Universidade Estadual Paulista “Júlio de Mesquita Filho” - Unesp Instituto de Artes Programa de Graduação em Artes Sofia Vercelli Ignácio A intersecção de mitos de origem com o jogo dramático: uma possibilidade intercultural no ensino formal São Paulo 2017 2 Sofia Vercelli Ignácio A intersecção de mitos de origem com o jogo dramático: uma possibilidade intercultural no ensino formal Trabalho de Conclusão de Curso apresentado ao Instituto de Artes da Universidade Estadual Paulista “Júlio de Mesquita Filho” – Unesp, como parte dos requisitos para obtenção do grau de licenciada em Arte- Teatro. Orientação: Profa. Dra. Kathya Maria Ayres de Godoy Co Orientação: Dra. Theda Cabrera Gonçalves Pereira São Paulo 2017 3 Sofia Vercelli Ignácio A intersecção de mitos de origem com o jogo dramático: uma possibilidade intercultural no ensino formal Trabalho de conclusão de curso aprovado como requisito para obtenção do grau de licenciada no curso de graduação em Arte-Teatro do Instituto de Artes da Universidade Estadual Paulista “Júlio de Mesquita Filho” - Unesp, pela seguinte banca examinadora: Professora Doutora Kathya Maria Ayres de Godoy Doutora Theda Cabrera Gonçalves Pereira Professor Mestre Pedro Haddad Martins Instituto de Artes da Unesp – Aprovação em 23 de novembro de 2017 4 AGRADECIMENTOS Agradeço as minhas orientadoras pelo auxílio, paciência, compreensão e por terem aceitado me acompanhar nesse percurso. Agradeço a Escola Estadual Professor Antonio Lisboa e as professoras Juliana Carolina Coluna de Marins e Daniela Fontana por disponibilizarem o espaço e as suas aulas para a realização do meu projeto. Agradeço também os estudantes que participaram das oficinas. Agradeço a minha família por me apoiar e torcer por mim. Também agradeço a Laís, Amanda, Ana, Ingrid, Carol, Camila e Vanessa pelo companheirismo e amizade. 5 SUMÁRIO RESUMO ....................................................................................................... p. 6 APRESENTAÇÃO.......................................................................................... p. 7 1. ESCOLHAS........................................................................................... p. 10 1.1 Os mitos de origem.................................................................................. p. 10 1.2 Do jogo teatral ao jogo dramático............................................................ p. 12 2. O JOGO DRAMÁTICO........................................................................ p. 19 3. INTERCULTURALIDADE.................................................................... p. 22 4. PROCESSOS DE TRABALHO........................................................... p. 27 4.1 Primeiro contato com a escola................................................................. p. 27 4.2 Adaptação dos planos de aula................................................................. p. 27 5. A PÁTICA EM SALA DE AULA .......................................................... p. 30 6. CONCLUSÃO ..................................................................................... p. 47 REFERÊNCIAS.............................................................................................. p. 51 APÊNDICE A – Projeto de oficina da Unati e atividades realizadas ............. p. 53 APÊNDICE B – Piloto das oficinas realizadas com o 9º ano A e 7º ano C ... p. 57 APÊNDICE C – Planos de aula do 9º ano A e impressões da pesquisadora p. 70 APÊNDICE D – Planos de aula do 7º ano C e impressões da pesquisadora p. 88 6 IGNÁCIO, Sofia Vercelli. A intersecção de mitos de origem com o jogo dramático: uma possibilidade intercultural no ensino formal. Trabalho de Conclusão de Curso - Licenciatura em Arte-Teatro - Universidade Estadual Paulista “Júlio de Mesquita Filho” - Instituto de Artes. São Paulo: 2017. RESUMO A proposta da pesquisa é de compreender como trabalhar com mitos de origem nas aulas de Artes do ensino formal. O presente relatório apresenta o caminho trilhado desde a primeira parte da pesquisa, de caráter teórico, a realização da segunda parte, prática, até o momento de reflexão sobre essa prática, em que planos de aula foram criados e aplicados com jovens na matéria de Artes do Ensino Fundamental II. O levantamento bibliográfico foi base para a definição do jogo dramático como possibilidade de realização de um trabalho com mitos. Os principais autores referenciados foram Jean-Pierre Ryngaert (2009), Maria Lúcia de Barros Pupo (2005), Theda Cabrera (2016), Rodrigo Benza Guerra (2013) e Joseph Campbell (1990). A proposta foi utilizar mitos de origem de várias matrizes culturais e refletir sobre os diferentes pontos de vista sobre esse tema, numa abordagem intercultural. A interculturalidade é uma relação de troca entre pessoas de culturas distintas que resulta em uma aprendizagem. Por meio do jogo dramático, cada estudante pôde expressar a sua compreensão dos mitos e discutir suas semelhanças e diferenças. Essa prática permitiu que os estudantes desenvolvessem habilidades para pensar sobre diferenças culturais e sobre a sua cultura, além de refletir sobre sua capacidade de comunicação e expressão em cena. Tanto no jogo dramático quanto em uma relação intercultural é necessário escuta, cumplicidade, autonomia e disponibilidade. O jogo dramático é um espaço de troca e de diálogo e requer que os jogadores trabalhem juntos, com os conflitos que possam surgir, se unindo em prol da criação. Por isso foi possível que a interculturalidade se desenvolvesse por meio do jogo dramático. Palavras-chave: ensino de teatro; mito de origem; jogo dramático; improvisação; interculturalidade. 7 APRESENTAÇÃO A presente pesquisa se iniciou pelo desejo de aliar mitologia com as Artes Cênicas. Eu1 já possuía interesse por mitos, até que pude adentrar mais nesse universo em uma pesquisa feita nas aulas de “Teatro e Educação” no segundo ano da graduação de Licenciatura em Arte-Teatro no Instituto de Artes da Unesp, em 2014. Naquele momento, estudei a Mitologia Nórdica e a cultura Viking e essa pesquisa resultou na escrita de uma narrativa e de um ensaio e na criação de uma cena. Esse trabalho fez com que crescesse o desejo de unir mitologia e Teatro. Então, de agosto de 2016 a julho de 2017 foi realizada uma pesquisa de iniciação científica sobre mitos de origem, jogo dramático e interculturalidade, que foi utilizada como texto base para esse Trabalho de Conclusão de Curso. Primeiramente nessa pesquisa, foi necessário definir com quais mitos trabalhar, pois há um número extenso de mitologias no mundo e teria de definir um critério para a escolha dos mitos. Eles poderiam ser escolhidos de acordo com uma cultura específica ou com um tema que unisse diversas mitologias. Apesar do interesse em Mitologia Nórdica, eu gostaria de trabalhar com culturas diferentes para poder conhecer diversas formas de pensamento, então optei por um tema que unisse mitos de diversas matrizes culturais e esse tema é “A origem do mundo”. A princípio, meu desejo era narrar esses mitos para jovens e em seguida realizar com eles uma atividade que envolvesse Teatro, de modo que vivenciassem a narrativa na prática, por meio de propostas cênicas. Por isso, o nome inicial do projeto era Narração de mitos como princípio da expressão cênica. Dentro dessa perspectiva, a narração dos mitos seria o objeto de pesquisa. Eu pretendia realizar um trabalho no qual o que fosse estudado com base em um levantamento bibliográfico pudesse ser exercitado na prática. Logo, tive que decidir qual era o público-alvo. O meu desejo era de trabalhar no ensino formal, mais especificamente nas aulas de Artes. Esta seria uma possibilidade de entender como trabalhar mitologia e Artes Cênicas na disciplina que em breve estarei licenciada e apta a lecionar. Para definição da faixa-etária tive de pensar no conteúdo dos mitos e na minha afinidade em trabalhar com determinadas idades. Pelo que vivenciei nos estágios obrigatórios da graduação em Licenciatura em Arte-Teatro pude identificar que seria mais viável trabalhar com 1 Este texto foi escrito intencionalmente em primeira pessoa, pois contém observações pessoais e relatos de experiências vividas pela pesquisadora. 8 crianças e adolescentes do Ensino Fundamental. No entanto, para realizar o tipo de trabalho que planejei, de apresentar mitos de culturas diferentes e refletir sobre eles, a prática teria de ser feita com adolescentes e não com crianças pequenas, então decidi trabalhar com os alunos do Ensino Fundamental II, que possuem de dez a quinze anos. No momento da escrita do projeto de pesquisa, que ocorreu em março e abril de 2016, já estava definido que pesquisaria maneiras de utilização dos mitos na realização de atividades de Artes Cênicas. Para realizar essa pesquisa planejei estudar bibliografia sobre mitos de origem, selecioná-los, definir como seria sua utilização em atividades de Teatro ou Dança, criar planos de aula, realizar essas aulas e refletir sobre esta experiência como estagiária na docência em Artes. Entretanto, durante a escrita do projeto ainda não estava definido como se daria a vivência dos mitos de origem e várias possibilidades existiam dentro da área das Artes Cênicas. Em agosto de 2016, a pesquisa precisou ganhar foco e ficou evidente que, naquele momento, compreender de que maneira os mitos seriam vivenciados merecia mais atenção do que estudar a forma como seriam narrados. Fiz então a escolha de me identificar como artista-educadora durante esse processo e não como uma contadora de histórias, pois a pesquisa teve uma parte prática na escola e o foco foram as atividades realizadas com os mitos. Para encontrar formas de trabalhar com mitos nas aulas de Artes, precisei selecionar os mitos de origem que caberiam à proposta e identificar, dentro das Artes Cênicas, as possíveis maneiras de alcançar o meu objetivo. Para isso busquei em agosto e setembro de 2016 formas lúdicas, que permitissem que a narrativa mitológica fosse vivenciada na prática com não-atores. A partir do que aprendi e vivenciei na graduação escolhi estudar os jogos teatrais e os jogos dramáticos e identificar se eles serviriam ao meu propósito. Li textos indicados pelas orientadoras, que foram escolhidos de acordo com a relevância de seu conteúdo para a pesquisa. Depois de um estudo teórico realizado entre setembro 2016 e janeiro de 2017 e uma experiência prática na Universidade Aberta à Terceira Idade da Unesp (Unati) no Instituto de Artes, que ocorreu de setembro a novembro de 2016, decidi planejar as aulas de modo que os mitos de origem fossem vivenciados por meio de jogos dramáticos. Durante essa primeira experiência prática na Unati, foi importante perceber que, diante da opção de se trabalhar com mitos de diferentes matrizes culturais, foi possível estabelecer um diálogo intertextual e intercultural entre esses mitos, entre a 9 cultura da narradora e essas matrizes culturais e entre as diferentes culturas dos diferentes ouvintes e os mitos narrados. Em outubro de 2016 houve o interesse em discutir a questão da interculturalidade. A interculturalidade é um conceito que se refere ao que acontece quando pessoas de culturas diversas convivem em um mesmo ambiente e estabelecem relações que resultam em uma aprendizagem para todas as partes. Após um estudo bibliográfico mais focado sobre jogos dramáticos realizado entre outubro de 2016 e fevereiro de 2017, as oficinas foram planejadas e realizadas em abril, maio e junho do mesmo ano, com uma turma do 7º ano e outra do 9º ano da Escola Estadual Professor Antonio Lisboa2, bairro Jardim São Paulo, zona norte da cidade de São Paulo/ SP. A realização dessa prática demonstrou que o jogo dramático era um meio viável de se trabalhar com a temática dos mitos de origem. Os jogos permitiram que os estudantes compreendessem os mitos e refletissem sobre eles. Aqueles que se arriscaram e se expuseram em cena, foram também os que se mostraram disponíveis para compreender os mitos e refletir sobre eles e sobre as cenas. Com o jogo dramático eles conseguiram compreender os mitos a partir das diversas perspectivas representadas nas improvisações, podendo, assim, começar a desenvolver uma relação intercultural com as narrativas mitológicas. 