UNIVERSIDADE
ESTADUAL
PAULISTA
 PROGRAMA
DE
PÓS‐GRADUAÇÃO
EM
LINGUÍSTICA
E
LÍNGUA
PORTUGUESA
 
 
 
 
 
 
 FAZENDO
 GÊNERO
 EM
 JORNALISMO:

 OS
PROJETOS
EDITORIAIS
DA
FOLHA
DE
S.
 PAULO
EM
PERSPECTIVA
DIALÓGICA
 
 
 
 
 
 
 
 Assunção
Cristóvão
 
 
 
 
 
 
 ARARAQUARA
–
SP
 2011
 Assunção
Cristóvão
 
 
 
 
 
 
 
 
 FAZENDO
 GÊNERO
 EM
 JORNALISMO:

 OS
PROJETOS
EDITORIAIS
DA
FOLHA
DE
S.
 PAULO
EM
PERSPECTIVA
DIALÓGICA
 
 
 
 
 Tese apresentada ao Programa de Pós-graduação em Linguística e Língua Portuguesa da Faculdade de Ciências e Letras da Universidade Estadual Paulista – Câmpus de Araraquara, para obtenção do título de Doutor. Orientadora: Profa. Dra. Renata Coelho Marchezan 
 
 
 
 ARARAQUARA
–
SP
 2011
 Assunção Cristóvão Fazendo gênero em jornalismo: os projetos editoriais da Folha de S. Paulo em perspectiva dialógica Tese apresentada ao Programa de Pós-graduação em Linguística e Língua Portuguesa da Faculdade de Ciências e Letras da Universidade Estadual Paulista – Câmpus de Araraquara, para obtenção do título de Doutor. Banca Examinadora ________________________________________ Profa. Dra. Renata Coelho Marchezan (orientadora) ________________________________________ ________________________________________ ________________________________________ ________________________________________ Data de aprovação: _________________________ Araraquara - SP 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 Para
Maria,
minha
mãe
 (in memoriam) 
 
 
 
 
 
 
 
 AGRADECIMENTOS
 
 
 
 À minha orientadora, sempre, por tudo. Ao João, meu marido, e ao Arthur, meu filho, os homens da minha vida. Ao Gustavo, Michele, Nádia e Jonas, pela paciência e pelo auxílio no trabalho. À Pri, pelo apoio na fase final. Aos meus amigos e familiares, pelas ausências todas. Ao prof. Federico Pellizzi, pela generosidade. À Marina, por essa capa maravilhosa. À Maria Cecília Barbosa Lima, pela solicitude. À Capes, pela concessão da bolsa PDEE. À Uniara, na figura do prof. dr. Luiz Felipe, pelo apoio incondicional. À Unesp, pela estrutura oferecida por meio de seus funcionários e professores. 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 O
excedente
da
minha
visão
contém
em
germe
a
 forma
acabada
 do
 outro,
 cujo
 desabrochar
 requer
 que
 eu
 lhe
 complete
 o
 horizonte
sem
lhe
tirar
a
originalidade.
Devo
identificar‐me
com
o
 outro
e
ver
o
mundo
através
de
seu
sistema
de
valores,
tal
como
 ele
o
vê;
devo
colocar‐me
em
seu
lugar,
e
depois,
de
volta
ao
meu
 lugar,
 completar
 seu
 horizonte
 com
 tudo
 o
 que
 se
 descobre
 do
 lugar
 que
 ocupo,
 fora
 dele;
 devo
 emoldurá‐lo,
 criar‐lhe
 um
 ambiente
que
o
acabe,
mediante
o
excedente
de
minha
visão,
de
 meu
saber,
de
meu
desejo
e
de
meu
sentimento.
(BAKHTIN,
2000,
 p.
45)
 
 
 
 RESUMO
 Este trabalho investiga, sob a perspectiva dialógica do chamado Círculo de Bakhtin, os projetos editoriais e gráficos do jornal Folha de S. Paulo, produzidos a partir da década de 70. São analisadas suas características como gênero do discurso, composto por enunciados que manifestam valores e gerados por membros da esfera de atividade composta, em sua maioria, por jornalistas. O trabalho coteja os projetos editoriais da Folha com um exemplar de projeto editorial da revista Superinteressante e também os vários projetos da Folha entre si, com o objetivo de captar sua dinamicidade, sua evolução histórica, o amadurecimento de sua conceituação de jornalismo e de sua visão como empresa. A análise mostra que o jornal precisou se modificar para enfrentar a concorrência provocada pelos outros jornais, pela televisão e, em especial, pelo novo tratamento dado à informação após o desenvolvimento da internet e que, nesse percurso de mais de trinta anos de vigência dos projetos editoriais, solidificou sua visão como empresa e sua noção da informação como mercadoria. Palavras-chave: projeto editorial; gênero do discurso; jornalismo; Folha de S. Paulo. 
 ABSTRACT
 This study aims to investigate, from the dialogic perspective of Bakhtin's Circle, the editorial and graphic projects of the newspaper Folha de S. Paulo, which were done from the decade of 1970 onwards. Some of the features analyzed here belong to the discourse, taken as a genre, which is composed of utterances that manifest values and are generated by members of the particular sphere of activity mostly made up of journalists. The study compares the editorial projects of Folha with a volume of editorial project of the magazine Superinteressante, as well as Folha's projects with one another, aiming to capture their dynamic nature, their historical evolution, the establishment of their conceptualization of journalism and the position as a company of the that newspaper as manifested in their texts. The analysis shows that the newspaper found it necessary to change in order to face the competition from other newspapers, television and, above all, from the new treatment given to information with the creation of the Internet. It also shows that, in this period of over 30 years of editorial projects, Folha solidified its vision as a company and its notion of information as a commodity. Keywords: newspaper editorial project; discourse; journalism; Folha de S. Paulo 
 
 SUMÁRIO
 Introdução ..................................................................................................................................................... 10
 Mapeando
um
gênero:
conceitos
operatórios ................................................................................... 18
 A
questão
do
enunciado ............................................................................................................................................25
 Uma
leitura
do
conceito
de
autoria:
a
autobiografia ....................................................................................32
 A
noção
de
esfera
de
atividade...............................................................................................................................35
 O
jornalismo
e
alguns
de
seus
gêneros ................................................................................................ 39
 Notícia...............................................................................................................................................................................50
 Editorial............................................................................................................................................................................53
 Artigo
de
opinião..........................................................................................................................................................57
 O
gênero
projeto
editorial ........................................................................................................................ 60
 Cotejando
projetos ......................................................................................................................................................70
 Conteúdo
temático,
configuração
formal
e
estilo...........................................................................................73
 A
voz
do
autor................................................................................................................................................................76
 Pessoa
verbal .................................................................................................................................................................80
 Estilo..................................................................................................................................................................................84
 A
imagem
do
leitor ......................................................................................................................................................86
 Percurso
dos
Projetos
Editoriais
(PEs) ................................................................................................ 90
 Elos
de
uma
grande
corrente..................................................................................................................................93
 PE
1978
–
guinada
à
esquerda ............................................................................................................................ 102
 PE
1981
–
um
jornal
de
opinião.......................................................................................................................... 113
 PE
1982
–
apartidarismo
profissional ............................................................................................................. 119
 PE
1984
–
união
pelas
Diretas‐já ....................................................................................................................... 124
 PE
1985
–
o
reinado
do
leitor .............................................................................................................................. 128
 PE
1986‐1987
–
a
informação
exclusiva......................................................................................................... 133
 PE
1988
–
o
avanço
da
concorrência................................................................................................................ 137
 PE
1997
–
“sujeição”
às
leis
do
mercado......................................................................................................... 142
 O
jornalista,
a
Folha,
o
leitor ................................................................................................................. 147
 O
jornalista................................................................................................................................................................... 147
 A
Folha ........................................................................................................................................................................... 154
 O
leitor ........................................................................................................................................................................... 160
 Discurso
verbal
e
não
verbal:
o
projeto
gráfico ............................................................................. 169
 A
abordagem
da
linguagem
não
verbal
nos
PEs.......................................................................................... 169
 Jornal
do
futuro.......................................................................................................................................................... 174
 Considerações
finais................................................................................................................................ 184
 Referências
bibliográficas ..................................................................................................................... 188
 
 10 FAZENDO
GÊNERO
EM
JORNALISMO
 Introdução
 Assunção
Cristóvão
 INTRODUÇÃO
 As intensas transformações tecnológicas no mercado das comunicações verificadas a partir da década de 70 do século passado, em especial o advento e a popularização da televisão, afetaram o jornalismo impresso, obrigando-o a se modificar profundamente. Mais recentemente, ao som e à imagem em movimento da televisão, vieram se somar a agilidade, o baixo custo e a acessibilidade da internet no gerenciamento das informações. Restava à imprensa se modernizar, buscar caminhos alternativos que preenchessem as novas necessidades de seu público por informações atualizadas num ritmo cada vez mais intenso, com imagens cada vez maiores e definidas, movimento, rapidez, velocidade e dinamismo. O desafio era assimilar essas novas características e, ao mesmo tempo, preservar (nos casos em que já existissem) ou desenvolver aspectos como confiabilidade, seriedade, credibilidade e análise aprofundada dos acontecimentos – e por que não? - dos processos que os envolvem. Foi a partir desse período, a década de 70 do século XX, que o jornal Folha de S. Paulo, a exemplo de outros veículos de comunicação em todo o mundo, iniciou uma série de reformulações editoriais e gráficas. O pioneirismo e a ousadia dessa iniciativa renderam ao jornal a liderança no mercado brasileiro de veículos impressos. Essa liderança teria sido abalada apenas em alguns meses de 2010. Segundo dados do Instituto Verificador de Circulação – IVC (o Instituto divulga esses dados apenas para seus clientes, e nem todos têm interesse de divulgá-los publicamente; por isso, os resultados aqui citados não são oficiais, ou seja, não foram extraídos diretamente das fontes que os geraram) de 20101, os líderes de venda no início daquele ano eram jornais populares e pouco tradicionais. Eram eles, pela ordem: Super Notícia (MG), com uma média de 303.269 exemplares diários, e Extra (RJ), com 302.697 exemplares; a Folha aparecia em terceiro lugar em circulação, com 292.626 exemplares diários, seguida pelo O Globo, com 251.525, e O Estado de S. Paulo, com 230.051 exemplares. 





























