia na condução do caso, evidenciando um contraste entre os desígnios políticos do governo Artur Bernardes, de um lado, e a atuação técnica do Itamaraty, de outro. Assim, a Argentina saía do episódio como defensora dos pequenos Estados latino-americanos, enquanto que boa parte de sua imprensa denunciava o suposto belicismo e “imperialismo” do Brasil (GARCIA, 2003, p. 183). Cumpre mencionar, também, a repercussão da contratação da Missão Naval Americana, destinada, como a sua equivalente francesa acima mencionada, a modernizar a Marinha de Guerra brasileira. Uma vez anunciada, essa parceria foi fortemente condenada pelas autoridades argentinas, que exigiram explicações tanto ao Brasil quanto aos Estados Unidos. (GARCIA, 2003, p.185). Ocorrido em meio ao fracasso da preliminar de Valparaíso, o incidente foi recebido como uma afronta que aumentou as tensões tanto entre Estados Unidos e Argentina quanto entre esta última e o Brasil, erodindo ainda mais a já cética 39 opinião argentina em relação ao real potencial da V Conferência de atingir resultados concretos (MORGENFELD, 2009, p.267). Honduras apresentou uma proposta de declaração em que as forças armadas de cada Estado seriam dedicadas apenas à custódia da soberania nacional, e que, deixando de lado o problema dos armamentos terrestres, Brasil, Argentina e Chile deveriam reunir-se separadamente para discutir a questão dos armamentos navais. Mesmo os membros militares da delegação argentina aparentavam não aprovar os protestos dos membros civis desta, ou aqueles de parte da imprensa argentina (MELO FRANCO, 1955, p. 1136). Contudo, como se exporá adiante, a questão em breve se encontraria em um impasse. Tal impasse girou em torno de uma proposta concreta do Chile a respeito da tonelagem dos vasos de guerra e limitava os navios capitais de cada país a 80.000 toneladas, proposta que era apoiada pelo Brasil. Contudo, a Argentina apresentou uma contraproposta que limitaria os navios capitais a 55.000 toneladas, o que na prática impediria a expansão da Marinha brasileira e manteria o status quo naval favorável à Argentina (GARCIA, 2003, p. 189). Novas tentativas de conciliação foram promovidas tanto pelo Chile como pelos Estados Unidos, sendo, contudo, recusadas tanto pelo governo brasileiro quanto pelo argentino (MELO FRANCO, 1955, p.1144). A discussão dos armamentos na Conferência naufragou definitivamente devido à questão do “condicionamento”, referente à insistência do chanceler Pacheco no ponto de que a participação do Brasil nas discussões da Tese XII estaria condicionada à realização da fracassada preliminar de Valparaíso. Tal insistência ocorreu apesar dos reiterados argumentos do chefe da delegação brasileira sobre a total falta de embasamento jurídico para essa posição, que levou este último, inclusive, a contrariar repetidamente ordens do chanceler nesse particular ao longo da Conferência (MELO FRANCO, 1955, p. 1134). Contornado no início, esse problema veio à tona quando, após o chefe da delegação argentina reafirmar a rejeição das propostas até então apresentadas e por “el punto final” na questão, o embaixador brasileiro Gurgel do Amaral interveio para revelar que entregara uma carta ao chanceler chileno antes da conferência, informando-o da tese do “condicionamento”. O incidente provocou uma enérgica reação da delegação e imprensa argentinas, desacreditou as posições brasileira e chilena e inviabilizou quaisquer possibilidades de acordo a respeito da matéria (GARCIA, 2003, p. 192). O chileno Antonio Huneeus renunciaria à relatoria, e a 40 comissão de armamentos teria sua última sessão poucos dias depois (MELO FRANCO, 1955, p. 1146). A imprensa brasileira dividiu-se ao longo de linhas partidárias, com os jornais favoráveis ao governo celebrando os resultados da Conferência como positivos, e os de oposição criticando ou satirizando o comportamento brasileiro naquele fórum. Ao mesmo tempo, boa parte da imprensa argentina repercutiu negativamente o comportamento brasileiro em torno da questão dos armamentos, apontando para uma suposta agenda escusa e imperialista como estando por trás de sua atuação. (GARCIA, 