2 A escola autorizou a realização das oficinas e permitiu que seu nome fosse citado nesse texto. 10 1 ESCOLHAS 1.1 Os mitos de origem Para Mircea Eliade O mito conta uma história sagrada; ele relata um acontecimento ocorrido no tempo primordial, o tempo fabuloso do ‘princípio’. Em outros termos, o mito narra como, graças às façanhas dos Entes Sobrenaturais, uma realidade passou a existir, seja uma realidade total, o Cosmo, ou apenas um fragmento: uma ilha, uma espécie vegetal, um comportamento humano, uma instituição. [...] Em suma, os mitos descrevem as diversas, e algumas vezes, dramáticas, irrupções do sagrado (ou do ‘sobrenatural’) no Mundo (2011, p. 11). Os mitos “são histórias de nossa busca da verdade, de sentido, de significação, através dos tempos” (CAMPBELL, 1990, p. 5). “O mito é uma realidade cultural extremamente complexa, que pode ser abordada e interpretada através de perspectivas múltiplas e complementares” (ELIADE, 2011, p. 11). Os mitos podem ser estudados a partir de uma visão psicológica, literária, sociológica, antropológica, religiosa, entre outras. Mircea Eliade foi historiador, mitólogo e estudioso de história e filosofia das religiões e Joseph Campbell foi um estudioso de mitologia e religião comparada. De um ponto de vista da literatura o mito é um gênero em que “o herói tem uma superioridade (de natureza) sobre o leitor e sobre as leis da natureza” (FRYE, 1967 apud TODOROV, 2008, p. 15). No caso dos mitos utilizados nessa pesquisa, os heróis criam a natureza ou a manipulam. Eles criam a Terra a partir de restos mortais de um gigante (RAGACHE, 1995; STURLUSON, 1993), roubam o fogo do céu (RAGACHE, 1995; LANG, 2003), entalham os seres humanos em troncos de árvores e lhes dão vida (RAGACHE, 1995), separam o céu e a Terra, que costumavam ficar unidos, criam a Terra e o ser humano a partir do barro (ibidem, 1995) criam o céu (VAL, 2008) e criam os animais (SEREBURÃ, 1998). Esse tipo de narrativa me interessa pela beleza e originalidade com que os fenômenos naturais são descritos. Os mitos que li, me fizeram enxergar o mundo de uma maneira distinta das que estudamos nas disciplinas de História e Biologia na escola, de uma maneira mais poética. A mitologia me fez refletir sobre o quão diverso é o ser humano e quão plural é a sua forma de ver e intervir no mundo. Por essa razão, nessa pesquisa quis continuar a trabalhar com mitologia para aprender mais e viabilizar, se possível, a aprendizagem de outros sobre esse tema. 11 Na infância tive contato com a Mitologia Nórdica, mas foi nas disciplinas de “Teatro e Educação” e de “Metodologia da Pesquisa” da graduação em Licenciatura em Arte-Teatro do Instituto de Artes da Unesp que pude aprofundar os estudos nesse tema. A Professora Doutora Carminda Mendes André propôs, na disciplina de “Teatro e Educação”, que cada estudante pesquisasse uma matriz cultural distinta. Para essa tarefa, decidi estudar a Mitologia Nórdica, nome dado à mitologia dos povos germânicos e escandinavos. Um levantamento de obras foi feito sobre o estilo de vida desses povos, os Vikings, sobre sua história e suas crenças, que incluem mitos sobre o panteão nórdico, os seres humanos, os anões, os elfos, os gigantes, a formação da Terra e de todos os elementos da natureza e o fim desse mundo. Após esse estudo houve a escrita de um ensaio sobre a mitologia e a vida Viking para a disciplina de “Metodologia da Pesquisa” e a escrita de uma narrativa fantástica para a disciplina de “Teatro e Educação”. Em seguida, essa narrativa se tornou estímulo para a criação de uma cena, realizada por mim. Os outros estudantes da minha turma da graduação de Licenciatura em Arte-Teatro pesquisaram sobre outras matrizes culturais e também escreveram narrativas e apresentaram cenas. Este trabalho me fez refletir sobre as possibilidades de trabalhar com mitologia no Teatro e posteriormente, sobre a união de mitologia com educação, o que deu origem a presente pesquisa. As cenas e as narrativas produzidas por mim e pelos meus colegas da graduação foram apresentadas nas aulas de “Teatro e Educação” e permitiram que entrássemos em contato com a diversidade do pensamento humano. Essa atividade nos sensibilizou para algumas questões de identidade e das diferenças entre as pessoas e suas crenças. O meu interesse por este trabalho se estendeu para essa pesquisa, cuja proposta de se trabalhar com mitos de mais de uma matriz cultural teve por objetivo comparar as diferentes formas de ver o mundo. Cada cultura possui a sua mitologia, a sua forma de explicar o mundo. A mitologia de cada povo possui um amplo número de narrativas que podem explicar os fenômenos naturais, que contam histórias de deuses e heróis e que tratam sobre os diversos aspectos da vida. De acordo com as narrativas mitológicas que eu conhecia e outras que foram sendo pesquisadas, algumas possibilidades de temas foram identificadas. São eles: os deuses, a velhice, o trabalho, a natureza, a infância, a morte, o nascimento, a puberdade, o feminino, os heróis, a origem do mundo e a origem do ser humano. Por haver essa quantidade de temas foi necessário definir um que guiasse a coleta das narrativas mitológicas a 12 serem utilizadas na parte prática dessa pesquisa. Então, decidi que trabalharia com o tema “A origem do mundo”. Com isso, os mitos de origem a que me refiro nessa pesquisa, são mitos que tratam sobre a origem do mundo. Depois que a pesquisa se aprofundou ficou claro que os mitos sobre a origem do ser humano estão muitas vezes relacionados aos da origem do mundo. Além da pesquisa sobre mitologia, baseada nos estudos de Joseph Campbell, eu busquei os mitos que fariam parte da pesquisa empírica. Então, procurei os mitos na sua forma literária em bancos de dados do Sistema Municipal de Bibliotecas de São Paulo e das bibliotecas estaduais Biblioteca Parque Villa-Lobos e Biblioteca de São Paulo. A partir dessa consulta, os livros que possuíam mitos de origem foram coletados e os mitos selecionados. Foram encontrados quinze livros que atendiam ao meu propósito, ou seja, eles continham mitos de origem que os estudantes do Ensino Fundamental II poderiam compreender. Eles continham no total vinte e seis mitos distintos, sendo que oito deles eram de origem. Os mitos que foram selecionados são das culturas melanésia, polinésia, chinesa, nórdica, africana, grega, e dos povos ameríndios Araweté e Xavante. 1.2 Do jogo teatral ao jogo dramático Durante os primeiros meses de pesquisa surgiu a oportunidade de ministrar uma oficina na Universidade Aberta à Terceira Idade da Unesp (Unati) no campus São Paulo, em que apliquei os conhecimentos adquiridos até então. Esta oficina aconteceu entre setembro e novembro de 2016. A Universidade Aberta à Terceira Idade é um programa de extensão, que, no Instituto de Artes da Unesp, oferece a pessoas da terceira idade cursos, oficinas e palestras nas áreas de Artes Cênicas, Artes Visuais e Música. Essas atividades são ministradas pelos próprios estudantes do Instituto de Artes. A oficina que ministrei na Unati se chamava As histórias do corpo e foi composta por onze encontros semanais de uma hora e meia cada, que ocorreram entre setembro e dezembro de 2016. Nesse trabalho introduzi os mitos nas atividades realizadas, então foram utilizados os mitos que haviam sido selecionados até aquele momento, os das culturas grega, chinesa, Ioruba (África), Araweté (Brasil) e nórdica (Escandinávia). Essa oficina permitiu que eu planejasse aulas em que algumas formas de se trabalhar com o corpo e com os mitos fossem experimentadas. Os objetivos dessa oficina foram desenvolver a sensibilidade, a criatividade, a reflexão a respeito da 13 expressividade do corpo e descobrir o potencial de cada um de criar narrativas. A ideia dessa oficina era que os participantes pudessem desenvolver a expressão corporal e que pudessem criar histórias a partir do uso do corpo. Para que isso acontecesse foram realizadas improvisações, alguns jogos teatrais da Viola Spolin e jogos de composição corporal de acordo com estudos de Lenora Lobo, cujo trabalho segue a linha labaniana. Esses jogos foram utilizados porque já os conhecia e eles estavam sendo praticadas por mim no mesmo período nas aulas da graduação em Licenciatura em Arte-Teatro. No início de cada encontro dessa oficina ocorria um aquecimento e no final uma roda de conversa para compartilhar impressões. Em seu livro Contar Histórias com o Jogo Teatral (2011), a pesquisadora Alessandra Ancona de Faria relata sua prática e processo de montagem de uma peça baseada em um conto popular chamado “O pássaro verde”. O seu trabalho foi feito com adolescentes de uma escola estadual e a peça foi montada com a utilização dos jogos teatrais da Viola Spolin. Alguns desses jogos podem ser encontrados no livro Improvisação para o Teatro (2010), em que Viola Spolin os descreve e indica de que forma eles podem ser utilizados. Os jogos teatrais no processo de pesquisa de Alessandra Ancona de Faria foram utilizados para montar as cenas que comporiam uma peça. A partir dessa leitura e do uso de jogos teatrais da Viola Spolin nas disciplinas “Laboratório de Jogos Teatrais e Improvisação” e “Práticas de Ensino em Artes Cênicas” da Licenciatura em Arte-Teatro da Unesp, percebi que os jogos teatrais poderiam ser utilizados para vivenciar os mitos. Pela minha prática nessas disciplinas pude perceber que havia o desenvolvimento de uma situação ou breve narrativa durante a realização dos jogos teatrais. Por isso pensei que poderia utilizá-los para trabalhar os mitos e optei por usá-los na oficina da Unati. Os jogos teatrais são um ”sistema de improvisações teatrais visando a uma atuação marcada pela espontaneidade e pelo caráter orgânico” (PUPO, 2005, p. 218). Nesses jogos a fábula, longe de ser a origem da improvisação, constitui aqui tão somente sua decorrência. Tal processo de aprendizagem privilegia o funcionamento da própria linguagem teatral (p. 219). Por mais interessante que tenha sido essa vivência e, apesar de as participantes terem gostado de jogar, eles não foram efetivos para trabalhar com os mitos. Acredito que as narrativas dos mitos requerem um tipo de trabalho menos sistematizado e que possibilite um enfoque maior na narrativa. Nesse sentido, 14 enquanto artista-educadora dessa oficina tive dificuldade em orientar o trabalho de modo a utilizar os três dispositivos básicos do sistema da Viola Spolin. [O primeiro deles é] O foco [...] designa um aspecto específico – objeto, pessoa ou ação na área de jogo – sobre o qual o jogador fixa a sua atenção. [...] O segundo é a instrução, ou seja, a retomada de foco pelo coordenador, cada vez que isso se faz necessário. Em terceiro lugar, aparece a avaliação, efetuada pela plateia composta por uma parcela do próprio grupo, em alternância com a parcela de jogadores (PUPO, 2005, p. 219). Essa dificuldade pode ter surgido justamente da tentativa de realizar jogos teatrais para vivenciar os mitos quando, o objetivo intencionado por Viola Spolin para o jogo é de que a cena criada provenha “da tentativa de solucionar um problema de atuação, sintetizado pelo foco” (p. 219). A partir da vivência na Unati foi possível perceber que houve uma dificuldade de se trabalhar com a narrativa mitológica utilizando os jogos teatrais porque esses jogos estão direcionados para o desenvolvimento da linguagem teatral. Os mitos, nesse caso, ficaram em segundo plano. Ainda assim, foi possível nessa prática inserir elementos do mito nos jogos teatrais, por exemplo utilizar o “Exercício do onde” (SPOLIN, 2010, p. 84) para demostrar como seria o “Onde” descrito no mito ”A criação do mundo” da tribo Araweté. Porém, os jogos teatrais trazem instruções bem específicas de como trabalhar um problema de atuação e por isso não consegui inserir outros elementos dos mitos nesses jogos. Além disso, houve um conflito entre as narrativas