q Descaravelização de práticas educadoras: a L e i 1 1 6 4 5 /0 8 e o s p o v o s i n d íg e n a s , c o n s tr u in d o c a m in h o s p a ra o e n c a n ta m e n to S a ra h d e C a s tro UNESP UNIVERSIDADE ESTADUAL PAULISTA “Júlio de Mesquita Filho” Instituto de Artes Mestrado Profissional em Artes Prof-Artes Sarah de Castro Ribeiro Nhambiquara DESCARAVELIZAÇÃO DE PRÁTICAS EDUCADORAS: a lei 11645/08 e os povos indígenas, construindo caminhos para o encantamento São Paulo 2024 Sarah de Castro Ribeiro Nhambiquara DESCARAVELIZAÇÃO DE PRÁTICAS EDUCADORAS: a lei 11645/08 e os povos indígenas, construindo caminhos para o encantamento Dissertação apresentada ao Programa de Pós- Graduação Mestrado Profissional em Artes (PROF-ARTES) do Instituto de Artes da Universidade Estadual Paulista (UNESP) em 21 de junho de 2024, para a obtenção do título de Mestre em Artes. Linha de Pesquisa: Processos de Ensino, Aprendizagem e Mediação em Artes. Orientação: Prof.ª. Dra Rita Luciana Berti Bredariolli. São Paulo 2024 Ficha catalográfica desenvolvida pelo Serviço de Biblioteca e Documentação do Instituto de Artes da Unesp. Dados fornecidos pelo autor. N576d Nhambiquara, Sarah de Castro Ribeiro. Descaravelização de práticas educadoras: a lei 11645/08 e os povos indígenas, construindo caminhos para o encantamento / Sarah de Castro Ribeiro Nhambiquara. -- São Paulo, 2024. 119 f. : il. Orientadores: Prof.ª Dr.ª Rita Luciana Berti Bredariolli. Dissertação (Mestrado Profissional em Artes) – Universidade Estadual Paulista “Júlio de Mesquita Filho”, Instituto de Artes. 1. Educação permanente. 2. Antirracismo. 3. Indígenas. 4. Arte indígena. I. Bredariolli, Rita Luciana Berti. II. Universidade Estadual Paulista, Instituto de Artes. III. Título. CDD 709.81 Bibliotecária responsável: Mariana Borges Gasparino - CRB/8 7762 https://unesp.alma.exlibrisgroup.com/ng/ng/ Sarah de Castro Ribeiro Nhambiquara DESCARAVELIZAÇÃO DE PRÁTICAS EDUCADORAS: a lei 11645/08 e os povos indígenas, construindo caminhos para o encantamento Dissertação apresentada ao Programa de Pós- Graduação Mestrado Profissional em Artes (PROF-ARTES) do Instituto de Artes da Universidade Estadual Paulista (UNESP), para a obtenção do título de Mestre em Artes. Dissertação aprovada em: 21/06/2024 Banca Examinadora ______________________________________________________ Prof.ª. Dra Rita Luciana Berti Bredariolli Universidade Estadual Paulista – UNESP (Orientadora) _____________________________________________ Dra. Auana Lameiras Diniz GEPALA/Universidade Federal de Mato Grosso do Sul - UFMS ___________________________________________ Prof.ª. Dra. Clarissa Lopes Suzuki Universidade de São Paulo-USP AGRADECIMENTOS O presente trabalho foi realizado com apoio da Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior - Brasil (CAPES) - Código de Financiamento 001. Agradeço a todas as mulheres que me deram forças e juntas seguiram comigo até o fim deste ciclo, por todas as vezes onde acreditei que ia cair e vi um braço estendido para me levantar. Gratidão por não soltarem minhas mãos. Agradeço minha família por estar ao meu lado na realização deste sonho. Meu companheiro Budga Deroby pela força, ao meu filho Itamaraí, sou uma mãe em construção, mas que sempre foi uma mulher com sonhos e irá lutar para realizá-los. Agradeço meus pais pelo incentivo em aprofundar meus estudos, o conhecimento muitas vezes é doloroso, pois tem a potência de ampliar nossa visão sobre o mundo, mas é impossível conhecer e ficar parada! Gratidão por todo movimento. Agradeço a minha orientadora Professora Dr.ª.Rita, pela imensa paciência e por acreditar na minha capacidade. Agradeço a todas as mulheres que conectadas cuidam umas das outras e de todos os seres viventes, que nas relações de cuidado nos fortifiquemos e estejamos cada vez mais presentes nos espaços que desejamos, que continuemos a ser mudança e manter as conexões para um futuro ancestral. RESUMO A presente pesquisa, pretende partir da lei 11.645 de 2008 que traz a obrigatoriedade do ensino das culturas e histórias dos povos Indígenas, povos africanos e afro- brasileiros apresentar o processo de criação de um curso de formação continuada sobre a temática indígena, oferecido para os profissionais da educação do município de Suzano no estado de São Paulo a fim de refletir a necessidade e importância das formações continuadas previstas na LDB (Lei de Diretrizes e Bases), principalmente quando tratam de assuntos oriundos de pautas sociais, políticas, artísticas e ambientais atuais. Neste caso será apresentado de onde surgiu a necessidade da oferta do curso, sua elaboração e as etapas de aplicação que foram voltadas a introduzir alguns conceitos relacionados as culturas dos povos indígenas, principalmente por um viés de(s)colonial e antirracista que busca descaravelizar e reflorestar mentes, como proposto por Geni Nuñez (2021). Para a elaboração da pesquisa foi utilizado levantamento bibliográfico, levantamento de pautas apresentadas por influenciadores indígenas na rede social do Instagram, minhas vivências enquanto companheira, mãe de indígena, assim como minha trajetória na educação formal em escolas públicas frequentada majoritariamente por não indígenas. PALAVRAS-CHAVE: descaravelização; formação continuada; educação decolonial; educação antirracista; povos indígenas; arte indígena. RESUMÉN Esta pesquisa pretende partir de la ley 11.645 de 2008, que obliga a enseñar las culturas e historias de los pueblos indígenas, africanos y afrobrasileños, para presentar el proceso de creación de un curso de formación continua en temas indígenas, ofrecido a los profesionales de la educación. del municipio de Suzano, en el estado de São Paulo, con el fin de reflejar la necesidad y la importancia de la formación continua prevista en la LDB (Ley de Directrices y Bases), especialmente cuando se trata de cuestiones derivadas de la actualidad social, política, artística y ambiental. agendas. En este caso se presentará dónde surgió la necesidad de ofrecer el curso, su elaboración y los pasos de aplicación que tuvieron como objetivo introducir algunos conceptos relacionados con las culturas de los pueblos indígenas, principalmente a través de una visión de(s)colonial y antirracista. sesgo que busca destapar y reforestar mentes, como propone Geni Nuñez (2021). Para elaborar la investigación se utilizó una encuesta bibliográfica, una encuesta de temas presentados por influencers indígenas en la red social Instagram, mis experiencias como pareja, madre de una persona indígena, así como mi trayectoria en la educación formal en escuelas públicas a las que asistí principalmente. por personas no indígenas. PALABRAS CLAVE: decaravelización. formación continua; educación decolonial; educación antirracista; pueblos indígenas; arte indígena. LISTA DE ILUSTRAÇÕES FIGURAS Figura 1 - Roda de Conversa com os inscritos no curso/ encontro................................ 33 Figura 2– Slide 1: Brasil terra indígena. ........................................................................ 34 Figura 3 – Slide 2 sobre a invisibilidade indígena no Brasil ........................................... 35 Figura 4 – Slide 10 para acostumar o olhar: Obra de Yacunã Tuxá. .............................. 40 Figura 5 – Slide 18 sobre direitos básicos. .................................................................... 41 Figura 6 – Slide 19 conhecer as violências, genocídio e epistemicídio ......................... 42 Figura 7 - Slide 22 sobre tentativas de contracolonialidade .......................................... 43 Figura 8 - Slide 24, busca por representatividade ......................................................... 43 Figura 9 – Segundo dia de encontros com o Prof. Budga Deroby ................................. 45 Figura 10 – Slide 1 apresentado pelo professor Deroby ................................................ 46 Figura 11 – Slide 3 do professor Deroby: eles não são eles, somos eu e você ............. 47 Figura 12 – Slide 6 do professor Deroby: Socializando com Arte’S ............................... 49 Figura 13 – Slide 10 do professor Deroby: Grafismos Tapajônicos ............................... 50 Figura 14 – Slide 3 e 4:estereótipos midiáticos para o público infantil ........................... 52 Figura 15 – slide 9 e12: estereótipos de atividades escolares e HQ para o público infantil ........................................................................................................................... 53 Figura 16 – Slides 13 3 15: possíveis revisões de estereótipos e representatividade ... 53 Figura 17 – Slide 17: Representatividade...................................................................... 55 Figura 18 – Montagem com desenhos com mesmo tema ............................................. 55 Figura 19 – Montagem com desenhos de personagens das animações da Disney ...... 56 Figura 20 – Descrição de personagem feita por 3 pessoas ........................................... 57 Figura 21 – Desenhos de possíveis heróis indígenas ................................................... 57 Figura 22 – Slide 21 e 22 .............................................................................................. 59 Figura 23 – Slides 24 e 28: novelas brasileiras com personagens indígenas ................ 60 Figura 24 – Slides 33 e 34: Fontes seguras .................................................................. 61 Figura 25 - Slide 36 ....................................................................................................... 62 Figura 26 – Slide 3 e 4: Jaider Esbell e obra " Armadilhas Psicodélicas" ...................... 65 Figura 27 – Slide 5 e 6: Daiara Tukano e vista da série Dabucuri no céu ...................... 66 Figura 28 – Slide 12 e 13: Arissana Pataxó e obra "Indígenas em foco" ....................... 66 Figura 29 – Slide 16 e 17 .............................................................................................. 67 Figura 30 – Slide 22 e 23 .............................................................................................. 68 Figura 31 – Slide 41 e 49 .............................................................................................. 69 Figura 32 – Slides 51 e 52 ............................................................................................ 70 Figura 33 – Observação dos materiais .......................................................................... 71 Figura 34 – Impressões digitais de algumas produções de Auá Mendes ...................... 72 Figura 35 – Observação dos materiais .......................................................................... 73 Figura 36 – Prof. Budga Deroby pintanto o professor Diogo Nogueira .......................... 74 Figura 37 - Despedida ................................................................................................... 74 Figura 38 - Páginas 06 e 32 do material didático confeccionado pela autora ................ 75 Figura 39 - Capa do material didático elaborado pela autora ........................................ 76 QUADROS Quadro 1 - Ementa do Minicurso elaborado para a Prefeitura de Suzano ....................28 SUMÁRIO 1 DESCARAVELIZAÇÃO .......................................................................................................... 13 2 (DES)CONSTRUÇÃO ............................................................................................................ 16 3 CAMINHOS PARA O ENCANTAMENTO .............................................................................. 23 3.1 Construção do Curso de Formação - Lei 11.645/08: subsídios para pensar as culturas indígenas em sala de aula. ........................................................................................................ 24 4 PRIMEIRO ENCANTAMENTO.............................................................................................. 