Mecenato no Brasil democrático 1 Mecenato en el Brasil democrático Patronage in democratic Brazil Anita Simis 2 Rodrigo Correia do Amaral 3 RESUMO: Este trabalho analisa a dinâmica da política cultural brasileira entre 1995 e 2010. Estudos relacionados ao tema defendem a existência de um “contraste” entre os resultados obtidos pelos governos de Fernando Henrique Cardoso (1995-2002) e Luiz Inácio Lula da Silva (2003-2010), que os dividiria entre um modelo “neo-liberal” e um modelo “democrático” de política cultural. O objetivo da pesquisa é produzir um conhecimento empírico sobre este período que verifique essas afirmações. A construção dos indicadores foi orientada pelo pressuposto teórico do neo-institucionalismo histórico, debatido por Pierson (2006), e o universo observado compreende a totalidade de produtores culturais que apresentaram projetos ao Mecenato registrados pelo Sistema de Apoio às Leis de Incentivo à Cultura – SALICNET, do Ministério da Cultura. PALAVRAS-CHAVE : política cultural brasileira, comportamento dos atores, neo- institucionalismo. RESUMEN: Este trabajo analisa la dinamica de la politica cultural brasileña entre 1995 y 2010. Estudios relacionados al tema defenden la existencia de un "contraste" entre los resultados obtenidos por los gobiernos de Fernando Henrique Cardoso (1995-2002) y de Luiz Inácio Lula da Silva (2003-2010) que los dividia entre un modelo "neoliberal" y un modelo "democrático" de politica cultural. El objetivo de la investigación es producir un conocimiento empírico acerca de ese período que verifique esas afirmaciones. Las construcción de los indicadores fué orientada por la presuposicón teórica del neoinstitucionalismo debatido por Pierson (2006) y el universo observado compreende la totalidad de los productores culturales que presentan proyectos al Mecenato registrados por el Sistema de Apoyo a las Leyes de Incentivo a la Cultuta - SALICNET, del Ministério de la Cultura. PALABRAS-CLAVES: política cultural brasileña, comportamiento de los actores, neoinstitucionalismo. ABSTRACT: This paper analyzes the dynamics of Brazilian cultural policy between 1995 and 2010. Studies related defend the existence of a "contrast" between the results obtained by the government of Fernando Henrique Cardoso (1995-2002) and Luiz Inácio Lula da Silva (2003- 2010), that divide it between a model "neo-liberal" and a "democratic" model of cultural policy. Our main achievement is to produce empirical knowledge that can verify these claims. The build of indicators was guided by the theoretical assumption of the historical new institutionalism, discussed by Pierson (2006), and the observed universe comprises the totality of cultural producers who have submitted projects to “Mecenato”, registered in SALICNET - Ministry of Culture. KEYWORDS: Brazilian cultural policy, actors' behavior, new institutionalism, 1 Trabalho apresentado no GT4 – Políticas culturais e economia política da cultura, IV Encontro Nacional da ULEPICC-Br. 2 Anita Simis é professora adjunta da Universidade Estadual Paulista – UNESP, anita@fclar.unesp.br 3 Rodrigo Amaral é cientista social pela Universidade de São Paulo - USP, rodrigo.amaral@usp.br. Desde a sua criação, há 20 anos, a Lei Rouanet suscita debates acalorados quanto às distorções que o seu modelo teria instituído no modelo de fomento à cultura no Brasil. Abdicação por parte do Estado em selecionar os projetos que são financiados com os recursos públicos da renúncia fiscal, desigualdades regionais na utilização desses recursos, com forte concentração em um mesmo grupo de beneficiários do eixo Rio-São Paulo, e privilégio de manifestações culturais mais alinhadas ao interesse dos departamentos de marketing das empresas em detrimento dos circuitos artísticos estabelecidos são algumas das críticas recorrentes feitas por produtores culturais, agentes públicos, pesquisadores e articulistas que defendem a realização de uma reforma que traga a gestão do Mecenato para “dentro” do Estado.4 Por outro lado, os governos se sucedem, novos programas de fomento à cultura são criados e a atuação dos atores-chaves parece não ser suficiente para promover as reformas consideradas indispensáveis. Situações inerciais como essa, e que estão presentes em outras políticas públicas, têm colocado à agenda das ciências sociais, que historicamente teoriza e estuda os processos