míticas, que relatam acontecimentos sobrenaturais, com os jogos, que trabalham com um viés realista. Mesmo que isso possa ser subvertido, não foi possível conciliar os mitos e os jogos teatrais nessa oficina. Já os jogos de composição levaram à criação de coreografias de modo mais intuitivo e mais sensitivo. Acredito que isso ocorreu pelo fato de eles não se basearem em questões de causa e efeito, mas da mistura de elementos coreográficos. Nessa maneira de criar coreografias os mitos foram efetivos no sentido de serem elementos úteis para a criação. Essas narrativas foram o ponto de partida para se criar uma coreografia, mas não foram o foco da prática, pois os jogos de composição trabalharam mais sobre os movimentos (que foram baseados nos mitos), do que na própria narrativa. O processo na Unati mostrou que a intersecção entre mitologia e jogos de composição pode gerar uma pesquisa muito interessante e com muito material a ser investigado. Ele também indicou que a composição corporal não seria 15 a melhor opção para trabalhar os mitos na escola, pois o foco dessa pesquisa não era apensas a criação artística, mas a vivencia das narrativas míticas e a discussão sobre interculturalidade. A vivência na Unati mostrou que o jogo teatral não é uma forma muito viável de trabalho com os mitos, porém o jogo dramático e a composição corporal geraram resultados positivos. A partir desta compreensão, que ocorreu por volta do sexto encontro da oficina, em outubro de 2016, as outras improvisações feitas mostraram que o jogo dramático poderia ser uma forma efetiva de realizar cenas baseadas nos mitos de origem. Os jogos dramáticos também possuem uma sistematização, porém estão mais abertos para serem adaptados e podem acontecer a partir de estímulos diversos. Então, tanto os mitos quanto as narrativas criadas pelas participantes deram início a jogos dramáticos e assim, a linguagem desse jogo e o conteúdo dos mitos e das narrativas puderam ser trabalhados dentro da oficina da Unati. Desse modo, as participantes3 puderam criar cenas e narrativas utilizando a sua sensibilidade, criatividade e expressão corporal e ainda refletir sobre sua prática. Essa oficina com a terceira idade proporcionou um momento de aprendizagem, porque a cada semana tive de adaptar as aulas a esse público, tentando não desviar as atividades da oficina de seus objetivos iniciais, mas adequando-as à quantidade de participantes e a suas demandas. As participantes traziam suas referências. Elas criavam muitas cenas em que o maior tempo era gasto pensando em como fazer do que realmente fazendo. Quando isso acontecia eu as incentivava a criar pela prática e não pensar tanto em como fazer. Esse fato me surpreendeu, pois veio de encontro a minha expectativa de que elas fossem utilizar parte do tempo da oficina para criar as cenas por meio da prática. Porém, isso também me fez refletir sobre a necessidade de permitir que as participantes tivessem um tempo de ensaio antes de apresentar, por isso permiti que elas planejassem brevemente o que queriam fazer antes de ensaiar. Também entendi que nas oficinas com adolescentes na escola, que ocorreram posteriormente à oficina na Unati, eu deveria deixar que os jogadores pensassem e ensaiassem as cenas antes de apresentá-las, respeitando o seu tempo de criação. A proposta da oficina era de que as cenas fossem sentidas e interiorizadas, ou seja, compreendidas sensível e intuitivamente, mas as participantes fizeram 3 Todas as participantes dessa oficina eram mulheres entre 55 e 65 anos. 16 transparecer que precisavam compreender a cena logicamente, pois elas narravam a sua ação enquanto faziam as cenas. Talvez isso se deva ao fato da educação ocidental ser baseada na racionalidade e essa ser a forma de fruição artística com que estavam acostumadas, por meio da lógica e do pensamento racional. Esse fato fez com que questionasse o rumo que a oficina estava tomando, o modo com que as instruções eram dadas e a coerência das atividades com o seu público. Percebi que o jogo teatral contribuiu para que as cenas fossem elaboradas racionalmente e que os jogos de composição fizeram com que as participantes trabalhassem de forma mais sensível. Por isso, ao perceber o que estava acontecendo, busquei trabalhar mais com composição corporal e depois com o jogo dramático. Também tentei aprofundar o trabalho sobre os mitos pelo fato de suas narrativas se distanciarem do racional. Além disso, busquei fazer atividades guiadas, em que estimulava o lado sensível das participantes de forma que elas pudessem perceber o seu corpo, as suas articulações, a sua respiração, as sensações que surgiam no contato com o chão, quando estavam deitadas e de que forma os mitos reverberavam nelas. Além disso, percebi que a relação intercultural foi um aspecto muito presente nessa prática, visto que houve um momento de confrontação das crenças das participantes com as presentes nos mitos. As participantes da oficina demostraram interesse pelos mitos, mas indicaram que os viam como histórias fantásticas e não como se eles pudessem fazer parte da crença de alguém; elas também indicaram que as crenças delas eram verdadeiras, mas que as presentes nos mitos não eram. Isso me causou um estranhamento e percebi que poderia aprofundar o estudo sobre essas questões para que nas oficinas seguintes, que ocorreram no ensino formal, eu pudesse lidar melhor com o encontro de diferentes culturas e o choque que isso poderia causar. A interculturalidade presente nessa pesquisa foi percebida próximo ao final da oficina da Unati e, por isso, não foi desenvolvida intencionalmente nesse processo. Por não ter havido um aprofundamento dessa questão naquele momento, creio que não tenha havido uma aprendizagem por parte das participantes em relação a esse aspecto. A aprendizagem delas se deu no âmbito da expressão artística e percepção corporal, o que pôde ser observado ao longo da oficina. O conteúdo dos mitos não foi discutido racionalmente na oficina na Unati e ele se chocou com as crenças das participantes. Então, compreendi que o fato da 17 mitologia ter relação com a religião deveria ser levado em conta nas práticas seguintes. O que é um mito? A definição do dicionário seria: ‘História sobre deuses’. Isso obriga a fazer a pergunta seguinte: Que é um deus? Um deus é a personificação de um poder motivador ou de um sistema de valores que funciona para a vida humana e para o universo – os poderes do seu próprio corpo e da natureza. Os mitos são metáforas da potencialidade espiritual do ser humano” (CAMPBELL, 1990, p. 23). Esse é um assunto delicado, pois pode causar tensões e discordância entre as pessoas. No livro O poder do mito (1990), Bill Moyers questiona Joseph Campbell sobre a definição de mito como “experiência de sentido” e Campbell diz que o mito é “experiência de vida” e de que “a mente se ocupa do sentido”. Ele diz que estamos tão empenhados em realizar determinados feitos, com o propósito de atingir objetivos de um outro valor, que nos esquecemos de que o valor genuíno, o prodígio de estar vivo é o que de fato conta (1990, p. 6). O autor ainda diz que podemos chegar a essa experiência “lendo mitos. Eles ensinam que você pode se voltar para dentro, e você começa a captar a mensagem dos símbolos” (1990, p.6). E acrescenta: leia mitos de outros povos, não os da sua própria religião, porque você tenderá a interpretar sua própria religião em termos de fatos – mas lendo os mitos alheios você começa a captar a mensagem. O mito ajuda a colocar sua mente em contato com essa experiência de estar vivo (1990, p. 6). O que aconteceu na oficina na Unati foi justamente o descrito acima, as participantes receberam os mitos como algo imaginário, diferentemente da sua crença religiosa, que foi encarada como fato. É importante deixar claro que não pretendi em nenhum momento mudar a crença de quem participou da oficina, porém o ocorrido mereceu atenção. A intenção foi que os mitos fossem apresentados como a crença de alguém, a crença do povo da matriz cultural da qual o mito pertence. Esse processo da oficina deixou claro que foi preciso considerar a minha vivência com relação ao tema da mitologia e da religião e reconhecer que possuía um determinado ponto de vista. Os mitos na pesquisa foram sendo apresentados, dentre tantas outras possibilidades, a partir de um ponto de vista, orientado pelos estudos de Joseph 18 Campbell. Essa oficina deixou evidente que houve um choque cultural entre as participantes e os mitos e que isso teve de ser tratado com cuidado. No entanto, ao unir diversas versões da origem do mundo foi possível estabelecer uma relação intercultural e trabalhar para que essa interculturalidade se desenvolvesse e proporcionasse um aprendizado a respeito de outras culturas e formas de ver o mundo. Então, ficou evidente para mim a importância de equiparar objetivamente os mitos de origem e refletir sobre seu conteúdo para poder “captar a mensagem” (CAMPBELL, 1990, p. 6) e facilitar que a minha mente e a mente de quem participou da parte prática dessa pesquisa entre “em contato com essa experiência de estar vivo” (1990, p. 6) de que Joseph Campbell fala. 19 2 O JOGO DRAMÁTICO Antes de fazer uma reflexão sobre a função do jogo dramático nessa pesquisa é importante definir mais claramente esse termo. Em Para desembaraçar os fios (2005), Maria Lúcia de Barros Pupo esclarece as diferenças e semelhanças entre o jogo teatral de Viola Spolin, a acepção anglo-saxônica (dramatic play) e a francesa (jeu dramatique) de jogo dramático. Em português o termo jogo dramático é utilizado para se referir tanto ao dramatic play, quanto ao jeu dramatique. Ambas as utilizações possuem em comum o fato de derivarem do radical grego drama, que designa ação. Assim, vinculam-se ambos à ideia de dramatização, ou seja, de uma imitação através da ação (p.220). No entanto dramatic play se refere “à brincadeira espontânea infantil caracterizada pelo agir como se e pela contínua transformação” (ALMEIDA JUNIOR; KOUDELA, 2015, p. 105). Peter Slade foi um pedagogo que trabalhou com esse tipo de jogo dramático. A proposta de Peter Slade, portanto, aponta para a passagem gradual do faz-de-conta infantil dos primeiros anos de vida até as ‘dramatizações improvisadas’ dos jovens de quinze anos, passagem esta a ser conduzida com delicadeza pelo professor (PUPO, 2005, p.222). Já o jogo dramático na acepção francesa na origem, [...] se caracterizam como uma modalidade de improvisação teatral cercada por regras precisas, baseada na formulação prévia de um roteiro, seguida pelo ato de jogar propriamente dito (RYNGAERT, 2009, p. 12). Jean-Pierre Ryngaert, entre outros autores franceses, estudou e ministrou oficinas de jogos dramáticos até a década de 19904. Ryngaert, porém, desenvolveu ao longo do tempo outras formas de iniciar o jogo dramático5. Além de um roteiro escrito pelos jogadores, ele propôs que o jogo ocorresse a partir de um trecho de um 4 Ver em RYNGAERT, Jean-Pierre. O jogo dramático no meio escolar. Coimbra: Centelha, 1981. 5 Ver em RYNGAERT, Jean-Pierre. Jogar, representar: práticas dramáticas e formação. São Paulo: Perspectiva, 2009. 