 





























 
 1 Ver, por exemplo, em http://jornale.com.br/zebeto/2010/05/07/os-maiores-jornais/ ou em http://www.advivo.com.br/blog/flipe/inacreditavel-super-noticia-e-o-maior-jornal-do-pais, acessados em 21/03/2011. 11 FAZENDO
GÊNERO
EM
JORNALISMO
 Introdução
 Assunção
Cristóvão
 A Folha publicaria, em fevereiro de 2011, matéria anunciando a retomada da sua liderança (FOLHA DE S. PAULO, 2011, p. B4): “Pelo terceiro mês consecutivo, a Folha manteve a média diária de vendas acima dos 300 mil exemplares, consolidando-se na liderança do mercado de jornais. Nenhum outro rompeu essa marca”. A matéria considerou o fenômeno ocorrido no início de 2010, com o Super Notícia na liderança, como uma “expansão” dos jornais populares “durante a crise”, num momento em que os títulos “nacionais” “pisaram no freio”, segundo o jornal, ou seja, ocasião que, em consequência da crise econômica, houve contenção de despesas. “Naquele momento”, afirmou a Folha, “os ‘populares’ apostaram na venda do jornal atrelada a brindes. Os analistas do IVC previam que essa estratégia seria insustentável” (p. B4). Independentemente dos rumos e das oscilações do mercado, não há como negar: o jornal Folha de S. Paulo marcou de forma indelével o jornalismo brasileiro, desde seu nascimento, em 1921, até os dias de hoje, e de forma mais marcada nestes últimos quarenta anos, num processo que se iniciou com o fim da ditadura militar no Brasil e que se estende até hoje quando, apesar da crise por que passa o jornalismo impresso2, o veículo continua sendo o de maior circulação no país, com uma média diária de vendas de 300 mil exemplares, seguido pelo O Globo, com 277,6 mil, e pelo O Estado de S. Paulo, com 253,6 mil (FOLHA DE S. PAULO, 2011, p. B4). Assim como a Folha, todo o jornalismo mundial vive uma fase de incertezas. A revolução digital que – imaginou-se inicialmente – faria uma transposição do meio papel para o universo on-line, criando o webjornalismo, jornalismo on-line ou jornalismo cibernético, acabaria tendo consequências devastadoras para a imprensa que se conhecia até o início do século XXI. As conquistas obtidas com os modernos sistemas de impressão já não eram páreo para os meios digitais, e a revolução on-line está ainda apenas começando. Os recursos visuais e gráficos oferecidos pelo suporte digital são praticamente infinitos, assim como infinitas são as vezes em que podem ser modificados, a notícia ampliada, os sistemas de som e imagem inseridos para dar forma e conteúdo à informação. Com isso, a transmissão da notícia em primeira mão - o furo de reportagem - virou objeto de utopia jornalística e matéria de livros de curiosidades acerca da história dessa atividade. 





























 





























 
 2 Ver, por exemplo, em http://economia.ig.com.br/empresas/comercioservicos/crise+acentua+problemas+estruturais+dos+jornais+impre ssos/n1237667909204.html, acessado em 30/03/2011. 12 FAZENDO
GÊNERO
EM
JORNALISMO
 Introdução
 Assunção
Cristóvão
 A globalização e o desenvolvimento tecnológico também subverteram, como se sabe, as noções de espaço/tempo, e novamente o jornalismo como empresa precisou se modificar. Num primeiro momento, os jornais diminuíram seu quadro de pessoal, porque a tecnologia permitiu reduzir os recursos humanos numa escala jamais vista antes. Exemplos de como esses aspectos interferiram na dinâmica das redações são inúmeros. A introdução de novidades, como as máquinas fotográficas digitais, possibilitaram a muitos repórteres também fazer suas próprias fotos, seja pela portabilidade do equipamento, seja pela possibilidade de avaliar a qualidade do material fotográfico sem necessidade da revelação em papel. Além disso, e-mails e chats passaram, pela sua dinâmica, a substituir entrevistas face a face, economizando tempo de transporte, uso de táxis e contratação de motoristas. Por fim, também acabou sendo suprimida a figura do copidesque, profissional responsável pela revisão de texto, e alguns diagramadores ou profissionais de design gráfico foram substituídos por repórteres que dominavam a editoração eletrônica. Muitos jornais acabaram com a função de correspondente internacional, porque as agências de notícias cuidavam de abastecer as redações de todo o mundo, e certamente os tradutores instantâneos, dos quais o Google Translator disponível no navegador Google Chrome é a versão mais moderna, cuidarão, uma vez aperfeiçoados, de eliminar ainda mais as barreiras espaciais, linguísticas e de informação em todo o mundo, já que é possível ler hoje jornais on-line em qualquer língua e a qualquer momento. Como os jornais impressos estão se preparando para enfrentar novidades que surgem diariamente e um futuro mais nebuloso ainda? Como arcar com os altos custos de um complexo sistema de produção, vendas de publicidade e distribuição, e lucrar com isso, num universo em que, teoricamente, qualquer pessoa pode produzir/gerar a notícia e distribuí-la com apenas um clique, também teoricamente, a um universo de milhares de pessoas a custo ao menos pensado como zero? Como o jornalismo vem se adaptando às circunstâncias históricas e às mudanças tecnológicas do país para chegar ao estágio em que se encontra hoje? Visando a lançar alguma luz sobre essas perguntas, esta pesquisa de doutorado elegeu como córpus3 de estudo os oito projetos editoriais do jornal Folha de S. Paulo. Os de 1981, 1984, 1985, 1986, 1988 e 1997 podem ser encontrados no site do jornal na internet (http://www1.folha.uol.com.br/folha/conheca/linha_editorial.shtml) e estão no volume de 





























 





























 
 3 Usa-se, aqui, a grafia aportuguesada córpus, conforme prevêem PRADO, J. B. T. Por uma normatização ortográfica de palavras latinas incorporadas ao português. In: Caderno de Letras da UFF, n° 35 – “Patrimônio cultural e latinidade” (ISSN 1413-053X). Niterói (RJ) UFF-Instituto de Letras, 1º. sem. de 2008, p. 37-48; e NEVES, M. H. M. O campus da discórdia. Língua Portuguesa, v. 31, p. 56-59. 13 FAZENDO
GÊNERO
EM
JORNALISMO
 Introdução
 Assunção
Cristóvão
 Anexos deste trabalho (páginas A-17, A-32, A-38, A-48, A-54 e A-62, respectivamente). O de 1978 não consta do volume de Anexos desta tese porque dele se tem apenas referências e alguns trechos, obtidos em três publicações do jornalista Carlos Eduardo Lins da Silva (1987: passim; 1988: passim; 2005: passim). O de 1982, também extraído da publicação de Silva de 1987 (p. 254), mas ausente do material disponibilizado pela Folha na internet, consta dos Anexos (p. A-24). Foram objeto de análise, também, três projetos gráficos, de 2000, 2006 e 2010 [estes constam dos Anexos (páginas A-77, A-80 e A-85, respectivamente) como matérias jornalísticas publicadas pelo jornal descrevendo apenas suas linhas gerais. Caso esses projetos existam, o jornal não os divulga nem os formaliza como documentos específicos]. Ainda que a análise desse material não tenha gerado respostas definitivas às perguntas elencadas acima, ela permitiu, ancorada na perspectiva sócio-histórica - incluindo-se aí os aspectos político, econômico e social observados nas fases em que foram produzidos os projetos – identificar relações entre o jornal e seus leitores, seus funcionários, o mercado no qual está inserido, o panorama histórico e social do país, num processo que certamente determinou a concretização da estrutura de que esse veículo de comunicação desfruta hoje. É bom salientar que esta tese representou uma retomada da dissertação de mestrado “O projeto editorial da Folha de S. Paulo sob a perspectiva do Círculo de Bakhtin”, defendida em 2005 também sob orientação da Profa. Dra. Renata Coelho Marchezan. Desta vez, a análise recaiu sobre todos os projetos editoriais e gráficos do jornal, e não apenas sobre o de 1997, córpus principal daquele trabalho e referência também deste, uma vez que é o projeto ainda em vigor do jornal. Para isso, muito do que foi analisado foi aqui recuperado. Objetivou-se, com a análise desse material produzido nos últimos 40 anos, mostrar que, apesar das estabilidades verificáveis na sua estrutura como gênero discursivo, tal como o define Mikhail Bakhtin e seu círculo de estudos4, por reproduzirem elementos tais como o conteúdo temático, traços formais e de estilo verbal, houve uma transformação nesses mesmos elementos, provavelmente em função da relação dialógica mantida pelo jornal com o universo mutável que o circunda e com seus interlocutores diretos e indiretos, entre eles seu leitor, seus anunciantes, os sucessivos governos, a situação mundial, o desenvolvimento da concepção de jornalismo e até o desenvolvimento tecnológico. 





























 





























