Adriana de Albuquerque Gomes, Carmen Maria Bueno Neme 1 www.psicologia.com.pt Documento produzido em 13-11-2010 A PSICANÁLISE APLICADA AO SINTOMA: CONSIDERAÇÕES SOBRE AS DUAS CLÍNICAS DE JACQUES LACAN (2010) Adriana de Albuquerque Gomes Psicóloga, Especialista em Psicologia da Saúde, Mestre em Comunicação e Pós-Graduanda em Psicologia do Desenvolvimento e Aprendizagem - UNESP, campus de Bauru, São Paulo (Brasil) aalbpsi@yahoo.com.br Carmen Maria Bueno Neme Psicóloga, Doutora em Psicologia Clínica e Professora Livre-Docente do Programa de Pós-Graduação em Psicologia do Desenvolvimento e Aprendizagem da UNESP, campus de Bauru, São Paulo (Brasil) cmneme@gmail.com RESUMO Este artigo discorre sobre a psicanálise aplicada ao sintoma, promovendo uma reflexão sobre as duas clínicas de Jacques Lacan. O trabalho examina o deslocamento operado pelo autor, ao final de seu ensino, do conceito de sintoma, formação do inconsciente, para o conceito de sinthoma, com nova grafia, em um enfoque além do Édipo, ou seja, além do simbólico. Por fim, o estudo teórico destaca como a reformulação do conceito de sintoma possibilitou o surgimento de novas modalidades de intervenção analítica, em uma clínica mais acessível à população. Conclui-se que a tarefa analítica, na atualidade, não consiste em interpretar infinitamente, mas, sim, em sustentar a prontidão para acolher a surpresa. Palavras-chave: Psicanálise aplicada, Jacques Lacan, sintoma Nasio (2003) delimita a tarefa da psicanálise de forma clara e sucinta: ela deve se ocupar do inconsciente quando este faz o indivíduo sofrer, ou seja, quando a defasagem entre o que ele é, e o que lhe escapa, torna-o um ser infeliz. Isso porque, na teoria psicanalítica, o que define a singularidade do humano é, essencialmente, sua incapacidade de dominar forças que ultrapassam o seu querer e seu saber conscientes. Eis o motivo de qualificá-las, então, como inconscientes. O sintoma, motivo de queixa, é gozo, ou melhor, um modo de gozar pelo sofrimento, e a operação analítica, por conseguinte, tem como objetivo modificar o modo de gozar do inconsciente. Foi a teoria freudiana que estabeleceu que, subjacente ao que se distingue na Adriana de Albuquerque Gomes, Carmen Maria Bueno Neme 2 www.psicologia.com.pt Documento produzido em 13-11-2010 experiência do prazer e do sofrimento, há algo que invariavelmente se satisfaz e do qual não se sabe. Eis, aqui, o gozo, tal como Lacan o concebe – jouissance – satisfação inconsciente (Miller, 2005). Scotti (2003) explica que o sintoma é o preço que o sujeito paga quando não abre mão de seu gozo. O gozo define-se, então, como aquilo que prende o sujeito a seu sintoma. Logo, o sintoma deve ser compreendido como o lugar do sofrimento que proporciona satisfação sexual para o analisando sem que ele o saiba. Ele indica que o passado é atual e que o desejo eterno e indestrutível dói. Como resultado do tratamento analítico, espera-se que o sujeito conheça os significantes primordiais que o determinaram em sua história, para que, destes, ele possa se desalienar e, conseqüentemente, escapar de seu poder de comando (Quinet, 2003). O advento do ser, correlato à destituição subjetiva do analisante, corresponde, portanto, à queda dos significantes da identificação ideal advindos do Outro (Quinet, 2002). Miller (1996) assinala que o dispositivo estruturado, o qual coloca o sujeito do inconsciente a trabalho, foi a grande invenção de Sigmund Freud. Uma vez que tal sujeito é posto em causa nesta estrutura, certos afetos são liberados e intervenções se tornam possíveis. O analista dirige o tratamento e não o paciente. Em termos de investimento de capital, não é só este último que entra com sua quota, na medida em que o analista também paga com palavras, por meio da interpretação, e com