20 texto dramatúrgico, da exploração e reinvenção de um espaço, da criação de personagens, da reprodução de rituais cotidianos dos jogadores, da observação de um quadro ou obra de arte ou da definição ou sorteio de uma situação, lugar e personagens. Na presente pesquisa, o estímulo ao jogo partiu do mito de origem e não de um roteiro dramatúrgico criado a partir de um texto do gênero narrativo, a exemplo de outras iniciativas (ANCONA, 2011; CABRERA, 2016; PUPO, 2005). O jogo dramático se mostrou como uma forma possível de vivenciar mitos com estudantes do ensino formal, pois ele pode ser realizado tanto com atores quanto com não-atores. A qualidade de atuação no jogo dramático não precisa ser o foco e nem objeto de julgamento, o importante é que cada jogador possa desenvolver o que Ryngaert chama de “capacidade de jogo” (2009, p.43). A noção de capacidade de jogo ultrapassa a simples distinção entre especialistas e não-especialistas e não diz respeito apenas à técnica teatral (p. 43). Ela se apresenta quando o jogador está inteiramente presente em cena, considerando o que está acontecendo a sua volta, quando ele está disponível ao que os outros jogadores propõem e está pronto para reagir a isso. Todos esses elementos devem ser desenvolvidos na prática do jogo, pois o jogador desenvolve a capacidade de jogo jogando (CABRERA, 2016; RYNGAERT, 2009). As regras são características importantes nas improvisações dos jogos dramáticos. Elas possibilitam e facilitam um trabalho com não-atores, pois as regras fazem com que o jogador tenha um objetivo e uma base para criar. Quando um trabalho de improvisação permite que os atores improvisem livremente, sem nenhum pré-requisito, isso pode fazer com que paralisem e fiquem sem saber como agir. Por isso estabelecer diretrizes pelo uso de regras pode fazer com que os jogadores tenham um ponto de partida para a sua criação e não fiquem livres para improvisarem o que quiserem quando, na verdade, eles não sabem por onde começar. Viola Spolin (2010) acreditava que a espontaneidade surgia no jogo porque os jogadores têm que alcançar um objetivo respeitando as regras estabelecidas. Enquanto jogadora percebo que isso ocorre e acredito que isso também é valido para o jogo dramático desenvolvido por Ryngaert. Nas oficinas ministradas na E.E. Professor Antonio Lisboa, houve regras que permearam todos os jogos, como: um grupo apresentou enquanto o outro assistiu, o grupo que assistiu pôde comentar o que viu após as 21 apresentações das cenas, as improvisações se basearam no mito narrado ou nos trechos dos mitos que foi indicado para cada grupo jogar. A princípio havia uma regra que definia que os jogadores-atores não deveriam utilizar a palavra em cena. Depois de alguns jogos com essa regra, inseri outra que permitia o uso da palavra. Quando percebi que eles estavam lendo o texto, inseri a regra de não ler em cena, ou seja, eles poderiam falar, mas sem ler o texto que tinham em mãos. Em um dos encontros inseri uma regra que orientava os jogadores-atores a trabalhar em cima das ações dos mitos, que foram previamente elencadas e definidas por mim. Em outro encontro defini que eles deveriam necessariamente apresentar na cena as personagens do mito que eu indicasse a cada grupo. O jogo dramático também exigiu e desenvolveu a capacidade de trabalhar em grupo. Os jogadores ocuparam as funções tanto de representação quanto de observação, podendo refletir sobre as improvisações tanto pela perspectiva do ator quanto pela do público. No caso da prática proposta por essa pesquisa, o jogo auxiliou na elaboração de um discurso referente ao conteúdo dos mitos de origem. Por meio do jogo, os jogadores-espectadores puderam codificar tais narrativas e depois decodificá-las nas conversas que ocorreram após as cenas. 22 3 INTERCULTURALIDADE Como a pesquisa abordou diferentes versões da origem do mundo, foi possível comparar e descobrir as semelhanças e diferenças que unem os mitos de origem. Dessa maneira, foi possível estabelecer uma relação entre as culturas das quais os mitos pertencem, além de uma relação entre estas e a cultura dos participantes da oficina. Então, os estudantes puderam aprender com os mitos de origem sobre as suas respectivas culturas e formas de pensamento. A interculturalidade é um conceito que não se refere somente à convivência de culturas diversas em um mesmo ambiente, mas ao estabelecimento de relações entre essas culturas que resulte em uma aprendizagem. A interculturalidade, assim como os próprios conceitos de cultura e identidade, pode ter muitos significados, entretanto pode se dizer que o conceito faz referência a um intercâmbio, uma interação, um diálogo entre pessoas pertencentes a culturas diferentes (GUERRA, 2013, p.31). Para entender como trabalhar a interculturalidade, os mitos de origem e os jogos dramáticos, busquei material bibliográfico que tratasse de Artes Cênicas, interculturalidade e educação. Dediquei-me ao estudo dos trabalhos de Rodrigo Benza Guerra (2013) e de Beatriz A. V. Cabral e Susan Battye (2003), que me pareceram os mais próximos da pesquisa empírica que, como pesquisadora, desejava desenvolver. A seguir descrevo aspectos interessantes sobre o trabalho desses pesquisadores que me inspiraram a trabalhar com interculturalidade e jogos dramáticos na educação. Essas pesquisadoras encaram a interculturalidade como um intercâmbio de experiências e observam que a pessoa que entra em contato com uma cultura que não é a sua possui um olhar estrangeiro e parâmetros diferentes na sua forma de ver o mundo. Por isso ressaltam que é preciso trabalhar a conscientização desses aspectos. Elas indicam a possibilidade de conhecer outra cultura por meio do drama (CABRAL, 2012). O drama é uma atividade criativa em grupo, na qual os participantes se comportam como se estivessem em outra situação ou lugar, sendo eles próprios ou outras pessoas (p.11). Beatriz A. V. Cabral pesquisa e trabalha com o dramatic play. Apesar disso, a sua definição do que é drama demostra que é possível trabalhar com mitos e com o 23 jeu dramatique conjuntamente, pois nesse jogo os jogadores também agem como se estivessem em outra situação. Tanto o jogo dramático de acepção inglesa quanto o de acepção francesa requerem a “imitação através da ação” (PUPO, 2005, p.220). Então, ao trabalhar com mitos e o jogo dramático proposto por Ryngaert os jogadores podem se comportar como as personagens do mito e como se fizessem parte da situação apresentada na narrativa mitológica. Cabral e Battye descrevem no texto Cruzando fronteiras – perspectivas interculturais em contextos multiculturais (2003) um projeto intercultural, em que o tema da violência é visto por diferentes perspectivas culturais. O exemplo que elas propõem é de um trabalho em escolas, em que cenas são feitas a partir de imagens, depois tais cenas são fotografadas e mandadas para um grupo de estudantes de outra escola, que vão fazer outras cenas a partir das fotografias recebidas. Além disso, elas apresentam um trabalho realizado na Nova Zelândia em que foram montadas peças em Centros Residenciais de Justiça Juvenil. Esse processo teve função terapêutica e a história de vida dos jovens foi inspiração para as montagens teatrais. As culturas ocidental e Maori também foram abarcadas nessas peças. Outros dois projetos descritos nesse texto são o de um trabalho feito em Hong Kong em que empregadas domésticas Filipinas e Tailandesas se uniram para fazer teatro e o The Big Wind Project, realizado em 1994, no qual diversos artistas se reuniram para criar uma peça sobre trabalhadores migrantes em países em desenvolvimento. Nessa montagem foram utilizados vários estilos teatrais e danças tradicionais de diversos lugares. Rodrigo Benza Guerra em sua dissertação de mestrado intitulada O professor dialógico: um aprendizado a partir do teatro intercultural na Amazônia peruana (2013), narrou a sua prática de teatro intercultural com indígenas e mestiços na Universidad Intercultural Nacional De La Amazonía (UNIA), na cidade de Pucallpa no Peru, país de origem do pesquisador. Esta dissertação contextualizou a forma com que os indígenas viviam e se relacionavam com mestiços e não-indígenas, explicando as tensões que existiam na região de Pucallpa e as diferenças sociais e culturais entre estes três grupos da sociedade. Nesse contexto, os indígenas não possuíam as mesmas oportunidades que os não-indígenas, e os mestiços, que apesar de terem aparência semelhante a dos indígenas não se consideravam indígenas e sofreram discriminação por parte dos dois grupos. No seu projeto Rodrigo Benza Guerra realizou oficinas utilizando jogos e improvisações para tratar de assuntos da vida dos participantes e estimular o trabalho em equipe de indígenas, brancos e mestiços. Os 24 jogos teatrais e jogos dramáticos foram uma forma de os jogadores de diversas origens se unirem e criarem cenas que refletissem a sua vida e as questões sociais e culturais que lhes diziam respeito. Nesse processo o próprio pesquisador teve de reconhecer que pertencia a um grupo específico da sociedade, o dos homens brancos, e por isso tinha um ponto de vista específico sobre os assuntos abordados. O fato do pesquisador ter discutido essa questão, mostrou a importância de, como condutora da oficina, me conhecer e reconhecer como parte de um contexto, que não necessariamente é o mesmo contexto dos estudantes. No caso das oficinas idealizadas por Rodrigo Benza Guerra, o uso do termo teatro intercultural, foi explicado ao se referir a esse processo em que a interação dos participantes de culturas diversas ocorreu pela utilização da linguagem teatral. Como ele encarou a interculturalidade como troca e diálogo, apostou nos princípios dialógicos de Paulo Freire e, utilizando o Teatro como agente transformador, realizou essas oficinas em que pessoas de culturas diferentes se uniram para trabalhar juntas. A presente pesquisa também pretendeu seguir um caminho de diálogo entre as culturas. Devido ao espaço de troca que proporciona, o jogo dramático se mostrou como um meio para que um trabalho intercultural fosse feito. O jogo foi um espaço de troca e de diálogo e requereu que os jogadores trabalhessem juntos, de modo que o conflito que ocorreu pelo confrontamento de diferentes pontos de vista e diversos modos de agir deu forma à criação. Nesse processo o grupo passou por uma aprendizagem em que foi preciso dialogar e chegar a um acordo grupal, a um ponto comum de síntese e convergência. Por isso a escuta, a cumplicidade, a autonomia e a disponibilidade foram características que puderam ser desenvolvidas no jogo dramático e que também possibilitaram uma relação intercultural. Durante a elaboração das oficinas na escola, precisei estabelecer um ponto de vista para olhar os mitos e ainda prever como os estudantes poderiam receber essas narrativas. Os mitos fazem parte da crença de determinados povos e, por isso necessitam ser tratados com respeito e cuidado. Apesar do meu interesse por mitologia, acredito que os mitos, seja de qual cultura for, são metáforas que explicam como o mundo funciona. Os mitos me encantam pela forma poética com que explicam o mundo, mas acredito na versão científica sobre a origem do mundo. Porém, essa versão também pode ser vista como um mito, pois é uma dentre tantas outras versões de algo que não tem como ser comprovado. Nas oficinas a escolha de mitos de culturas e lugares distantes do contexto paulistano ocorreu para que as narrativas 25 pudessem ser encaradas pelos estudantes com um distanciamento, evitando reações preconceituosas e possibilitando que eles compreendessem que os mitos representam as crenças de determinados povos. Tinha como pressuposto que os estudantes não fossem gostar dos mitos e não fossem aceitá-los dentro da nossa prática, porém eles não demostraram uma negação imediata a essas narrativas. Essa negação não se deu de forma oral ou por uma recusa de fazer as cenas, mas ela ocorreu de forma sutil, pelos estudantes que disseram não compreender os mitos e que não demonstraram interesse em participar dos jogos dramáticos. Nas conversas, a maioria deles deixou claro que viam aqueles mitos como mera ficção e por isso eles foram tratados como qualquer outra história de qualquer outro gênero literário que eu poderia ter contado a eles. Acredito que isso ocorreu pelo fato de os mitos utilizados em aula serem de lugares distantes e pelos estudantes não possuírem conhecimento prévio de quase nenhum deles. O distanciamento ocorreu, e fez com que muitos estudantes não conseguissem ver os mitos como parte de religiões. É provável que se trabalhássemos com mitologias mais próximas como as ameríndias, a iorubá e a judaico-cristã, o preconceito seria demostrado com mais veemência e talvez ocorresse outro tipo de discussão. Esse processo intercultural me fez pensar que, mesmo com a globalização e o grande fluxo de migrações que ocorrem no Brasil, há pouco ou nenhum espaço nas escolas para discutir a relação entre culturas. Muitos dos conteúdos curriculares seguem uma matriz europeia, excluindo elementos da história e cultura afro-brasileira e indígena. Por causa desses aspectos, o debate sobre interculturalidade se mostrou importante. Mas como é possível trabalhar em um ambiente escolar contemplando a cultura de estudantes de origens diversas se o próprio currículo não incentiva essa prática? Há a possibilidade de realizar trabalhos nesse sentido ao apresentar conteúdos diversificados e que explorem diferentes pontos de vista. Isso pode ocorrer nas aulas de Artes, Geografia, História e Literatura, por exemplo. Busquei, como estagiária na docência em Artes, ou seja, como alguém que não fazia parte do cotidiano da E.E. Professor Antonio Lisboa, incitar uma discussão sobre as relações interculturais. Espero que isso ocorra com mais frequência a partir de propostas dos próprios professores e não apenas por um processo trazido por alguém de fora da escola. Nas oficinas realizadas apresentei diversas versões sobre a origem do mundo para que pudéssemos refletir sobre a diversidade de pensamento. Busquei realizar um trabalhado dialógico, que possibilitasse aos estudantes se sentirem à vontade para 26 expressar sua forma de pensar e discutir sobre os diferentes pontos de vista dos colegas. Nas oficinas houve o intento de aprender sobre e com o outro. 