unesp UNIVERSIDADE ESTADUAL PAULISTA “JÚLIO DE MESQUITA FILHO” Faculdade de Ciências e Letras Campus de Araraquara - SP NATÁLIA DE MELO CASTILHO ARARAQUARA – S.P. 2011 NATÁLIA DE MELO CASTILHO Trabalho de Conclusão de Curso (TCC) apresentado ao Conselho de Curso de Letras, da Faculdade de Ciências e Letras – Unesp/Araraquara, como requisito para obtenção do título de Bacharel em Letras. Orientador: Ricardo Maria dos Santos ARARAQUARA – S.P. 2011 RESUMO Ao escrever Coraline, Neil Gaiman retoma alguns recursos utilizados por Lewis Carroll em suas duas principais obras, Alice’s Adventures in Wonderland e Through the Looking-Glass and What Alice Found There, mas, mesmo assim, consegue construir um romance singular, com aspecto macabro, repleto de horror. Na década de 60, a francesa Julia Kristeva fez um estudo acerca dos possíveis diálogos entre os textos, concluindo que todo texto conterá partes de outros textos, já escritos ou que o virão a ser. Baseado na sua teoria da intertextualidade, discutida posteriormente por diversos teóricos, procura-se encontrar pontos dentro das obras nos quais se faz presente esse dialogismo, e também como Neil Gaiman se apropria devidamente desses recursos. Além disso, procura-se mostrar elementos em que estes pontos de intertextualidade diferem, sendo proposto que essa divergência se deve ao fato de que Gaiman, direta ou indiretamente, utilizou percepções advindas do estudo da teoria psicanalítica de Freud. Palavras – chave: Intertextualidade. Lewis Carroll. Neil Gaiman. ABSTRACT When writing Coraline, Neil Gaiman takes up some resources used by Lewis Carroll in his two major works, Alice's Adventures in Wonderland and Through the Looking-Glass and What Alice Found There, but still manages to write a unique novel, seemingly grim, filled with horror. In the 1960s, the theoretician Julia Kristeva conducted a study on the possible dialogue between the texts, concluding that every text contains parts of other texts, already written or that will be. Based on the theory of intertextuality she first proposed and which was subsequently discussed by several theoreticians, this paper aims to find points in the works in which this dialogue is present, as well as how Neil Gaiman appropriates these resources properly. It also tries to show elements where these points of intertextuality differ, proposing that this difference is because Gaiman resorted, directly, or indirectly, to insights drawn from the study of Freud’s psychoanalytic theory. Keywords: Intertextuality. Lewis Carroll. Neil Gaiman. SUMÁRIO 1 INTRODUÇÃO .......................................................................................................... 6 2 METODOLOGIA: O CONCEITO DE INTERTEXTUALIDADE ..................... 9 3 INTERTEXTUALIDADE EM CORALINE ............................................................ 11 3.1 Coraline e Alice ........................................................................................................ 11 3.2 Cat e Cheshire Cat .................................................................................................... 14 3.3 Outros recursos de intertextualidade .................................................................... 16 3.3.1 Os poemas .............................................................................................................. 16 3.3.2 A questão da identidade........................................................................................ 18 3.3.3 O nonsense ............................................................................................................. 20 4 CORALINE, FREUD E O UNCANNY .................................................................... 23 5 CONSIDERAÇÕES FINAIS .................................................................................... 26 6 REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS ..................................................................... 27 7 ANEXOS ..................................................................................................................... 