de mudança social, o desafio de compreender o movimento “pouco dinâmico” dos cenários de estabilidade institucional. Neste caso, o desafio metodológico está em compreender porque em cenários desse tipo os atores políticos passam a ter as suas estratégias mais ajustadas às políticas existentes, procurando obter as recompensas previstas por essas, ao invés de se empenharem em promover modificações radicais. Este texto pretende observar a dinâmica da Lei Rouanet entre 1994 e 2010 e compreender o quanto é possível afirmar que esse componente inercial de auto- reforço está presente, quais as peculiaridades deste caso, e o que ele pode nos ensinar sobre a trajetória da política cultural brasileira no período posterior à redemocratização do País. Cabe esclarecer que este texto não é uma análise da política cultural brasileira como um todo. Uma empreitada dessa envergadura demandaria a análise dos demais mecanismos de fomento existentes que possuem lógica distinta do Mecenato avaliado aqui. Da mesma forma, este texto não analisa o comportamento de atores políticos específicos, estatais e não-estatais. Para discutirmos a existência e as características de uma força inercial obtida pela Lei Rouanet ao longo de 15 anos, observaremos o comportamento da população de 4 Esta compreensão resultou na elaboração do Projeto de Lei 6722/ 2010, que institui o Programa Nacional de Fomento e Incentivo à Cultura – Procultura em substituição à legislação em vigor. A proposta se encontra em tramitação na Câmara dos Deputados. produtores culturais brasileiros que buscaram os recursos do Mecenato a partir de uma análise comparada entre os governos de Fernando Henrique Cardoso e Luiz Inácio Lula da Silva. Adotar esta perspectiva implica em questionar a abordagem corrente baseada puramente na distinção ideológica entre os governos enquanto elemento gerador de mudança nas políticas públicas, na qual uma parcela dos trabalhos recentes sobre política cultural se baseia, e questionar a abordagem focada tão somente na comparação do gasto social dos governos, que acaba por subsidiar a abordagem ideológica. A despeito de descrições densas e cuidadosas, como as de Isaura Botelho (2001), Lia Calabre (2008), Anita Simis (1996) e outros, até o gênero da crítica jornalística, parece haver na bibliografia sobre a política cultural algumas premissas comuns quanto aos sentidos que são atribuídos para a ação do Estado na cultura, em regimes democráticos e em regimes autoritários, e quanto à existência de modelos mais inclusivos e menos inclusivos da política cultural realizada no período democrático. No primeiro caso, o pensamento corrente avalia que a presença forte do Estado na área da cultura durante os períodos autoritários teve uma finalidade de cooptação e instrumentalização, ao passo que, no período democrático, uma presença forte do Estado seria indispensável para se contrapor à lógica do mercado. No segundo caso, a política cultural entre 1995 e 2002 tem sido classificada como “neoliberal”, ao passo que a política do período seguinte seria mais inclusiva, ou “democrática” (RUBIM, 2007). A nosso ver essas abordagens merecem uma revisão em relação ao seu alcance explicativo à luz de uma pesquisa com base em dados empíricos. Assim procuramos verificar se ocorreram mudanças efetivas nas regras que foram instituídas em 1991, através da Lei Rouanet, e o grau de variação nos resultados de cada governo em relação ao público beneficiado por esse mecanismo. Esta análise será baseada em três indicadores: a) o grau de variação nas regras do Mecenato ao longo do tempo; b) a composição do universo de produtores beneficiados pelo Mecenato; e c) a reincidência desses beneficiários no tempo. O primeiro indicador, “grau de variação” analisará as atribuições formais do Mecenato, a localização e as características dos pontos de veto (IMMERGUT, 1996)5 aos quais 5 No conceito dos pontos de veto (veto points), a sorte de uma proposta legislativa depende do número e da localização das oportunidades de veto distribuídas ao longo da cadeia esse mecanismo está submetido. Neste ponto será observada a frequência com que novas regras têm sido adicionadas às já existentes, seguida de uma análise sobre o quanto elas podem ter reforçado ou modificado a trajetória iniciada com a instituição do Mecenato. O segundo indicador deverá dimensionar o total de