27 4 PROCESSOS DE TRABALHO 4.1 Primeiro contato com a escola Como as oficinas estavam direcionadas ao Ensino Fundamental II, preparei uma lista de escolas públicas que atendessem a esse requisito e que fossem de fácil acesso. Fui à E.E. Professor Antonio Lisboa, bairro Jardim São Paulo, zona norte da cidade de São Paulo/SP, no dia 14 de março de 2017. Lá conversei com a vice- diretora e as professoras de Artes Juliana e Daniela6. Entreguei o piloto da oficina a elas, que concordaram que eu fizesse a oficina durante as aulas de Artes. Elas pediram que eu adaptasse o planejamento das oficinas para que elas acontecessem em menos aulas. Combinei que utilizaria seis aulas da professora Juliana, que duravam cinquenta minutos e quatro aulas da professora Daniela, com duração de cem minutos. As turmas foram escolhidas pelas próprias docentes. A professora Daniela deixou que eu realizasse a oficina com a turma do 9º ano A, em que os alunos tinham catorze anos. Essa turma possuía quarenta estudantes, as aulas eram de quinta-feira à tarde. Já a professora Juliana designou o 7º ano C para mim, turma com estudantes de doze anos. Suas aulas também eram no período da tarde, porém essa turma tinha apenas vinte estudantes e as aulas ocorriam às terças-feiras. Ficou acordado que as oficinas teriam início na primeira semana de abril de 2017, ou seja, no começo do segundo bimestre da escola. A professora Juliana me acompanhou e assistiu todas as aulas que ministrei para a turma dela, já a professora Daniela, só esteve presente na primeira aula, pois nas semanas seguintes ela entrou de licença. Ambas professoras ministravam aulas de Artes, cujo conteúdo era voltado para as Artes Visuais. 4.2 Adaptação dos planos de aula O piloto da oficina era composto por doze encontros, de modo que cada mito fosse trabalhado em uma aula e que nas duas primeiras aulas os estudantes pudessem entrar em contato com o jogo dramático e com o tema da oficina. Além disso, na última aula aconteceria uma avaliação dos trabalhos feitos. Na penúltima haveria um momento para os estudantes identificarem objetivamente os elementos recorrentes nos mitos e criar uma versão da origem do mundo utilizando esses 6 As duas professoras me autorizaram a citá-las nesse texto. 28 elementos. Como as aulas nas escolas são, normalmente, de cinquenta minutos, as aulas da oficina foram pensadas para acontecer nesse tempo. Oito mitos foram selecionados e agrupados de acordo com as suas semelhanças. Eles foram colocados em uma ordem de maneira que o mito a ser trabalhado na aula seguinte contivesse algum elemento na sua narrativa semelhante ao anterior. Esse critério para definição da ordem com que os mitos foram trabalhados pretendia que os estudantes pudessem identificar as semelhanças entre eles e discuti- las. No entanto, como fiz um acordo diferente com cada professora, tive que adaptar o planejamento original da oficina para a quantidade de aulas disponíveis com cada turma. Nas duas oficinas, além dos jogos dramáticos foram realizados tableau vivant, “quadros vivos” (RYNGAERT, 2009, p. 99), ou seja, imagens estáticas feitas corporalmente e também ocorreram jogos para que os participantes pudessem se conhecer melhor, começar a criar uma unidade do grupo e para que eu pudesse conhecê-los.7 Ao fazer as modificações no piloto da oficina mantive no planejamento do 9º ano as atividades que havia planejado para os mitos, porém retirei alguns deles. Segui a ordem já estabelecida das aulas, no entanto o mito chinês “Pan Gu, o criador do universo” acompanhava no planejamento original uma atividade que exigia trabalho individual e que envolvia grande concentração e introspecção. Ao conhecer os estudantes pude perceber que esse tipo de trabalho não seria possível de ser feito, por isso eliminei esse mito do planejamento e, consequentemente o mito escandinavo “O gigante do gelo”, pois eles tinham grandes semelhanças e gostaria que os dois fossem trabalhados juntos. Assim sobraram seis mitos e só teria quatro aulas, então eliminei os últimos da lista que são o da tribo Araweté chamado “A criação do mundo” e o do povo Xavante intitulado “História dos criadores”. Com a turma do 9º ano na primeira aula trabalhamos o tema “Origem do mundo” e o mito melanésio “A dança do deus Qat”, na segunda aula o mito polinésio “Os filhos do céu e da terra”, na terceira aula o mito africano “O Celeiro do mundo” e na quarta o mito grego “Prometeu e Pandora” além de realizarmos a avaliação dos nossos encontros. Para as aulas do 7º ano, segui a ordem estabelecida originalmente, porém eliminei os quatro últimos mitos da lista. Na primeira aula foi trabalhado o tema “Origem do mundo”, na segunda o mito melanésio “A dança do deus Qat”, na terceira 7 Nos apêndices há a descrição das duas oficinas e do piloto. 29 o mito polinésio “Os filhos do céu e da terra”, na quarta, o mito chinês “Pan Gu, o criador do universo”, na quinta, o mito escandinavo “O gigante do gelo” e na sexta aula fizemos a avaliação da oficina. Ao adaptar os planos de aula para cada turma, os mitos ameríndios foram eliminados pelo fato de eles serem os que tinham menos semelhanças com os outros mitos selecionados. Nessa oficina, queria ressaltar o que os mitos tinham de semelhante. Já o mito iorubá, que havia utilizado na oficina da Unati, não esteve presente nessa seleção, pois ele está muito próximo da realidade dos estudantes. Como eu não os conhecia profundamente, não havia como saber quais religiões eles possuíam, então decidi não trabalhar com mitos iorubá e nem judaico-cristãos, pois havia grande probabilidade de os estudantes seguirem alguma religião dessas matrizes culturais. Eu não queria trabalhar com mitos tão próximos deles, pois isso poderia gerar certa tensão em sala de aula. Nesse caso eles poderiam pensar que eu estaria questionando a sua fé. Além disso, preconceitos muito presentes na nossa sociedade em relação a religiões afro-brasileiras e evangélicas poderiam ser expressados de forma a criar desavenças entre os estudantes. Sinto que não teria como lidar com uma situação dessa, principalmente por não os conhecer e por ministrar uma oficina de curta duração. Se fosse a professora deles talvez pudesse fazer um trabalho semestral ou anual que trabalhasse essas questões e aos poucos esse assunto seria trabalhado e teríamos mais tempo para discuti-lo. Nessa situação o conflito parece inevitável, porém iniciar um trabalho com mitos de locais distantes poderia despertar o interesse dos estudantes para essas questões, que posteriormente poderiam ser trabalhadas com o foco na sua própria religião. Após cada aula da oficina eu descrevia os acontecimentos daquele dia e anotava as minhas percepções. Dessa forma pude registrar cada aula e acumular material para desenvolver uma reflexão sobre esse processo.8 8 Nos apêndices se encontra as impressões e descrição de cada aula. 30 5 A PRÁTICA EM SALA DE AULA Durante o processo de pesquisa, tive que me posicionar de duas maneiras: como professora e como pesquisadora. No papel de professora, pude planejar as aulas e avaliar se os procedimentos feitos com os estudantes foram eficientes e como pesquisadora tive de analisar se as aulas estavam acontecendo de acordo com os objetivos da pesquisa, observar quais foram os resultados obtidos nessa prática e qual sua relação com a bibliografia. É importante ressaltar que, muitas vezes nessa reflexão final, uso termos que generalizam as atitudes e compreensões dos estudantes. Pelo modo como a pesquisa foi feita, não foi possível registrar as ações, emoções, reações, descobertas, julgamentos e preconceitos de cada um deles. Por isso escrevo o que pude perceber da turma em geral e relato algumas exceções que são relevantes à pesquisa. Nem todos os estudantes gostaram do trabalho proposto, talvez nem todos tenham aprendido algo com ele. Isso era de se esperar e pode acontecer em qualquer atividade e com qualquer professor. Eu planejei as atividades pensando no propósito da pesquisa e no meu interesse pelo assunto, buscando, inclusive, suscitar o interesse dos próprios estudantes. Ryngaert (2009) relata e instrui sobre vários aspectos do jogo dramático em que pude me basear para construir uma oficina eficiente e me desenvolver como professora e pesquisadora. O autor sugere que as instruções dos jogos sejam abertas para que os jogadores tenham opções para criar, mas fechadas, para que os jogadores saibam em que direção seguir e não se percam com instruções indefinidas. Ele também cita que as instruções devem apresentar “desafios claros” (p.47), que enfatizem “o engajamento individual, o risco pessoal e a concentração” (p. 49) de forma a fomentar o jogo e evitar o aparecimento dos “obstáculos ao jogo” (p. 45). Nos encontros da oficina o desafio estava claro, eles tinham que preparar cenas baseadas na narrativa que ouviram. Ela também era fechada, pois o estímulo das cenas eram os mitos, mas as cenas poderiam se desenvolver para além do enredo. Essa última opção não ficou explícita, eu não pedi que criassem nada além da história apresentada no mito, porque a própria criação da cena sobre a narrativa era algo novo para eles. Subverter o jogo faz parte dessa dinâmica, mas não houve tempo suficiente para os jogadores chegarem a esse nível de apropriação do mesmo. Antes de começar os jogos dramáticos me certifiquei de que os estudantes sabiam o que era uma cena e 31 que teriam o conhecimento mínimo para realizá-la. Nessas oficinas os estudantes sempre realizaram jogos dramáticos com a narrativa do mito, porém a cada aula as instruções eram diferentes, pois os estímulos provenientes dos mitos eram distintos. Os jogos dramáticos eram híbridos, pois inseri nas oficinas outros jogos e atividades para integrar os estudantes e auxiliar na criação e reflexão das cenas. Buscava ser mais objetiva possível ao oferecer as instruções, porém, com o 9º ano houve alguns momentos de dificuldade para deixar as explicações claras. Talvez isso tenha ocorrido, pelo fato de ter de prestar atenção em muitas coisas ao mesmo tempo: explicar a atividade, prender a atenção dos estudantes e pedir silêncio. Quando percebi que as instruções não estavam sendo compreendidas por essa turma, comecei a escrever as etapas do trabalho na lousa e pedir, antes de começar o jogo, que os estudantes me explicassem o que eles deveriam fazer. Fiz isso para ter certeza de que eles haviam entendido as instruções. Também anotei na lousa os elementos que eles relembravam dos mitos trabalhados anteriormente, para que pudessem fazer conexões entre os mitos e as cenas que estavam criando. Acho importante, em qualquer