32 5 SEGUNDO ENCANTAMENTO .............................................................................................. 44 6 TERCEIRO ENCANTAMENTO .............................................................................................. 51 7 QUARTO ENCANTAMENTO ................................................................................................. 63 8 FRUTO DO ENCANTAMENTO.............................................................................................. 75 9 DESEJOS ENCANTADOS ..................................................................................................... 78 ORIENTAÇÕES ANCESTRAIS ................................................................................................ 80 APÊNDICE – Material didático: Caminhos para Encantamento, descaravelizando práticas educadoras ................................................................................................................................ 84 12 13 1 DESCARAVELIZAÇÃO Há alguns anos desde a Graduação em Artes visuais, algumas experiências a partir de reverberações que a lei 11.645/2008 que altera a lei no 9.394/1996 (modificada pela Lei no 10.639/2003) que estabelece as diretrizes e bases da educação nacional, para incluir no currículo oficial da rede de ensino a obrigatoriedade da temática “História e Cultura Afro-Brasileira e Indígena” nas disciplinas de arte e história, em todos os níveis de ensino me impulsionaram ao movimento de buscar ampliar meu conhecimento e me movem até hoje. Esses movimentos levaram-me a pesquisar a educação por um viés decolonial e principalmente antirracista, mais especificamente no que tange aos povos indígenas. Apesar de pautado na lei e aporte bibliográfico, este artigo também está amparado por minhas vivências enquanto mulher, mãe e arte-educadora, portanto, é impossível dissociar a vida da pesquisa aqui proposta. Peço licença para uma escre(vivência) como proposto por Conceição Evaristo, ainda que a “escrevivência” é o modo de “construir um texto ficcional con(fundindo) escrita e vida, ou melhor dizendo, escrita e vivência” (EVARISTO, 2017), desejo confundir vida e academia. Esta pesquisa teve como mote a elaboração de uma proposta pedagógica voltada à formação de educadores da rede Municipal de Suzano, para isso além da revisão bibliográfica, foram feitos levantamentos, na rede social do Instagram, de influenciadores indígenas de variadas etnias, para reforçar as pautas mais urgentes do movimento indígena a fim de me orientar sobre quais conteúdos selecionar e de que maneira os apresentar à rede de professores de modo adequado, de tal modo que atendesse às demandas e realidades observadas nesse município. Serão apresentados de que forma os quatro encontros aconteceram, os conteúdos e resultados obtidos, bem como, se as expectativas iniciais da pesquisa foram alcançadas e, se houveram repercussões posteriores. Conceber esse curso foi a continuação de um processo próprio de descaravelização, como proposto por Geni Nuñez (2022), doutora em psicologia e ativista Guarani, em que ela orienta a necessidade de rever e perceber as estruturas 14 hegemônicas e ir contra as monoculturas do pensamento de maneira a acolher e viver a diversidade. Deste modo utilizei ambiguamente a palavra “Encantamento” para descrever o processo de vivência proposto no curso, de um lado podemos pensar a concepção dos Encantados presentes em alguns povos indígenas, como por exemplo os Guarani, nesse povo quando uma pessoa desencarna ela retorna à natureza, e ao se tornar um ancestral, este contribuirá de algum modo com aqueles que ainda permanecem no plano terreno, de outra maneira podemos pensar a etimologia da palavra “encantamento” que encontrada em dicionário nos traz a seguinte descrição: “3. sensação de fascínio ou deslumbramento causada por algo ou alguém muito agradável ou possuidor de grandes qualidades; 4. estado de quem está encantado, seduzido, maravilhado.” (dicionário Porto editora). Posto isto, um dos desejos imbuídos nesta pesquisa é de que, ao descontruir e reconstruir olhares, as pessoas envolvidas se desvencilhassem das estruturas racistas que nos amarram a tanto tempo, e que ao se constituírem novos pontos de vista as pessoas fossem de alguma maneira “Encantadas”, em um processo presente nas culturas dos povos indígenas, que nos presenteiam com o que é chamado reflorestamento de ideias (NUÑEZ, 2022). Entre os subcapítulos que irão apresentar cada encontro, será apresentada uma página vermelha, em alusão ao Urucum, mais especificamente ao pigmento extraído das sementes do Urucuzeiro, árvore muito comum na mata atlântica e utilizada por diversos povos indígenas, muito frequente em manifestações e lutas por pautas como demarcações de terras, garantia de direitos humanos, dentre outros que podem denotar urgência de ação, embate, fazendo uma alusão à necessidade urgente de (des)construir o imaginário coletivo sobre os povos indígenas. Seguindo a mesma lógica denomino “Desejos” as considerações finais, pois houve desejos de encantamento que espero sigam em curso, reverberando nas ações daqueles que se dispuseram ao encontro. Por fim nomeio os referenciais teóricos que me orientaram neste percurso de “Ancestrais”, pois foram as bases necessárias para que esta pesquisa pudesse existir, 15 visto que, sem reconhecer a importância da ancestralidade de ideias, seria impossível seguir decolonizando olhares e vidas. 16 2 (DES)CONSTRUÇÃO Conversando com professores em situações como HTPCs (Horário de trabalho pedagógico coletivo) e Paradas pedagógicas, colegas de exercício de profissão, notei que muitos diziam ter dificuldades em abordar temas relacionados aos povos indígenas brasileiros, corroborando como a ideia da inexistência da revisão sistemática do modo como se ensina, dos conceitos e conteúdos sobre o assunto. Em 2016 assumi o cargo de professora de Arte efetiva no município de Suzano, e até o ano de 2022 presenciei poucas propostas sobre os povos indígenas que ampliassem o repertório dos estudantes e conseguissem ultrapassar o senso comum. Dentro deste período a Secretaria Municipal de Educação de Suzano, que costuma fazer parcerias com entidades culturais e/ou Universidades para ofertar cursos de formação continuada para seu quadro de funcionários no setor de Educação, não exigiu a inclusão de cursos que ampliassem o repertório e senso crítico de seus funcionários em relação as culturas indígenas e a Lei 11645/08 na grade oferecida pelas instituições conveniadas. Suzano é um município localizado no Estado de São Paulo, na região metropolitana da cidade de São Paulo. Inicialmente era apenas uma vila que recebeu o nome de Suzano em 1908, somente em 1949 foi sancionada a lei que a tornou uma cidade. É possível acessá-la via trem a partir da linha Coral ou Safira que partem da estação Brás no município de São Paulo. Atualmente, segundo censo de IBGE de 2022, possui aproximadamente 307.429 habitantes e cerca de 75 escolas municipais que oferecem desde a creche até o fundamental 1 e a EJA – Educação de Jovens e Adultos. Abaixo trago a redação dada pela lei 11645/08 para recordar seus dizeres e compreender até onde ela pode ser expandida, visto que, um dos argumentos dos profissionais da educação para não incluir o tema em seus planejamentos, é o fato da lei obrigar a inclusão do tema nas disciplinas de história, arte e português, contudo, ao analisar a lei mais cuidadosamente notamos a sugestão da inclusão em todo o currículo. 17 Desse modo, mesmo que não haja obrigatoriedade, há inúmeros motivos para a expansão do tema, de modo que isso ocorra em todo o período letivo, e em todas as disciplinas, uma vez que vincular a temática indígena somente às datas comemorativas ou quando essas surgem nos materiais didáticos, pode empobrecer e descontextualizar conceitos relevantes para uma educação antirracista. Art. 1o O art. 26-A da Lei no 9.394, de 20 de dezembro de 1996, passa a vigorar com a seguinte redação: “Art. 26-A. Nos estabelecimentos de ensino fundamental e de ensino médio, públicos e privados, torna-se obrigatório o estudo da história e cultura afro- brasileira e indígena. § 1o O conteúdo programático a que se refere este artigo incluirá diversos aspectos da história e da cultura que caracterizam a formação da população brasileira, a partir desses dois grupos étnicos, tais como o estudo da história da África e dos africanos, a luta dos negros e dos povos indígenas no Brasil, a cultura negra e indígena brasileira e o negro e o índio na formação da sociedade nacional, resgatando as suas contribuições nas áreas social, econômica e política, pertinentes à história do Brasil. § 2o Os conteúdos referentes à história e cultura afro-brasileira e dos povos indígenas brasileiros serão ministrados no âmbito de todo o currículo escolar, em especial nas áreas de educação artística e de literatura e história brasileiras.” (NR). (LEI DE DIRETRIZES E BASES DA EDUCAÇÃO. 1996). Saliento que no documento elaborado pelo Conselho municipal de educação de Suzano, com cumprimento previsto até 2025, estão inclusos tópicos onde Suzano se compromete a incluir e aplicar a Lei 11645/08 e reforçam seu compromisso com a formação continuada de todos os funcionários vinculados a educação. 1.10. Estratégia Nacional: Fomentar o atendimento das populações do campo e das comunidades indígenas e quilombolas na educação infantil nas respectivas comunidades, por meio do redimensionamento da distribuição territorial da oferta, limitando a nucleação de escolas e o deslocamento de crianças, de forma a atender às especificidades dessas comunidades, garantido consulta prévia e informada. Estratégia Municipal: [...] • Implementar as diretrizes curriculares nacionais para a educação das relações étnico-raciais e para o ensino de história africana, cultura afro-brasileira e indígena (Lei nº 10.639/03 e Lei nº 11.645/08). (Plano Municipal de Educação de Suzano 2015-2025 (pg.04) [...] 4.3. Estratégia Nacional: Implantar, ao longo deste PNE, salas de recursos multifuncionais e fomentar a formação continuada de professores e professoras para o atendimento educacional especializado nas escolas urbanas, do campo, indígenas e de comunidades quilombolas. Estratégia Municipal: [...] • Garantir a formação continuada para todos os profissionais da Educação; [...] (pg.10) http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/LEIS/L9394.htm http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/LEIS/L9394.htm#art26a. 18 7.25. Estratégia Nacional: Garantir nos currículos escolares conteúdos sobre a história e as culturas afro-brasileira e indígenas e implementar ações educacionais, nos termos das Leis nºs 10.639, de 9 de janeiro de 2003, e 11.645, de 10 de março de 2008, assegurando-se a implementação das respectivas diretrizes curriculares nacionais, por meio de ações colaborativas com fóruns de educação para a diversidade étnicoracial, conselhos escolares, equipes pedagógicas e a sociedade civil. (Plano Municipal de Educação de Suzano 2015-2025, p.21). Suzano é um município que de fato mantem em seus documentos norteadores educacionais a explicita necessidade de inclusão, em todos os aspectos da palavra. Porém conforme Evo Morales “En otras palabras, la transformación puede comenzar con una ley, pero la transformación del mundo solo ocurrirá con la transformación del ser humano y su relación con la naturaleza. Y la buena ley escrito no pudo garantizarlo”. (MORALES, p. XIV, 2021). Logo, se faz urgente que ações mais concretas, por meio de uma revisão crítica e histórica, possam alcançar toda a comunidade educadora e educandos, haja vista que o Plano Municipal de Educação é um compromisso firmado entre a Prefeitura de Suzano com o Estado e a Federação, pois tais necessidades já estão postas deste a constituição de 1988 e reforçadas mais tarde pela LDB. Ainda que individualmente as unidades escolares venham realizando esforços para trazer questões sobre os povos indígenas para sala de aula, ainda são esforços que não alcançam o Município integralmente, a única menção aos povos indígenas que pude encontrar anterior ao meu ingresso na Prefeitura, foi uma notícia veiculada em seu site datada de 2013 onde uma escola levou seus alunos para visitar uma aldeia indígena multiétnica denominada Karibokás. Segundo a diretora na época Viviane de Melo Oliveira, todos os anos esse trabalho é desenvolvido com os alunos. “Antes mesmo da data nós fazemos uma série de atividades com os pequenos, para irmos preparando-os para esse contato com os Índios. Para alguns é novidade, já para outros é relembrar uma data muito importante no nosso calendário”. Ainda que a inciativa seja muito louvável não conseguiu transgredir o colonialismo na medida em que aparenta ser um trabalho pontual, realizado somente no mês de abril, portanto pouco contribui para a ressignificação da imagem colonial perpetuada no Brasil. 