 
 4 Círculo de Bakhtin é o nome que se dá ao pensamento constituído não só pela obra do filósofo Mikhail Bakhtin mas também pelos intelectuais de áreas diversas que com ele participaram de discussões entre as décadas de 1920 e 1970. Sobre o assunto ver: Braith, B (org.) Bakhtin e o Círculo. São Paulo: Contexto, 2009. 14 FAZENDO
GÊNERO
EM
JORNALISMO
 Introdução
 Assunção
Cristóvão
 A escolha, como córpus da pesquisa, dos projetos editoriais e gráficos, deu-se em função de esse gênero de discurso apresentar aspectos peculiares e reveladores dos métodos, processos e atitudes que o jornal declara esperar transmitir ao seu público e, mais do que isso, reveladores da visão que o jornal tem do seu leitor, da sua atividade - o jornalismo - e da sua visão de mundo. Esses textos, formulados geralmente pela cúpula dos veículos de comunicação e na maioria das vezes não divulgados publicamente, como se verá adiante, podem ser considerados textos jornalísticos, afinal, pertencem ao universo do jornalismo e, na maioria das vezes, são produzidos por jornalistas. Apesar disso, não cumprem uma das metas fundamentais que caracterizam o texto jornalístico: a informatividade como função primordial. Em vez do objetivo de informar, sua finalidade primeira é a de prescrever condutas, formas de atuação editorial, posturas ideológicas, etc. Vale lembrar que esses textos têm como público-alvo declarado os próprios jornalistas, e não os públicos usuais dos veículos de comunicação. Os projetos editoriais visam a determinar as feições ideológicas do jornal, ou a maneira pela qual ele quer ser reconhecido, da mesma forma que influenciarão outros gêneros, a começar pelos manuais de redação e estilo que, por sua vez, determinam as feições dos textos de gênero jornalístico. Tais características, aliadas ao fato de serem documentos restritos, fazem dos projetos editoriais um terreno fértil de análise discursiva, porém permanecem desconhecidos da academia, o que lhes confere o ineditismo desejável para uma investigação científica apropriada para uma tese de doutorado. A análise pretendeu mostrar o quanto os projetos editoriais e gráficos da Folha estão impregnados – assim como qualquer discurso – de uma interlocução dialógica com seus públicos diretos e indiretos. Assim é que os variados projetos analisados, sejam editoriais ou gráficos, aparecem neste trabalho sempre como uma resposta, um aparte, um recuo, uma adaptação, uma manifestação em relação a algo – nunca um avanço isolado, mas sempre em relação a; um ato responsivo, portanto. Pretendeu-se identificar nesses projetos, com embasamento sempre nas contribuições do chamado Círculo de Bakhtin, uma resposta do jornal a apelos do seu tempo, seja para, aparentemente, atender e antecipar o clamor popular pela abertura política, como se verifica no projeto de 1978, seja para contemplar uma necessidade de preservação do veículo no mundo empresarial com os projetos subsequentes, num movimento dinâmico de manutenção ou alteração dos rumos anteriormente definidos. Isso fica claro, ainda mais agora, com o 15 FAZENDO
GÊNERO
EM
JORNALISMO
 Introdução
 Assunção
Cristóvão
 advento e a consolidação da internet, momento em que, no mundo todo, nota-se um acentuado recuo na atividade jornalística, pelo menos na sua manifestação impressa. Os projetos da Folha explicitam esse movimento, em especial pela opção ou pela priorização de lançamento de projetos gráficos nos últimos anos em detrimento de projetos editoriais: foram oito projetos editoriais (1978, 1981, 1982, 1984, 1985, 1986, 1988 e 1997) até a década de 90 e, depois disso, pelo menos três projetos gráficos (2000, 2006 e 2010). Note-se que os projetos editoriais eram lançados inicialmente quase ano sim, ano não, com uma pausa de nove anos entre o de 88 e o de 97 e, agora, com um hiato de quatorze anos sem novas edições. Por sua vez, vêm lhes sucedendo os projetos gráficos, com três grandes alterações nos últimos dez anos. Uma das hipóteses, principalmente em referência às grandes alterações gráficas introduzidas pelo jornal, é justamente a necessidade de o veículo em papel competir com o ambiente on-line, que subverteu o conhecimento que se tinha até então de um leitor-padrão de jornal. Os projetos estão ampliando o espaço de fotos e imagens para competir com o dinamismo da internet? O que esses projetos revelam sobre a visão do jornal a respeito do seu público? O quadro teórico do dialogismo, como são chamadas as contribuições do Círculo de Bakhtin, e particularmente a noção de gênero do discurso foram as ferramentas principais da análise aqui empreendida. À preocupação de analisar a constituição e o funcionamento do projeto editorial se somou um cuidado especial em não limitar o trabalho a uma mera descrição das características desse discurso tão peculiar, uma vez que o quadro teórico do dialogismo e a própria noção de gênero do Círculo de Bakhtin alertam para o fato de que nenhum gênero pode ser dissociado da atividade humana, das relações sociais, históricas e ideológicas que lhe deram origem. É num amplo, complexo e dialógico cenário que os gêneros surgem e se modificam. Assim, tal análise teve como finalidade a possibilidade de opor, contrastar cada exemplar dos projetos editoriais da Folha para, desta forma, poder captar não a sua forma cristalizada, mas o percurso adotado pelo jornal, ou seja, seu dinamismo. Por se tratar de uma análise de gênero consoante com o pensamento bakhtiniano, partiu-se de um pressuposto teórico segundo o qual o projeto editorial é visto como um gênero de discurso em constante mutação, apesar das estabilidades que o definem. Ou seja, assim como sugere a teoria, este estudo se deteve nas estabilidades daquele gênero específico, para que pudessem ser identificadas suas finalidades e, a partir de suas constâncias, identificados 16 FAZENDO
GÊNERO
EM
JORNALISMO
 Introdução
 Assunção
Cristóvão
 os seus sentidos; porém sem esquecer que suas instabilidades e evolução temporal definem outros e tão importantes aspectos quanto os da estabilidade. Buscou-se, ainda sob o viés teórico dialógico, identificar os traços de identidade do jornal, seu “eu”, sua autoria e, a partir dela, seu “outro”, ou seja, os seus múltiplos interlocutores, um estilo, e variados sentidos que circulam nesses textos voltados ao público interno do jornal. Apesar de serem dirigidos aos funcionários internos, os projetos editoriais da Folha foram os primeiros, entre todos os grandes jornais do País, a serem divulgados oficialmente para o público, o que, de certa forma, já altera a particularidade inicial desse gênero do discurso, uma vez que a condição de texto restrito é reveladora para a caracterização do seu gênero e para a identificação dos sentidos por ele expressos. Como se verá neste trabalho, ao se contrastarem os projetos editoriais da Folha com projeto editorial de outro veículo de comunicação que não foi divulgado ao público, há alterações substanciais na caracterização do gênero entre um e outro exemplar. A hipótese deste trabalho é a de que os projetos editoriais e gráficos, pela singularidade e importância desse gênero particular de discurso, são uma importante e reveladora ferramenta para o desvendamento do tipo de veículo de comunicação impresso que é o jornal. Talvez mais revelador ainda nesta época, em que o desenvolvimento tecnológico provocou uma verdadeira revolução no comportamento do público que recebe a informação, revolução que poderá definir inclusive o futuro e a sobrevivência dos jornais impressos. Portanto, considerou-se necessário o estudo dos projetos editoriais e gráficos de jornais em geral, e da Folha em particular, dados o ineditismo dessa análise na área deste trabalho, assim como no campo da comunicação, e também seu papel como recurso de desvendamento dos discursos midiáticos, principalmente neste momento de intenso desenvolvimento tecnológico, que dificulta a formulação de hipóteses de futuro para as novas ou velhas mídias, mas que, por outro lado, ilumina o cenário do presente. O trabalho está dividido em seis partes. A primeira delimita as ferramentas de análise, especificando e discutindo o entendimento que se tem do conceito bakhtiniano de gênero de discurso, enunciado e esfera de atividade, componentes de um quadro teórico mais amplo do dialogismo, “princípio unificador da obra de Mikhail Bakhtin” (FIORIN, 2008, p. 18). A seguir, revisitou-se a literatura a respeito dos gêneros em jornalismo, numa breve pincelada das vertentes linguísticas e de comunicação sobre o tema. Abordou-se, ainda, a forma com que o jornal Folha de S. Paulo descreve alguns de seus gêneros nos seus manuais 17 FAZENDO
GÊNERO
EM
JORNALISMO
 Introdução
 Assunção
Cristóvão
 de comunicação e estilo. Nesse capítulo, “projeto editorial” foi situado como gênero, a fim de possibilitar uma análise mais aprofundada. A terceira parte analisa o projeto da Folha como gênero do discurso e o coteja com um exemplar do projeto editorial da revista Superinteressante. A análise desses textos mostrará que, provavelmente por ter sido concebido sem a finalidade de divulgação pública, o projeto da Superinteressante tem forma, conteúdo e estilo de algum modo diversos do projeto do jornal, ainda que pertençam ao mesmo gênero discursivo. A quarta parte procura fazer um percurso cronológico dos projetos, contrapondo-os à conjuntura que, imagina-se, pode ter definido seus caminhos, suas escolhas futuras e transformado o jornal naquilo que é hoje. A pesquisa mostrou avanços e recuos, escolhas e resignações, mas, sobretudo, os dilemas do veículo para conciliar seus objetivos como atividade empresarial e atividade jornalística. A quinta parte identificou nos projetos editoriais da Folha indícios de como o jornal vê o seu profissional jornalista, o seu leitor e a si mesmo. Sob o viés do dialogismo, buscou-se a imagem do “outro” nos projetos: o outro a quem me dirijo diretamente, o outro para quem volto as minhas prescrições e o outro “eu mesmo”. Por fim, a análise do gênero discursivo, em especial no seu aspecto estilístico, conduziu à discussão da relação entre linguagem verbal e linguagem não verbal, representadas pelos projetos editoriais e gráficos. Com a convicção de que ambas as linguagens igualmente comunicam, possuem sentido, busca-se descobrir alguns desses sentidos expressos pelos projetos gráficos da Folha, com destaque para a última reforma gráfica, datada de 2010. O que esta tese busca, então, é um conhecimento mais aprofundado dos projetos editoriais do jornal Folha de S. Paulo, obtido a partir da leitura dos principais conceitos do Círculo do Bakhtin para, por meio do conhecimento provocado por essa análise, trazer para a área dos estudos do discurso uma nova possibilidade de visão da mídia, em especial de um dos jornais que mais marcou a história da imprensa brasileira. 18 FAZENDO
GÊNERO
EM
JORNALISMO
 Mapeando
um
gênero:
conceitos
operatórios
 Assunção
Cristóvão
 
 MAPEANDO
UM
GÊNERO:
CONCEITOS
OPERATÓRIOS
 O quadro teórico aqui utilizado para o estudo de gênero de discurso foi aquele desenvolvido por Mikhail Bakhtin e seu círculo de estudos, que trouxe importantes contribuições para as pesquisas linguísticas, literárias e filosóficas no século XX e no primeiro decênio do século XXI, e cujo impacto foi o de uma verdadeira revolução na abordagem do tema. A adoção desse conceito para o desenvolvimento da pesquisa teve motivos diversos; entre os principais estão a sua utilidade metodológica no estudo dos gêneros, sobretudo os mais contemporâneos; a noção de que o gênero está em permanente modificação; a abrangência do conceito, que permite o estudo dos discursos do cotidiano, a partir de um enfoque que pode ser estendido aos gêneros do tipo secundário, noção sobre a qual este trabalho se deterá mais adiante. Adota-se esse conceito também por entender que ele inova em relação à concepção clássica, ao priorizar não o seu aspecto formal, as características imutáveis e comuns a representantes de mesmo gênero, mas a interação, numa perspectiva sócio-histórica, da comunidade que os produz, e que Bakhtin irá denominar esfera de atividade, como será visto nesta seção. O texto “Os gêneros do discurso”, de Bakhtin (2000, p. 279-326), e a obra Marxismo e Filosofia da Linguagem: problemas fundamentais do método sociológico na ciência da linguagem5, de Voloshinov, principalmente, ampliam a possibilidade de estudo dos gêneros a partir do momento em que identificam uma gama enumerável deles na comunicação humana, porém não de forma subjetiva e abstrata, mas num quadro teórico amparado não apenas nos gêneros artísticos ou retóricos, mas também nos da vida cotidiana. Esses estudos mostram que o falante comum, pouco afeito aos estudos da linguagem, usa o gênero com naturalidade, sabe diferenciá-los. O falante, o escritor, que seja, antecipa o gênero a partir do seu objetivo na 





























 





