sua pessoa, que ele empresta como suporte aos fenômenos transferenciais. O analista é, por conseguinte, “o homem a quem se fala e a quem se fala livremente. Está ali para isso” (Lacan, 1998a, p.622). De acordo com Miller (1997), a interpretação analítica é algo que faz alusão, que faz ver a direção de outra coisa. A situação analítica seria, em essência, a-pragmática, ela não diz o que fazer. A antinomia entre o analítico e o pragmático não impede, contudo, que, na atualidade, a comunidade analítica seja mobilizada em função de uma clínica que leva em consideração os novos sintomas do sujeito contemporâneo. Nesse sentido, a psicanálise aplicada ao sintoma surge como resposta possível da psicanálise ao sofrimento humano neste início de século. Este artigo discorre, portanto, sobre a psicanálise aplicada ao sintoma, a partir de uma reflexão sobre as duas clínicas de Jacques Lacan. Em seguida, o trabalho examina o deslocamento operado pelo autor, ao final de seu ensino, do conceito de sintoma, formação do inconsciente, para o conceito de sinthoma, com nova grafia, em um enfoque além do Édipo, ou seja, além do simbólico. Por fim, o estudo teórico destaca como a reformulação do conceito de sintoma possibilitou o surgimento de novas modalidades de intervenção analítica, em uma clínica mais acessível à população. Adriana de Albuquerque Gomes, Carmen Maria Bueno Neme 3 www.psicologia.com.pt Documento produzido em 13-11-2010 AS DUAS CLÍNICAS DE JACQUES LACAN: DO SENTIDO AO NÃO-SENSO Há duas clínicas no ensino de Jacques de Lacan: a primeira, a do significante, baseia-se na estrutura do inconsciente como linguagem, sendo que, a segunda, a clínica do gozo, que tem como meta a identificação do sujeito ao sinthoma, abrange fenômenos que ultrapassam a captura do analisando pela palavra. Forbes (2000) explica que a primeira clínica é coerente e adequada ao sujeito da era industrial, marcado pelas identificações verticais, enquanto a segunda clínica propicia o tratamento dos novos sintomas surgidos na era da globalização, caracterizada pela quebra dos ideais. É preciso ressaltar que, em um período de predomínio do estruturalismo na França, Lacan trabalha com a hipótese da existência de um sujeito do inconsciente, o qual não poderia ser confundido com o eu consciente. O autor considera, portanto, que o desejo do homem é o desejo do Outro – em que o Outro aparece como estrutura sociolingüística transcendental, na qual o sujeito deve surgir. O que significa dizer que o desejo do Outro já está constituído antes da subjetivação do desejo pelo sujeito. Deste modo, o lugar de uma criança, por exemplo, já se encontra constituído no interior da constelação familiar por meio das convenções de estruturas de parentesco, do nome que pode identificá-la com um ancestral e com a linhagem do desejo presente no Ideal do eu dos pais. Trata-se de uma anterioridade temporal que é, sobretudo, lógica (Safatle, 2006). O movimento do desejo procede, então, da articulação do sujeito com o Outro e do Outro com o sujeito, razão porque o lugar do Outro se encontra como único possível da verdade. Deste modo, a própria linguagem vai ser um efeito do lugar do Outro e todo humano que discursar estará se deslocando na metáfora (Andrès, 1996). Na primeira clínica, o sujeito não é simplesmente suporte inconsciente de processos estruturais de determinação de sentido, pois, em algumas condições, ele é passível de se transformar em agente. A problemática lacaniana da intersubjetividade está, por conseguinte, necessariamente articulada a uma teoria da performatividade dos atos de fala mediante considerações sobre a palavra plena (Safatle, 2006). Garcia (2003) explica que, para Lacan, a palavra plena é aquela que reconhece e que faz reconhecer o desejo inconsciente. Por