19 Cabe ressaltar, que atualmente tal comunidade indígena, antes localizada no município de Palmeiras, se desfez por questões internas. Deste modo não sei afirmar qual contato com pessoas indígenas os educandos atuais possam ter. Pois em diálogo com alguns professores da rede Municipal, afirmaram que com certa frequência convidavam indígenas desta comunidade para um dia de conversa com seus educandos, porém sempre no mês de abril. Ainda que seja importante esse movimento de aproximação com as culturas indígenas, ações como essas ou planejamentos de aula, projetos e outros necessitam estar contidos em todo o período letivo. Trazer esses conteúdos apenas em uma semana ou dia do ano é certamente insuficiente para aprofundar conhecimentos ou reflorestar mentes a partir da pluralidade ancestral brasileira. Nesse sentido muitos influencers e algumas contas do Instagram como a Apib (Articulação do Povos indígenas do Brasil), Mídia índia, Sumaúma, Cristian Wariu, Samela Sateré Mawé, Tucumã Pataxó, criticam como ao longo dos anos as perguntas estereotipadas permanecem, justamente pela ausência de continuidade na abordagem das temáticas indígenas na educação formal de modo respeitoso, atual e descaravelizado. Durante a leitura da notícia outras questões surgiram e percebi como ainda podiam existir diversos equívocos rondando a educação do município. O título da reportagem, “Estudantes de Suzano Comemoram Dia do Índio com Karibokás.”, já é problemático, visto que o termo “Dia do Índio” foi alterado para Dia dos Povos Indígenas, graças a um projeto de lei da ex-deputada Federal e atualmente a primeira mulher e indígena a Presidir a FUNAI (Fundação Nacional dos Povos Indígenas) Joenia Wapichana. Enquanto comemoração há muitos anos o movimento indígena vem trabalhando para vincular a data às pautas das lutas indígenas e à desmistificação da colonização brasileira como algo positivo. Em seguida o modo como o nome da comunidade foi inserido no título dá a entender que se trata da etnia presente nesta aldeia, contudo tratava-se de uma aldeia multiétnica, um local onde, indígenas de diversas etnias em contexto urbano se encontraram e passaram a conviver coletivamente. 20 Trago este exemplo para ilustrar como, apesar da lei, mesmo que esta seja recente e em 2013 fosse ainda mais, há pouco ou nenhum interesse em revisar o que para muitos seriam “pequenos equívocos”, só a partir de mudanças que alcancem as estruturas será possível alcançar uma educação cotidiana mais respeitosa e decolonial. A partir de muitas experiências individuais vividas antes e após meu ingresso na prefeitura de Suzano, comecei a esperar ansiosamente pela formação continuada prometida pelas leis e documentos municipais. Art. 62. A formação de docentes para atuar na educação básica far-se-á em nível superior, em curso de licenciatura plena, admitida, como formação mínima para o exercício do magistério na educação infantil e nos cinco primeiros anos do ensino fundamental, a oferecida em nível médio, na modalidade normal. (Redação dada pela lei nº 13.415, de 2017) § 1º A União, o Distrito Federal, os Estados e os Municípios, em regime de colaboração, deverão promover a formação inicial, a continuada e a capacitação dos profissionais de magistério. (Incluído pela Lei nº 12.056, de 2009). § 2º A formação continuada e a capacitação dos profissionais de magistério poderão utilizar recursos e tecnologias de educação a distância. (Incluído pela Lei nº 12.056, de 2009). Art. 62-A. A formação dos profissionais a que se refere o inciso III do art. 61 far- se-á por meio de cursos de conteúdo técnico-pedagógico, em nível médio ou superior, incluindo habilitações tecnológicas. (Incluído pela Lei nº 12.796, de 2013) Parágrafo único. Garantir-se-á formação continuada para os profissionais a que se refere o caput, no local de trabalho ou em instituições de educação básica e superior, incluindo cursos de educação profissional, cursos superiores de graduação plena ou tecnológicos e de pós-graduação. (Incluído pela Lei nº 12.796, de 2013). (Plano Municipal de Educação de Suzano 2015-2025, p.21). Após cinco anos sem esta oferta e com a possibilidade de realizar uma pesquisa sobre esse tema no mestrado profissional, apresento a revisão bibliográfica de autores que reforçam a necessidade da sociedade brasileira se reconectar com sua ancestralidade indígena, não para se autodeclararem ou usurparem as medidas judiciais de equiparação histórica aos povos indígenas, mas para, compreendendo seus modos de estar no mundo, revisar a percepção sobre todo o processo de violência que foi e é a construção deste país, afim de sermos atores conscientes em nossa sociedade, desconstruindo o racismo para que possamos agir a partir desses conhecimentos e deixemos de ser reféns das culturas hegemônicas atuais. 21 Para além dessas tantas preocupações, a Sarah mãe, começou também a notar as consequências dessas estruturas em seu filho, pois há muito já notava enquanto companheira de indígena, em situações em que a identidade étnica do companheiro é constantemente colocada a prova, seu nome visto como estranho, acompanhado de perguntas sobre a suposta origem de outro país, as dúvidas sobre suas capacidades, afinal é apenas um indígena. Ainda que frequentemos aldeias Guarani do estado de São Paulo, sempre que possível participemos dos ATLs (Acampamento Terra Livre) e apresente literatura e arte indígena a meu filho, após frequentar escolas não indígenas a partir dos 2 anos (hoje ele tem 4 anos), já tive que ouvir dele que não queria ser indígena por ser chato, estranho, além de soltar expressões como “vamos sentar com perninha de índio mamãe” ou mesmo músicas como “1, 2, 3 indiozinhos”, isso em apenas 2 anos de escolarização. Portanto a luta por formação continuada é também por pessoas que saibam incluir a cultura de meu filho nas escolas, é a pressa de uma mãe que a cada dia vê novas amarras em seu próprio filho. Por fim, também estou em processo de descolonização, desconhecia, como a maioria dos brasileiros, a diversidade cosmológica do Brasil, sequer sabia o quão diversas e particulares são as etnias indígenas e a cada descoberta e conexão, seja com as ancestralidades indígenas ou africanas, muitas vezes há dor, pois foi necessário compreender que na “verdade” colonial, residem verdades que foram enterradas, pisoteadas, transformadas e em minha ignorância ajudava a manter atrocidades seculares. Para além da vergonha que muitos mestiços sentem ao reconhecerem a culpa de toda a violência sofrida pelos africanos e indígenas por sua parte branca, desejo superar, ao contrário de esquecer, para que o conhecimento do passado gere ações que influenciem positivamente o futuro. Ainda que me reconheça pequena nas engrenagens sociais e culturais, acreditando na retomada de consciência impulsionadora de ações é possível que a coletividade, mesmo que geograficamente individual estimule mudanças. Conhecer é um processo poderoso que me leva a perceber a urgência da pluralidade, mas depois de conhecer é difícil continuar acreditando, agora as incertezas 22 cresceram e com elas a vontade de conhecer e compreender outras formas de viver. Formas que entendem o quão artístico é estar vivo. 23 3 CAMINHOS PARA O ENCANTAMENTO 24 3.1 Construção do Curso de Formação - Lei 11.645/08: subsídios para pensar as culturas indígenas em sala de aula. Para entender que o decolonialismo e o ensino antirracista deveriam perpassar os povos indígenas é necessário um primeiro entendimento, que apesar de óbvio, pode passar despercebido, como citado por Evo Morales no prefácio do livro Decolonialismo Indígena (2021), a partir do momento em que o branco se entende superior à natureza, de maneira a explorá-la como sempre quis, nunca houve uma relação igualitária e respeitosa com os povos indígenas, pois, na medida em que estes sempre entenderam a natureza como parte de si próprios, para os brancos eles, assim como a natureza, perdem o valor enquanto seres humanos. Desse entendimento citado por Morales, advém a maioria dos estereótipos que circundam o imaginário sobre os povos indígenas, como por exemplo o de “preguiçosos”, uma vez que utilizam da natureza somente o necessário, sem buscar lucro, ou fazem uso “eficiente” do tempo e do trabalho, diferente da ótica capitalista. Morales (2021) também explica que o termo descolonização é insuficiente para dar conta do processo de retomada do protagonismo que os povos indígenas vêm trilhando, na medida em que ele entende o termo enquanto político e administrativo para a retirada do colonizador sem que necessariamente ocorra a autonomia dos povos ou a revisão de mentalidades. A partir destas questões, tenho estudado a importância da formação continuada para professores da rede pública de Suzano no que tange a aplicação da lei 11645/08 sob o viés das culturas indígenas brasileiras. Durante algumas disciplinas do mestrado me deparei com questões importantes a serem respondidas, tais como “Qual a necessidade de um curso de formação?”, “A quem se destina?”, “Como esse tema vai chegar até os professores? E como chegará aos alunos?”, perguntas importantíssimas a quem se propõe auxiliar o processo de formação continuada de outras pessoas. Tais questionamentos me auxiliaram a pontuar que uma das grandes dificuldades na compreensão sobre as culturas indígenas parte do pressuposto que grande parte do que se conhece sobre cultura indígena está atrelada a cosmologia destes povos. Mesmo dentro de assuntos políticos e/ou materiais é recorrente encontrar alguma ligação com o mundo espiritual, o mesmo ocorre com a arte e a educação, tanto 25 o que entendemos como educação informal quanto formal, de modo que os não indígenas percebem este fato como uma barreira, um dos inúmeros preconceitos em relação às culturas não hegemônicas. As cosmologias indígenas representam modelos complexos, mas integrados dos quais faz parte a sociedade humana. Os mitos são veículos de informação sobre a concepção do universo, incluindo temas sobre a criação do mundo, a origem da agricultura, as relações ecológicas entre animais, plantas e outros elementos, a metamorfose de seres humanos em animais e vice-versa e de ambos em espíritos de vários tipos e índoles, a razão de ser de certas relações sociais culturalmente importantes e até mesmo o surgimento do “homem branco” e a avalanche de fatores desagregadores que o acompanham. (RAMOS, 1994, p.84). A partir disso, é preciso refletir como explicar essas diferentes formas de entendimento de mundo, em que para começar a entender a pluralidade cultural destes povos é preciso que nos desvinculemos principalmente dos modos coloniais de entender as relações e valores que conduzem nosso pensamento euro centrado ou como diz Geni Nuñez (2022) é preciso descatequizar e descolonizar mentes a fim de retomar a pluralidade que a vida possui. Mas para nos aproximar da decolonização, ou até da contracolonização é extremamente importante compreender um fator que luta contra isso, a branquitude. Cida Bento (2022) explica certeiramente o que é o pacto da branquitude e analisa a problemática deste pacto que de tão subjetivo é tratado como inexistente. Porém neste caso é uma inexistência positiva à branquitude, pois apaga as atrocidades cometidas ainda hoje pela narcísica branquitude. [...] Este é o pacto, o acordo tácito, o contrato subjetivo não verbalizado: as novas gerações podem ser beneficiárias de tudo que foi acumulado, mas têm que se comprometer ‘tacitamente’ a aumentar o legado e transmitir para as gerações seguintes, fortalecendo seu grupo no lugar de privilégio, que é transmitido como se fosse exclusivamente mérito. E no mesmo processo excluir os outros grupos ‘não iguais’ ou não suficientemente meritosos. (BENTO. 