 
 5Apesar de este trabalho assumir a autoria de Voloshinov para a obra em questão, conforme sugestão de meu orientador italiano Federico Pellizzi, da Universitá di Bologna, em sessões de orientação mantidas durante estágio PDEE proporcionadas por bolsa da Capes, manteve-se, como referência bibliográfica, a indicação da edição brasileira de 1999, atribuída a Bakhtin. 19 FAZENDO
GÊNERO
EM
JORNALISMO
 Mapeando
um
gênero:
conceitos
operatórios
 Assunção
Cristóvão
 utilização da língua: de acordo com seu propósito, escolherá um bilhete, um conto, uma ordem, um aviso, uma carta, um telefonema, um e-mail, etc. Por isso, segundo Bakhtin (2000, p. 302), essa enorme gama de gêneros - que ele exemplifica, identificando-os, na vida social, com os fáticos, os das felicitações, os dos votos, os das trocas de novidades, etc - deve-se ao fato de eles variarem conforme as circunstâncias, a posição social dos falantes, o grau de relacionamento entre eles, etc.. Apesar de sua grande variedade, essas construções não são ilimitadas nem ao menos livres de normas. Ao contrário, são enunciados possuidores de formas típicas, reconhecíveis por estabilidades. Aprendemos a moldar nossa fala às normas do gênero e, ao ouvir a fala do outro, sabemos de imediato, bem nas primeiras palavras, pressentir-lhes o gênero, adivinhar-lhes o volume (a extensão aproximada do todo discursivo), a dada estrutura composicional, prever-lhe o fim, ou seja, desde o início, somos sensíveis ao todo discursivo que, em seguida, no processo da fala, evidenciará suas diferenciações. Se não existissem os gêneros do discurso e se não os dominássemos, se tivéssemos de criá-los pela primeira vez no processo da fala, se tivéssemos de construir cada um de nossos enunciados, a comunicação verbal seria quase impossível. (2000, p. 302) Alguns especialistas julgam que o conceito de gênero bakhtiniano peca por sua amplitude, pela imprecisão de termos e porque, principalmente no texto Os gêneros do discurso, em que se aborda diretamente essa questão, a concepção de gênero proposta está mais diretamente relacionada aos gêneros do cotidiano. Um desses mais ferozes críticos é Patrick Sériot, para quem, especialmente no tratamento dado à questão do gênero, outros membros do Círculo e outros pensadores da URSS seriam superiores. Para Sériot, “se Bakhtin é tão facilmente considerado único, é porque ele é o único a ser traduzido” (Sériot, 2010, p. 76). Certamente não é objetivo deste trabalho tomar partido nessa polêmica. As reflexões de Bakhtin e de seu Círculo abrem uma perspectiva de estudo que se mostrou reveladora na análise do jornalismo, em sentido lato, e no gênero projeto editorial, em particular, e o arsenal teórico legado por ele e seu círculo de estudos será capaz, como se pretende mostrar, de revelar particularidades e sentidos na relação do jornalismo com a sociedade e com a história, 20 FAZENDO
GÊNERO
EM
JORNALISMO
 Mapeando
um
gênero:
conceitos
operatórios
 Assunção
Cristóvão
 pela utilização não apenas da noção de gênero, mas pelo quadro teórico mais amplo do Círculo, amparado pela noção de dialogismo. Por todos esses aspectos que justificam a eleição do aparato teórico bakhtiniano neste estudo, não se julgou necessário o aprofundamento na distinção dos termos “gênero” e “tipologia textual” ou outras terminologias utilizadas por especialistas na discussão do assunto. O termo adotado por este trabalho será gênero do discurso ou gênero discursivo, que Bakhtin define desta forma: Qualquer enunciado considerado isoladamente é, claro, individual, mas cada esfera de utilização da língua elabora seus tipos relativamente estáveis de enunciados, sendo isso que denominamos gêneros do discurso. (BAKHTIN, 2000, p. 279) Esta seção buscará elucidar sua definição de gênero. Para isso, serão abordados outros conceitos, como o de enunciado e esfera, e se falará sobre o princípio fundamental da concepção bakhtiniana da linguagem: o dialogismo, que não pode ser dissociado do conceito de gênero até porque o diálogo, à maneira como é compreendido por Bakhtin, é parte constituinte de todo discurso. A respeito do conceito de dialogismo, diz Fiorin: Segundo Bakhtin, a língua, em sua totalidade concreta, viva, em seu uso real, tem a propriedade de ser dialógica. Essas relações dialógicas não se circunscrevem ao quadro estreito do diálogo face a face. Ao contrário, existe uma dialogização interna da palavra, que é perpassada sempre pela palavra do outro, é sempre e inevitavelmente também a palavra do outro. Isso quer dizer que o enunciador, para constituir um discurso, leva em conta o discurso de outrem, que está presente no seu. Ademais, não se pode pensar o dialogismo em termos de relações lógicas ou semânticas, pois o que é diálogo no discurso são posições de sujeitos sociais, são pontos de vista acerca da realidade. (1997, p. 229-230) No contato com o outro, o indivíduo se coloca sempre a partir do seu espaço social, das suas relações de poder - na família, no trabalho, com os amigos, na sociedade, na hierarquia social - enfim, em cada campo, em cada esfera haverá uma posição “permitida”, uma possibilidade de diálogo, de comunicação, de interação, que levará sempre em conta a 21 FAZENDO
GÊNERO
EM
JORNALISMO
 Mapeando
um
gênero:
conceitos
operatórios
 Assunção
Cristóvão
 posição e o lugar do outro. O outro, então, é parte fundamental nesse processo, pois é a partir dele e de seu “lugar” nesse processo que se estabelecerá o discurso. Também o termo diálogo, citado acima, precisa ser delimitado a partir da concepção que se faz com a leitura dos textos produzidos pelo Círculo de Bakhtin. Em seu sentido estrito, é compreendido como “uma das formas, é verdade que das mais importantes, da interação verbal” (Bakhtin, 1999, p. 123). Mas num sentido amplo, o termo se estende para “não apenas como a comunicação em voz alta, de pessoas colocadas face a face, mas toda comunicação verbal, de qualquer tipo que seja” (p. 123). Voloshinov atribui, por exemplo, ao livro, esse estatuto de comunicação verbal, portanto, objeto de diálogo, por ser orientado em função de intervenções anteriores dentro de uma mesma esfera de atividade, conceito sobre o qual este trabalho se deterá ainda neste capítulo. “Assim, o discurso escrito é de certa maneira integrante de uma discussão ideológica em larga escala: ele responde a alguma coisa, refuta, confirma, antecipa as respostas e objeções potenciais, procura apoio, etc.” (p. 123). Conforme acentua Marchezan, [...] o diálogo interessa aos dois domínios de reflexão, tanto à comunicação quanto à linguagem, quando é o caso de distingui-los, tarefa ingrata, no conceito bakhtiniano, em que há uma profusão de termos, e de suas traduções, que se relacionam, se articulam. (2006, p. 116) A inter-relação entre os conceitos de gênero e diálogo também é lembrada por Marchezan, que assinala o diálogo, em sua relação com o gênero, “como o conceito fomentador e organizador da reflexão, como a unidade de base necessária e primordial, requerida por Bakhtin, para a classificação dos gêneros” (2006, p. 119). Para Machado (2005, p. 153), “mais do que reverter o quadro tipológico das criações estéticas, o dialogismo, ao valorizar o estudo dos gêneros, descobriu um excelente recurso para ‘radiografar’ o hibridismo, a heteroglossia e a pluralidade de sistemas de signos na cultura”. A autora considera o conceito uma importante ferramenta metodológica de análise dos gêneros discursivos. Afinal, diz a pesquisadora: 22 FAZENDO
GÊNERO
EM
JORNALISMO
 Mapeando
um
gênero:
conceitos
operatórios
 Assunção
Cristóvão
 [...] ao refletir sobre o diálogo como forma elementar de comunicação, Bakhtin valorizou, indistintamente, esferas de usos da linguagem que não estão circunscritas aos limites de um único meio. Com isso, abriu caminho para as realizações que estão além dos domínios da voz como, por exemplo, os meios de comunicação de massa ou as mídias eletrônico-digitais. Meios, evidentemente, não estudados por ele. Graças a essa formulação, o campo conceitual do dialogismo não foi simplesmente transportado, mas sim pode ser visto como uma reivindicação de vários contextos e sistemas de cultura. (2005, p. 163) As contribuições teóricas dessa perspectiva dialógica são importante ferramenta para o estudo a que se propõe esta tese, na medida em que permitem encarar os projetos editoriais da Folha de S. Paulo como gêneros discursivos, cada exemplar como ato responsivo único e particular, mas, ao mesmo tempo, uma retomada de discursos outros, intensamente repetidos num processo sem início nem fim. Gêneros discursivos porque mantêm estabilidades, embora relativas, e, paradoxalmente, porque nunca se repetem. Gêneros que se fundamentam num conceito dialógico uma vez que, naquilo que têm de novo e de velho, são perguntas e respostas ao mesmo tempo. Cada projeto é formulado como resposta a uma necessidade de mudança constatada por seus produtores/autores e, dessa forma, constitui-se um ato responsivo à maneira de que fala Bakhtin. Ao mesmo tempo, gera respostas de seus interlocutores, constituindo-se, portanto, como diálogo, ainda que não aquele efetuado face a face, uma das características principais do gênero do discurso primário, como se verá. Ao denominar gêneros do discurso os tipos “relativamente estáveis de enunciados”, Bakhtin refere-se a fenômenos linguísticos ou a enunciados reconhecíveis por conservarem certa estabilidade na manutenção de elementos, tais como o conteúdo temático, a configuração formal ou plano composicional (estrutura formal dos textos pertencentes ao gênero) e o estilo verbal (que leva em conta as questões individuais de seleção e opção de recursos lexicais, fraseológicos e gramaticais). Grillo (2004) considera o conteúdo temático o mais difícil de ser apreendido, por ser facilmente confundido com “assunto” ou “do que se fala”. 23 FAZENDO
GÊNERO
EM
JORNALISMO
 Mapeando
um
gênero:
conceitos
operatórios
 Assunção
Cristóvão
 O conteúdo temático do gênero é o resultado da inter-relação entre uma esfera social da comunicação verbal, os aspectos composicionais e o estilo, o que produz um real significado a partir de um juízo de valor. Em vez de uma forma na qual viriam se alojar os conteúdos ideológicos, o gênero já é uma interpretação do real a partir de um lugar social de produção da linguagem. (GRILLO, 2004, p. 46) Em relação à sua definição de gênero como “tipos relativamente estáveis de enunciados”, Bakhtin considera que o usuário da língua conhece essa estabilidade, sabe diferenciar os diversos gêneros, o que permite utilizá-los sempre que necessário, tanto para realizar os atos de produção quanto de interpretação do enunciado. Apesar dessa estabilidade que os faz serem reconhecíveis, os gêneros, no entanto, têm outra característica - apenas uma visão superficial poderia considerá-la contraditória - que faz parte de sua própria gênese: a renovação. Todos os gêneros se modificam com o passar do tempo, alguns de forma muito lenta, outros rapidamente. Outros surgem a partir de determinadas circunstâncias, como o aparecimento de novos suportes tecnológicos que irão utilizar o modelo de gêneros antigos para criar novos, numa transformação que pode ser radical ou apenas uma mera transposição, mas que, até em função do suporte, já terá sua estrutura modificada. Diz Bakhtin: O gênero sempre é e não é o mesmo, sempre é novo e velho ao mesmo tempo. O gênero renasce e se renova em cada nova etapa do desenvolvimento da literatura e em cada obra individual de um dado gênero. Nisto consiste a vida do gênero. (BAKHTIN, 1997, p. 106). Para Bakhtin, as características de estabilidade e instabilidade, imobilismo e dinamismo, presente e história, sincronismo e diacronismo representam uma concepção que não pode ser desprezada, mesmo por aqueles que preferem priorizar a individualidade do enunciado, da obra de arte, ou de uma obra literária específica, porque a aparente oposição de conceitos é a própria gênese do gênero. O gênero vive do presente mas sempre recorda o seu passado, o seu começo. É o representante da memória criativa no processo de desenvolvimento literário. É precisamente por isso que tem a capacidade de assegurar a unidade e a continuidade desse desenvolvimento. (BAKHTIN, 1997, p. 106). 24 FAZENDO