produtores culturais que se tornaram beneficiários do Mecenato. Para isso, classificaremos a população de produtores culturais entre aqueles que obtiveram sucesso e aqueles que não obtiveram sucesso, distribuídos nas etapas percorridas para a obtenção de patrocínios. Esta classificação se divide em quatro possibilidades: a) obteve autorização para captar recursos; b) não obteve autorização; c) captou recursos; e d) não captou recursos. Com este enfoque pretendemos conhecer a quantidade de produtores culturais beneficiados pelo mecanismo e mensurar a sua taxa de sucesso em relação ao total da população observada. Depois de dimensionarmos o acesso ao Mecenato, observaremos no terceiro indicador, “reincidência", a regularidade com a qual um mesmo grupo de beneficiários tem obtido recursos para os seus projetos entre os dois governos de FHC e Lula. Os dados sobre a população de produtores culturais analisada neste estudo foram coletados no Sistema de Apoio às Leis de Incentivo à Cultura – SALICNET, do Ministério da Cultura6. Este texto selecionou as planilhas que informam o total de produtores culturais que solicitaram autorizações para o Mecenato, entre 1993 e 2010. Também foram selecionadas as planilhas que especificam os produtores culturais que obtiveram sucesso a cada exercício7. Neste segundo caso, não foram encontradas informações igualmente detalhadas sobre os produtores que não obtiveram sucesso. Para operacionalizarmos os indicadores adotados por esta pesquisa, os valores foram convertidos em variáveis binárias. Desempenho do Mecenato no período analisado institucional. (IMMERGUT, 1996: p. 143-144). Esses pontos de veto são dinâmicos, e definidos pela combinação no tempo entre as regras institucionais e os resultados eleitorais. No caso deste estudo, escolhemos analisar enquanto ponto de veto somente a instância responsável por selecionar os projetos culturais que buscam aprovação para captar recursos via Lei Rouanet, vez que a atuação dessa instância é mais determinante para os interesses dos produtores culturais, do que a atuação das comissões existentes no Congresso Nacional. 6 http://sistemas.cultura.gov.br/Salicnet/Salicnet.php# (Acessado em 06/10/2010) 7 Ressalvamos que o SALICNET não possibilitou a este estudo compreender se os projetos que captaram recursos pelo Mecenato alcançaram o patamar mínimo de 20% do orçamento aprovado para captação, uma condição exigida para que os recursos possam ser movimentados. Pelas razões já expostas no início do texto, este estudo não possui condições de analisar o conjunto da política cultural brasileira. Assim, o foco é sobre a trajetória do Mecenato, pois trata-se de um mecanismo representativo do processo de institucionalização da política para o setor, em razão da variedade de linguagens artísticas e de outras expressões culturais que fomenta. Ainda que a Lei Rouanet compreenda outros mecanismos de fomento (o Fundo Nacional de Cultura – FNC e os Fundos de Investimentos Culturais e Artísticos – Ficarts), o termo Lei Rouanet neste texto deve ser compreendido como sinônimo de Mecenato. O Mecenato é o mecanismo de renúncia fiscal pelo qual os produtores culturais buscam o patrocínio de pessoas jurídicas e de pessoas físicas às suas iniciativas8. Variação nas regras do Mecenato Desde 1992, o ponto de veto para a obtenção da autorização que permite ao produtor cultural captar recursos junto ao empresariado é a Comissão Nacional de Incentivo à Cultura – CNIC, colegiado criado no cerne das medidas que constituíram o Programa Nacional de Apoio à Cultura – PRONAC. A CNIC participa formalmente da gestão dos três mecanismos de fomento: Mecenato, FNC e os Ficarts. Junto com isto, a Comissão possui outras três atribuições formais: aprovar o programa de trabalho do FNC (Art. 34, item “I”), definir a extensão dos segmentos culturais (Art. 34, item “IV”) e autorizar que estados e municípios também desenvolvam esse tipo de seleção de projetos, desde que possuam legislação local de fomento à cultura (Art. 39). A composição da CNIC é mista, combinando representantes do próprio Ministério da Cultura, dos seus órgãos subordinados e representantes não-estatais, indicados pelas suas próprias associações9. A sua presidência é exercida pelo ministro da Cultura, e o mandato dos seus membros é de dois anos. Ainda que seja prerrogativa da CNIC aprovar o programa de trabalho do FNC, a ela não cabe nenhuma espécie de gestão direta sobre esses recursos, que têm a sua origem no Tesouro Nacional. Após a instituição da Lei 8.313/ 91 que criou essa estrutura, outras 8 A Lei Rouanet proporciona às empresas o abatimento de até 4% do Imposto de Renda, dentro da alíquota de 15% incidente sobre o lucro líquido, e às pessoas físicas o abatimento de até 6%. 