2003, p. 193). No desdobramento imediato do episódio do “condicionamento”, o governo chileno chegara a censurar a própria imprensa, para conter o dano midiático (MELO FRANCO, 1955, p. 1147). O debate em torno do desarmamento terminou por conter, nas palavras de Garcia (2003, p.196), “uma dupla ironia”: promover o desarmamento, como feito pelos Estados Unidos, mostrou-se um esforço vão, uma vez que nenhum Estado se mostrou realmente disposto a reduzir os próprios armamentos; como vão foram os esforços do Brasil e da Argentina em resistir a essa iniciativa, quando nenhum desses países possuía condições econômicas, orçamentárias ou políticas de expandir seus armamentos muito além do patamar em que se encontravam. 41 4 A V CONFERÊNCIA NAS RELAÇÕES BRASIL-ARGENTINA 4.1 PRINCIPAIS PONTOS DE TENSÃO Nos capítulos precedentes buscou-se, respectivamente, identificar os principais traços do fenômeno pan-americano em geral e da V Conferência Pan-Americana em particular, e contextualizar esta temática no percurso das relações bilaterais Brasil-Argentina, com especial enfoque para a primeira metade da década de 1920. Ao longo deste capítulo, buscar-se-á testar a hipótese desta monografia, isto é, que o desfecho dessa Conferência para as relações Brasil-Argentina, embora negativo, acarretou em danos limitados e de curto prazo. Para tal, será feita a análise a questão da maneira seguinte: em primeiro lugar, elencando os principais indícios de danos às relações bilaterais Brasil-Argentina em razão do ocorrido na V Conferência Pan-Americana; em segundo lugar, situando tais informações no contexto histórico mais amplo previamente apresentado; e por fim, sintetizando as informações assim articuladas de modo a formar um quadro analítico suficientemente robusto, obtendo assim a resposta. Os pontos de fricção entre Brasil e Argentina no bojo da V Conferência, que resultaram em ulteriores danos para as relações entre os vizinhos sul-americanos, podem ser verificados antes mesmo que a assembleia ocorresse, nos meses imediatamente anteriores a ela, que consistiram em três principais incidentes: a inclusão da chamada Tese XII no programa da Conferência sem o consentimento da Argentina, a revelação da contratação da Missão Naval Americana, e a preliminar de Valparaíso. Um quarto poderia ser mencionado, na forma da questão do “condicionamento” da Tese XII, que, contudo, repercutiu principalmente durante a Conferência, pelo que será analisado mais adiante. A Tese XII do programa da V Conferência consistia numa proposta de “consideração da redução e limitação das despesas militares e navais em uma base justa e praticável” (MELO FRANCO, 1955, p.1118). Tal pauta foi incluída no programa da Conferência por iniciativa dos Estados Unidos, num momento em que a delegação argentina se encontrava ausente (MORGENFELD, 2009, p. 268). Tendo-se oposto a tal inclusão num primeiro momento, o Brasil consentiu com a redação acima por considerá-la suficientemente vaga (GARCIA, 2003, p.180). Embora não tenha causado um embate direto entre Brasil e Argentina, tal falta de clareza comportava riscos. Mais tarde, nos bastidores da Conferência, delegados chilenos 42 informariam o chefe da delegação brasileira de que a principal causa de insegurança entre os argentinos era justamente a indefinição brasileira em relação à questão dos armamentos (MELO FRANCO, 1955, p. 1135). Tendo a postura brasileira em relação à Tese XII concorrido para uma menos clareza no debate, pode-se argumentar que esta contribuiu para o aumento das tensões. Muito mais direto, por outro lado, foi o dano causado pela revelação da contratação pelo Brasil da Missão Naval Americana para modernização de sua Marinha de Guerra. Condenações ásperas partiram dos canais diplomáticos, militares e midiáticos da vizinha do Sul, interpretando a questão como um gesto potencialmente hostil à Argentina, questionando a neutralidade americana e as intenções brasileiras (GARCIA, 2003, p. 184). Para Morgenfeld (2009, p. 267) não só o caso representava uma afronta, mas motivou a recusa argentina da realização da Preliminar de Valparaíso, e intensificou o