GÊNERO
EM
JORNALISMO
 Mapeando
um
gênero:
conceitos
operatórios
 Assunção
Cristóvão
 Quando se fala em gêneros, mais do que qualquer outra ideia, vêm-nos à mente as distinções entre os chamados gêneros literários e outros como os retóricos ou os do discurso cotidiano. Por isso, a dificuldade apresentada por Bakhtin: [...] como colocar no mesmo terreno de estudos fenômenos tão díspares como a réplica cotidiana (que pode resumir-se a uma só palavra) e o romance (em vários tomos), a ordem padronizada que é imperativa já por sua entonação e a obra lírica profundamente individual, etc? (BAKHTIN, 2000, p. 280). Para Bakhtin, justamente por possuírem uma uma extrema diversidade, distribuirem-se numa enorme gama de gêneros do discurso, sempre houve uma dificuldade teórica de organizá-los em função de seus traços comuns. As tentativas de encontrar traços comuns entre os diversos gêneros, desde a Antiguidade até a época contemporânea, ocasionaram na concentração de estudos em três áreas principais: os gêneros literários, os gêneros retóricos e os gêneros do discurso cotidiano (BAKHTIN, 2000, p. 280-281). A resposta teórica do filósofo russo a esse problema é uma concepção que considere uma “[...] diferença essencial existente entre o gênero do discurso primário (simples) e o gênero do discurso secundário (complexo)”, definindo os primeiros como aqueles que têm uma “[...] relação direta com a realidade existente e com a realidade dos enunciados alheios” ou aqueles “que se constituíram em circunstâncias de uma comunicação verbal espontânea”. Já os gêneros secundários do discurso “- o romance, o teatro, o discurso científico, o discurso ideológico, etc. – aparecem em circunstâncias de uma comunicação cultural, mais complexa e relativamente mais evoluída, principalmente escrita” (BAKHTIN, 2000, p. 281). O texto “Discurso na vida e discurso na arte (sobre poética sociológica)” (BAKHTIN, 1976), assinado por Voloshinov, trata da mesma distinção, sob uma perspectiva que leva em conta a relativa autonomia do discurso escrito, em oposição à relação simbiótica do discurso do cotidiano com a situação extraverbal. Nesse texto, o autor aponta as diferenças entre o discurso do cotidiano e o discurso literário, os quais chama, respectivamente, de discurso na vida e discurso na arte. Em relação ao primeiro, diz Voloshinov: 25 FAZENDO
GÊNERO
EM
JORNALISMO
 Mapeando
um
gênero:
conceitos
operatórios
 Assunção
Cristóvão
 Na vida, o discurso verbal é claramente não auto-suficiente. Ele nasce de uma situação pragmática extraverbal e mantém a conexão mais próxima possível com esta situação. Além disso, tal discurso é diretamente vinculado à vida em si e não pode ser divorciado dela sem perder sua significação. (1976, p. 5). Assim, o discurso do cotidiano está eivado de elementos extraverbais implícitos ao ato de construção do enunciado. Um simples gesto de se abanar e enxugar a testa, acompanhado ou não da concretização de um ato de fala do tipo interjeição – “Ufa...” – seria suficiente para indicar que o tempo está muito quente. No caso de um texto literário que reproduzisse a mesma situação, essa manifestação verbal seria insuficiente. Por isso, em relação ao discurso na arte, Voloshinov diz: [...] o discurso na arte não é nem pode ser tão estreitamente dependente de todos os fatores do contexto extraverbal, de tudo aquilo que é visto e sabido, como na vida. Uma obra poética não pode confiar em objetos e eventos do meio imediato como coisas ‘entendidas’, sem fazer mesmo a mais ligeira alusão a elas na parte verbal do enunciado. A esse respeito, muito mais é exigido do discurso na literatura: muito do que poderia permanecer fora do enunciado na vida precisa encontrar representação verbal. Nada deve ser deixado não dito numa obra poética do ponto de vista pragmático- referencial. (1976, p. 11). Para o autor, a linguagem utilitária é a base de sustentação da linguagem artística. Para “alcançar um entendimento do enunciado poético, como uma forma de comunicação estética especial, verbalmente implementada”, é necessário antes analisar “em detalhes certos aspectos dos enunciados verbais fora do campo da arte – enunciados da fala da vida e das ações cotidianas, porque em tal fala já estão embutidas as bases, as potencialidades da forma artística” (1976, p.4). A
QUESTÃO
DO
ENUNCIADO
 26 FAZENDO
GÊNERO
EM
JORNALISMO
 Mapeando
um
gênero:
conceitos
operatórios
 Assunção
Cristóvão
 Observar as distinções entre os gêneros primários e secundários, ainda que um seja a base do outro, é importante em termos teóricos. Na visão do autor russo, só assim se alcançaria a natureza “complexa e sutil” do enunciado e se chegaria aos seus aspectos essenciais. Se, junto a essa distinção, o pesquisador analisar o processo histórico de formação dos gêneros secundários poderá, então, esclarecer a “natureza do enunciado” (BAKHTIN, 2000, p. 281-282). Antes de tratar desse assunto, porém, é bom esclarecer que o Círculo de Bakhtin não fazia uma distinção entre enunciação e enunciado, apesar de muitos de seus tradutores utilizarem ora uma ora outra expressão. Conforme nos esclarece Sériot: Depois dos gêneros e em conexão constante com eles, o objeto específico de Bakhtin é vyskazyvanie, traduzido por “enunciação” por alguns e por “enunciado” pela maior parte dos tradutores. Não há nenhuma possibilidade lexical no russo de distinguir enunciado de enunciação, esses dois termos de base da lingüística francofone depois de Benveniste. A palavra vyskazyvanie, como Äuβerung em alemão, pode designar tanto o produto como o processo. (2009, p. 92) Por sua vez, Bakhtin vai distinguir enunciado de oração (2000, p. 295). O enunciado, para ele, teria uma delimitação precisa que é a alternância dos sujeitos do discurso. É o princípio do dialogismo. O estudo da natureza do enunciado e dos gêneros do discurso tem uma importância fundamental para superar as noções simplificadas acerca da vida verbal, a que chamam o “fluxo verbal”, a comunicação, etc., noções estas que ainda persistem em nossa ciência da linguagem. Irei mais longe: o estudo do enunciado, em sua qualidade de unidade real de comunicação verbal, também deve permitir compreender melhor a natureza das unidades da língua (da língua como sistema): as palavras e as orações. (BAKHTIN, 2000, p. 286). Fiorin (2008, p. 20) trabalha as distinções das unidades da língua da seguinte forma: 27 FAZENDO
GÊNERO
EM
JORNALISMO
 Mapeando
um
gênero:
conceitos
operatórios
 Assunção
Cristóvão
 As unidades da língua são os sons, as palavras e as orações, enquanto os enunciados são as unidades reais de comunicação. As primeiras são repetíveis. Com efeito, um som como /p/, uma palavra como “irmão”, uma oração como “É preciso ser forte” são repetidos milhares e milhares de vezes. No entanto, os enunciados são irrepetíveis, uma vez que são acontecimentos únicos, cada vez tendo um acento, uma apreciação, uma entonação próprios. Bakhtin ressente-se da ausência de estudos do problema do enunciado na linguística geral colocado pelo enunciado, encoberto pelas especificidades de gêneros até pouco tempo considerados “maiores”. Mesmo nos estudos dos gêneros do discurso cotidiano, sob o ponto de vista da linguística geral e os auspícios da escola de Saussure e seus seguidores, não se conduzia à definição da natureza do enunciado, segundo Bakhtin, mas apenas se colocava em evidência a especificidade do discurso cotidiano oral. Enfim, não se poderiam apreender as características do enunciado sem se considerarem os elementos extraverbais da situação de comunicação a que ele pertence. Outra característica importante do enunciado para Bakhtin é a sua delimitação, que poderia ser verificável na situação de alternância dos sujeitos num determinado diálogo, mas que também está presente em outras situações comunicativas que podem dificultar o seu reconhecimento e a sua delimitação. Esse é outro ponto que gera polêmica na obra do autor russo, já que a alternância dos sujeitos num determinado diálogo nem sempre é facilmente delimitável. Quanto a isso, alfineta Sériot: Seu princípio de alternância dos turnos da fala é particularmente idealizado e otimista: nele, ninguém interrompe ninguém, esperamos polidamente que um locutor tenha terminado de falar para tomar a palavra por sua vez. Os interlocutores “passam a palavra” após cada réplica [...]: este universo de polidez é espantosamente pouco historicizado e pouco “concreto”, à imagem de uma sociedade bem comportada, fora de qualquer contradição ou tensão, sem conflito nem divisão (mesmo se há hierarquia social dos “inferiores” e “superiores”): só há indivíduos que interagem trocando pensamentos. (p. 92) Essa é uma interpretação da leitura do texto Os gêneros do discurso. Outra interpretação é a de que Bakhtin não quis se referir a uma alternância tão bem delimitada 28 FAZENDO
GÊNERO
EM
JORNALISMO
 Mapeando
um
gênero:
conceitos
operatórios
 Assunção
Cristóvão
 quanto faz supor Sériot. Para Bakhtin, a oração, “como unidade da língua, não consegue condicionar diretamente uma atitude responsiva ativa. É só ao tornar-se enunciado completo que adquire tal capacidade” (2000, p. 306). Ou seja, uma oração ou palavra da língua não diz nada. Seu sentido está condicionado a um contexto que lhe dá significado. É esse significado que dará ao interlocutor a atitude responsiva. Nesse sentido, “o enunciado está ligado não só aos elos que o precedem mas também aos que lhe sucedem na cadeia de comunicação verbal” (2000, p. 320). Diz também Bakhtin: “No momento em que o enunciado está sendo elaborado, os elos, claro, ainda não existem. Mas o enunciado, desde o início, elabora-se em função da eventual reação-resposta, a qual é o objeto preciso da sua elaboração” (2000, p. 320). Também a noção de completude enunciativa é importante na concepção dialógica de Bakhtin: É necessário o acabamento para tornar possível uma reação ao enunciado. Não basta que o enunciado seja inteligível no nível da língua. Uma oração totalmente inteligível e acabada, se for uma oração e não um enunciado – constituível de uma única oração - não poderá suscitar uma reação de resposta: é inteligível, está certo, mas ainda não é um todo. (2000, p. 299) Importante repetir que, para o autor, esse “elo” está ligado a outros que o precedem e certamente àqueles que o sucedem em uma dada esfera da comunicação verbal, cujos limites entre um e outro elo são dados pela alternância dos sujeitos. Enquanto elabora o seu enunciado, o locutor já antecipa uma resposta que determinará esse enunciado e, apesar das contínuas “contaminações” dos atos responsivos e inquisitivos, as fronteiras são sempre a possibilidade da resposta. Um enunciado completo teria então três componentes: 1) o tratamento exaustivo do objeto do sentido; 2) o intuito, ou seja, o querer dizer do locutor; 3) as formas típicas de estruturação do gênero do acabamento. O primeiro desses fatores varia em função do gênero escolhido. Bakhtin cita como exemplo as perguntas de ordem factual da vida prática e as ordens e comandos da vida militar que, por essência não exigem criatividade e, por isso, podem ser padronizadas, e os gêneros de ordem criativa, em especial os científicos, que exigem exaustividade e acabamento particulares. Ou seja, é necessário levar em conta o objetivo de utilização de cada um desses gêneros e do enunciado em particular, o que leva ao segundo fator: o querer-dizer do locutor, 29 FAZENDO