esse motivo, no pensamento lacaniano, os conceitos de sujeito e de verdade aparecem intimamente ligados (Dews, 2003). A verdade do sujeito aparece, então, em momentos de lapso, de branco, de equivocação. Para explicitar que verdade está em jogo no contexto da teoria lacaniana, Quinet (2003) faz uma breve incursão na filosofia heideggeriana e chega à conclusão de que o sintoma é um velar iluminado, tal como afirma Heidegger em relação à verdade. Logo, ele é alethos, velando e Adriana de Albuquerque Gomes, Carmen Maria Bueno Neme 4 www.psicologia.com.pt Documento produzido em 13-11-2010 desvelando algo que o paciente coloca como uma mensagem, endereçada a si próprio e fazendo parte de sua verdade. Conseqüentemente, o sintoma é um semi-dizer, porque participa do enigma da verdade e, mesmo quando decifrado, ainda assim, contém algo que continua velado ao sujeito. A dissimulação do que está velado constitui, segundo Heidegger, o mistério, que não apenas integra a verdade, mas domina o Dasein do homem. Esse mistério, porém, é passível de esquecimento, sendo que, na clínica, sua emergência corresponde à suspensão do domínio de Lethes, fato este que propicia a abertura à interrogação e ao enigma do desejo que leva ao deciframento do inconsciente. Em seu artigo intitulado Logos, que recebeu uma tradução em francês por Lacan, Heidegger esclarece que, todo desvelamento extrai a coisa presente do ocultamento. Essa afirmação pode ser justaposta à concepção que Lacan (1998a) tem da linguagem, a saber, um instrumento da mentira humana atravessada inteiramente pelo problema de sua verdade. Isso porque, a verdade do inconsciente é tributária da linguagem – o inconsciente está estruturado como uma linguagem – e sua descoberta é, então, a descoberta da verdade que está em jogo em suas formações – e nelas se incluem não apenas os sonhos, lapsos e chistes, mas também os sintomas. Esta verdade não deixa, apesar disso, de continuar encoberta. A passagem do semi-dizer do sintoma ao bem dizer o sintoma implica em um efeito na enunciação do sujeito, sobre seu estilo e corresponde a uma mudança operada na economia do gozo. Na verdade, esse efeito incide no mal-estar provocado pelo sintoma. O bem dizer, no entanto, não deve ser confundido com o belo dizer da oratória, pois a ética da psicanálise está ligada à interpretação. O desejo na psicanálise é um problema de ética, mas não se trata de liberá-lo, e sim, de resolvê-lo. O analista não recebe casos clínicos, ele os transforma, por uma questão de elaboração de saber. O que há são casos éticos e a ética toca à existência, isto é, à dimensão impensável onde se decide a posição subjetiva, a escolha. Na primeira clínica, fundamentada, principalmente, nos textos lacanianos das décadas de 50 e 60 do século XX, enfatiza-se, por conseguinte, o campo da palavra e da linguagem. Assim, em O Seminário, livro XI, Lacan (1998b) considera os sintomas de conversão, por exemplo, como uma linguagem de signos. O analista deveria atuar, pois, por meio da interpretação, do acréscimo de sentido. O empréstimo de sentido ao discurso do analisando, em que cada fala do sujeito remete a outra, pode ter um efeito revelador. Todavia, esse tipo de procedimento pode dar impressão ao paciente de que, em análise, o mais importante é sempre o que ainda será dito em um futuro breve (Forbes, 2000). De acordo com Forbes (2001), a contemporaneidade caracteriza-se como um momento de gozo ilógico e desregrado. As toxicomanias, o fracasso escolar, as manifestações psicossomáticas e a delinqüência juvenil ilustram o mal-estar na cultura pós-moderna. Isso porque, quando a palavra dialogada se torna impotente, perdendo sua função de pacto social, fica-se suscetível ao curto-circuito do gozo. Nesse contexto, a interpretação analítica habitual