9 Na estrutura original da CNIC, o setor empresarial indicava um representante, enquanto entidades associativas de setores culturais e artísticos, de âmbito nacional, indicavam seis representantes. O Regimento Interno da Comissão aprovado pela Resolução nº 1, de 7 de Maio de 2010 manteve inalterada essa quantidade. nove regras formais observadas por este trabalho, entre leis, medidas provisórias e decretos acrescentaram modificações no modelo original do Mecenato10. A análise de seus conteúdos nos permite organizá-las em três grupos: a) regras que ampliam a quantidade de manifestações culturais beneficiadas pela Lei Rouanet; b) regras que ampliam recursos e o percentual dedutível por parte das empresas investidoras; e c) regras que regulamentam o funcionamento do mecanismo. No primeiro grupo se enquadram a Lei nº 9.874, de 1999, a Medida Provisória nº 2.228-1, de 2001, que reescreve os segmentos, as leis nº 11.646, de 2008, e nº 12.590, de 201111. No segundo grupo se enquadra a Lei nº 9.874, de 199912, e no terceiro grupo se enquadram, além dessa lei, o Decreto nº 5.761, de 2006, que procurou dotar a Lei Rouanet de um conceito ampliado de cultura e fortalecer o papel do ministro como presidente da Comissão, permitindo ao mesmo aprovar ad referendum do colegiado as medida de seu interesse. Entretanto, podemos concluir desse conjunto de regras que nenhuma delas promove alterações radicais na trajetória do Mecenato, em uma nova direção contrária à iniciada pela Lei 8.313/ 91. Ao contrário, observamos o movimento de diferentes segmentos culturais que procuraram se tornar beneficiários do fomento via renúncia fiscal, bem como um comportamento por parte do governo federal em ampliar a margem de renúncia fiscal para as empresas. Mesmo o Decreto nº 5.761/ 06 não altera radicalmente a responsabilidade pela gestão do Fundo Nacional de Cultural e pela aprovação dos projetos beneficiados pelo Mecenato. A divisão entre os recursos do FNC, que ficam sob a responsabilidade do Ministério da Cultura, e os recursos do Mecenato, que ficam sob a responsabilidade da CNIC, nos parece empenhada em conferir autonomia à Comissão Nacional de Incentivo à Cultura no trato dos recursos 10 Leis nº 9.532 de, 1997; nº 9.874, de 1999; nº 9.999, de 2000; Medida Provisória nº 2.228-1, de 2001; Decreto nº 5.761, de 2006; Lei nº 11.646, de 2008; e Lei nº 12.590, de 2011. 11 A Lei nº 9.874/ 99 define como beneficiários projetos de artes cênicas; livros de valor artístico, literário ou humanístico; música erudita ou instrumental; circulação de exposições de artes plásticas; doações de acervos para bibliotecas públicas e para museus. A MP nº 2.228- 1/01 insere produção de obras cinematográficas e videofonográficas de curta e média metragem e preservação e difusão do acervo audiovisual; e a preservação do patrimônio cultural material e imaterial. A Lei nº 11.646/ 08 insere a construção e manutenção de salas de cinema e teatro, que poderão funcionar também como centros culturais comunitários, em Municípios com menos de 100.000 (cem mil) habitantes. A Lei 12.590/11 reconhece como manifestação cultural “a música gospel e os eventos a ela relacionados, exceto aqueles promovidos por igrejas”. 12 O artigo 26 da redação original estipula que as empresas abatam 30% do valor patrocinado e as pessoas físicas, 60%. O artigo 18 da Lei 9.874/99 passou a permitir o abatimento de 100% do valor patrocinado para diversos segmentos. oriundos da renúncia fiscal, deixando, por outro lado, o executivo livre para administrar o FNC, que é composto por dotação orçamentária. Os beneficiários da Lei Rouanet As regras que definem o público atendido pelo Mecenato têm se mantido estáveis e, a rigor, não são comuns reversões nas decisões que são tomadas no âmbito da Comissão. Para entendermos os reflexos possíveis dessa estabilidade institucional sobre a população de produtores culturais descreveremos a dinâmica do Mecenato entre 1993 e 2010, observando os resultados consolidados de