2022, pg.25). Se no Brasil podemos dizer que ainda vivemos processos de colonização, é preciso agir para que a contracolonização ocorra e o reflorestamento dos imaginários deem frutos e lugar a decolonização. Precisamos descaravelizar as raízes de nossas estruturas sociais, para alcançar um futuro ancestral como proposto por Ailton Krenak 26 (2022). Por isso responsabilizar a branquitude por suas atrocidades passadas e atuais, escancarando seu modus operandi é um dos possíveis meios de facilitar os processos de descaravelização. Contudo é preciso estarmos atentos, pois, segundo análise que Silvia Rivera Cusicanqui (2021) fez dos processos de tentativa de descolonização na Bolívia, houve um condicionamento da inclusão dos indígenas e suas pautas, ou seja, os processos de colonização foram atualizados de modo a perpetuar os privilégios políticos e culturais das elites sob a falsa sensação de inclusão. Ainda que possa ser cedo, esta análise pode apresentar uma correlação muito forte com o que vivemos atualmente no Brasil, por exemplo, a criação do Ministério dos povos indígenas, visto como avanço e possível forma de resolver algumas pautas do movimento indígena brasileiro, porém pouco tem conseguido realizar de fato, não por falta de vontade do ministério e dos indígenas que ali estão, todos extremamente capazes, contudo veem sua autonomia cada vez mais reduzida, ainda que nacionalmente a sociedade brasileira entende o ministério como um grande avanço para a inclusão e realização das pautas. Csicanqui (2021), vai mais além ao propor e explicar que até algumas formas atuais de representação dos povos indígenas são meios atualizados de colonização, como a ideia de origem, logo, aos usarmos o termo “povos originários”, podemos estar contribuindo para essa atualização violenta, pois atrelaríamos as diversas etnias a quietude, ao arcaísmo, como se origem fosse sinônimo de inanição. [...] Eis a recuperação estratégica das demandas indígenas e a neutralização de sua pulsão descolonizadora. Ao falar de povos situados na “origem”, nega-se a coetaneidade dessas populações, excluindo-as das disputas da modernidade. Outorga-se a elas um status residual, de fato convertendo-as em minorias, reduzidas a estereótipos indigenistas do bom selvagem guardião da natureza (CUSICANQUI, 2021, p.97). Devido a este posicionamento refleti e optei por utilizar somente o termo indígena, na tentativa de evitar multiplicar esse entendimento de quietude e inanição. Portanto ao transpor essas reflexões para a realidade brasileira a colocação de Cida Bento (2022) em que é preciso lembrar os impactos da escravidão na branquitude, se torna valiosíssima para começarmos a compreender quais são os meios mais efetivos 27 de desestabilizá-la, descaravelizando cada raiz estrutural da sociedade brasileira, forçando agora a substituição da monocultura pelas pluriculturas. Compreendendo o futuro ancestral como resultado de ações atuais conscientes do passado ou nas palavras de Cusicanqui (2021, p.101) “Não pode haver um discurso da descolonização, uma teoria da descolonização, sem uma prática descolonizadora”. E para concretizar essas ações será necessário reafirmar e estimular a retomada das epistemologias ancestrais na criação de algo novo, que ainda não tem definição, mas que viva a diferença. [...]Construir nossa própria ciência – em um diálogo entre nós mesmos –, dialogar com as ciências dos países vizinhos, afirmar nossos laços com a correntes teóricas da Ásia e da África, e enfrentar os projetos hegemônicos do norte com a força renovada de nossas convicções ancestrais. (CUSICANQUI, 2021, p.116). Talvez um modo de auxiliar a inserir conteúdos relacionados aos povos indígenas no currículo seja incluir suas epistemologias próprias realizando substituições de conteúdo, para que ele seja abrangente, antirracista e ancestral, deste modo é possível facilitar a abordagem das culturas indígenas sem a necessidade de atrelar às datas comemorativas ou de modo muito superficial como encontrado em alguns livros didáticos que acabam fazendo esse papel de recolonização (Cusicanqui, 2021). Substituições ou inclusões simples, porém sistemáticas, já bastariam para começar, como em matemática por exemplo utilizar grafismo para cálculo e construção de ângulos, contar mais histórias de autores indígenas para ampliar o repertório e imaginário infantil, utilizar obras de artistas indígenas como exemplos de arte contemporânea, falar da necessidade migratória de muitas etnias em geografia, mencionar os cruzamentos de espécies de plantas e sua importância para a segurança alimentar nas aulas de ciências, entre diversos outros aspectos. Mas o fundamental é perceber que esses assuntos devem ser inseridos durante todo o período letivo ao longo de todos os ciclos de ensino, para normalizar e ao mesmo tempo enfatizar a importância das culturas desses povos na construção da identidade coletiva e individual do brasileiro enquanto aprofunda e complexifica os conhecimentos das etnias indígenas e dos povos africanos. 28 Reitero a necessidade e importância de incluirmos esses conhecimentos em nosso cotidiano e de nossos estudantes, da mesma forma que continuo refletindo sobre como transformar esses processos em práticas prazerosas e potentes. Encontro na arte muitas formas de transformação, só desejo que elas aconteçam nas trocas e construções coletivas de saberes e prazeres. A partir disso o curso foi estruturado conforme modelo sugerido pela SME (Secretaria Municipal de Educação), são eles a Ementa; Conteúdos; Procedimentos metodológicos e por fim as Referências. Quadro 1 - Ementa do Minicurso elaborado para a Prefeitura de Suzano. Ementa Lei 11.645/08; Racismo estrutural; Educação decolonial; Literatura indígena; jogos e brincadeiras do povo Kalapalo e Guarani; o brincar na natureza; Grafismo indígena brasileiro e Arte indígena. Objetivos: Conhecer e experimentar brincadeiras e jogos dos povos indígenas brasileiros; conhecer e apreciar literatura indígena; Conhecer e apreciar arte indígena contemporânea; Experimentar espaços diversos e apreciar o entorno; Conhecer e experimentar relações que propiciem a coletividade e a escuta. Conteúdos Levantamento do senso comum sobre os povos indígenas; Imagens e curtas sobre o brincar nas aldeias; Apresentação de referências de Autores, artistas e músicos indígenas; Xondaro Guarani e outras danças indígenas. Procedimentos Metodológicos Aula expositiva, Roda de conversa, análise e discussão de experiencias. Referências GONZAGA, Alvaro de Azevedo (coord.); Decolonialismo Indígena. São Paulo: Matrioska Editora, 2021 MUNDURUKU, Daniel. O caráter educativo do movimento indígena brasileiro. São Paulo: Paulinas, 2012. FANELLI, Giovana de Cassia R. A Lei 11.645/08: A história de como a temática indígena passou a ser obrigatória nas escolas brasileiras. Curitiba: Appris editora, 2021. BARBOSA, Rogério Andrade; YAMÃ, Yaguarê. Doze brincadeiras indígenas e africanas. São Paulo: Melhoramentos, 2022. HERRERO, Marina; HULYSSES, Fernando. Jogos e brincadeiras na cultura Kalapalo. São Paulo: Sesc, 2010. Trecho do filme "Territórios do brincar". Trecho do curta "Um dia na aldeia Guarani Mbya". Site https://www.livrariamaraca.com.br/; 29 Conto "Yvy Mara'e'y" Em busca da terra sem males. Cronograma de encontros Abril e Maio/ 2022 Dia da semana Quinta-feira DAS 19h às 21h30 Data 28/04 Histórico da lei 11.645/08 e necessidade de sua promulgação, assim como dificuldades primárias em sua aplicação. Data 05/05 Convidado Prof. Budga Deroby Nhambiquara irá trazer alguns pontos sobre racismo estrutural e contar sua trajetória enquanto indígena e professor de escolas não indígenas. Data 12/05 Discutir e reconhecer estereótipos acerca dos povos indígenas, pensando alternativas de materiais de apoio pedagógicos para tratar a temática em sala de aula. Data 19/05 Conteúdo: Conhecer e discutir a diversidade étnica e estética dos povos indígenas pelo viés da Arte (Música, Visual, Danças e cinematográfica) e construir coletivamente aulas sobre a temática indígena. Fonte: Autora, 2021. Ainda segundo a SME o curso deveria ser oferecido na modalidade presencial, como forma de estimular os vínculos, retomar o hábito da presencialidade até como forma de garantir que os inscritos estivessem efetivamente participando do curso proposto. Além disso foram estipulados um máximo de trinta inscritos, contudo devido a pedidos a quantidade foi estendida para quarenta e cinco inscrições. Dessas somente quinze efetivamente frequentaram todos os encontros. Alguns não frequentaram devido a covid 19. A princípio o curso foi pensado somente para professores, independente da disciplina de atuação, porém sabendo que o racismo é estrutural no Brasil e que todas as pessoas são influenciadas pela estrutura, ou seja, têm seu imaginário coletivo construídos também a partir do racismo, oferecer o curso somente à professores, dificilmente ampliaria o estímulo a decolonização de fato, visto que todos os envolvidos no processo de formação de uma pessoa são afetados pelas crenças de um país. Portanto, funcionários de todos os setores da educação foram convidados a participar dos encontros, mesmo tendo apenas quinze que se dispuseram aos encontros, tivemos um grupo diverso, com merendeira, auxiliar de educação infantil, professores, coordenadores e diretores. 30 A seleção do conteúdo foi feita a partir de fontes seguras e pensadas para pessoas que tivessem pouca ou nenhuma informação sobre os povos indigenas, entendendo como seguro os conteúdos produzidos pelos próprios indígenas ou validados por eles. Escolher por exemplo, obras de Yacunã Tuxá teve a intencionalidade de tentar capturar essas pessoas para outras realidades contra hegemônicas, na medida em que estávamos fruindo arte digital feita por uma mulher, bissexual, indígena e universitária. Quantos paradigmas puderam ser postos à prova e talvez, finalmente, tenham sido ressignificados no imaginário daquelas pessoas, se de fato elas estivessem abertas a reconstrução, a descaravelização de suas vidas. Desta maneira, houve em cada escolha de imagem, vídeo, trechos de textos, a tentativa de encantar pessoas, de as integrar a discursos que dizem tanto sobre o processo de construção da sociedade brasileira, quer sejamos descendentes de indígenas ou não. Ao dizer que somos descendentes o faço refletindo sobre o fato de que para a maioria de nós, foi negado o direito de conhecer nossos ancestrais e ter a oportunidade de nos conectar a suas cosmologias. Somos então, desconectados de uma consciência ancestral, visto que o capital e o colonialismo usaram e usam muitos saberes ancestrais, porém sempre desprovidos de contexto. Podemos utilizar palavras em tupi, comer milho e mandioca, mas quantos de nós somos conscientes das ancestralidades indígenas e africanas? Nunca houve o direito a escolha, ao pertencimento. Assim, me coloco no lugar de reconhecimento e descendente de uma cultura invisibilizada, não para me utilizar dela, mas para, oferecendo formações continuadas para aqueles que formam outras pessoas, tentar proporcionar meios do antirracismo aprofundar suas raízes em nossa educação. À vista disso as redes sociais foram importantes fontes de pesquisa pois têm sido um meio rápido e de ampla divulgação das questões mais urgentes dos movimentos indígenas de todo país. Visto que os conhecimentos levantados pelas academias levam tempo para serem validados e mais ainda para serem divulgados, sem necessariamente chegar efetivamente na população. 