28 1. INTRODUÇÃO Na metade do século XIX, Lewis Carroll escreveu aquela que seria a sua principal obra. Alice’s Adventures in Wonderland narra a história da pequena Alice em um mundo onírico cheio de acontecimentos estranhos e criaturas curiosas. Sete anos depois, escreve Through the Looking-Glass and What Alice Found There, uma continuação da primeira obra, na qual Alice deseja tornar-se rainha e, para isso, precisa passar por obstáculos estruturados como etapas de um jogo de xadrez. Mais de um século após as histórias de Alice, Neil Gaiman, ao escrever Coraline, retoma características da literatura fantástica-estranha1 de Lewis Carroll e cria uma história de terror, na qual uma menina entra em um mundo paralelo e se vê com dificuldades para sair de lá. Charles Lutwidge Dogson, mais conhecido pelo pseudônimo Lewis Carroll, nasceu na Inglaterra, em 1832. Em 1851, foi estudar matemática em Oxford, onde passou a lecionar após sua formação, e ficou até 1881. Escreveu livros abordando temas de Geometria e Álgebra, mas foi na Lógica que Dogson se destacou. Seu interesse por elementos que levassem ao exercício de testar a razão fez que publicasse diversos livros sobre lógica, entre eles, The Game of Logic (1887) e Symbolic Logic (1896). Dogson destacou-se também como fotógrafo, tendo como objetos do ofício pessoas importantes da época (artistas, religiosos, professores) e crianças, principalmente meninas com idades entre 8 e 12 anos. Faleceu em 1899, na Inglaterra. Foi em Oxford, no exercício de sua profissão, que o matemático conheceu Henry Liddell, que passou a ser um grande amigo. Liddell era pai de dez filhos; entre eles, Alice Pleasance Liddell, a grande inspiração da personagem que viria a ser a mais conhecida de Lewis Carroll (Dogson passa a usar seu pseudônimo para suas obras literárias, deixando seu verdadeiro nome apenas para suas escritas científicas). Em 1865, Carroll publica Alice’s Adventures in Wonderland, ilustrada por John Tenniel, que originaria de uma história contada pelo escritor a três irmãs Liddell - entre elas, Alice. A personagem principal homônima, descrita como curiosa e esperta, avista um coelho branco e decide segui-lo, até que cai em um buraco. A partir do destino desse buraco, uma sala com várias portas ao redor, Alice vai iniciar sua aventura pelo “país das maravilhas”, variando seu tamanho e conhecendo os mais excêntricos indivíduos. Em 1872, publica o Termo adotado das definições feitas por Tzvetan Todorov acerca da literatura fantástica. O fantástico-estranho seria aquele em que “acontecimentos que parecem sobrenaturais ao longo de toda a história, no fim recebem uma explicação racional.” (TODOROV, T. Introdução à literatura fantástica. São Paulo: Perspectiva, 1975. p. 51). segundo livro, no qual Alice retorna e conhece outras criaturas, mas dessa vez seu objetivo é tornar-se uma rainha. Seguindo as fases de um jogo de xadrez, ela inicia como um peão e, após onze lances, cada um representado por um capítulo do livro contendo diferentes personagens, Alice alcança seu objetivo. Usando-se bastante da lógica, Lewis Carroll constrói uma narrativa que critica a postura da civilização da Era Vitoriana, período de grandes revoluções científicas e filosóficas, contrastando com uma época também de um comportamento social marcado pelo radicalismo, de uma moralidade rígida e puritana. Portanto, pode-se afirmar que Carroll viveu em uma época marcada pelas tensões entre o moderno e a tradição, entre a ciência e a religião. Assim, suas duas obras que narram as aventuras de Alice podem ser vistas como uma crítica à vida regrada e moralizante da época. A caracterização da Queen of Hearts, com suas constantes ordens de “Off with his head”, demonstram essa rigidez. Já a Duchess representa a constante busca pela moral, característica da literatura do período, a qual era envolvida por constantes “romances-manuais”, que ditavam como o cidadão deveria seguir: “‘Tut, tut, child!’ said the Duchess. ‘Every thing’s got a moral, if only you can find it.’” (CARROLL, 1999, p. 91). Os escritores criavam romances com intenso maniqueísmo, justamente para ditar os padrões morais que deveriam ser aderidos. Um século depois, precisamente em 1960, também na Inglaterra, nasceu Neil Gaiman. Trabalhou como jornalista, crítico de histórias em quadrinhos, até que, em 1980, teve seu primeiro título publicado, Violent Cases. Foi a partir desse trabalho que Gaiman juntou-se ao ilustrador Dave McKean, o qual participou de diversos trabalhos do autor. Neil Gaiman fez trabalhos para duas das maiores editoras de histórias em quadrinhos: a DC Comics e a Marvel Comics. Apesar de seu trabalho mais notório ser o romance em quadrinhos de Sandman, publicou também romances adultos e infanto-juvenis, entre eles o romance-gráfico Stardust (1999) e The Wolves in the Walls (2003). Atualmente, Gaiman dedica-se mais ao cinema. Após colaborar no roteiro de Beowulf e participar da adaptação de Coraline, dirigida por Henry Selick, o autor se prepara para estrear como