todo o período estudado e os resultados detalhados por exercício. Os produtores culturais inscrevem os seus projetos no Mecenato para obterem uma autorização prévia do Ministério da Cultura, através da CNIC, que os permite buscar o patrocínio de pessoas físicas e de empresas. Desta forma, a dinâmica do Mecenato produz dois resultados a serem observados: o grau de sucesso dos produtores culturais em conseguirem autorização da CNIC para as suas propostas e o grau de sucesso desses produtores em captar os recursos propriamente ditos. Essa segunda etapa tem sido frequentemente criticada pela avaliação que, do contingente de produtores culturais identificados como “proponentes” autorizados a captar recursos para os seus projetos, apenas uma parcela ínfima tem conseguido, de fato, obtê-lo. Esta impressão é produzida por um raciocínio que compara o volume de recursos para o qual é solicitada autorização, com o volume de recursos que são efetivamente captados. Nosso objetivo é oferecer uma leitura sobre os dados disponíveis que introduza no debate um raciocínio alternativo a essa forma como a Lei Rouanet tem sido avaliada. Ao contrário da mensuração baseada no volume do gasto, propomos uma mensuração baseada na quantidade de produtores culturais que apresentaram seus projetos à CNIC e conseguiram obter patrocínios para as suas propostas e aqueles que não conseguiram. Tabela 1 – “Volume do Gasto” e “Quantidade de Propo nentes” Valores de janeiro de 1993 a outubro de 2010 Volume do Gasto Quantidade de Proponentes Solicitado 67.051.496.524,89 31.949 Autorizado 33.631.571.563,26 26.061 Captado 7.685.738.994,07 7.472 Fonte: Salic/ MinC, elaboração do autor. Como discutido no início deste texto, para as análises correntes a Lei Rouanet seria altamente concentradora de recursos em razão do pouco sucesso obtido pelos produtores culturais na sua captação. A Tabela 1 nos permite comparar na coluna Volume do Gasto o montante solicitado à CNIC entre 1993 e 2010 (R$ 67,05 bilhões) com o montante efetivamente captado no mesmo período (R$ 7,6 bilhões). Ou seja, quando se compara o Solicitado, com o Captado, a taxa de sucesso dos produtores culturais em obter patrocínios por meio da Lei Rouanet ultrapassa pouco mais de 10%, gerando a impressão de que estão sendo perpetradas grandes distorções distributivas. Por outro lado, quando observamos as regras de acesso aos recursos da Lei Rouanet, constatamos ser natural que um projeto submetido à CNIC tenha o seu orçamento para a captação de recursos aprovado com cortes no valor solicitado. Em seguida, com um orçamento já diminuído, o produtor cultural parte para a captação de recursos, devendo mobilizar, ao menos, vinte por cento do Valor Autorizado, para conseguir oferecer àqueles que patrocinam o seu projeto a dedução das suas cotas no Imposto de Renda devido. Com uma regra estruturada em três etapas (solicitação, autorização e captação), que podem diminuir o valor inicial de cada proposta, não é possível afirmar que muitos produtores solicitam recursos e apenas poucos os recebem. Quando observamos, junto com essas regras de funcionamento do mecenato, a quantidade de produtores culturais beneficiados, constatamos que os produtores que captaram recursos solicitaram valores maiores nas etapas anteriores, e sofreram cortes graduais nos seus orçamentos. Por conta dessa prática na qual um projeto não é apenas aprovado ou excluído, mas ajustado em seu valor, o percentual de autorizações concedidas pela CNIC aos projetos que se inscrevem na Lei Rouanet nos últimos dezoito anos manteve-se acima dos 80%. Gráfico 1 Percentual de produtores culturais que obtiveram au torização para captação de recursos Janeiro de 1993 a outubro de 2010 Como a quantidade de produtores culturais que consegue a autorização da CNIC para captação de recursos é elevada, resta saber qual é a quantidade de produtores que consegue mobilizar patrocínios junto às empresas e pessoas físicas. Na perspectiva do volume do gasto, esse percentual não ultrapassa 10%. Na perspectiva que propomos, quando se compara a quantidade de produtores culturais que solicitaram autorizações à CNIC e a quantidade de produtores culturais que conseguiram captar algum recurso para os seus projetos, a taxa de sucesso mais que duplica, como demonstram os gráficos 2 e 3 a seguir. Gráfico 2 Percentual de recursos solicitados e de