GÊNERO
EM
JORNALISMO
 Mapeando
um
gênero:
conceitos
operatórios
 Assunção
Cristóvão
 seu intuito discursivo. Isso irá determinar tanto a exaustividade quanto o gênero que será empregado. O intuito, o elemento subjetivo do enunciado, entra em combinação com o objeto do sentido – objetivo – para formar uma unidade indissolúvel, que ele limita, vincula à situação concreta (única) da comunicação verbal, marcada pelas circunstâncias individuais, pelos parceiros individualizados e suas intervenções anteriores: seus enunciados. É por isso que os parceiros diretamente implicados numa comunicação, conhecedores da situação e dos enunciados anteriores, captam com facilidade e prontidão o intuito discursivo, o querer-dizer do locutor, e, às primeiras palavras do discurso, percebem o todo de um enunciado em processo de desenvolvimento. (2000, p. 300-301) Justamente porque será considerado, na terceira seção deste trabalho, o gênero projeto editorial como de finalidade prescritiva, este “querer-dizer” apontado por Bakhtin mostra-se de extrema valia na análise do córpus, assim como suas características de acabamento e de exaustividade. Ou seja, ao apontar determinada prescrição, qual seria o intuito, o querer-dizer dos autores de projetos editoriais? O terceiro fator também é de suma importância para o desenvolvimento desta tese, não só para detectar as estabilidades do gênero escolhido pelo jornal Folha de S. Paulo para falar aos seus interlocutores, mas também por estar embutida nessa mesma ideia, para detectar as suas instabilidades, suas mudanças no passar dos anos, seus recuos em relação ao “querer- dizer” e ao que se disse efetivamente. Ora, gênero e enunciado não se confundem, sendo que cada enunciado pertence a determinado gênero do discurso. E justamente por estar relacionado a práticas sociais de produção da linguagem, que tem obviamente também dimensões históricas, a estabilidade do gênero será mantida até certo ponto; até que outra configuração histórica e social provoque a alteração de algumas dessas características estáveis. É nessa dinâmica que o querer-dizer do locutor encontrará o gênero apropriado e definirá o “acabamento” do enunciado, provocando uma atitude responsiva de seus interlocutores. Diz Bakhtin: 30 FAZENDO
GÊNERO
EM
JORNALISMO
 Mapeando
um
gênero:
conceitos
operatórios
 Assunção
Cristóvão
 O querer-dizer do locutor se realiza acima de tudo na escolha de um gênero do discurso. Essa escolha é determinada em função da especificidade de uma dada esfera da comunicação verbal, das necessidades de uma temática (do objeto do sentido), do conjunto constituído dos parceiros, etc. Depois disso, o intuito discursivo do locutor, sem que este renuncie à sua individualidade e à sua subjetividade, adapta-se e ajusta-se ao gênero escolhido, compõe-se e desenvolve-se na forma do gênero determinado. (2000, p. 301) Adotada, então, essa perspectiva bakhtiniana de enunciado como um elo na comunicação verbal, e com limites que se enquadram na possibilidade responsiva do interlocutor, ver-se-á que Bakhtin estabelece três fases desse enunciado. Segundo o autor, a “escolha dos recursos linguísticos e do gênero do discurso é determinada principalmente pelos problemas de execução que o objeto do sentido implica para o locutor (o autor). É a fase inicial do enunciado, a qual lhe determina as particularidades de estilo e composição” (2000, p. 308). A segunda fase corresponde “à necessidade de expressividade do locutor ante o objeto de seu enunciado”. A intensidade dessa expressividade varia de acordo com vários fatores, inclusive com a esfera de comunicação verbal na qual o enunciado é produzido. Na maior parte dos gêneros jornalísticos, como veremos na próxima seção, essa expressividade, por conta da finalidade informativa do gênero, pode ser reduzida ao máximo, com o artifício de uma técnica desenvolvida justamente para transmitir um sentido de imparcialidade, de informatividade máxima, ou seja, um sentido de reprodução do real. Mas, como acentua Bakhtin ao falar sobre isso, um enunciado absolutamente neutro é impossível. “A relação valorativa com o objeto do sentido (seja qual for esse objeto) também determina a escolha dos recursos lexicais, gramaticais e composicionais do enunciado” (2000, p. 308). E esses recursos expressivos, impressos pelo homem e não pela língua enquanto sistema, é que darão um estilo individual ao enunciado. Vale lembrar que grande número de gêneros não tem como intenção imprimir um estilo individual, até pelo contrário, como é o caso do estilo jornalístico padrão. E, por fim, Bakhtin considera como a terceira particularidade constitutiva do enunciado sua relação com seu locutor, ou o seu autor, e com os outros “parceiros da comunicação verbal”. 31 FAZENDO
GÊNERO
EM
JORNALISMO
 Mapeando
um
gênero:
conceitos
operatórios
 Assunção
Cristóvão
 Esses parceiros não estão representados apenas pelos interlocutores diretos do enunciado, a quem ele se destina, e que determina em grande parte sua estrutura e conteúdo. Evidentemente são esses interlocutores que definirão, por sua possibilidade responsiva, ainda que virtual, muitas das escolhas do locutor, como se vê a seguir: Enquanto elaboro meu enunciado, tendo a determinar essa resposta de modo ativo; por outro lado, tendo a presumi-la, e essa resposta presumida, por sua vez, influi no meu enunciado (precavenho-me das objeções que estou prevendo, assinalo restrições, etc.). Enquanto falo, sempre levo em conta o fundo aperceptivo sobre o qual minha fala será recebida pelo destinatário: o grau de informação que ele tem da situação, seus conhecimentos especializados na área de determinada comunicação cultural, suas opiniões e suas convicções, seus preconceitos (de meu ponto de vista), suas simpatias e antipatias, etc.; pois é isso que condicionará sua compreensão responsiva de meu enunciado. Esses fatores determinarão a escolha do gênero do enunciado, a escolha dos procedimentos composicionais e, por fim, a escolha dos recursos lingüísticos, ou seja, o estilo do meu enunciado. (2000, p. 321) Assim, como já foi dito, é sempre o outro que determinará o enunciado, mas seria redutivo imaginar que seria apenas a figura do destinatário principal, direto, quem determinará a totalidade do que será dito. Além desse – ou desses – destinatário, outros fatores determinarão o enunciado: A época, o meio social, o micromundo – o da família, dos amigos e conhecidos, dos colegas – que vê o homem crescer e viver, sempre possui seus enunciados que servem de norma, dão o tom; são obras científicas, literárias, ideológicas, nas quais as pessoas se apóiam e às quais se referem, que são citadas, imitadas, servem de inspiração. Toda época, em cada uma das esferas da vida e da realidade, tem tradições acatadas que se expressam e se preservam sob o invólucro das palavras, das obras, dos enunciados, das locuções, etc. Há sempre certo número de idéias diretrizes que emanam dos “luminares” da época, certo número de objetivos que se perseguem, certo número de palavras de ordem, etc. Sem falar do modelo das antologias escolares que servem de base para o estudo da língua materna e que, decerto, são sempre expressivas. 32 FAZENDO
GÊNERO
EM
JORNALISMO
 Mapeando
um
gênero:
conceitos
operatórios
 Assunção
Cristóvão
 É por isso que a experiência individual do homem toma forma e evolui sob o efeito da interação contínua e permanente com os enunciados individuais do outro. É uma experiência que se pode, em certa medida, definir como um processo de assimilação, mais ou menos criativo, das palavras do outro (e não das palavras da língua). [...] As palavras dos outros introduzem sua própria expressividade, seu tom valorativo, que assimilamos, reestruturamos, modificamos. (2000, p. 313-314) A partir dessa perspectiva, não é possível pensar num determinado enunciado como um ato isolado. Enunciado e resposta devem ser considerados em sentido lato, impregnados de outros enunciados e respostas ao longo de uma cadeia histórica, cultural, sem fim nem começo, mas com passado e futuro complexos, num espaço/tempo múltiplo e que não podem ter seu sentido apreendido na forma isolada de uma oração ou palavra, sem que lhe seja inferido um contexto, um lugar no tempo e no espaço, dotado de uma expressividade conferida pelo homem e pelo(s) seu(s) interlocutor(es). Para Bakhtin, essas “tonalidades dialógicas” preenchem o enunciado e devem ser levadas em conta se quisermos estudá-lo e compreendê-lo. “O dialogismo são as relações de sentido que se estabelecem entre dois enunciados” (FIORIN, 2008, p. 19). É por este motivo que não podemos eleger apenas o conceito de gênero como suporte para a análise do córpus desta tese sem o situarmos no quadro teórico mais amplo, representado pelo dialogismo. Na verdade, o próprio Bakhtin não concebe gênero sem considerar a relação dialógica que o define. Trocando em miúdos: todo discurso, por mais que recorte e se concentre num objeto específico, foi produzido levando-se em conta problematizações anteriores sobre o mesmo objeto e será formulado sempre em função de uma resposta, que se concretizará ou não, a respeito desse mesmo objeto: “A resposta transparecerá nas tonalidades do sentido, da expressividade, do estilo, nos mais ínfimos matizes da composição” (2000, p. 317). UMA
LEITURA
DO
CONCEITO
DE
AUTORIA:
A
AUTOBIOGRAFIA
 Bakhtin trabalhou com a questão de autoria em praticamente todos os seus trabalhos. Uma vez que o gênero de sua escolha foi o romance, é natural que o conceito tenha sido 33 FAZENDO
GÊNERO
EM
JORNALISMO
 Mapeando
um
gênero:
conceitos
operatórios
 Assunção
Cristóvão
 dirigido para a obra literária, em especial o autor-criador de um personagem, o herói, no dizer do filósofo. A primeira necessidade a se considerar na questão de autoria é a de distinção entre o autor-pessoa, representado pelo autor da obra, o escritor, e o autor-criador, ou seja, aquele que exerce a função “estético-formal engendradora” dessa obra. A respeito do autor-criador, diz Faraco: Este último é, para Bakhtin, um constituinte do objeto estético (um elemento imanente ao todo artístico) – mais precisamente, aquele constituinte que dá forma ao objeto estético, o pivô que sustenta a unidade do todo esteticamente consumado. (FARACO, 2005, p. 37) A palavra utilizada por Faraco, e que parece ser fundamental para explicar essa relação entre autor e herói, é “axiológica”, no sentido de que a presença ou o “olhar” do autor na obra definirá “o todo” do herói e seu mundo. Será a presença do autor na obra e sua relação com o herói que definirá a constituição do “todo”. Se podemos dizer que a distinção autor-pessoa/autor-criador é hoje um lugar comum nas teorizações estéticas, ainda assim as considerações bakhtinianas trazem ao conceito de autor-criador uma substância peculiar ao caracterizá- lo fundamentalmente como uma posição axiológica. (FARACO, 2005, p. 38) Faraco lembra que as bases dessa conceituação bakhtiniana, “a grande força que move o universo das práticas culturais são precisamente as posições socioavaliativas postas numa dinâmica de múltiplas interrelações responsivas” (2005, p. 38). Nesse quadro teórico, ao proceder o processo axiológico, é como se o autor, ao realizar a transposição de autor-pessoa para autor-criador, criasse uma linguagem, uma “voz segunda”, “um ato de apropriação refratada de uma voz social qualquer de modo a poder ordenar um todo estético” (2005, p. 40). Essa “voz segunda” parece ter alguma relação com o discurso secundário de Bakhtin, no reordenamento do discurso primário, aquele que tem relação com a realidade existente ou com os enunciados alheios, para que possa compor o discurso mais elaborado, da ordem estética, ou secundário. Ao transpor, da realidade para o plano estético, elementos que 34 FAZENDO