torna-se ineficaz e a prática psicanalítica muda de acento. Adriana de Albuquerque Gomes, Carmen Maria Bueno Neme 5 www.psicologia.com.pt Documento produzido em 13-11-2010 A psicanálise torna-se, portanto, um tratamento do sentido pelo não-sentido, ou seja, pela extração dos significantes-mestres. Ela passa a lidar, em síntese, com o traumatismo da linguagem pela escrita formal do sintoma (Brousse, 2007). Assim sendo, se o início do ensino de Lacan é marcado pela adoção dos princípios do Estruturalismo, na década de 70 do século XX, ele volta-se para a linguagem da lógica moderna. O recurso à lógica justifica-se pelo fato de Lacan pensar que a linguagem das fantasias inconscientes, construída na relação analítica, estabeleceria, na verdade, um saber, e não um conhecimento da realidade objetiva do analisante. Tal saber seria decorrente das articulações dos significantes, que indicavam relações simbólicas, isto é, posições sexuadas e sociais, para além do prazer (Nogueira, 1999). Miller (2009) explica que Lacan nunca deixou de considerar o ser humano como um ser eminentemente social. A linguagem é humanizadora, na medida em que é necessário assujeitar-se ao que a cultura edificou ao longo dos séculos, para nela existir como sujeito. Mas, quando se adquire a linguagem, isso deixa marcas, isso tem conseqüências. Tais conseqüências constituem o sinthoma. Ora, se as palavras apresentam conseqüências, cabe ao analista perceber e avaliar as conseqüências das palavras para seu analisando. No final de seu ensino, Lacan (1993) apresenta o sintoma como um nó que se constrói ao fazer cadeia da matéria significante. Contudo, tal cadeia não é de sentido, mas, sim, de gozo. Deste modo, o sintoma, em sua primeira versão, é expressão da divisão do sujeito; em sua segunda versão, consiste no real pulsional. Nessa dimensão, não há divisão e o sujeito, por não ser dividido, passa a ser designado como falasser, isto é, um ser de fala que goza de seu inconsciente por meio do sinthoma (Quinet, 2009). A nova concepção de sintoma, que merece uma grafia diferente, sinthoma, com th, corresponde, pois, a um sintoma completamente vazio de sentido, que não é, portanto, uma metáfora. Nesse contexto, o sintoma deixa de ser interpretável (Gaglianone, 2008). A tarefa analítica consiste, logo, em reconduzir a trama da trajetória do sujeito, partindo da estrutura e seguindo em direção aos elementos da linguagem fora do sentido (Forbes, 2009). Fuentes (2006) explica que a restituição da trama de sentido e a inscrição do trauma na particularidade inconsciente do sujeito é curativa. Geralmente, os efeitos terapêuticos obtidos se devem a um processo de desidealização. A clínica lacaniana caminha, deste modo, da pontuação ao corte. Uma pontuação é feita quando se junta um significante ao conjunto de ditos anteriores do paciente. Ela incide na verdade contextual, gerando novos sentidos. Já o corte implica separação, isolamento do significante, de modo que ele não mais represente o sujeito e passe a marcar o ser (Forbes, 2008). Conseqüentemente, o fim da análise deve permitir ao sujeito renunciar ao que lhe dava a impressão, no plano fantasmático, de lhe oferecer um complemento de ser (Quinet, 2002). Adriana de Albuquerque Gomes, Carmen Maria Bueno Neme 6 www.psicologia.com.pt Documento produzido em 13-11-2010 Logo, se, por um lado, o gozo irrefreado escapa ao circuito da palavra dialogada, por outro, ele pode ser apreendido pela palavra-ato, ou seja, aquela que marca, que nomeia, que não explica, mas que capta algo do ser. A primeira clínica, da palavra decifrada que, ao desvelar o recalque, alivia o sintoma, cede lugar à segunda clínica, capaz de trazer melhores resultados para o tratamento das psicopatologias de uma época em que o Outro não existe (Forbes, 