processo de aprendizagem, relembrar as atividades feitas na aula anterior para que os estudantes não esqueçam delas e estejam sempre fazendo conexões do que está sendo aprendido com os conhecimentos já adquiridos. Isso foi importante no processo das oficinas, pois Artes era uma entre tantas outras matérias que os estudantes tinham. Além disso, eles não demostraram muito interesse pelas atividades propostas e isso pode ter feito com que não voltassem sua atenção para o assunto. Por isso foi necessário relembrar o que foi feito para que se estabelecesse uma conexão com o que ainda seria trabalhado na oficina. Quando questionados sobre os mitos, os estudantes lembraram de vários elementos das narrativas, mas não do enredo completo. Nas aulas houve momentos em que não só as instruções não foram compreendidas, como os mitos também. Houve uma aula em que os estudantes já estavam separados em grupo, preparando as cenas e me disseram que não haviam entendido o mito totalmente, que compreenderam apenas algumas partes. Nesses casos eu pedi que fizessem a cena com o que tinham compreendido do mito, porém eles insistiram em reler o texto. Uma das questões que me deixaram apreensivas foi se seria necessário tirar as dúvidas sobre o mito imediatamente após a sua leitura ou se seria mais interessante deixar que os jogadores expressassem o que entenderam do mito, mesmo que pouco, por meio da realização das cenas. Depois desse episódio 32 compreendi que, pelos estudantes não terem prática no jogo dramático, fazer uma cena sobre algo que não compreendem, ou uma cena demostrando essa incompreensão talvez fosse exigir muito deles. O jogo dramático foi novidade para os estudantes. Por isso eles não tinham noção de alguns elementos importantes da atuação. Após o término da oficina, quando refleti sobre o desenvolvimento da atuação dos jogadores, pude perceber que, inconscientemente, havia determinado pré-requisitos sobre esse aspecto e eles não foram preenchidos pelos estudantes. Eu esperava que eles soubessem que em cena eles deveriam projetar a voz, não ficar de costas para o público e olhar para os parceiros de cena. Depois que os jogos aconteceram, observei que esses requisitos não estavam sendo cumpridos e então percebi que não podia esperar isso dos estudantes. Estava acostumada a trabalhar com os meus colegas da graduação, os quais já compreendiam esses elementos que fazem parte da realização de uma cena. Mas os estudantes do Ensino Fundamental não tinham como saber disso a não ser que eu explicasse a eles e trabalhasse essas questões nos jogos. Outro fato ocorreu e foi consequência dessa minha expectativa errônea em relação aos estudantes. Eu entreguei um papel a cada grupo com o trecho do mito que eles deveriam utilizar no jogo. A palavra em cena era permitida, porém não esperava que eles fossem ler o texto, esperava apenas que eles utilizassem as suas informações na criação das cenas. Mas não deixei clara essa minha intenção. Desse modo eles leram o texto em cena. Então, em outra oportunidade, trabalhei com trechos do texto escrito e especifiquei que aquilo era para ajudá-los a fazer a cena e que eles não deveriam ler o texto durante a apresentação. Decidi fornecer a cada grupo um trecho do mito por escrito na tentativa de aproveitar mais o tema da oficina e o conteúdo dos mitos. Se cada grupo trabalha com uma parte específica do texto, eles podem, focando naquele trecho, desenvolver um trabalho mais profundo, pois não tem de se preocupar em englobar todos os elementos do mito, apenas os elementos daquela parte. É interessante observar que nas duas ocasiões em que eles tinham o trecho do mito escrito em papel eles utilizaram na cena a figura do narrador, mesmo quando não estavam lendo o texto houve pelo menos um jogador-ator que narrava a história enquanto os outros representavam. Como o objetivo principal das oficinas não era trabalhar atuação, era vivenciar os mitos por meio do jogo dramático, eu não foquei tanto nessas questões, mas, vi que os estudantes evoluíram um pouco nesse quesito, principalmente por 33 terem conseguido desenvolver sua capacidade de jogo, escuta e imaginação. Ainda tratando de pré-requisitos, esperava que os estudantes estivessem conscientes sobre outros fatores como: fazer uma roda, realizar comentários após a cena e não durante e não falar enquanto o outro também está falando. Só após o início da oficina percebi que estava esperando muito dos estudantes e que eles não tinham como saber dessas questões, pois não é costume se trabalhar isso na escola. Em alguns casos já previa que eles talvez não fossem conseguir acompanhar as instruções, como quando pedi que os estudantes fechassem os olhos e respirassem fundo, mas resolvi propor, para ter certeza de que a minha previsão estaria certa ou não. Nesse caso, foi uma minoria que seguiu essas minhas indicações. Acredito que haja certo medo em fechar os olhos na frente dos colegas, pois esse tipo de atitude exige confiança de que nada irá lhe acontecer enquanto estiver de olhos fechados. Isso aconteceu com a turma do 9º ano, que tem quarenta estudantes. Com essa quantidade de pessoas é difícil para os estudantes criarem um vínculo com todos os colegas. Também é difícil para uma educadora criar um ambiente propício a realização de uma atividade que trabalhe relações e confiança. Eu acredito que exercícios como o de passar o aperto de mão na roda, criar uma postura de uma personagem ou outros que precisam ser realizados em um ambiente tranquilo, são atividades com que os estudantes não estão acostumados e que precisam de uma preparação para serem realizadas. Também percebi que eles, apesar de terem autonomia para criar as cenas em grupo, não possuíam autonomia para realizar atividades individuais de expressão corporal e que desenvolvessem a percepção do próprio corpo. Por isso no momento de criar corporalmente a postura de alguma personagem, escolhi quais deveriam ser trabalhadas em vez de deixar que eles escolhessem. Há alguns requisitos para a realização desse tipo de atividade que nós, estudantes do curso de Licenciatura em Arte-Teatro já possuímos, pois trabalhamos com o corpo e formas de expressão constantemente, mas é um tipo de atividade que os estudantes do Ensino Fundamental têm pouco ou nenhum contato. Algumas dessas dificuldades dos estudantes estavam no fato de eles não terem vivenciado plenamente etapas anteriores da sua “capacidade de metamorfose” (LOPES, 1989 apud CABRERA, 2016) nesse tipo de jogo que “pede a aceitação temporária de uma ilusão na encarnação de um comportamento, portanto dando ao jogo caráter de mímica, disfarce, simulação, simulacro” (CAILLOIS, 1990 apud CABRERA, 2016), como é o caso do jogo dramático. O que impediu que os estudantes tivessem 34 conhecimento de alguns rituais que acompanham esse tipo de trabalho, como formar uma roda, realizar atividades de olhos fechados, descalços, etc. Essa metamorfose ocorre em etapas em que o jogador aos poucos consegue se transformar em outro e adentrar a ilusão do jogo. Segundo Cabrera (2016), a idade não é parâmetro para medir o progresso desse desenvolvimento, pois a “capacidade de metamorfose é um amadurecimento do Ser” (2016, p. 402) desde a brincadeira espontânea infantil até o uso consciente de elementos dramáticos com a finalidade de se comunicar por meio do jogo. É importante observar que o jogo dramático requer alguma maturidade por parte dos jogadores, de sair da vida real e de adentrar o espaço de jogo, onde devem se transformar em outro e trabalhar sobre o seu imaginário. Essa capacidade não acontece se não for estimulada e desenvolvida. Nesse processo, foi preciso reconhecer que os jovens do Ensino Fundamental II não estavam no nível de amadurecimento da capacidade de metamorfose que o jeu dramatique, assim como o praticado por Ryngaert em 1981, exige e que vivenciaram o mito a partir da sua capacidade naquele momento. Por isso foi necessário possibilitar que os estudantes jogassem no seu ritmo. Durante a parte prática dessa pesquisa houve a tentativa de observar e guiar os jogadores para que tivessem a oportunidade de amadurecer a sua capacidade de metamorfose (LOPES, 1989) no jogo dramático. O trabalho foi gradual, ele começou de forma que os estudantes pudessem se expressar sem palavras e sem movimentos, então o movimento e a fala foram sendo inseridos aos poucos. A cada passo desse processo os estudantes tinham que lidar com um novo elemento do jogo. Em alguns momentos houve a reapresentação das cenas criadas, para que os estudantes tivessem meios para melhorá-las e com isso aumentar a sua apropriação do jogo. O desenvolvimento da capacidade de metamorfose se deu tanto na qualidade de expressão, quanto na compreensão de mundo que o jogador adquiriu. Assim, não apenas as improvisações, como as conversas posteriores puderam diagnosticar se esse amadurecimento ocorreu. Em ambos os aspectos os estudantes se desenvolveram, porém, como a oficina focou mais na compreensão dos mitos, os estudantes progrediram mais em relação a sua compreensão do mundo do que na qualidade da sua expressão. No começo da oficina eles não conseguiam expressar direito o que achavam do tema ou das cenas e ao final da oficina eles já conseguiam elaborar de forma mais inteligível a sua percepção das narrativas e relacioná-las com o seu conhecimento prévio do assunto. 35 Para auxiliar no desenvolvimento do jogador em cena houve o acréscimo de regras que estimulou o jogador a “colocar-se em risco, ampliando limitações expressivas e paulatinamente adquirindo autonomia no que quer e como quer dizer seu discurso” (CABRERA, 2016, p. 409). As regras que defini nos primeiros jogos eram: as cenas devem ser feitas baseadas na história no mito, as cenas serão feitas em grupo, os grupos terão um tempo para planejar as cenas, um grupo apresenta sua cena enquanto os outros assistem, após as cenas os jogadores-espectadores podem comentar sobre as cenas (tanto sobre a atuação quanto sobre o conteúdo da cena) e as cenas devem ser apresentadas no formato de palco italiano. Depois acrescentei mais regras para tentar desenvolver a atuação dos jogadores e para colocar mais desafios no jogo. Essas regras foram: falar alto, fazer a cena em câmera lenta, na conversa posterior as cenas cada estudante fala por vez enquanto os outros escutam, não são todos que precisam falar, trabalhar determinadas ações na cena, interpretar determinados personagens em cena. O que percebi é que ao longo da oficina os estudantes foram adquirindo autonomia para criar as cenas sem pedir a minha opinião o tempo todo durante o ensaio. Eles foram incluindo cada vez mais elementos das narrativas nas cenas e, um grupo do 7º ano, na penúltima aula, decidiu fazer a cena em um lugar específico do pátio, pensando, no cenário da cena, algo que eu não havia mencionado. Eles também desenvolveram autonomia para criar e trabalhar com seus colegas, expondo as suas ideias e construindo algo ao unir o seu ponto de vista com o dos outros jogadores. O trabalho com cada turma foi diferente e teve resultados distintos. A turma do 9º estava mais resistente quanto a esse modelo de aula, havia mais estudantes que não estavam dispostos a participar do jogo e houve mais conflitos nos trabalhos em grupo. Essa turma era grande, possuía quarenta estudantes, o que dificultou a condução da aula. Ficou evidente que os estudantes dessa turma achavam que as aulas não faziam sentido e a inibição foi reforçada por esse sentimento. Às vezes, os jogadores a exprimem [a recusa de jogo] dizendo ‘é besta’ ou ‘não serve para nada’. A ausência de desafios claros e o sentimento de uma expressão gratuita ou manipulada favorecem a inibição, remetem à loucura. Toda manifestação expressiva ‘gratuita’ é como que implicitamente ameaçada pelos riscos da loucura, uma vez que jogar passa também por ‘bancar o louco’. Nessa situação, a presença ou ausência de olhares externos não altera em quase nada a inquietação (RYNGAERT, 2009, p. 46). 