habitual ceticismo de Buenos Aires a respeito das Conferências pan-americanas. Por fim, a Preliminar de Valparaíso foi, como já se disse, uma proposta do Rio de Janeiro de reunir uma Conferência separada que incluísse apenas Argentina, Brasil e Chile para discutir a temática dos armamentos em Valparaíso, Chile, ao invés de fazê-lo em Santiago, uma vez que do ponto de vista da chancelaria brasileira os três principais Estados detentores de armamentos na América do Sul seriam os únicos reais interessados (GARCIA, 2003, p.180). Tal proposta obteve, em princípio, um parecer positivo das outras duas partes. Contudo, segundo Melo Franco (1955, p.1119) a imperícia do chanceler brasileiro Félix Pacheco na condução das negociações teria levado a um mal-entendido que resultou numa áspera recusa argentina de participar de tal preliminar, agravando as tensões já existentes. Pacheco também declararia repetidas vezes, em pronunciamentos públicos e em ordens restritas à delegação brasileira em Santiago, que o Brasil condicionaria a discussão da Tese XII na Conferência à realização da Preliminar, apesar dos constantes lembretes dos quadros técnicos do Itamaraty sobre a falta de embasamento jurídico para tal posicionamento (MELO FRANCO, 1955, p.1124). Na Conferência propriamente dita, os principais embates entre Brasil e Argentina giraram em torno da questão dos armamentos, assim como a questão do “condicionamento”. Já se discorreu suficientemente sobre o primeiro ponto, não sendo necessários maiores aprofundamentos, uma vez que as delegações argentina e brasileira, embora em lados opostos do tema, manobraram com certa cordialidade, revelando as tensões pré-existentes sem, 43 contudo, agravá-las ulteriormente de maneira significativa, apesar de ambas terem frustrado todas as tentativas de se chegar a um acordo (MELO FRANCO, 1955, p.1145). Foi o segundo ponto, o do “condicionamento”, que mais contribuiu para a escalada das tensões dentro da Conferência propriamente dita. O incidente deveu-se a uma declaração do embaixador brasileiro no Chile, Gurgel do Amaral, que seguindo ordens de Pacheco mas contrariando as de Melo Franco revelou a existência de uma carta entregue ao governo chileno defendendo o “condicionamento” da tese XII, provocando uma agressiva reação da delegação argentina e um comprometimento da imagem internacional do Brasil (MELO FRANCO, 1955, p. 1146-1147). Cumpre apontar que, enquanto Melo Franco declarou publicamente que a Conferência resultara num sucesso brasileiro, e seu filho Afonso Arinos atribuiu ao pai o papel de reverter completamente os danos ocorridos na Conferência antes mesmo da sua conclusão e de angariar entusiasmados elogios na imprensa brasileira (MELO FRANCO, 1955, p.1162), em privado o chefe da delegação brasileira expressou um parecer distinto sobre os resultados de Santiago: “Não obstante o absurdo da ideia” escreveu Melo Franco, “o fato é que se criou para o Brasil a fama de nação prussianizada, imperialista, com ambições de hegemonia na América Latina e preocupada, antes de tudo, com o problema do seu Exército e de sua Marinha.” (GARCIA, 2003, p.193, grifo no original). Melo Franco não era o único diplomata brasileiro a contrastar com tais reticências privadas o aparente otimismo público em torno dessa temática. No diagnóstico de Hélio Lobo, a atitude brasileira em relação à questão dos armamentos havia não só manchado a reputação internacional do País com uma pecha de armamentista, mas tinha um grande potencial de alienar o Brasil dos seus vizinhos latino-americanos e principalmente da Argentina, “país supersensível nas suas relações internacionais” (GARCIA, 2003, p. 177). A dificuldade do Brasil em mobilizar apoio às suas posições no bojo da Conferência, sobretudo dos Estados Unidos e do Chile, gerou sérias preocupações: Em alentado estudo elaborado pelo Itamaraty, Ronald de Carvalho havia sido taxativo quanto à situação de isolamento diplomático do Brasil: “Estamos abandonados, neste continente, onde outrora fomos respeitados, porque nos deixamos enfraquecer paulatinamente.” Como forma de reverter esse quadro, propunha-se uma política