2001). A PSICANÁLISE APLICADA AO SINTOMA: PERSPECTIVAS PARA O SÉCULO XXI De modo geral, a clínica psicanalítica define-se como clínica sob transferência. Lacan (1968) explicita, na segunda versão de Proposition du 9 octobre 1967 sur le psychanalyste de l’école, publicada, originalmente, em Scilicet, no primeiro trimestre do ano de 1968, que, no começo da psicanálise, está a transferência. Contudo, a mobilização da transferência não exige nenhum standard, tampouco um setting específico (Matet & Miller, 2007). Da intervenção analítica, não se tem receita, mas, sim, princípios. Miller, citado por Naveau (2007, p.10), explica que “todo momento da experiência analítica, no qual a preocupação terapêutica prevalece”, decorre da psicanálise aplicada. A bússola do analista, na atualidade, é a referência ao sinthoma. Nesse sentido, busca-se, a partir da psicanálise aplicada, intervir sobre o que, na sociedade pós-moderna, concerne ao tratamento do gozo. “Se alguns parâmetros da prática standard estão excluídos em razão das condições novas da experiência, essa é a ocasião de táticas inéditas” (Cottet, 2007, p.29). Tratando o gozo pela responsabilização do sujeito, as intervenções passam a ser mais ágeis, abrindo a possibilidade de surgimento de efeitos terapêuticos rápidos, logo no início da análise. Ao mal (gozo), o analista diz não e diante do bem, ele se mantém neutro. Quem diz se houve efeito terapêutico é o próprio sujeito. Destarte, não se tem uma definição de efeito terapêutico válida para todos; é preciso verificar o que seria terapêutico em cada caso específico (Macedo, 2005). O método colocado em ação é o método conseqüencialista (Forbes, 2000 e Guéguen, 2006), na medida em que se objetiva que o sujeito se responsabilize por seu sinthoma. Tal método permite a extensão da psicanálise a espaços institucionais e a criação de novas modalidades de intervenção, como as urgências subjetivas e as análises cíclicas. O trabalho psicanalítico em grupos e em instituições vem sendo colocado em ação por psicanalistas no Brasil e no mundo. Um exemplo brasileiro importante consiste na Educação Terapêutica, termo criado por Kupfer (2007) para designar um conjunto de práticas interdisciplinares de tratamento, fundamentadas na psicanálise lacaniana, e voltadas para crianças Adriana de Albuquerque Gomes, Carmen Maria Bueno Neme 7 www.psicologia.com.pt Documento produzido em 13-11-2010 com psicopatologias graves, como autismo e psicose e, também, destinadas à população infantil com problemas orgânicos associados a falhas na estruturação subjetiva. Com especial ênfase no ato educativo, ela visa, em síntese, à promoção do desenvolvimento global da criança. A dimensão institucional é fundamental nesse tipo de intervenção, caracterizada pela desespecialização e pela prática entre vários profissionais, a qual envolve a construção do caso entre a criança e demais implicados em seu tratamento (Freire & Bastos, 2004). O psicanalista atua na instituição escolar promovendo discussões em grupos e acompanhando a trajetória da criança na comunidade acadêmica. Deste modo, crianças que antes se viam excluídas da educação escolarizada, hoje, podem contar com a possibilidade de integração no ensino regular. As urgências subjetivas englobam psicopatologias do homem contemporâneo, tais como o transtorno de pânico, por exemplo. Elas se articulam a fenômenos que podem ser agrupados em duas categorias: sentimentos de estranheza em relação ao corpo, ou no plano do pensamento, acompanhados de perplexidade, caracterizando fenômenos pré-delirantes; e angústia, como acontecimento, como trauma e suas versões: pânico, tontura, dentre outros, os quais presentificam a perda da topografia imaginária que organiza o sujeito na realidade. Estes dois fenômenos conformam, nas