36 O tema das aulas não se mostrou interessante para esses estudantes e eles não viram no jogo dramático uma oportunidade de se divertir além de aprender. Além disso, “a recusa de expressão manifesta ora uma falta de confiança em si mesmo (não sei fazer, não sei o que fazer), ora uma falta de confiança no grupo.” (RYNGAERT, 2009, p. 46). O grupo realmente não era unido, houve até um episódio de briga durante a aula. A falta de confiança em si é normal nessa idade, em que os adolescentes estão buscando a aprovação dos seus pares e se acentua ainda mais em uma atividade que exige que eles se exponham. Essa recusa dos estudantes me afetou, pois também tive dificuldade de me conectar com essa turma e não estive sempre à vontade com o andamento dessas aulas. Talvez por isso, tenha tido dificuldade de fornecer as instruções com clareza. A cada aula constatava o que poderia ser melhorado ou adaptado para a próxima de modo que eu e os estudantes ficássemos mais à vontade com o trabalho que estava sendo feito. Apesar de não modificar muito o planejamento para não desviar dos objetivos da pesquisa. Por isso, mesmo percebendo que os estudantes do 9º ano não estavam gostando das aulas, não modifiquei o programa. Em vez disso, tentei fazer com que os jogos ficassem mais dinâmicos e com que eles se concentrassem mais nas tarefas. Por causa das dificuldades apresentadas pensei que, se a oficina não estivesse ligada ao projeto de pesquisa, teria escolhido fazer com o 9º ano um trabalho mais teórico, mesmo que fosse sobre os mitos e a interculturalidade. Eu organizaria uma aula expositiva, pediria tarefas escritas e realizaria atividades de Artes Visuais e não de Artes Cênicas. Estou ciente de que esta é uma saída fácil para essa situação, mas diante das dificuldades apresentadas na minha relação com essa turma, e que eu sei que não é isolada, pois já vivi experiências anteriores semelhantes, oferecer uma aula mais “tradicional” de Artes se mostrou como uma opção para discutir interculturalidade e mitologia de maneira que a aula aconteça com mais tranquilidade. Dessa forma os estudantes não teriam que se movimentar tanto e não ficariam tão agitados. O que percebi nas aulas é que os estudantes já tinham bastante energia e os jogos os deixaram ainda mais inquietos. Na turma do 7º ano havia somente vinte estudantes, o que possibilitou que tivesse mais contato com cada um deles. Isso permitiu que eles se abrissem e se sentissem à vontade para falar o que achavam. Eu pude ver os jogadores dessa turma desenvolverem a sua capacidade de jogo ao longo das aulas. 37 O jogo dramático acontece no aqui e agora e os jogadores têm de levar em conta o “movimento do jogo em curso” (RYNGAERT, 2009, p.52) para que o jogo aconteça, isto é: estar disponível e saber reagir aos acontecimentos que compõem a improvisação. Isso significa que o jogador deve aceitar o caminho que o jogo está tomando e reagir, acrescentando elementos ao jogo para enriquecê-lo. Para que isso aconteça é necessário ter presença, que não existe sempre pelas características físicas do indivíduo, mas sim em uma energia vibrante, da qual podemos sentir os efeitos mesmo antes de o ator agir ou tomar a palavra, no vigor de seu estar no lugar (RYNGAERT, 2009, p. 55). Na quarta aula com o 7º ano pude visualizar o princípio de uma manifestação de presença de alguns jogadores em cena. A presença integra o “aqui e agora” e pode ocorrer conforme a disponibilidade e concentração dos jogadores. Para poder reagir ao que o outro propõe em jogo é preciso ter escuta verdadeira e atenta e utilizar a imaginação para enriquecer a improvisação. Acredito que os jogadores não tenham desenvolvido tanto a escuta em cena da mesma maneira que conseguiram desenvolvê-la no trabalho em grupo. Para que aconteça o “estado de jogo” também é necessária sensibilidade por parte do jogador. Ryngaert escreveu que a “carga emocional é indispensável para que a imaginação escape do lugar-comum, se confronte com clichês e aborde os problemas de frente” (2009, p. 37). Esse confronto foi importante já que nas oficinas os estudantes entraram em contato com narrativas que não eram da sua cultura. Para que pudessem receber e compreender essas narrativas, foi preciso desenvolver a escuta e a sensibilidade. Em ambas as turmas houve momentos em que a negação do jogo se fez presente por meio da risada dos jogadores que estavam em cena. A negação do jogo consiste em uma falta de concentração e a insegurança de estar em um espaço de jogo, que é outro lugar diferente da realidade. Ela é o medo de se engajar totalmente neste jogo. Pela risada os jogadores se conectaram com a realidade, mostrando que conseguiam sair do jogo, rir e depois voltar a improvisar. Nesse caso, em que os jogadores têm “essa necessidade de manter o contato com a realidade [...]” (RYNGAERT, 2009, p. 50) o educador pode auxiliar os jogadores a se engajarem no jogo ao fornecer instruções diversificadas para que compreendam o que estão fazendo e tenham motivos para se concentrarem. Para incentivar os jogadores a se engajarem no jogo busquei esclarecer as dúvidas quanto às instruções nos momentos 38 em que percebi que elas não estavam sendo compreendidas, e propus diferentes maneiras de trabalhar com o mito: pelo desenvolvimento de ações, das personagens e de um roteiro. Outra barreira à realização do jogo é a extroversão, que pode se manifestar por meio do exibicionismo, isto é: “trata-se de brilhar a qualquer preço. Tudo então se volta para o exterior e a recompensa esperada reside no riso e nas manifestações de prazer dos outros” (RYNGAERT, 2009, p. 48). Essa é uma forma de reagir ao olhar do outro e de buscar aprovação de quem o vê. Dessa maneira o jogador chama a atenção para si e não para o jogo, atrapalhando o seu andamento. Mais uma vez, propor desafios claros faz com que os jogadores se concentrem e foquem no jogo. Pela falta de concentração dos jogadores das oficinas conclui que os desafios não estavam claros ou que eles eram muito difíceis e os jogadores estavam com dificuldade de realizar os objetivos dos desafios. A extroversão se deu em alguns momentos, principalmente nos jogos anteriores ao jogo dramático, em que os estudantes imitavam alguém conhecido, faziam gracinhas ou uma coreografia de alguma música famosa. Dessa maneira eles podiam desviar o foco da sua fragilidade em estar sendo observados e tendo que criar algo inusitado, então eles mostraram algo que sabiam que os colegas iriam aprovar. Eu utilizei jogos de aquecimento na tentativa de romper com a inibição, com a extroversão e com a negação o jogo. Eu vejo uma grande importância nesses aquecimentos e atividades anteriores ao jogo para que se desenvolva confiança entre os jogadores e para que todos fiquem à vontade para jogar. Por isso busquei, pincipalmente nas primeiras aulas, realizar aquecimentos que trabalhassem a interação entre os estudantes. Como houve várias manifestações de negação ao jogo, a maioria das cenas não conseguiu se desenvolver de forma orgânica, pois “a negação do jogo no momento em que se joga anula o jogo e exige um esforço suplementar para que ele renasça” (RYNGAERT, 2009, p. 50). O trabalho com improvisações conta pela sua característica imediatista, os jogadores tinham de criar com base nas suas impressões imediatas do mito e a ideia era que eles não refletissem tanto no momento de criação das cenas, mas após as apresentações. A improvisação permite uma expressão espontânea (mas evita-se o “espontaneísmo”9). Há um retardamento na possível aparição de julgamentos por 9 Ver em LOPES, Joana. Pega Teatro. Campinas: Papirus, 1989. 39 parte dos estudantes com relação à narrativa, se eles mostram o que compreenderam do mito logo após ouvi-lo. No entanto, no jogo dramático existe a possibilidade de planejar brevemente a improvisação. Eu não acho que isso prejudique a resposta imediata esperada da improvisação e, para jogadores iniciantes, esse tempo de ensaio auxilia a se organizarem e se sentirem mais seguros. Ryngaert (2009) descreve como ele permitiu em algumas oficinas de jogos que os jogadores planejassem brevemente o que seria apresentado antes de improvisar e explorei essa possibilidade. O fato de os estudantes nunca terem jogado, acrescido a grande inibição que demostraram, indicou que a escolha de deixar eles se prepararem antes de improvisar foi acertada. Não vejo como seria viável realizar naquele momento uma improvisação, sem esse breve momento de ensaio. Uma improvisação sem ensaio prévio poderia ser feita com esses jogadores após um longo trabalho com jogos e um maior desenvolvimento da capacidade de jogo dos estudantes. Pelo tempo disponível em cada aula os jogadores tiveram de dez a vinte minutos para esboçar uma cena. Na última aula do 9º ano esse tempo foi estendido para uma hora e eles poderiam ter ficado muito mais tempo elaborando a cena para contemplar todas as ações do mito que havia dado a eles e que precisariam aparecer na cena. A extroversão pode atrapalhar o desenvolvimento do jogo assim como a inibição, que pode desencadear uma paralisia, que é uma dificuldade familiar ao jogador iniciante, talvez a mais comum. [...] Uma impossibilidade de superar a uma angústia causada pelo olhar do outro ou o sentimento de ser ridículo aos seus próprios olhos, a famosa consciência de si (RYNGAERT, 2009, p. 45). Porém “uma das funções do jogo é derrubar uma parte das defesas que provocam a inibição” (p. 45). Os jogadores das oficinas demostraram inibição, mas não chegaram à paralisia. Acho que isso se deve ao fato de termos iniciado a oficina com atividades em que não havia um observador, em que todos trabalharam simultaneamente. Nos primeiros encontros realizamos improvisações coletivas sem o olhar exterior (RYNGAERT, 1981). Além disso permiti um tempo de ensaio antes da apresentação das cenas e propus exercícios de integração entre os participantes, para que ficassem à vontade com os colegas. A expressividade dos estudantes se mostrou inicialmente de forma sutil, por isso tive que desenvolver sensibilidade e capacidade de observação para percebê-la. Eu tive de estar constantemente atenta para poder observar e perceber a 40 maneira com que os estudantes se manifestavam. Também prestei atenção na maneira como eles reagiam ao mito. Isso foi bem difícil, pois tive de analisar se os estudantes gostaram do mito, se não gostaram, se houve resistência em trabalhar com ele ou se houve manifestações de preconceito. Enquanto ensaiavam, os jogadores pediam a minha ajuda e muitas vezes explicavam para mim o que pretendiam fazer, buscando validação para as suas ideias. Tentei não interferir muito e os incentivei a valorizar as suas propostas. As falas dos colegas sobre as apresentações puderam auxiliar os estudantes a compreender se o que pretendiam comunicar foi realmente entendido. Não nos aprofundamos neste tipo de discussão, mas quando havia a possibilidade de apresentar novamente sempre pedia a eles que deixassem as suas ações mais claras, podendo fazê-las mais lentamente. Apesar das risadas dos jogadores-atores terem constantemente interferido na qualidade e compreensão das cenas, os estudantes conseguiram, codificar o mito e com o seu corpo mostrar o que entenderam da narrativa. O fato de os jogadores-atores realizarem movimentos muito rápidos dificultou a compreensão das cenas. Por isso pedi que eles fizessem movimentos maiores e mais lentos. Eles tiveram dificuldade em seguir essa indicação. Mais uma vez acredito que isso ocorreu pela falta de experiência com a linguagem. Também me questionei após a apresentação das cenas, se eles haviam entendido o que é fazer um “movimento maior” e identifiquei que a minha instrução não havia sido clara. Ao observar os estudantes planejando e ensaiando as cenas, pude perceber uma evolução no modo em que eles trabalharam em grupo e organizaram as suas ideias. Alguns grupos tiveram muitas ideias, outros estavam com mais dificuldade, mas todos conseguiram executar as cenas. No geral, os jogadores do 7º ano estavam à vontade para propor e se esforçando para entrar em um acordo grupal e