31 Por isso o instagram foi a rede mais utilizada na pesquisa devido a quantidade de indígenas que utilizam a rede social na intenção de influenciar a população sobre suas pautas e desmistificar diversos estereótipos. A conta da APIB (Articulação dos Povos Indígenas do Brasil) foi uma das mais consultadas pois divulga frequentemente acontecimentos importantes sobre as pautas indígenas, além de compartilhar o conteúdo de influenciadores mais críticos como Tukumã Pataxó, Samela Sateré Mawe, Cristian Wariu, Alice Pataxó, dentre outros que focam em áreas mais especificas, como política, educação, ambientalismo ou artivismo. De um modo geral a academia realimenta grupos de pessoas que já estão interessados ou comprometidos com essas temáticas contra hegemônicas. Lógico que ela é importante, mas acaba funcionando mais para validar aquelas epistemologias que até então vieram sendo massacradas com os genocídios étnicos. Por fim foram priorizadas as pautas pelas quais os movimentos indígenas estão lutando atualmente, pois para muitas pessoas o mito da inexistência dos povos indígenas, ou que estão às vias do desaparecimento é real, e ressaltar o quanto esses apagamentos reais ou imaginários, na medida em que segundo censo do IBGE de 2022 as populações indígenas brasileiras somam um milhão e seiscentas mil pessoas, são violentos, foi o primeiro passo para iniciarmos os encontros. Foi preciso primeiro, reafirmar que eles existem. 32 4 PRIMEIRO ENCANTAMENTO 33 O primeiro encontro foi reservado para conhecer o grupo e compreender a importância da promulgação da lei 11645/08 e os caminhos que levaram a sua aprovação. Iniciamos com uma roda de conversa em que todos se apresentaram e comentaram brevemente os motivos que os levaram a participar do curso e quais expectativas tinham sobre os encontros. Em seguida todos foram orientados a escrever em um post-it uma palavra sobre o que a palavra “índio” os suscitava. Figura 1 - Roda de Conversa com os inscritos no curso/ encontro. Fonte: Foto por Xica Lima, 2021. Após refletir sobre o imaginário coletivo perpetuado em torno dos povos indígenas com as palavras trazidas pelos participantes como “selvagem”, “pessoas”, “nudez”, “canibais”, dentre outros, seguimos com a fruição de uma obra de Yacunã Tuxá. 34 Figura 2– Slide 1: Brasil terra indígena. Fonte: Autora, 2021. Depois de algum tempo observando a obra, conversamos sobre o título da mesma “Filhas da terra e suas resistências invisíveis I”, para pensar como era difícil pensar o indígena na contemporaneidade e como a maioria de nós desconhece as pautas e lutas dos movimentos indígenas e o quanto isso é conveniente à governança do Brasil, pois pouco sabemos sobre outras epistemologias, sobre as urgências ambientais e sobre a pluralidade étnica do país em que vivemos. Assistimos ao vídeo Ymá Nhandehetama, exposto durante a 30ª Bienal de Arte Contemporânea de São Paulo, na tentativa de tornar mais palpável a invisibilidade a qual os indígenas vêm sendo submetidos há séculos, de tal modo que invisível quase torna-se sinônimo de inexistência como o próprio tema da Bienal daquele ano sugeriu. (Como falar de coisas que não existem). 35 Figura 3 – Slide 2 sobre a invisibilidade indígena no Brasil Fonte: Autora, 2021. Historicamente há um hiato de informações sobre os povos indigenas brasileiros, em muitos casos só reaparecem quando o assunto é pensar a divisão do território brasileiro, mais propriamente a quem pertenceria essa terra tão estimada pelos invasores, como bem coloca Daniel Munduruku (2012). Ainda segundo Munduruku (2012) apesar do entendimento sobre a escravidão e territorialidades se alterarem de acordo com os contextos (Colônia, Império, República) as decisões sempre foram desfavoráveis aos indígenas. No séc. XIX houve a Construção, a pedido do Imperador Pedro II, da história do Brasil colonial, segundo moldes europeus, inserindo e cristalizando uma visão do “Índio” genérico, sem história e destinado ao desaparecimento, pois como reforçado por Álvaro Azevedo Gonzaga (2021) neste período só poderia ser considerado cidadão aquele que fosse “civilizado”, abandonando idioma, vestuário, cosmologia, ou seja, deixando de ser indígena. No séc. XX houve tentativas de proteger essas populações, mas mantendo a condição de tutelado como o SPI – Serviço de Proteção ao Índio, criado em 1910, seguido pela instituição do dia do Índio em 1940. Em 1967 o SPI foi substituído pela FUNAI – Fundação Nacional do Índio e as grandes revisões críticas da imagem dos povos indígenas, realizados por Antropólogos e emergência do Movimento Indígena (questionando a tese do desaparecimento) aconteceram por volta de 1970. 36 “A aceitação do estrangeiro costuma levar a problemas difíceis que têm sido discutidos no seio das próprias culturas de empréstimo.” (BURKE, 2003, p.80), por isso, segundo Nietta Lindenberg Monte (in SILVA, Aracy L.; FERREIRA, Mariana K. L., 2001.) as comunidades indígenas internacionais e nacionais que passaram a buscar alternativas de ensino acabaram por formar um movimento social por uma Educação Intercultural e Bilíngue com apoios variados, desde acadêmicos a outras entidades sociais, fazendo com que o Brasil também reconhecesse a necessidade de uma educação diferenciada. Tal reconhecimento começou a partir da década de 1980, quando esses países incluíram artigos a favor de uma modalidade especial de educação nas legislações e reconheceram o papel que deve ser cumprido pelas sociedades indígenas na reconstrução de uma identidade nacional: recursos linguísticos e culturais próprios são fonte de enriquecimento da identidade e precisam ser cultivados a partir do pluralismo democrático (MONTE, Nietta L. in SILVA, Aracy L.; FERREIRA, Mariana K. L., 2001, p.47). Nietta L. Monte, explica que a importância do reconhecimento da língua e cultura indígena eram reconhecidos desde a década de 1950, pela Unesco que ajudou na reorientação dos discursos que diziam respeito a educação indígena. Na década de 1960 as Nações Unidas discutiam seus direitos, todavia somente como os direitos individuais que foram reconhecidos segundo o art.27 da Convenção dos Direitos Civis e Políticos das Nações Unidas como sendo direito a própria vida cultural, religião e idioma, desta forma permaneceram sem autonomia para ditar quais seriam as melhores maneiras de manter seus costumes visto que ainda eram tidos como minoria internacional. Afinal já dizia Burke (2003, p.84) que “a educação pode ser e na verdade é usada para apoiar a resistência cultural [..] (cursos de história local [...])”, e apoiar a resistência dos povos indígenas no Brasil é apoiar um processo de descolonização da educação a partir de ações antirracistas e de conhecimentos da existência e particularidades das pautas destas, conforme informações contidas no site da Fundação Nacional dos povos Indígenas (FUNAI), a partir de 1991 o Instituto Brasileiro 37 de Geografia e Estatística (IBGE) incluiu os indígenas no censo demográfico nacional, que segundo dados colhidos em 2022 contam com 1.600.000 pessoas em todo o território e podem estar aldeadas ou nas cidades, mantendo as 305 etnias diferentes com 274 idiomas distintos contabilizados no censo anterior em 2010. Comentei com os participantes que os indígenas só passaram a ser de fato vistos como parte da sociedade com a constituição de 1988 e lemos os artigos 231 “São reconhecidos aos índios sua organização social, costumes, línguas, crenças e tradições, e os direitos originários sobre as terras que tradicionalmente ocupam, competindo a União demarcá-las, proteger e fazer respeitar todos os seus bens.” E o artigo 210, da mesma constituição que assegura as comunidades indígenas o uso de suas línguas e processos próprios de aprendizagem, assim como afirma que o Estado protegerá suas manifestações culturais segundo previsto no artigo 215. Com a constituição, alguns acontecimentos importantes para os movimentos indígenas do país acontecem, como lembrado por Fanelli (2021) como: • 1990 – Primeiro encontro dos Professores Indígenas de Rondônia. • 1991 – Declaração de Princípios dos Professores do Amazonas, Roraima e Acre, reeditada em 1194. • 1991- Transferência da responsabilidade pela gerência da educação para o MEC. • 1993 – Diretrizes para a Política Nacional de Educação Escolar Indígena. Desta forma, a partir de todas as providencias legais dadas, a educação escolar indígena continuou caminhado para colocar em prática tudo o que foi estabelecido pelo governo brasileiro, que em 1996, com a elaboração e aprovação da Lei de Diretrizes e Bases (lei 9.394) reafirma mais uma vez as providencias estabelecidas e garantidas aos povos indígenas em seu art.78 à “[...] programas integrados de ensino e pesquisa, para oferta de educação escolar bilíngue e intercultural [...]”, além de outras providencias contidas no artigo 79: Os programas a que se refere este artigo, incluídos no Planos Nacionais de Educação, terão os seguintes objetivos: • I – fortalecer as práticas sócio-culturais e a língua materna de cada comunidade indígena; 38 • II – manter programas de formação de pessoal especializado, destinado a educação escolar nas comunidades indígenas; • III – desenvolver currículos e programas específicos, neles incluindo os conteúdos culturais correspondentes às respectivas comunidades; • IV – elaborar e publicar sistematicamente material didático especifico e diferenciado. (LEI DE DIRETRIZES E BASES, 1996, art.79, caput 2.) Em uma lenta, mas progressiva mudança, em 1998 finalmente foi elaborado um Referencial Curricular Nacional para as escolas indígenas que incluiu a premissa dos direitos contidos na constituição e na LDB, ainda que não desse conta realmente das necessidades e particularidades de cada etnia. Após essa retomada histórica da conquista de alguns direitos cito a formulação de algumas hipóteses feitas por Fanelli (2021) para a lei 11.645/08 ter sido aprovada. Primeiro o importante papel do Movimento Indígena, assim como as várias mobilizações e Encontros de Professores Indígenas e lideranças de várias etnias. Segundo o momento propicio após a promulgação da lei 10639/03 conquistada com muita luta pelo movimento negro, que diferente dos povos indígenas desde a suposta abolição escravagista estava inserida na sociedade e sofreu inúmeras agressões e falta de condições mínimas de vida. Terceiro a agenda política aberta ao questionamento das desigualdades e diversidades do governo Lula e quarto o projeto de lei 433/03 da Deputada (PT) Mariângela Duarte. Apesar dessas hipóteses Fanelli (2021) aponta a necessidade de questionarmos por quem a lei foi feita e para quem, ou seja, a lei aprovada, realmente supriu as necessidades do movimento indígena? Será que uma lei voltada principalmente a educação formal de não indígenas os beneficiaria? Em seguida tentamos pensar nos impactos que uma lei de obrigatoriedade com ênfase nas disciplinas de História, Arte e Língua Portuguesa poderia ter. Juntos chegamos à conclusão de que a lei forçou a entrada da temática indígena nos livros didáticos ainda que somente em 2011 foi obrigatório a inclusão de conteúdos pertencentes as culturas afro-brasileira e indígenas no Programa Nacional do Livro Didático (PNLD). Talvez a inserção dos temas no PNLD impulsionou a publicação das literaturas indígenas e ampliou o aumento de autores indígenas de diversas etnias