GÊNERO
EM
JORNALISMO
 Mapeando
um
gênero:
conceitos
operatórios
 Assunção
Cristóvão
 passarão de um para o outro nível, eles se transformarão na voz do autor, assim como esse autor se transformará da ordem de pessoa para criador. É também o que Bakhtin chama de princípio de exterioridade, um conceito dos mais importantes para a definição de autoria. “Trata-se de dizer ‘Eu sou eu’ na linguagem de outrem; e de dizer, na minha linguagem, ‘Eu sou outro’” (FARACO, 2006, p. 41). Ou seja, é preciso estar fora, olhar de fora para proceder à criação estética. Posto em termos de linguagem, o princípio da exterioridade (a lógica imanente da criação estética) demanda do escritor que ele desista de sua linguagem, saia dela, liberte-se dela, olhe-a pelo olho de outra linguagem, desloque-a para outrem ao mesmo tempo em que se desloca para outra linguagem. (FARACO, 2005, p.41) Uma questão colocada por Faraco ao discutir a autoria é se o princípio da exterioridade seria válido no caso da autobiografia, em que escritor e herói praticamente se confundem. Essa questão é importante para esta pesquisa, uma vez que permitirá a discussão de autoria não para a análise de uma obra literária, como o romance e a autobiografia, mas também para textos utilitários como é o caso dos projetos editoriais, porque é aqui que Bakhtin mostra a dimensão do conceito para o ato de criação em si e não apenas para a criação literária ficcional. O que será considerado é o ato do deslocamento, o posicionamento do escritor frente a ele mesmo e sua atitude de valoração que “transcenda os limites do apenas vivido” (FARACO, 2006, p. 43), atitude que só é possível afastando-se de si e olhando-se “de fora” ou “no espelho”, conforme uma imagem bastante produtiva para o entendimento do conceito desenvolvida por Bakhtin e aqui reproduzida por Faraco: O ato de autocontemplação no espelho motiva reflexão semelhante em Bakhtin. Pode parecer, numa abordagem superficial desse fenômeno, que estamos, de fato, nos vendo diretamente como os outros nos vêem. No entanto, diz Bakhtin, vemos no espelho uma face que nunca temos efetivamente na vida vivida: vemos apenas um reflexo de nosso exterior e não a nós mesmos em termos de nosso exterior, porque estamos em frente ao espelho e não no seu interior. [...] 35 FAZENDO
GÊNERO
EM
JORNALISMO
 Mapeando
um
gênero:
conceitos
operatórios
 Assunção
Cristóvão
 O que ocorre, de fato, é que, quando me olho no espelho, em meus olhos olham olhos alheios; quando me olho no espelho não vejo o mundo com meus próprios olhos e desde o meu interior; vejo a mim mesmo com os olhos do mundo – estou possuído pelo outro. (FARACO, 2006, p. 43) É com esse entendimento que foi feita a análise da questão de autoria dos projetos editoriais da Folha de S. Paulo. A de um autor-criador que, para produzir um discursivo eivado de valores, o faz provocando um deslocamento, uma transposição, a introdução de uma “voz segunda”; um autor que se descreve no texto não como os outros o veem, mas da forma que ele se vê, como num espelho, com olhos “outros mas meus”, que me enxergam como um todo, mas sempre através do espelho. A
NOÇÃO
DE
ESFERA
DE
ATIVIDADE
 Um outro aspecto importante a se considerar para a concepção bakhtiniana de gênero é a noção de esfera de atividade e comunicação humanas, uma vez que o conceito não pode ser apartado das situações de interação social que o engendram. Rodrigues (2007, p. 164) apresenta um exemplo relevante ao afirmar que “é somente nessa situação de interação que se podem apreender a constituição e o funcionamento dos gêneros”: Por exemplo, embora se possam encontrar traços formais semelhantes entre os gêneros biografia científica e romance biográfico, eles são gêneros distintos, pois mesmo que os “valores biográficos” (princípio organizador da narrativa que conta a vida de um outro, ou da própria vida, na autobiografia) sejam compartilhados pela ciência e pela arte, eles se encontram em esferas sociais diferentes, com funções discursivo-ideológicas distintas (finalidade histórico-científica e finalidade artística). Como é das especificidades da comunidade discursiva dos jornalistas, interlocutores e de certa forma também autores dos projetos editoriais, que esta tese trata, é importante deparar essa questão. Os conceitos de esfera de atividade e campo passam, então, a ter o status de referência teórica desta tese e, até por uma questão de coerência teórica e acadêmica, foi-se buscar, na 36 FAZENDO
GÊNERO
EM
JORNALISMO
 Mapeando
um
gênero:
conceitos
operatórios
 Assunção
Cristóvão
 obra produzida pelo Círculo, referências a esses termos para que possam auxiliar o tratamento dos diversos gêneros próprios da comunidade discursiva dos jornalistas. As primeiras abordagens a essas noções são encontradas em “Marxismo e Filosofia da Linguagem”, de Voloshinov, obra publicada entre 1929 e 1930 e que, logo nas primeiras páginas, faz a seguinte referência ao assunto: Cada campo de criatividade ideológica tem seu próprio modo de orientação para a realidade e refrata a realidade à sua própria maneira. Cada campo dispõe de sua própria função no conjunto da vida social. É seu caráter semiótico que coloca todos os fenômenos ideológicos sob a mesma definição geral. (grifo do autor) (1999, p.33) Para se configurar como um campo, uma esfera de atividade, portanto propício à formação de um gênero discursivo e de signos ideológicos, é necessário mais do que o simples encontro entre dois ou mais indivíduos de uma mesma comunidade. Diz Voloshinov: Os signos só podem aparecer em um terreno interindividual. Ainda assim, trata-se de um terreno que não pode ser chamado de “natural” no sentido usual da palavra: não basta colocar face a face dois homo sapiens quaisquer para que os signos se constituam. É fundamental que esses dois indivíduos estejam socialmente organizados, que formem um grupo (uma unidade social): só assim um sistema de signos pode constituir-se. A consciência individual não só nada pode explicar, mas, ao contrário, deve ela própria ser explicada a partir do meio ideológico e social. (grifos do autor) (1999, p. 35) No entender do Círculo de Bakhtin, toda manifestação discursiva é, portanto, sempre orientada em função das intervenções anteriores daquela mesma esfera de atividade, seja de um mesmo autor ou de outro; essa manifestação é parte de uma discussão ideológica maior que “responde a alguma coisa, refuta, confirma, antecipa as respostas e objeções potenciais, procura apoio, etc.” (1999, p. 123). Ainda que essa manifestação discursiva assuma a forma de um produto acabado, ele representa apenas uma fração de uma discussão ideológica maior, “um momento na evolução contínua, em todas as direções, de um grupo social determinado” (ibid.) e, para que se possa estudá-la, não se pode apartar essa manifestação da situação 37 FAZENDO
GÊNERO
EM
JORNALISMO
 Mapeando
um
gênero:
conceitos
operatórios
 Assunção
Cristóvão
 extralinguística que a reveste, sob pena de que seu significado global, histórico e concreto escape. Segundo Rodrigues (2001, p. 69-70), A partir da concepção sócio-histórica da constituição e do funcionamento dos gêneros do discurso defendida por Bakhtin, bem como das próprias indicações fornecidas por ele, propõem-se as diferentes esferas sociais como um princípio de organização dos gêneros do discurso. Essa proposta de organização, assentada no princípio das esferas sociais, trabalha com o todo do gênero e com a sua existência concreta, ou seja, trabalha-se com a noção de gênero histórico, considerando, inclusive, a impossibilidade de uma classificação exaustiva, em função da sua extrema variedade e infinidade, e, em especial, do seu processo contínuo de formação. Rodrigues vai além: A constatação de que as características particulares da constituição e do funcionamento dos gêneros estão vinculadas às especificidades da comunicação discursiva das diferentes esferas sociais onde eles se situam, torna as esferas sociais um critério pertinente para o estabelecimento de uma proposta para a organização (agrupamento) dos gêneros. (2001, p. 71) Os gêneros, com seus propósitos discursivos, não são indiferentes às especificidades da sua esfera, ou melhor, eles as "mostram". Todo gênero tem um conteúdo temático determinado: seu objeto discursivo, sua orientação de sentido específica para com ele. Para Bakhtin, [...] os gêneros do discurso correspondem a situações de interação típicas da comunicação discursiva de uma determinada esfera social. [...] tem-se que uma função determinada (científica, jornalística, cotidiana etc.), junto com condições determinadas, próprias de cada esfera da comunicação discursiva, gera gêneros do discurso particulares. As diferentes esferas sociais constituem historicamente seus gêneros, elas têm seu repertório de gêneros que se diferencia e cresce à medida que se desenvolve e se "complexifica" a própria esfera. Assim, cada gênero tem determinada orientação etiológica, determinado objetivo discursivo, sua própria concepção de autor e destinatário. Cada gênero "reflete" no seu próprio 38 FAZENDO
GÊNERO
EM
JORNALISMO
 Mapeando
um
gênero:
conceitos
operatórios
 Assunção
Cristóvão
 conteúdo temático, estilo verbal e composição as condições e a finalidade da esfera a qual pertence. Também cada esfera conhece e "aplica" os seus próprios gêneros. Se as pessoas, na interação sócio-verbal, "moldam" seus discursos em determinada forma genérica, um dos aspectos para o bom desempenho da interação está ligado ao domínio do gênero daquele tipo de interação. (Rodrigues, 2001, p. 70) Este trabalho concentra-se em analisar os gêneros jornalísticos a partir de suas estabilidades, criadas num processo histórico, e, por isso, marcadas por constantes instabilidades que são também a sua gênese. Essa aparente contradição constitui-se em condição para a caracterização dos variados gêneros jornalísticos. Tal caracterização desempenha a função de facilitar a análise de suas características internas, de suas relações com o contexto exterior e com a história, uma função metodológica e, certamente, de aproximação ao entendimento da esfera de atividade que se propõe conhecer. É com essa leitura de conceitos do Círculo de Bakhtin que se prosseguirá os estudos dos projetos editoriais e gráficos do jornal Folha de S. Paulo. A exposição da noção de esfera certamente abre caminho para a próxima seção, em que serão expostos alguns dos principais gêneros jornalísticos, na perspectiva, principalmente, de representantes dessa esfera de atividade. 39 FAZENDO
GÊNERO
EM
JORNALISMO
 O
jornalismo
e
alguns
de
seus
gêneros
 Assunção
Cristóvão
 