recursos ca ptados Janeiro de 1993 a outubro de 2010 Gráfico 3 Percentual de produtores culturais que solicitaram autorizações à CNIC e de proponentes que conseguiram captar recursos Janeiro de 1993 a outubro de 2010 Quando os produtores culturais que captaram algum recurso por meio de renúncia fiscal são comparados apenas com os produtores que receberam a autorização da CNIC para fazê-lo, a taxa de sucesso se eleva para 28,07% Gráfico 4 Percentual de produtores culturais que aprovaram pr ojetos na Lei Rouanet e de produtores que conseguiram captar recursos Janeiro de 1993 a outubro de 2010 Nosso propósito até aqui foi apresentar uma formulação alternativa à lógica do gasto social para compreender qual tem sido o comportamento dos produtores culturais ao longo dos últimos dezoito anos com relação à obtenção de patrocínios privados. Consideramos o raciocínio baseado no volume de recursos pouco explicativo para o caso de uma regra que não estrutura disputas do tipo winner take all. Ou seja, a Lei Rouanet não funciona sob uma lógica em que o acesso aos recursos públicos é binário, onde um deve levar tudo e o outro não deve levar nada, como acontece no modelo de seleção por editais do Fundo Nacional de Cultura. Por outro lado, uma análise centrada no universo de beneficiários nos permitiu dimensionar com maior precisão a quantidade de produtores que estão conseguindo ter acesso aos recursos autorizados por esse mecanismo. Na Tabela 2 propomos um caminho inverso: observar o quanto apenas os produtores culturais que captaram recursos (7.472) representam em termos orçamentários em relação ao total de produtores que solicitaram à CNIC autorização para captar recursos (31.949) e em relação aos produtores culturais que receberam da CNIC autorização para captar recursos (26.061). O que constatamos é que os projetos apresentados pelos produtores culturais que captaram recursos respondem por 61% dos recursos solicitados à CNIC, e 69% dos recursos autorizados para captação. Tabela 2 – Distribuição do gasto pelos proponentes Valores de janeiro de 1993 a outubro de 2010 Valores totais Valores dos proponentes que captaram recursos Participação dos captadores sobre os Valores totais (em %) Solicitado 67.051.496.524,89 40.777.019.084,13 61 Autorizado 33.631.571.563,26 23.128.972.489,74 69 Captado 7.685.738.994,07 7.685.738.994,07 100 Fonte: Salic/ MinC, elaboração do autor. Ao operarmos esta inversão, constatamos que o universo dos produtores culturais que obtiveram sucesso na captação de recursos pela Lei Rouanet é altamente representativo do total de recursos movimentado pelo Mecenato em todas as suas fases. Com isto nos parece que a quantificação dos proponentes que captaram algum recurso para os seus projetos entre 1993 e 2010 é um recurso metodológico mais eficaz para oferecer uma explicação clara sobre a distribuição dos valores globais movimentados pelo Mecenato do que a simples observação do gasto social. Reincidência dos proponentes que captaram recursos entre os governos FHC e Lula Em um primeiro momento observamos a estabilidade das regras do Mecenato, seguido de uma análise dos valores movimentados entre 1993 e 2010. A seguir observaremos o comportamento dos produtores culturais que conseguiram captar recursos pelo Mecenato, para descrever e procurar por regularidades que possam nos auxiliar a compreender qual tem sido o papel dos governos em relação a esse mecanismo de fomento à cultura no período democrático recente. Mais especificamente, procuramos compreender como a variação no comportamento desses produtores em buscar recursos dentro das regras existentes pode indicar se houve mudanças entre um governo e outro na Lei Rouanet, e quais teriam sido. Aqui pretendemos compreender a frequência com a qual os produtores culturais tiveram acesso a patrocínios por meio da renúncia fiscal. Avaliamos que as variações neste acesso podem revelar se a estabilidade das regras estimulou, de fato, um comportamento de procura contínua por parte do universo de beneficiários. Desta forma, descreveremos os resultados obtidos tanto pelo governo FHC, como pelo governo Lula, de maneira a se compreender a dinâmica do Mecenato através do comportamento dos seus beneficiários diretos. Durante o governo de Fernando Henrique Cardoso (1995-1998 e 1999-2002) o Mecenato foi efetivamente implementado. Se considerarmos os resultados