a conseguir publicar suas obras. Além disso a temática passou a ser incluída na formação de 39 professores para as escolas públicas e privadas no país, a partir da inserção das temáticas nas ementas das universidades, a criação de cursos de especializações voltados ao tema como é o caso da Casa Tombada na cidade de São Paulo e os cursos de formação continuada oferecidos por universidades e Prefeituras aos professores. Por fim a ampliação da produção de dissertações e teses sobre os mais variados aspectos das 305 etnias reconhecidas pelo censo do IBGE. Fanelli (2021) fez um importante levantamento que responde ou da indícios que responde por quem a lei foi feita e para quem, quando aborda as Pl’s não aprovadas que estavam tramitanto sobre as culturas indígenas na educação. A PL 5.361-A/ 05 do Deputado Eduardo Valverde foi arquivada e se tratava de uma versão que previa a obrigatoriedade dos conhecimentos de Filosofia, Sociologia e Antropologia das populações indígenas no ensino médio, ou seja, deveriam abordar as epistemologias ancestrais, logo complexificar os conhecimentos sobre as etnias. Já a PL 2.231/07 do Deputado Henrique Afonso terminou retirada pelo proponente e se tratava de uma versão mais enxuta da Pl anterior e por fim a Pl 31/08 do Senador Cristovam Buarque, rejeitado definitivamente em 2013 com a proposta do tema ser facultativo. O modo como a lei se apresentou e as dificuldades ainda persistentes na sua realização só reforçam a perspectiva de Cusicanqui (2022) dos processos de transfiguração da colonização. Visto que com a lei a sociedade brasileira deveria entrar em contato com informações sobre as etnias indígenas, contudo neste caso isso pode ocorrer ainda de maneira estereotipada, sem profundidade, descontextualizada, servindo pouco as pautas indígenas de fato. Ainda que devido ao movimento indígena estar constantemente lutando para aumentar a brecha criada pela lei 11.645/08 para a demarcação de espaços na política, na literatura, na moda, na arte, há esperança. 40 Figura 4 – Slide 10 para acostumar o olhar: Obra de Yacunã Tuxá. Fonte: Autora, 2021. Segundo o xeramoí Xapeí “a arte para o Guarani é dançar o xondaro, fumar o pentenguá, fazer o artesanato, é o modo de viver cotidiano da aldeia.”, ou ainda como diz Jekupé “arte tem de estar envolvida com a liberdade do dia-a-dia, porque se não tem liberdade não consegue fazer arte.”. (Xeramoí Xapeí in RIBEIRO, 2014). Continuamos com a apreciação da obra acima da artista Yacunã Tuxa e a leitura do trecho de uma entrevista realizada para o trabalho de conclusão de curso de minha Licenciatura em Artes Visuais. Com esta fruição dialogamos mais um pouco sobre como essa não é a imagem que se ver de pessoas indígenas e a necessidade justamente de nos acostumarmos a ela. Seguimos abordando a morosidade da conquista de direitos que seriam óbvios como o direito ao nome de origem indígena, lei aprovada no Brasil em 2019, pois até então os indígenas poderiam ter apenas nomes “brasileiros” em seu registro geral. Portando é muito comum ir a uma aldeia e pedir para falar com Werá, por exemplo, e alguém questionar a qual Werá, se João ou Miguel. 41 A orfandade étnica de muitos descendentes de indígenas no Brasil se deve justamente a dificuldade de mapear nossas origens, como saber a qual etnia pertenceu uma avó ou bisavó já falecida que teve seu nome negado e passou a ser chamada Maria, Ana, etc, nomes que nada dizem sobre suas culturas e cosmologias. Figura 5 – Slide 18 sobre direitos básicos. Fonte: Autora, 2021. Falamos sobre como essa era uma conquista tardia e quanta dor e apagamento estavam por trás de algo para muitos simples, como o direito ao nome. Continuamos refletindo sobre as violências e falamos sobre a perversidade que estava ocorrendo com os Yanomami na mesma época em que estavam ocorrendo nossos encontros. A maioria ficou revoltada com a falta de ações governamentais para cessar o horror e prestar socorro às vítimas até então totalmente desamparadas. Além disso a maioria afirmou que desconhecia o que estava ocorrendo e ficaram surpresos em saber que situações como essas são recorrentes ao longo dos séculos e o fato do imaginário coletivo conceber indígenas como selvagens corroborava para que continue a acontecer. 42 Figura 6 – Slide 19 conhecer as violências, genocídio e epistemicídio Fonte: Autora, 2021. Apesar dessas violências que parecem não cessar, afinal a branquitude pretende manter seus privilégios, não importa o custo. Há tentativas de contracolonizantes em que as verdades estabelecidas e a maneira como vemos as coisas são subvertidas. Disse a todos que um exemplo disso era um mapa que a artista Marcia Tiburi publicou em 2020 na sua conta do Instagram em que Pedro Aguiar rotacionou o mapa da américa do sul e o intitulou Pindorama. Assim como eu na primeira vez que me deparei com a imagem, as pessoas pareceram surpresas e/ou confusas, pois o fato de sermos o Sul sempre pareceu algo natural e imutável. Perceber de modo “simples” como a concepção do que está no Norte ou Sul é uma relação de poder pré-estabelecida pode ser surpreendente e diz muito sobre como outras epistemologias foram massacradas. Além disso as linhas que dividem os estados também foram suprimidas e pudemos nos questionar sobre a necessidade de sua existência, como seria se de fato não existissem? Fruir esta imagem possibilitou que nós percebêssemos como os saberes coloniais estavam arraigados e sobrepostos a quaisquer outros. 43 Figura 7 - Slide 22 sobre tentativas de contracolonialidade Fonte: Autora, 2021. Concluímos este encontro com mais uma obra de Yacunã Tuxa, na qual dialogamos sobre a necessidade de representatividade política para os povos indígenas, pois somente um indígena poderia de fato incluir pautas necessárias ás diversas etnias e o quanto várias etnias, cada uma em seus território está tentando colocar representantes indígenas em suas regiões. Figura 8 - Slide 24, busca por representatividade com a obra de Yacunã Tuxá Fonte: Autora, 2021. 44 5 SEGUNDO ENCANTAMENTO 45 No segundo encantamento todos foram recebidos, orientados a sentar em roda e foi apresentado o convidado Professor Budga Deroby Nhambiquara, professor de arte da Rede Estadual de São Paulo e do Município de Guarulhos, que conduziu o encontro apresentando sua ótica enquanto indígena que atua em escolas não indígenas. Figura 9 – Segundo dia de encontros com o Prof. Budga Deroby Fonte: Autora, 2021. Após sua apresentação o professor Deroby, como prefere ser chamado, pediu que todos fruíssem com atenção a música “Essa terra é minha”, escrita e interpretada por Narubia Werreria, cantora e ativista da etnia Karajá, pois ela aborda questões sobre a invasão de terras indígenas, o entendimento sobre corpo político e como os indígenas inevitavelmente ocupam esse lugar, além de evidenciar e denunciar as violências coloniais enfrentadas até hoje com o argumento do desenvolvimento e civilidade. Para reforçar o quão violento nosso país é com pessoas indígenas ele pergunta como é o “índio” que eles esperavam ver ali e como foi ter se deparado com ele, um homem que é percebido em sociedade, à primeira vista, mais comumente como homem negro do que indígena e o quanto isso por si só é violento. Pois ainda que existam características fenotípicas indígenas, a diversidade de etnias já sugere uma diversidade de fenótipos, pouco discutida no Brasil, sem considerar séculos de miscigenação que 46 com brancos e negros, de forma que dizer quem é indígena hoje, baseado apenas na aparência denotaria a total falta de conhecimento sobre os temas étnico raciais do Brasil. A partir disso explicou como adereços como o cocar passaram a ser utilizados por muitas etnias como meio de afirmar sua origem indígena, sem que necessariamente a etnia faça uso originalmente daquele adereço. Pois os estereótipos sobre os indígenas são tão generalizantes que dificilmente, um não indígena reconheceria uma pessoa como indígena, caso ela utilize apenas os acessórios típicos de sua etnia, como o laço de palha colocado no pescoço, usado pelos Xavante ou um acessório trançado, que se assemelha a noção não indígena de chapéu, utilizado pelos Xucuru ou a tiara estreita trançada, muito comum entre os Guarani Nhandeva. Figura 10 – Slide 1 apresentado pelo professor Deroby Fonte: Elaborado por Budga Deroby Nhambiquara, 2021. Após dialogarem sobre as impressões deixadas pela forte interpretação de Narubia, o professor segue explicando como as violências podem e atravessam a vida de pessoas indígenas no Brasil, sob várias perspectivas, principalmente no âmbito profissional, onde constantemente é necessário provar sua capacidade em realizar tarefas com primor e criticidade, pois quando estas são atestadas, a origem da pessoa 47 passa a ser questionada. Logo capacidade, inteligência, boa oralidade são difíceis de ser aceitas como qualidades encontradas em pessoas indígenas e isso precisa ser ressignificado com urgência. Neste sentido o Professor Deroby afirma que novos imaginários sobre os povos indígenas precisam ser criados, a partir de contextos contemporâneos e pautados nas falas dos próprios indígenas. Deste modo utiliza muito o grafismo como ponto de partida ou durante o processo de ensino aprendizagem nas escolas, pois é um modo que aproxima estudantes de várias faixas etárias com o conhecimento ancestral dos povos indígenas. Figura 11 – Slide 3 do professor Deroby: eles não são eles, somos eu e você Fonte: Elaborado por Budga Deroby Nhambiquara, 2021. O slide acima, ilustra parte dos trabalhos realizados pelo professor durante seu percurso profissional. Neste caso, ele orienta que os estudantes pesquisem diferentes tipos de grafismos indígenas brasileiros, a partir do site PIB – Povos indígenas do Brasil que nomeia as 305 etnias brasileiras reconhecidas pelo censo do IBGE de 2022, com apoio do Instagram, pois é uma rede social utilizada por muitos indígenas atualmente, o que facilita a pesquisa de algumas informações como é o caso do grafismo. 48 Contudo com algumas ressalvas, pois como explicado pelo professor é comum que os indígenas compartilhem seus grafismos com outras etnias em momentos de festas ou encontros como o ATL- Acampamento Terra Livre que ocorre anualmente em Brasília para lembrar os governantes das pautas e urgências relacionadas aos povos de todo país. Logo é preciso uma pesquisa atenta e em vários meios, para confirmar a qual povo pertence o grafismo e em que situações e significados estão atrelados a ele. Dito isso na sociedade é comum encontrarmos grafismos em estampas de roupas, tapetes, cortinas e vários objetos distanciados de seu contexto e significados originários. Para além de pesquisas e experimentações nas mais diversas linguagens artísticas, sempre que possível, orienta o professor, pensar formas de aproximar os corpos das realidades vividas nas aldeias é importante e para muitos um divisor de águas na desconstrução de preconceitos e atualização do imaginário coletivo. Abaixo observamos um slide apresentado no encontro para ilustrar um projeto realizado pelo professor nos anos de 2015 a 2020 em sua escola sede na rede estadual de ensino, no município de Poá - SP, denominado Socializando com Arte’S que incentivou trocas culturais e auxílio humanitário. Durante o projeto que acontecia durante todo o ano letivo, os estudantes escolhiam um local para realizar arrecadação de alimentos não perecíveis, enquanto pesquisavam sobre o lugar e desenvolviam uma peça teatral para apresentar no local escolhido. Durante os 5 anos em que o projeto aconteceu os estudantes optaram por conhecer uma aldeia. Devido a facilidade geográfica e de contato com as lideranças, a escola visitou a aldeia Rio Silveira, localizada na divisa dos municípios de Bertioga e São Sebastião. 