 O
JORNALISMO
E
ALGUNS
DE
SEUS
GÊNEROS
 Os estudos de Bakhtin, ao se deterem nos três campos da cultura humana, a ciência, a arte e a vida, apontam para uma direção mais filosófica do que científica ao eleger o homem e a história como núcleos de sua preocupação principal. Se o homem é sujeito, não há como objetificá-lo sem uma dose da presença do próprio homem que, por seu turno, é um elo na cadeia desse diálogo sem fim em que se encontram o eu e o outro, o sujeito e seu objeto de pesquisa, na perspectiva de um saber sempre dialógico e não monológico. Se assim se postula e se o pesquisador da área das Ciências Humanas está inserido, em última instância, como homem, no estudo de outro homem, que aparece como objeto através de um texto, de um fenômeno social, de um componente midiático, nele haverá sempre uma relação sujeito-sujeito e não sujeito-objeto, uma vez que o homem não pode ser reduzido, nem mesmo num estudo científico, a um papel comparável ao de um micróbio sendo analisado pelas lentes de um microscópio. O pesquisador não é um ser isolado do fenômeno a ser estudado, nem a comunidade a ser pesquisada é um organismo inerte e distante, incapaz de interagir com a “autoridade máxima” que a analisa. Se essa comunidade for reconhecida como sujeito, e como possuidora de um saber a ser valorizado e considerado, a composição de forças sujeito-objeto se transforma em sujeito-sujeito e a relação dialógica explorada pelo Círculo de Bakhtin se impõe. É nessa perspectiva que se adentra o universo do jornalismo para analisar essa esfera de atividade e seus gêneros. Foi também respeitando esse ponto de vista que muitas descrições dos gêneros em jornalismo aqui trabalhadas são oriundas do próprio universo do jornalismo, além de outras feitas por teóricos do discurso. O primeiro passo para considerar, na perspectiva dialógica, como os gêneros se situam em determinadas esferas é situar a natureza e a função dessa esfera no conjunto da vida social, ou seja, observando-a em suas manifestações discursivas para, através delas, poder captar sua relação com o mundo, com os seus vários “eus” e “outros”. 40 FAZENDO
GÊNERO
EM
JORNALISMO
 O
jornalismo
e
alguns
de
seus
gêneros
 Assunção
Cristóvão
 A própria atividade do jornalismo merece uma análise mais apurada. Para Melo: [...] o jornalismo é concebido como um processo social que se articula a partir da relação (periódica/oportuna) entre organizações formais (editoras/emissoras) e coletividades (públicos receptores), através de canais de difusão (jornal/revista/rádio/televisão/cinema) que asseguram a transmissão de informações (atuais) em função de interesses e expectativas (universos culturais ou ideológicos). (MELO, 2003, p. 17) Interessante notar a visão de “processo” de Melo, em contraposição à definição de “atividade profissional” que será vista a seguir, extraída do Dicionário Houaiss de Língua Portuguesa. Para Melo, o que faz com que o jornalismo se configure como um processo social, autônomo, contínuo e permanente é a necessidade dos cidadãos de recorrerem “a uma mediação para apreender uma realidade que se tornou muito ampla para ser captada pelos mecanismos da sensorialidade individual” (MELO, 2003, p. 63). Nesse sentido, para o autor, a informação não prescinde da opinião, pois o indivíduo não precisa apenas saber o que ocorre, mas também o que se pensa sobre aquilo que ocorre. Segundo o Dicionário Houaiss (2001, p. 1687): Jornalismo s.m. - 1 atividade profissional que visa coletar, investigar, analisar e transmitir periodicamente ao grande público ou a segmentos dele, informações da atualidade, utilizando veículos de comunicação (jornal, revista, rádio, televisão etc) para difundi-las 2 o conjunto dos jornais; imprensa [...] 3 abordagem superficial de um tema, menos interessada em esclarecê-lo do que em agradar o gosto e os interesses populares que estão na moda . [...] A definição do dicionário divide-se em três partes. A primeira corresponde à atividade global de um jornalista, da coleta à transmissão da informação atual. A segunda generaliza as atividades relacionadas à profissão e aos seus vários desdobramentos, ao resumi-las no termo imprensa. Já a terceira definição, também a menos usual, é a que relaciona o conceito de jornalismo com a de uma abordagem superficial de um tema, provavelmente por conceber a atividade do jornalista, que corresponde à primeira definição, com seu compromisso na divulgação de um fragmento do “real”, uma abordagem do acontecimento, e não de sua 41 FAZENDO
GÊNERO
EM
JORNALISMO
 O
jornalismo
e
alguns
de
seus
gêneros
 Assunção
Cristóvão
 totalidade, ou seja, de sua amplitude que não condiz com o ritmo da produção do jornalismo diário. Também é bastante comum que se confunda o jornalista com o profissional da mídia que cumpre a função de entrevistar, apresentar ou transmitir determinado conteúdo informativo e não aquele que coleta, investiga, analisa e também transmite as informações. É o jornalista relacionado com o termo genérico imprensa, descrito pelo dicionário na segunda definição. É muito comum, por exemplo, em emissoras de rádio do interior, programas que se intitulam jornalísticos nos quais o ouvinte liga para reclamar de determinado problema e o radialista o anuncia “no ar”, tomando-o como um valor de verdade, sem antes nem apenas tomar o cuidado de checar a informação “in loco” ou, pelo menos, ouvir o “outro lado” da notícia. Complementando a definição de Melo, considerar-se-á, ainda, neste trabalho, como jornalismo, aquela primeira acepção do dicionário Houaiss, ou seja, a “atividade profissional que visa coletar, investigar, analisar e transmitir periodicamente ao grande público ou a segmentos dele, informações da atualidade, utilizando veículos de comunicação”. O jornalismo é visto aqui, então, como uma atividade complexa que envolve processos de difusão (notícia, informação), interpretação, análise (reportagem), argumentação (opinião) e reflexão (crônica, comentário). Para que possa executar e exercitar esses gêneros, bem como cumprir essas funções, o jornalista se comunica com seu interlocutor, que pode ser o leitor, ouvinte, telespectador, internauta ou outro, dependendo do veículo de comunicação em que atue. Como sua atuação dá-se sempre em um meio de comunicação de massa, esse jornalista não pode ter uma ideia definida dos gostos e valores do seu interlocutor, mas pode supô-los, seja por meio de pesquisas seja por sua intuição e experiência de ofício. Os próprios projetos editoriais do jornal Folha de S. Paulo e da revista Superinteressante trazem exemplos de como os jornalistas podem supor expectativas e valores de seus leitores. “A expectativa do leitor é que o jornal se diferencie pela excelência do produto [...]”, crê a Folha de S. Paulo, e assim o expressa no seu projeto editorial de 1986 (Anexos, p. A-49). Por seu turno, a revista Superinteressante acredita que seu leitor “é uma vítima da dicotomia entre corpo/ciência/matéria versus espiritualidade/humanidade/sentimento”, segundo expressa em seu Plano Editorial de 1996 (Anexos, p. A-115), no item “O Leitor – Comportamento, atitudes e valores (20 ou mais características do leitor, segundo a experiência e a intuição da redação)”. 42 FAZENDO
GÊNERO
EM
JORNALISMO
 O
jornalismo
e
alguns
de
seus
gêneros
 Assunção
Cristóvão
 Considerar as definições de gênero do discurso a partir do ponto de vista do jornalista não significa que não serão levados em conta estudos de pesquisadores da área dos estudos da linguagem sobre os gêneros jornalísticos; pelo contrário. Porém, a terminologia adotada no jornalismo e o conhecimento daquela esfera sobre os variados gêneros não é desprezado e serve de referência para a análise. Nessa abordagem, cada enunciado e cada manifestação discursiva são considerados elos de um tipo particular de comunicação, que partilha as mesmas características de outros enunciados, e que são comuns àqueles pertencentes às mesmas situações de interação, particulares de cada esfera de comunicação discursiva que, historicamente, gera seus gêneros discursivos próprios. Para Bakhtin, as diferentes esferas sociais têm seu repertório de gêneros que se diferenciam e crescem à medida que a própria esfera torna-se mais complexa. O caso da imprensa, um sistema que passa por um momento de transformação intensa, é também exemplo de uma estrutura já bastante complexa e sustentada por uma base comercial e econômica de igual complexidade. Os projetos editoriais, objetos de estudo desta pesquisa, estão incluídos nessa rede de relações, em que se desenvolvem variados gêneros linguísticos. Antes de estudá-los, serão abordados outros gêneros, aqueles efetivamente disponibilizados ao público nos jornais impressos. O jornalismo é composto por uma infinidade de gêneros discursivos, a qual só tende a se ampliar com a consolidação e os desdobramentos do jornalismo on-line. A divulgação de informações, que é a essência do jornalismo, assumiu na rede inúmeras características. Além dos sites jornalísticos comandados por empresas de comunicação ou profissionais do setor, proliferam iniciativas de criação de pequenos sites de divulgação de notícias, sem a estrutura das grandes corporações no que se refere a pessoal e equipamentos para a realização de todo o processo de recepção, apuração, confecção e divulgação da notícia. Apesar disso, essas distinções de gêneros discursivos e sua classificação carecem de unanimidade entre teóricos de comunicação, linguistas e analistas do discurso. A própria noção de gênero que, por sua complexidade, não é definida de maneira uniforme entre os especialistas, é difusa no campo do jornalismo, em que a classificação também acontece de forma desordenada, uma vez que são utilizadas teorias de diferentes campos do conhecimento. Charaudeau, ao considerar aspectos que definiriam o que ele chama de classe textual, discorda das denominações dadas pelos jornalistas para determinar tipos de escritura ou de 43 FAZENDO
GÊNERO
EM
JORNALISMO
 O
jornalismo
e
alguns
de
seus
gêneros
 Assunção
Cristóvão
 programas de televisão: “Essas definições não coincidem nem entre si nem com as definições dadas por semiólogos e analistas de discurso. Além disso, nada indica que essas categorias possam ser consideradas gêneros” (2006, p. 204), diz ele. Para, então, chegar à definição de um gênero “informação midiática”, Charaudeau realiza um cruzamento entre “um tipo de estância enunciativa, um tipo de modo discursivo, um tipo de conteúdo e um tipo de dispositivo”. Apesar de interessante, este trabalho não tenciona deter-se na análise empreendida pelo autor, já que a concepção de gênero aqui adotada será a bakhtiniana, considerada por Charaudeau uma concepção de princípios “um pouco mais operatórios, mas que fornecem ainda classes de atos de linguagem (mais do que de textos) muito amplas” (2006, p. 205). Vale a pena, porém, introduzir alguns aspectos da abordagem de Charaudeau, uma vez que eles levam em consideração a questão da subjetividade da visão do jornalista na concepção do gênero. O autor identifica alguns gêneros discursivos próprios do jornalismo, como editorial, crônica, reportagem, entrevista-debate, notas-boxes, análises, etc., e os submete a classificações do tipo “acontecimento relatado”, “acontecimento comentado” e “acontecimento provocado”. Nessa estrutura, as tipologias editorial e crônica, por exemplo, estariam localizadas na classificação “acontecimento comentado”, assim como notas-boxes, em “acontecimento relatado”, e debates em “acontecimento provocado”, e assim por diante, numa gradação de menor para maior grau de engajamento da subjetividade do jornalista. Charaudeau identifica também uma instância externa à mídia que produz discursos a serem transmitidos por ela, formada por especialistas e comentaristas de assuntos diversos. Cada um desses tipos de textos provoca uma nova pergunta por parte do pesquisador francês: “Trata-se de variantes de gêneros, de subgêneros ou de novos gêneros? A questão permanece, pois é sempre difícil discernir o que, sob as variações da forma, estabelece uma ruptura e, por conseguinte, a aparição de uma nova categoria” (2006, p. 211). Como já foi dito em seção anterior, para a finalidade desta pesquisa adota-se o termo gênero para cada uma dessas manifestações do jornalismo que mantêm estabilidades e que são reconhecíveis pelos componentes da mesma esfera da atividade. É uma opção que pode ser já entrevista no conceito de gênero de discurso de Bakhtin e está relacionada à sua natureza e heterogeneidade, que fazem com que cada enunciado se ligue a outro, formando elos que influenciam um ao outro, numa constante troca de informações, respostas, posicionamentos e estilos. Essa característica, que não permite posicionar o gênero numa classificação isenta de interferências externas, também não permite categorizá-lo de maneira 44 FAZENDO
GÊNERO
EM
JORNALISMO
 O
jornalismo
e
alguns
de
seus
gêneros
 Assunção
Cristóvão
 sistemática e precisa, o que demonstra a complexidade da questão. A grande contribuição de Bakhtin foi, em vez de reduzir a concepção de gênero a um mero elenco de sistemas, apontar as suas complexidades, ainda que com o risco de ser acusado de ter desenvolvido um conceito amplo demais. Esta tese defende que os gêneros jornalísticos se situam na categorização de discurso secundário definida por Bakhtin, pois, conforme já se viu anteriormente, além de eles utilizarem formas elaboradas, são mediados por um veículo de comunicação e, no caso em estudo, por um jornal impresso, que utiliza a linguagem escrita. Apesar de partir deste princípio, pode-se também optar por enquadrar os gêneros jornalísticos, embora numa gradação mais próxima do discurso secundário, em uma modalidade com ramificações no discurso primário, como se estivesse localizado num espaço intermediário entre o discurso primário e secundário. Primário, pela sua relação estreita com a “realidade” e com a “realidade” dos enunciados alheios, no dizer do próprio Bakhtin. A relação com o “real”, no sentido para o termo que será proposto a seguir, é o próprio cerne do jornalismo, que também se utiliza de enunciados alheios para corroborar sua relação com os acontecimentos, que se supõe fragmentos da “realidade”. A utilização de enunciados de “outros” é uma constante no texto jornalístico e tem vários objetivos, entre os quais o de reforçar a imparcialidade do discurso, já que, dessa forma, quem está relatando, afirmando ou negando algo, numa notícia, passa a ser o protagonista do acontecimento, e não o jornalista. A notícia6, por exemplo, considerada o gênero mais simples do jornalismo – o que deve ser visto com reservas, uma vez que não há nada de simples nesse gênero -, parte sempre ou de um valor de verdade, um “fato” observado pelo jornalista ou relatado por uma fonte, ou seja, parte sempre de sua relação direta com a “realidade” visível ou mediatizada por enunciados alheios, com a característica, sempre presente, de ser uma informação nova ou ainda não conhecida pelo público. Vale relembrar aqui, pela utilização seguida do termo, algumas considerações sobre “realidade”, uma vez que a “reprodução do real” é a forma de ver o texto jornalístico tanto pelo senso comum quanto pelos próprios jornalistas. Como ponto de partida desta análise adota-se a concepção bakhtiniana de que os signos manifestos nos discursos sociais “refletem e refratam” uma realidade. Complementando essa ideia, Bakhtin/Voloshinov afirma: 





























 





























 
 6 Adota-se aqui a definição de Charaudeau: “coexistência do dito e do fato que cria a ilusão de um saber universal” (2006, p. 88). 45 FAZENDO
GÊNERO
EM
JORNALISMO
 O
jornalismo
e
alguns
de
seus
gêneros
 Assunção
Cristóvão
 Um signo não existe apenas como parte de uma realidade; ele também reflete e refrata uma outra. Ele pode distorcer essa realidade, ser-lhe fiel, ou apreendê-la de um ponto de vista específico, etc. Todo signo está sujeito aos critérios de avaliação ideológica [...]. O domínio do ideológico coincide com o domínio dos signos: são mutuamente correspondentes. Ali onde o signo se encontra, encontra-se também o ideológico. Tudo que é ideológico possui um valor semiótico. [...] Cada ca