sustentada de reaproximação com os países sul-americanos a fim de restaurar o status brasileiro na região. (GARCIA, 2003, p.200, grifo no original) 44 Note-se que, do ponto de vista argentino, o desfecho da Conferência não era necessariamente tão preocupante quanto pensavam os diplomatas brasileiros. Segundo Morgenfeld (2009, p. 268) a principal preocupação da delegação argentina em Santiago eram as questões de ordem econômica e comercial em razão das incertezas econômicas que o país atravessava após a Primeira Guerra Mundial, como aludido no capítulo anterior, enquanto que o Brasil, em comparação com a vizinha meridional, dava muito mais importância à questão dos armamentos. De fato, é possível afirmar que a atuação argentina nos debates a respeito de armamentos dentro da Conferência tenha sido motivada muito mais pela política externa dita principista dos governos radicais de Yrigoyen e Alvear (GARCIA, 2003, p.197), enraizada na antiga tradição argentina de contestação do pan-americanismo sob a liderança dos Estados Unidos, especialmente considerando que a delegação argentina admitiu abertamente durante os trabalhos sua prática de sempre firmar os pactos acordados nas Conferências Pan- Americanas, sem jamais os ratificar (MORGENFELD, 2009, p 271). Por último, deve ser levado em conta outro incidente diplomático que abalaram as relações Brasil-Argentina e ocorreu no desfecho imediato da Conferência, qual seja, a questão do Memorando Vogelgesang, que resgatou as tensões atravessadas pelos dois Estados quando da divulgação da contratação da Missão Naval Americana. Como mencionado anteriormente, o Memorando recebeu o nome do almirante que chefiava a Missão, e veio a público revelando um ambicioso plano de modernização e expansão da Marinha brasileira que quadruplicaria sua tonelagem (GARCIA, 2003, p. 195). O Memorando não somente agravou as tensões entre Brasil e Argentina, tendo novamente os meios diplomáticos, militares e midiáticos desta última reiterado os alertas de uma potencial ameaça brasileira, mas até mesmo provocou uma forte reação contrária dos próprios Estados Unidos que haviam enviado a missão, uma vez que a diplomacia americana temia e rejeitava a perspectiva de uma possível corrida armamentista na América do Sul (GARCIA, 2003, p.197). 4.2 PRINCIPAIS PONTOS DE DISTENSÃO Diante dos fatos acima expostos, é inegável que, como de fato aponta literatura a seu respeito, a V Conferência representou um ponto baixo na história das relações bilaterais 45 Brasil-Argentina e que os fatos ocorridos antes, durante e depois da reunião em Santiago representaram importantes danos ao entendimento entre os dois Estados. Observada em si mesma, tendo em conta apenas os seus antecedentes e desfechos imediatos, a Conferência poderia ser qualificada como tendo sido catastrófica. Não é possível, contudo, proferir tal sentença sem sopesar também o contexto mais amplo das relações entre Rio de Janeiro e Buenos Aires e as circunstâncias potencialmente atenuantes, de forma a obter um quadro mais completo. Enquanto, sem dúvida, o período em tela foi invulgarmente conturbado para as relações Brasil-Argentina, abundante em tensões, retrocessos e afastamentos, ele também não foi sem seus exemplos de aproximação e cooperação entre ambos. Reitera-se que os dois Estados viviam a fase de instabilidade conjuntural de suas relações (CANDEAS, 2005, p.79). Elencando os exemplos de distensão dessas relações, em contraste com os exemplos de tensão acima vistos, e encaixando-as no contexto histórico apresentado, espera-se que os primeiros adquiram a proporção certa. Resta claro, a partir dos dados discutidos, que os danos causados às relações bilaterais Brasil-Argentina derivaram quase exclusivamente de questões relacionadas direta ou indiretamente a armamentos e segurança. Contudo, é também nesse diapasão que se pode encontrar aquele que talvez seja o maior exemplo de cooperação efetiva entre os dois Estados no período estudado, e que ocorreu apesar dos diversos reveses ao entendimento de ambos. Trata-se da cooperação entre Rio de Janeiro e Buenos Aires por meio da diplomacia antirrevolu