49 Figura 12 – Slide 6 do professor Deroby: Socializando com Arte’S Fonte: Elaborado por Budga Deroby Nhambiquara, 2021. Nestas visitas havia uma programação montada pela aldeia para recepcionar as crianças e adolescentes que iam desde a uma roda de conversa com o cacique a uma trilha para conhecer e experimentar um banho de cachoeira. Visando aproximar as pessoas normalmente a escola organizava um café coletivo na escola da aldeia, de modo que as pessoas tivessem um espaço mais livre para conversar e trocar. Apesar da potência do projeto, anualmente ele enfrentava entraves a sua realização, como a falta de apoio da gestão e demais colegas professores. Muito provavelmente pelo racismo e necessidade do agressor não querer compreender seu papel neste lugar e ao invés de mudar, preferir se vitimizar. O antirracismo é muito difícil de ser colocado em prática nas escolas, principalmente pelo pacto da branquitude em manter seus privilégios na sociedade e aceitar que ela é agressora e a principal mantenedora do racismo. Para finalizar o professor levou a imagem abaixo para que ficasse mais concreta a variedade de grafismos existentes. Como mencionou essa é uma pequena amostra de grafismos encontradas em algumas das etnias localizadas na região norte do país. 50 Figura 13 – Slide 10 do professor Deroby: Grafismos Tapajônicos Fonte: Página do Facebook da UNI – União Nacional dos Povos Indígenas. Ele explicou como os grafismos em sua maioria retratam a observação atenta da natureza, seja fauna, flora ou constelações e atreladas a essas observações cada etnia pode valorizar um ou mais características do que foi observado. Da mesma forma os pigmentos também vem da natureza e as cores mais frequentemente utilizadas são o vermelho, extraído do urucum; o preto, extraído do jenipapo verde; o amarelo, extraído do açafrão e o branco a partir da argila branca. Neste sentido as cores são mais ou menos encontradas de acordo com a localização geográfica das etnias, por exemplo os Guaranis que usam muito o urucum, árvore comum na mata atlântica, região onde estão a maior parte de suas aldeias. Ele indicou acompanhar páginas como a Apib – Articulação dos povos indígenas do Brasil que é uma associação de entidades que representam os povos indígenas brasileiros, rádio Yandê e outros indígenas nas redes sociais para aprender mais sobre os grafismos, além de dissertações e teses realizadas pelos próprios indígenas que utilizaram o grafismo como objeto de estudo, a fim de ampliar o conhecimento próprio e utilizar de maneira consciente, respeitosa e contextualizada em sala de aula, nos mais diversos componentes curriculares. 51 6 TERCEIRO ENCANTAMENTO 52 Durante o terceiro encantamento dialogamos principalmente sobre os estereótipos e preconceitos que assolam as etnias indígenas e de que forma a mídia se tornou a maior fonte de propagação e importante mantenedora dos estereótipos e informações racistas sobre esses povos. Informações deturpadas estão em todos os lugares e consumidas de inúmeras formas, desde estampas “tribais” no vestuário, de origem frequentemente desconhecida, até livros, HQs, séries, novelas e atividades escolares prontas para impressão. É preciso ter cuidado e principalmente conhecimento para evitar ser mais um “braço” do racismo estrutural. Neste sentido perceber quais são os “equívocos” veiculados possibilita evitar usar esse conteúdo de maneira acrítica ou inconsciente. Figura 14 – Slide 3 e 4:estereótipos midiáticos para o público infantil Fonte: Autora, 2021. Nas imagens acima observamos vídeos muito consumidos na educação infantil e início do fundamental I, porém que carregam na letra das músicas palavras que foram substituídas como índios por indígenas e imagens que reforçam o estereótipo como o indígena de tanga, com cabelo liso, preto e cortado em cuia, além da sonorização que atrela essas pessoas a animais, como sendo selvagens e incivilizados. Já as imagens abaixo, ilustram bem as atividades ainda usadas nas escolas no atual Dia dos Povos Indígenas e como eram representados os indígenas nos gibis lidos durante a infância de boa parte dos brasileiros. 53 Figura 15 – slide 9 e12: estereótipos de atividades escolares e HQ para o público infantil Fonte: Autora, 2021. Um dos argumentos utilizados por aqueles contrários a se atualizar, além de afirmar ser “frescura” é justamente dizer que aprenderam assim desde a infância e não faria sentido mudar agora. Contudo reconhecer que a educação é falha e da forma como acontece vem justamente dos colonizadores é dar espaço para o reconhecimento de toda tecnologia ancestral, africana ou indígena, roubada e descontextualizada que só serve para manter os privilégios da branquitude, que segue tentando convencer que somente eles têm conhecimento e graças a eles o país se desenvolveu. Graças aos movimentos indígenas e negros, atualmente algumas coisas tiveram de ser reformuladas, como foi o caso do personagem Papa capim, ainda que seu nome seja também problemático e há mais representatividade como heróis e personagens indígenas e negros em histórias em quadrinhos, novelas, filmes, seriados etc. Figura 16 – Slides 13 3 15: possíveis revisões de estereótipos e representatividade Fonte: Autora, 2021. 54 Lógico que é apenas o início e a branquitude permanece maioria e em posições socioeconômicas melhores, mas é um indício que é preciso continuar o processo de reflorestamento de mentes. Há muito o que avançar nesses debates, principalmente quando o assunto é representatividade, visto que para além de ser negro ou indígena, as pessoas que conquistam visibilidade nacional, precisam ser aquelas que de fato falem contra o racismo, contra as opressões e a favor da ampliação de negros e indígenas em todos os espaços e que briguem pela liberdade e reconhecimento e valorização da ancestralidade. Abaixo vemos o slide com uma personagem muito conhecida como a Cinderela, representada por uma mulher negra. Esta imagem e algumas outras, fomentaram a discussão por representatividade e juntos pudemos perceber o quanto os movimentos negros conseguiram caminhar, mesmo que este caminho por equidade ainda seja longo. Pedi então que todos pensassem em nomes de celebridades ou personalidades indígenas importantes que já ouviram falar. Das 15 pessoas presentes, apenas 3 citaram nomes como Ailton Krenak, Sônia Guajajara e um professor de arte citou também Jaider Esbell. O debate seguiu refletindo sobre a importância da representatividade e o quanto a falta dela, denuncia o racismo em torno dos povos indigenas e o quão forte é o pacto da branquitude, pela supremacia branca. 55 Figura 17 – Slide 17: Representatividade Fonte: Autora, 2021. Após dialogarmos sobre isso, fiz uma provocação e convidei os participantes a desenhar ou escrever como seriam personagens ou personalidades indígenas, orientei que não se preocupassem com qualidade técnica e sim com as características que pudessem identificar os personagens ou personalidades como indígenas. Alguns me pediram para realizar a proposta em duplas e abaixo seguem os resultados obtidos. Figura 18 – Montagem com desenhos com mesmo tema Fonte: Autora, 2023. 56 Figura 19 – Montagem com desenhos de personagens das animações da Disney Fonte: Autora, 2023. 57 Figura 20 – Descrição de personagem feita por 3 pessoas Fonte: Autora, 2023. Figura 21 – Desenhos de possíveis heróis indígenas Fonte: Autora, 2023. 58 Depois que todos finalizaram suas produções, as colocamos para exposição e todos puderam observar o que os colegas realizaram. Voltamos a nos sentar e com cuidado, questionei o porquê tantas sereias apareceram, para refletirmos o papel fundamental que a mídia exerce no imaginário coletivo, além das escolas que costumam abordar a “lenda” da Iara, normalmente em agosto, como folclore local. Aproveitei para abordar a noção de encantado, utilizada em muitas etnias, onde o que os não indígenas dizem ser folclore, são crenças da cosmologia de muitas etnias brasileiras. Seguimos a reflexão sobre como a Disney, empresa de animação norte americana, foi e é responsável sobre as imagens que possuímos sobre muitas coisas, inclusive sobre os povos indígenas, que foram muito retratados como tendo apenas uma aparência, selvagens contrários ao desenvolvimento e a civilidade, noções eurocêntricas e norte-americanos de civilidade. Os desenhos na imagem 17 ilustram como o grafismo desempenha um importante papel no entendimento de pertencimento étnico, pois alguns participantes expressaram com suas produções que não é preciso mudar a aparência do personagem, mas alguns elementos bastariam para os identificar enquanto indígenas. A imagem 18 porém reforça o quanto questionar e refletir com criticidade sobre tudo o que consumimos é importante, pois por mais que eles tentaram repaginar uma personagem famosa como a Elsa da animação Frozen elas caíram na representação norte americana sobre os indígenas, ou seja, a personagem Pocahontas, que nada diz sobre as etnias brasileiras. Nisto refletimos que precisamos minimamente conhecer sobre a diversidade e algumas características de etnias brasileiras. Nada impede que trabalhemos em sala de aula ou no ambiente escolar etnias de outros países, porém conhecer algumas etnias brasileiras ajuda a aproximar as crianças, jovens e adultos. Já os desenhos da imagem 19 ilustram que ambos tinham mais conhecimento sobre os povos indígenas e isso impactou positivamente suas produções, apesar de ambos terem escolhido pensar em pessoas indígenas enquanto heróis, o primeiro ainda nomeou o herói como um capitão e optou por usar em sua vestimenta um saiote de folhas, que não necessariamente é ruim, mas pode reforçar um pouco a ideia colonial 59 de atraso, por não considerar por exemplo técnicas ancestrais de tecelagem ou trançado de variados tipos de palha. O segundo partiu da conversa anterior que tivemos sobre a importante relação que os indígenas têm com a natureza e pensou um herói a partir do animal tamanduá, além disso seu nome vem do nome do animal, além dele estar usando calças, vestimenta contemporânea, assim como os povos de hoje, e por cima adereços que poderiam ser da etnia. O único ponto é que não surgiram heroínas, contudo foram diálogos riquíssimos em que pude refletir muito e aprender junto deles e delas. Nos slides subsequentes observamos a imagem de Eunice Baía, que interpretou a personagem Tainá e nos perguntamos que outros filmes de sucesso nacional ela teve oportunidade de atuar. Em seguida vimos um fanzine com algumas histórias produzidas por autoras indígenas, para reforçar a qualidade técnica e de roteiro. Figura 22 – Slide 21 e 22 Fonte: Autora, 2021. Ainda que um dos propósitos do (em)curso tenha sido a reformulação das imagens que os participantes tinham sobre os povos indígenas, optei por retomar imagens que historicamente retrataram erroneamente os indígenas, pois todos que estávamos ali dispostos, são educadores e compreender as armadilhas, também é um passo para as evitar. Portanto retomei, por ordem cronológica, imagens de novelas brasileiras que retrataram as culturas indígenas em nosso país. E o quanto faria diferença consultar os povos que se estavam representando, assim como contratar atores e atrizes entre eles, 60 teria sido infinitamente melhor e firmaria um compromisso da mídia com a cultura e educação antirracista, ainda que não fosse decolonial ou contracolonial. Figura 23 – Slides 24 e 28: novelas brasileiras com personagens indígenas Fonte: Autora, 2021. Para encerrar nosso terceiro encontro desse (em)curso que ressoou, falamos de fontes seguras, logo, onde buscar referencias para ampliar os conhecimentos. Falei dos mais óbvios como o site da FUNAI, site do PIB Socioambiental – Povos indígenas do Brasil, este último desconhecido por todos os presentes, por isso entramos no site naquele momento e visualizamos alguns recursos que havia nele. Como podemos observar, abaixo citei o Vídeo nas aldeias, importante projeto que oportunizou que os indígenas respeitassem suas tradições orais no registro de seus saberes em vídeo, com técnicas áudio visuais que oportunizaram o fortalecimento de aldeias e comunidades multiétnicas. Além disso, como o município de Suzano, atende principalmente bebês e crianças entramos no Projeto território do Brincar, que retratou algumas crianças indígenas brincando e refletimos como traçar paralelos com as brincadeiras espontâneas das crianças nas escolas era mais fácil do que se supunha. 