entre 1993 e 1994, quando nove proponentes foram beneficiados pelo mecanismo, podemos concluir que a sua efetivação ocorreu a partir de 1995, quando quarenta e quatro produtores culturais conseguiram captar recursos para os seus projetos. Em uma trajetória ascendente, desde então, o Mecenato contemplou neste governo 1.181 proponentes durante o primeiro mandato (1995-1998), que captaram R$ 565.147.177,15, e 2.023 proponentes durante o segundo mandato (1999-2002), que captaram R$ 1.213.767.999,33. Em relação à regularidade dos projetos que tiveram os seus recursos captados por um mesmo proponente, existiram 538 produtores culturais que obtiveram ao menos uma autorização em cada mandato e captaram R$ 1.161.435.374,12. Neste caso, a quantidade de produtores culturais que captou recursos mais de uma vez entre os dois mandatos respondeu por 17% do total de beneficiados e por 65% do total de recursos movimentados nos oito anos do governo Cardoso. Durante o governo de Luiz Inácio Lula da Silva (2003-2006 e 2007-2010) o Mecenato teve a sua trajetória intensificada, com resultados superiores aos do governo anterior. Foram contemplados 3.347 proponentes durante o primeiro mandato (2003-2007), que captaram R$ 2.518.158.286,87, e 4.081 proponentes no segundo mandato (2007-2010), que captaram R$ 3.388.110.566,37. Em relação à regularidade dos projetos que tiveram os seus recursos captados por um mesmo proponente, existiram 1.602 produtores culturais que obtiveram ao menos uma autorização em cada mandato e captaram R$ 4.447.477.553,49. Neste caso, a quantidade de produtores culturais que captou recursos mais de uma vez entre os dois mandatos respondeu por 22% do total de beneficiados e por 75% do total de recursos movimentados nos oito anos do governo Lula. No período de 1993 a 2010, foram contabilizados 1.021 produtores culturais que, entre os governos Cardoso e Lula, captaram mais de uma vez R$ 4.247.898.247,64, respondendo por 9,59% do total de beneficiários e por 55,27% do total dos recursos movimentados pelo Mecenato desde a sua criação. O volume de recursos captados por exercício demonstra uma oscilação a cada ano, que não evita uma progressão na média dos recursos captados entre o governo Cardoso e o governo Lula. Gráfico 5 Valores captados por exercício através do Mecenato, entre 1993 e 2010 A quantidade de projetos culturais que captou recursos demonstra uma oscilação positiva a cada exercício, com exceção apenas dos últimos dois anos (2010 ainda não havia consolidado os dados no momento da pesquisa) e possibilita uma compreensão sobre o possível impacto exercido por este mecanismo na organização do setor. Gráfico 6 Quantidade de projetos que captou recursos através do Mecenato, por exercício, entre 1993 e 2010 Primeiras conclusões Os dados disponibilizados nos permitiram descrever o Mecenato como um mecanismo de fomento à cultura que reúne as seguintes características: a) possui regras estáveis para a autorização dos projetos apresentados pelos produtores culturais; b) possui uma taxa de sucesso de captação de recursos próxima de 30% do universo de proponentes; e c) inclui progressivamente novos captadores. A análise das regras revelou a existência de poucas alterações posteriores à Lei 8.313/91. As alterações promovidas pelo Decreto nº 5.761/06 procuraram dotar o ministro da Cultura de maior autonomia para decidir sobre a autorização dos projetos apresentados à CNIC (Art. 38.) e inserir um público adicional de produtores culturais identificados com o segmento tradicional e popular (Art. 23.). Não avaliamos que tenham sido medidas causadoras de mudanças abruptas sobre o arranjo institucional anterior e sobre a sua dinâmica distributiva, o que não impede que essas alterações possam produzir impactos importantes para a trajetória desse mecanismo com o passar do tempo. No tocante aos beneficiários, procuramos demonstrar como as avaliações habitualmente feitas com base apenas no gasto social não captam a diminuição que os projetos apresentados à CNIC sofrem nos orçamentos, onde apenas 17% dos casos tiveram o valor solicitado aprovado na íntegra. Dessa forma, ao invés de 10% de taxa de sucesso obtida da comparação entre os recursos solicitados e os recursos captados, procuramos demonstrar que os proponentes que conseguem captar recursos se situam em quase 30% e que esse percentual responde por 