contemplar as ideias de todos. Algumas vezes, um deles se destacava como líder do grupo, que coordenava o ensaio, e outras vezes, o grupo pedia a minha opinião sobre o trabalho que ele estava fazendo. Já os jogadores do 9º ano eram menos participativos e dentro dos grupos havia sempre um ou dois estudantes que faziam a maior parte do trabalho. Durante os ensaios alguns estudantes questionaram como seria possível que eles representassem algo como uma pessoa saindo de um ovo, as partes do corpo de um gigante virando o planeta Terra ou ainda algo como o começo do mito polinésio “Os filhos do céu e da Terra”, em que há uma descrição de como não existia 41 nada e então surgiu um aroma e a luz e depois os planetas. Nesses casos fazia perguntas para estimular a imaginação deles e pedia que imaginassem e achassem uma maneira de realizar essa tarefa, então eles conseguiram e acharam soluções para as questões que tinham. Também os incentivei a elencar ideais para as cenas, mesmo que essas não “fizessem sentido” de acordo com um pensamento racional. Enquanto eles ensaiavam fornecia indicações para que as ações que eles fizessem ficassem mais perceptíveis e para que eles pudessem aproveitar melhor o espaço, pois alguns grupos realizaram as cenas muito distantes do público, provavelmente devido à timidez. Eu percebi que os estudantes se subestimaram, pois, um deles disse que a dificuldade em fazer as cenas foi o fato de não terem criatividade. Eu vi a criatividade deles sendo expressa e desenvolvida durante os encontros. A dificuldade que havia para criar as cenas estava no fato de alguns estudantes estarem desconfortáveis, pois tinham que se expor em cena ou não estavam dispostos a realizar as tarefas pedidas e trabalhar em grupo. Isso fez com que algumas cenas não ficassem tão boas quanto poderiam ter ficado. Para a minha surpresa os estudantes do 7º ano falaram que a parte fácil de fazer as cenas foi a história, portanto, eu creio que não houve tanta resistência desse grupo em aceitar o mito. Isso talvez se deva ao fato de os jogadores terem visto o mito como ficção. Também tratei os mitos com respeito e isso pode ter reverberado nos estudantes. Com relação ao planejamento das aulas gostaria de ter começado todas com aquecimento, mas nem sempre foi possível, principalmente com o 7º ano, já que eles tinham apenas cinquenta minutos de aula, tempo utilizado para a narração do mito, ensaio, apresentação das cenas e conversa. Eu tentei realizar sempre os mesmos procedimentos durante a aula para que os estudantes se habituassem com essa rotina. Nós sempre começávamos em roda, na qual o mito era narrado, as instruções eram dadas e os grupos definidos; depois os grupos se espalhavam pelo espaço para ensaiar; então as apresentações eram feitas; as vezes abria para falas logo após a apresentação de cada cena ou então fazíamos novamente o círculo após todas as apresentações e conversávamos sobre as cenas. O espaço de trabalho tem papel importante na qualidade da oficina. Um espaço ideal seria uma sala sem carteiras, em que os jogadores pudessem se movimentar livremente e os ruídos do exterior não interferissem na aula. Eu planejei a oficina já sabendo que não teríamos esse tipo de sala. As aulas foram inicialmente 42 planejadas para acontecerem na sala de aula, na qual afastaríamos as carteiras para ocuparmos o espaço central da sala. Ao conhecer a escola percebi que poderíamos utilizar o pátio para fazer os jogos. Pouparíamos tempo se não tivéssemos que mover as carteiras da sala e depois reorganizá-las. O pátio é um espaço amplo onde fica a cantina e os banheiros. Haviam muitas cadeiras, mesas e um espaço livre, onde realizamos as aulas. No primeiro dia com cada turma eles se dispersaram bastante e foi difícil concentrar a atenção de todos nas atividades. Na segunda aula com o 9º ano, quando a professora de Artes não veio, decidi realizar a aula em sala. Neste dia, nós afastamos as carteiras, mas essa tarefa foi difícil de ser realizada, pois fez com que os estudantes ficassem mais agitados. Então, nos outros dois encontros com essa turma, ministrei as aulas em sala, mas não movemos nenhuma carteira e as cenas foram apresentadas no espaço livre que havia entre a mesa da professora e a lousa. Já com o 7º ano, realizei todas as aulas no pátio. Essa era uma turma menor, então foi mais fácil manter todos os estudantes participando das atividades e aproveitando as vantagens do espaço aberto, onde eles podiam se movimentar e ensaiar a cena sem esbarrar em nada. É interessante ressaltar que, mesmo com um amplo espaço livre no pátio, os estudantes muitas vezes não o utilizavam por completo nas apresentações e ficavam junto as cadeiras ou mesas, por vezes esbarrando nelas. Eu acredito que os jogadores em cena se afastavam do público por causa da timidez e por isso se aproximavam das mesas, deixando um grande espaço entre os jogadores que assistiam e os que atuavam. Um fato importante que aconteceu com o 7º ano foi que na penúltima aula um grupo pensou em um local de representação diferente e escolheu um lugar que não havia sido utilizado nas apresentações até então. Isso demostrou que eles estavam se apropriando do jogo. Nas aulas eu indicava onde o público iria ficar e onde a apresentação seria feita. Segui o modelo de palco italiano e nenhum grupo questionou essa escolha até aquele momento. Após a apresentação das cenas, havia um espaço para discussão. Dentre as falas que ocorreram após as improvisações havia “aquelas que giram em torno do sentido; aquelas que manifestam preocupações estéticas; aquelas que se concentram sobre o ‘vivido’ e flertam com a psicologia” (RYNGAERT, 2009, p. 214). Pelo fato de os jogos dramáticos serem um meio de vivenciar os mitos e trabalhar a interculturalidade, estimulei nessas conversas reflexões sobre o sentido das cenas e sobre a experiência dos jogadores. Tive dificuldade em determinar como seriam essas conversas então, busquei um direcionamento nos objetivos da pesquisa e decidi 43 alimentar uma discussão que tratasse das semelhanças e das diferenças entre os mitos e da relação que os estudantes estabeleceram com essas narrativas. Após colocar em prática os planos de aula, pude perceber que o jogo permitiu que os estudantes entrassem em contato com o mito não apenas pela escuta, mas pela representação dos seus acontecimentos. Como a cada aula nós trabalhávamos com apenas um mito, foi possível que eles se envolvessem com a narrativa do dia e fizessem comparações entre os mitos já trabalhados. Assim, eles puderam ter um pouco de contato com a linguagem mitológica, gênero textual pouco conhecido por estes estudantes. Alguns fatos demostraram a presença da interculturalidade nesse processo. Em uma aula eu escrevi na lousa as coisas que os estudantes lembravam dos mitos e um menino me questionou sobre o fato de eu não escrever deus com “d” maiúsculo. Então, eu expliquei a ele que o deus de que estávamos falando era um deus africano que fazia parte do mito “O Celeiro do mundo” e que nessa mitologia haviam outros deuses, por isso ao escrever a palavra “deus” utilizei somente letras minúsculas. Além disso, falei que esse deus não era o mesmo deus que ele poderia estar pensando, que acreditava ser o deus cristão, pois é o mais conhecido no contexto em que vivemos. Entendo que eu tenha feito uma suposição quanto a crença desse estudante e que não tenha aprofundado a discussão com ele. No entanto, esse episódio mostrou que duas crenças estavam sendo confrontadas. Eu esperava que a partir desse confronto houvesse uma reflexão por parte desse estudante sobre essas diferenças culturais, ou seja, de que uma cultura possui apenas um deus e de que outra possui um panteão de deuses. Para desenvolver uma discussão sobre interculturalidade pedi no final de alguns encontros que os estudantes comparassem os quadros vivos que eles fizeram no primeiro dia com as cenas que eles fizeram sobre os mitos. Eles falaram que no primeiro dia eles pensaram na evolução do homem e que nas cenas baseadas nos mitos os seres eram criados de uma forma diferente da que eles haviam pensado. Neste momento os estudantes estavam pensando, mesmo que de forma mínima, o porquê de os mitos terem semelhanças. Nessa conversa, uma estudante disse que existiam semelhanças nos mitos porque todos somos seres humanos e precisamos acreditar que o mundo foi criado por algum ser. Outra observação interessante foi feita por um estudante e indicou que ele estava estabelecendo relações entre os mitos trabalhados em aula com outros que ele conhecia, sem que eu tivesse pedido isso. 44 Esse estudante me disse que o começo do mito polinésio “Os filhos do Céu e da Terra” fez ele se lembrar do começo da Bíblia, em que há uma descrição de quando não havia nada e as coisas começaram a ser criadas. Os estudantes também fizeram relações entre o mito melanésio “A dança do deus Qat” e a Bíblia, pois em ambos os textos há irmãos que brigam e sentem inveja; e reconheceram as semelhanças entre o mito escandinavo e o mito chinês, pois ambos apresentam gigantes que morrem e viram matéria prima para a criação do planeta Terra. Houve diferentes manifestações sobre a oficina e sobre a compreensão do seu conteúdo, o que é muito positivo, pois a interculturalidade trata de uma troca entre diferentes pontos de vista. Alguns disseram que compreenderam que os mitos são diferentes entre si porque foram pessoas distintas que os criaram e que os seres humanos criaram histórias sobre a origem do mundo porque vivem nele e querem entendê-lo. Outros disseram que cada um cria e conta a história do seu jeito e que cada pessoa, de cada lugar acredita que tem o seu deus próprio porque as pessoas pensam de formas diferentes. A maioria falou que não acreditava que os episódios dos mitos realmente aconteceram, apenas uma estudante disse que é provável que pelo menos algum acontecimento dessas histórias tenha ocorrido. Outra estudante disse que acredita que deus criou tudo e quando ela disse isso eu supus que ela estava falando do Deus cristão. Mais uma vez foi uma suposição e não discuti diretamente com essa estudante. A maioria dos estudantes concordou que quem contava esses mitos acreditava no seu conteúdo. Eles também falaram que é possível que uma pessoa tenha inventado a história e que outra tenha visto aquilo como real. O fato de ter aparecido diferentes pontos de vista sobre o tema da oficina, me fez deduzir que cada um interpretou o que foi dito à sua maneira e a partir do seu contexto. Eu fiquei feliz por eles estarem à vontade para compartilhar as suas impressões. Os estudantes do 7º ano estavam mais tranquilos em relação a isso do que os do 9º ano, em que poucas pessoas se expressavam. Os estudantes não conheciam os mitos trabalhados, com exceção de uma menina que conhecia o mito escandinavo “O gigante do gelo”. Me pareceu que no geral os estudantes do 7º ano gostaram dessa experiência, mas não posso falar o mesmo do 9º ano. Com essa turma eu não pude identificar quem gostou ou não da oficina. Ambas as turmas aprenderam sobre atuação e improvisação e acredito que os mitos tenham reverberado neles de alguma forma. Os próprios estudantes falaram que vão poder pensar mais sobre a origem do mundo de agora em diante. Isso é muito 45 importante, pois agora eles conhecem diferentes visões sobre o assunto e vão poder continuar confrontando isso com o seu ponto de vista. Os estudantes do 7º ano comentaram que a aula foi animada e que eles puderam trabalhar a imaginação. Disseram também que normalmente eles ficam muito parados e essas aulas trouxeram alegria. Mesmo uma estudante que disse que não gostava de atuar falou que as aulas foram boas porque foi possível trabalhar com a imaginação. No momento de apresentação dos quadros vivos, os estudantes que faziam parte do público queriam falar todos ao mesmo tempo enquanto o outro grupo ainda estava realizando a apresentação. Isso mostrou como o trabalho com o jogo dramático também foi importante pelo fato de desenvolver a capacidade de apreciação. Eu ti