61 Figura 24 – Slides 33 e 34: Fontes seguras Fonte: Autora, 2021. Citei novamente algumas páginas de redes sociais como o Instagram da Apib, Mídia Índia, Arpin Sudeste, Anmiga, Coiab entre outras para oferecer mais fontes de pesquisa de acordo com o interesse de cada um. Antes de encerrar expliquei previamente o que faríamos em nosso último encontro e diante disso duas pessoas pediram para retomar o assunto dos grafismos iniciado no segundo encontro com o Professor Deroby. Conversamos e chegamos a um consenso, onde retomaríamos esse assunto com experimentações práticas, porém não haveria tempo de elaborar as propostas para sala de aula, porém todos afirmaram que com tudo o que haviam visto até ali já seria possível planejar aulas com a temática indígena de maneira individualizada. Finalizamos fruindo mais uma obra de Yacunã Tuxã, na esperança de ao viver a diversidade, com ideias em processo de reflorestamento ser sementes de resistência. 62 Figura 25 - Slide 36 Fonte: Autora, 2021. 63 7 QUARTO ENCANTAMENTO 64 [...] Voltando para o assunto maior, a arte indígena contemporânea, posso dizer que é um termo a mais no mundo dos termos. Mas, quando é trabalhado desse lado de cá, o eu sujeito, artista, indígena e autor, passa a ter legitimidade inquestionável. É armadilha para pegar armadilhas por diversas razões, sobretudo para o campo da autocrítica, autoanálise e autodesenvolvimento. [...] Da prática artística como composto de atos mais elevados. Como conjunto ritualístico mais que mítico chegando a pajelagem. Como prática xamânica, curativa e psicomedicinal. Como um conector para fatos históricos e como um disparador de sinapses para mundos que existem, mas não são como os que a gente tem acesso. Um artista não se desenvolve com imposições. As imposições violentas podem ser muito perigosas para as mentes sensíveis de artistas. Por fim não vou deixar de lembrar que em tudo há armadilhas e que nós, os indígenas, precisamos de uma armadilha para identificar armadilhas e quem sabe esta não seja exatamente a AIC – Arte Indígena Contemporânea, feita e contextualizada por seus autores próprios. (ESBELL, 2020). No último encontro iniciamos com a costumeira roda e o trecho acima de um texto escrito por Jaider Esbell, como uma provocação e um chamado a continuidade de nossa descaravelização e movimento de reflorestamento coletivo. Aparentemente a maioria das pessoas tiveram dificuldades em traçar aproximações, com exceção de quatro professores de arte que foram o que mais se posicionaram, mas ficaram refletindo justamento qual o tipo de arte seria uma arte contemporânea indígena. Questionei então o que esperavam ver quando alguém dizia haver uma exposição de artistas indígenas, a essa pergunta me responderam esperar encontrar artesanatos, como cestos, peças em cerâmica, objetos feitos com sementes, enfim como se a arte de pessoas indígenas se resumisse ao artesanato. Partindo deste ponto expliquei que primeiro era preciso compreendermos que a noção de arte para os indígenas é diferente dos não indígenas como pode ser percebido durante uma entrevista que fiz com o autor Olivio Jekupé, transcrito no meu trabalho de conclusão da Graduação, onde Olivio afirma: [...]A casa de reza, é a verdadeira escola, o que vem depois, é complemento. Alí o xeramoí, ensina histórias, dali sai toda a cultura. Então tudo isso faz parte da arte pra nós (realiza um gesto como se quisesse englobar toda a aldeia), porque a criança tem que aprender a sua cultura, se você aprende sua cultura, isso é arte, mas para você aprender você tem que estar na sua liberdade, na sua forma de viver. (RIBEIRO, 2014, pg.46). Segui dialogando que para muitos povos indígenas a palavra arte não tem tradução, como é o caso do Guarani e o ato de viver em si é artístico, cada gesto, 65 processo, objeto realizado pode ser entendido como arte. Porém a arte produzida por indígenas hoje, também pode ser uma armadilha para o não indígena desavisado, colonizado que se depara com uma arte que ele não esperava, uma que apresenta diferentes cosmovisões, que agrega diferentes elementos visuais, que pensa pautas sociais, ambientais, que traz na essência a conexão com tudo aquilo que existe, mesmo que para não indígenas possa ser inexistente. Em seguida iniciei apresentando indígenas brasileiros que estão inseridos nos circuitos de arte atuais, alguns mais conhecidos do que outros, porém todos produzem objetos/ações que estão sendo reconhecidos por museus, galerias etc. Jaider foi o primeiro que apresentei junto a sua obra “Armadilhas psicodélicas” e deixei que a observassem por alguns minutos, para que de fato a vissem. Figura 26 – Slide 3 e 4: Jaider Esbell e obra " Armadilhas Psicodélicas" Fonte: Autora, 2021. Algumas pessoas citaram Salvador Dalí, tentando realizar uma aproximação com algo já conhecido, mas expressaram seu encantamento pela obra de Jaider, muito colorida, com figuras de animais conhecidos e um fundo “estrelado”. Se impressionaram com a qualidade técnica vista na produção de Jaider, da mesma forma, mais uma vez se encantaram com a obra de Daiara Tukano e como o grafismo havia sido incorporado nela. 66 Figura 27 – Slide 5 e 6: Daiara Tukano e vista da série Dabucuri no céu Fonte: Autora, 2021. As cores mais uma vez foi uma surpresa e o entendimento da Arara como algo sagrado, levantou uma curiosidade sobre o uso da ayahuasca. Ao que respondi que de fato tando Jaider quanto Daiara, pertencem a etnias em que o uso da ayahuasca faz parte da cultura das etnias TuKano e Macuxi, contudo não é o caso de todas as etnias como o imaginário coletivo perpetua. Continuamos com Arisana Pataxó e a partir da observação deste trabalho, refletimos sobre mais um equívoco, o uso da tecnologia pelos indígenas que deveria a muito ser normalizado ainda é tabu na cabeça de muitos não indígenas. Da mesma forma conseguimos refletir sobre a concepção de zoologização de indígenas, que constantemente são invadidos pelos cliques não permitidos das câmeras fotográficas, tendo suas imagens invadidas. Apresentei mais alguns artistas mais presentes nas artes visuais e fomos conhecer outros representantes das demais linguagens artísticas. Figura 28 – Slide 12 e 13: Arissana Pataxó e obra "Indígenas em foco" Fonte: Autora, 2021. 67 Quando se pensa em música, a maioria de nós logo lembra das composições que gostamos de ouvir e de novo questionei o que esperar da música feita por indígenas. De novo pensaram em rituais, danças circulares, chocalhos, vestimentas de palha ou nenhuma. Qual foi a surpresa quando pudemos fruir alguns cantores solo, bandas atuais de diferentes gêneros musicais. Iniciamos com a apreciação de Djuena Tikuna, com uma composição de sua autoria, porém com uma melodia já esperada com o que conhecemos como tradicional, porém ao conhecer a banda de rock Arandu Arakuaa todos ficaram muito impressionados, principalmente com a mistura de instrumentos como a guitarra e o m’baraka (chocalho feito com cabaça). Figura 29 – Slide 16 e 17 Fonte: Autora, 2021. Outros gêneros como sertanejo, hip hop e rap também foram fruídos e adiante conhecemos alguns autores indígenas de variados gêneros literários. Na intenção de facilitar uma possível busca futura indiquei o site da livraria Maracá que reúne muitos escritores indígenas e facilita encontrar títulos diversos. 68 Figura 30 – Slide 22 e 23 Fonte: Autora, 2021. Ao visualizar alguns escritores reforcei o quanto a lei 11645 de 2008 foi importante para muitas áreas, especialmente para a literatura, pois como lembrado por Fanelli (2021), com a promulgação da lei foi preciso criar e ampliar a oferta de material que desse conta de suprir a demanda de divulgação dos conhecimentos necessários para dar conta da lei. Para isso, ainda que muitos não indígenas produzam materiais sobre os povos indígenas, eles passaram a ser mais consultados e ter mais espaços em palestras, seminários e publicações de materiais realizados por representantes de várias etnias. Lógico que nada disso foi dado, os espaços vêm sendo conquistados e ampliados a cada ano. Para pensar em conquistas e abertura de espaços a moda foi um tema pertinente e para muitos dos presentes inusitado, pois a ideia do indígena nu é tão reforçada que muitos questionam qual a contribuição que etnias indígenas poderiam ter para a moda. Primeiro falamos um pouco sobre Dayana Molina, uma das pessoas mais proeminentes na moda e no modo como apresenta conceitos das culturas indígenas na vestimenta. Molina utiliza em suas criações noções de sua cosmovisão e a conexão ancestral como fonte criadora, constantemente visita aldeias e realiza imersões para olhar atentamente a captar aspectos que nortearão suas coleções, aspectos que passam desde o conforto até a cores e materiais para a produção sustentável da coleção criada. 69 Além dela, atualmente há vários indígenas como Patrícia Kamaiurá, Weena Tikuna, Rodrigo Tremembé e grupos como o Ateliê Derequine, Grafismo Indígena, Sioduhi e outros que estão conseguindo se inserir e divulgar suas excelentes criações técnicas e estéticas. Figura 31 – Slide 41 e 49 Fonte: Autora, 2021. Além dos produtores de moda, aproveitei para mostrar alguns indígenas que são os rostos e corpos da moda, como o Modelo Noah Alef, nascido em Jequié – BA, que atua em passarelas internacionais. Conhecer essas pessoas ajuda no reflorestamento do imaginário e reforça a ideia de que lugar de indígena é onde ele sentir vontade de estar, além de perceber o quão pouco conhecemos dessas pessoas que estão em diversos espaços, mas que não tem a mesma visibilidade que pessoas brancas devido ao pacto da branquitude que mantém os privilégios de pessoas brancas, como bem colocado por Cida Bento (2022), onde ”[...] Esse pacto da branquitude possuí um componente narcísico, de autopreservação como se o ‘diferente’ ameaçasse o ‘normal’, o ‘universal’.[...]” e implicitamente isso gera medo e uma vontade de preservação pautada na supressão de direitos, logo violenta. Os influenciadores digitais são pessoas que atualmente tem tido contribuições significativas no reflorestamento do imaginário, portanto apresentei alguns para que todos conhecessem. 70 Figura 32 – Slides 51 e 52 Fonte: Autora, 2021. É claro que nem todos os influenciadores trazem pautas reflexivas, alguns trazem conteúdos mais voltados somente ao entretenimento ou “curiosidades” sobre a vida em aldeias, contudo tem aqueles que produzem conteúdos que propõem reflexões e trazem as pautas do movimento indígena para a população geral de modo objetivo e muitas vezes criativo. Apresentei Tukumã Pataxó, Katu Mirim e alguns outros que tem visibilidade no Instagram e costumam produzir conteúdos que vão de encontro as pautas do movimento indígena. Tukumã Pataxó e Samela Sateré Mawé são pessoas por exemplo, atuantes em várias reuniões e eventos do movimento como o ATL – acampamento terra livre, Coiab – Coordenação das organizações indígenas da Amazonia brasileira e atualmente são comunicadores da Apib – Articulação dos Povos indígenas do Brasil, além de outras organizações reconhecidas pelos povos indígenas brasileiros. Caminhando o encontro para sua finalização montei uma mesa no centro do espaço com a maior parte dos materiais que possuo sobre os povos indígenas como livros, revistas, artesanatos e reproduções digitais da artista Auá Mendes para que pudessem ser manuseados livremente por todos. 71 Figura 33 – Observação dos materiais Fonte: Foto por Marilene O