61% do montante solicitado à CNIC. Em relação à reincidência de beneficiários, constatamos que os mecanismos possibilitaram a participação continuada de um mesmo percentual de produtores culturais ao longo dos dois governos analisados. Neste caso, os 10% de beneficiários que atravessaram os governos Cardoso e Lula captando recursos para os seus projetos, respondem por 55,27% do total de recursos que foram captados por meio de renúncia fiscal. Com isso, acreditamos que a localização estável dos pontos de veto para o acesso aos recursos da cultura pode ter gerado condições para o surgimento de um universo de produtores culturais beneficiados de maneira contínua pelos recursos existentes, mas que não impediu a inclusão contínua de novos beneficiários13. Nesta perspectiva, a institucionalização da política cultural, ao menos no que diz respeito ao Mecenato, pareceu ocorrer em dois movimentos. Por um lado, o volume crescente dos projetos e dos recursos captados através da Lei Rouanet parece manter relação com a regularidade com a qual a população de produtores culturais beneficiada em exercícios anteriores tem validado as regras de acesso existentes e continua a buscar recursos para as suas produções, por meio deste mecanismo. Por outro lado, a cada governo observado uma nova faixa de produtores culturais que captam recursos pela primeira vez tem sido incluída, mesmo que em termos percentualmente menores. 13 Não foi possível neste artigo realizar uma análise sobre as características dos projetos culturais que foram beneficiados pela Lei Rouanet de maneira contínua, mas acreditamos que este tema merece um estudo pormenorizado. A nosso ver, é imprescindível distinguir o quanto esses projetos beneficiados de maneira contínua são projetos que financiam “circuitos artístico- culturais”, ou seja, que financiam vários outros artistas contemplados em programações culturais, ou são projetos que financiam “produções artísticas” isoladas. Avaliamos que uma análise desse tipo pode contribuir fortemente para a discussão do quanto os recursos da Lei Rouanet são efetivamente concentrados em uma elite de produtores culturais, ou o quanto esse grupo de organizações e produtores culturais atua como difusores auxiliares da própria política cultural. O esforço deste estudo se deu no sentido de oferecer um conhecimento empírico capaz de demonstrar como os contornos da política pública de cultura promovida entre os governos de Fernando Henrique Cardoso e Luiz Inácio Lula da Silva parecem ser mais “esfumados” do que as imagens habitualmente ilustradas levam a crer. Ao invés de contrastes, os resultados observados demonstram uma “porosidade” nas fronteiras da ação governamental neste setor, ao longo do período estudado. Não reunimos condições para apresentar um argumento de causalidade – onde a estabilidade das regras teria levado os produtores culturais a procurarem mais vezes pelos recursos do Mecenato – mas, procuramos oferecer uma abordagem empírica que operacionalizou a noção de que as políticas públicas podem desempenhar o papel de instituição sobre a vida dos seus beneficiários. Esta dinâmica pode nos auxiliar a compreender, por inferência, o quanto os agentes públicos seriam constrangidos a não modificar radicalmente as regras existentes, preferindo com isto adotar medidas incrementais. Esperamos que esta perspectiva institucionalista possa ser adotada na observação da dinâmica de outros mecanismos e programas da política cultural brasileira, de forma a se desenhar um panorama mais amplo e pormenorizado sobre essa área das políticas públicas. Referências BRASIL. Constituição, 1988. BRASIL. Decreto nº 5.520/05. BRASIL. Lei nº 8.313/91. BRASIL. Lei nº 8.685/93. BOTELHO, Isaura. Romance de Formação : FUNARTE e a política cultural, 1976- 1990. Rio de Janeiro: Edições Casa de Rui Barbosa, 2001. CALABRE, Lia. Políticas e Conselhos de Cultura no Brasil: 1967-1970. In IV ENECULT – Encontro de Estudos Multidisciplinares em Cultura . UFBa, 2008. IMMERGUT, Ellen M.. As Regras do Jogo: a lógica das políticas de saúde na França, na Suíça e na Suécia. In: Revista Brasileira de Ciências Sociais , (30) 11: 139-63, 1996. PIERSON, Paul. Public Policies as Institutions. In: SHAPIRO, IAN et alii (ed). Rethinking Political Institutions . New York: New York University Press, 2006. 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