urgências subjetivas, uma clínica correlativa, tanto para a neurose, quanto para a psicose. Na primeira, o que está em jogo é a presentificação do enigma do desejo do Outro, enquanto na segunda, trata-se da emergência do Outro gozo. O analista consiste, então, em um destinatário do desatamento da cadeia significante (Bellaga et al., 2006). O atendimento psicanalítico das urgências subjetivas, no Brasil, se dá, principalmente, por meio de dispositivos clínicos que, desde o início do século XXI, vem sendo implantados em instituições vinculadas às Escolas Lacanianas de Psicanálise nas principais capitais do país. Segundo Miller (1997), Lacan formulou que o desejo é incompatível com a palavra, ou seja, que ele não pode ser dito. Partindo dessa constatação, ele questionou o porquê de Freud ter esbarrado na análise infinita, procurando oferecer uma solução distinta. Para Lacan, o fim da análise relaciona-se ao savoir y faire – saber lidar – de cada sujeito com seu sinthoma. A criação de pontos de referência para o sujeito, possibilitada por releituras do sintoma, fecha ciclos, que têm começo e fim. Portanto, as análises cíclicas, desenvolvidas atualmente nas clínicas psicanalíticas do mundo inteiro que oferecem tratamento gratuito à população e com tempo limitado de quatro a oito meses, demonstram que a análise é finita e que pode terminar várias vezes, fechando ciclos. Essa constatação só foi possível a partir da experiência de extensão da psicanálise à terapêutica no primeiro CPCT – Clínica Psicanalítica de Consulta e de Tratamento – fundado em Paris no ano de 2003. Em uma análise completa, portanto, o fechamento do ciclo implica a identificação do analisando ao sinthoma, mas, quando não há a possibilidade de se efetuar um tratamento nos moldes tradicionais, as clínicas que oferecem atendimentos gratuitos apresentam a análise cíclica como uma alternativa viável. Assim, no final de um ciclo, pode-se verificar como efeito Adriana de Albuquerque Gomes, Carmen Maria Bueno Neme 8 www.psicologia.com.pt Documento produzido em 13-11-2010 terapêutico a eliminação do sintoma causador de sofrimento, o qual mobilizou a busca do sujeito por ajuda especializada. CONSIDERAÇÕES FINAIS A orientação analítica em tempos de globalização requer que o psicanalista seja capaz de criar. Destarte, a tarefa analítica não é interpretar infinitamente, mas, sim, sustentar a prontidão para acolher a surpresa (Stevens, 2007). Para Brousse (2007), a extensão da psicanálise à terapêutica é uma condição de sua sobrevivência nos dias atuais. Em muitas instituições, nem a duração das sessões, e nem a do tratamento, estão à disposição do analista. No entanto, isso não significa que não haja demanda de trabalho analítico. Assim sendo, não mais se questiona se a psicanálise pode ser aplicada à psicose ou a outras psicopatologias, cujos sintomas não têm a estrutura do inconsciente freudiano. O desgaste sem limites da técnica, ou melhor, a psicanálise selvagem, só acontece quando há deformação de conceitos. O ato analítico singulariza-se pela pureza dos meios e dos fins, e não pela rigidez do enquadre. Nesse sentido, não existe condição ideal para o ato analítico e nem tipo clínico privilegiado (Cottet, 2007). Logo, a partir da segunda clínica de Lacan, o objetivo da psicanálise aplicada ao sintoma é diminuir o desprazer causado pelo gozo, aumentando o prazer do qual se pode ser suscetível, por meio de uma operação de extração de sentido. Isso possibilita a passagem do analisando de um estado de desconforto a uma vivência mais satisfatória no mundo (Forbes, 2009). Adriana de Albuquerque Gomes, Carmen Maria Bueno Neme 9 www.psicologia.com.pt Documento produzido em 13-11-2010 REFERÊNCIAS Andrès, M. (1996). 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