diretor no filme de sua maior criação, Sandman. Em 2002, publica sua primeira história para crianças, o romance maravilhoso2 Coraline, ilustrado por Dave McKean. Coraline Jones, a protagonista da história, também curiosa e esperta, encontra uma realidade paralela através de uma porta. Nessa outra Aqui, o romance é maravilhoso por não apresentar limites claros entre o racional e o irracional. “No caso do maravilhoso, os elementos sobrenaturais não provocam qualquer reação particular nem nas personagens, nem no leitor implícito. Não é uma atitude para com os acontecimentos narrados que caracteriza o maravilhoso, mas a própria natureza desses acontecimentos.” (Ibidem, p. 59). realidade, tudo parecer ser como no mundo real, porém melhor. Mas esse aparente encanto de Coraline vira desespero, já que descobre que sua nova mãe não é tão boa assim, visto que esta oferece a oportunidade de Coraline ficar nesse mundo para sempre se a menina deixar botões serem colocados no lugar de seus olhos. Descobre também que, na verdade, a “outra mãe” enclausurou os pais da menina em um globo de vidro. Então, Coraline precisa resgatar seus pais e também ajudar três crianças-fantasmas que tiveram suas almas aprisionadas pela mulher. Em uma narração bem tensionada, Gaiman constrói um romance assustador, que retoma algumas das características dos antigos contos de fadas, como o terror. Para escrever seu romance, Neil Gaiman dialoga com vários elementos das narrativas de Lewis Carroll, como alguns personagens ou mesmo a forma de construir a narrativa, fazendo um jogo com as palavras, assim como gostava de fazer seu conterrâneo. Por meio da intertextualidade, termo criado pela linguista francesa Julia Kristeva, este trabalho tem como objetivo encontrar no romance de Neil Gaiman subsídios que comprovem esse diálogo com as obras de Lewis Carroll. Ademais, será feita uma breve introdução sobre o uncanny proposto por Freud, e como Gaiman pode ter utilizado a psicanálise freudiana para criar a atmosfera sombria presente em Coraline. 2. METODOLOGIA: O CONCEITO DE INTERTEXTUALIDADE Chama-se de intertextualidade a incorporação de um elemento discursivo a outro, sem ser necessária a presença de um hipertexto. O termo intertextualidade foi utilizado por Julia Kristeva, no fim da década de 60, para retomar o que Bakhtin chamava de dialogismo. O postulado dialógico de Bakhtin defendia que um enunciado (texto) não existe individualmente: ele sempre vai dialogar com outros textos. O texto só ganha vida em contato com outro texto (com contexto). Somente neste ponto de contato entre textos é que uma lua brilha, iluminando tanto o posterior como o anterior, juntando dado texto a um diálogo. Enfatizamos que esse contato é um contato dialógico entre textos... Por trás desse contato está um contato de personalidades e não de coisas. (BAKHTIN, 1986 apud KOCH; BENTES; CAVALCANTE, 2007, p. 16). Kristeva aborda o tema de maneira mais ampla ao dizer que todo texto é uma série de textos que já foram escritos ou ainda serão. Então, de acordo com a linguista e crítica literária, sempre haverá uma interdependência entre qualquer texto com outros. Ainda segundo a francesa, “um texto literário não é um fenômeno isolado, mas sim uma construção de citações, e qualquer texto é a absorção e transformação de outro” (CUDDON, 1998, p. 454, tradução nossa). No domínio da Análise do Discurso, há posições de outros teóricos que concordam com esta interdependência de textos. Pêcheux defende que um discurso será sempre arquitetado sobre um discurso anterior. Maingueneau complementa, dizendo que o intertexto é decisivo nas condições de produção do discurso. Koch, Bentes e Cavalcante (2007) propõem uma divisão do tema em duas direções: lato sensu e stricto sensu. A intertextualidade lato sensu engloba todo e qualquer discurso, partindo do princípio de que todo texto deriva de um ou mais textos, é predeterminado. Quando o discurso dialoga com um texto já produzido e é de conhecimento do interlocutor, ou seja, quando há um hipertexto, trata-se da intertextualidade stricto sensu. Logo, “em se tratando de intertextualidade stricto sensu, é necessário que o texto remeta a outros textos ou fragmentos de textos efetivamente produzidos, com os quais estabelece algum tipo de relação” (KOCH; BENTES; CAVALCANTE, 2007, p. 17). Dentro da intertextualidade stricto sensu, Koch, Bentes e Cavalcante fazem uma subdivisão, em intertextualidade temática (quando o mesmo tema é abordado por mais de um ponto de vista), intertextualidade estilística (há a repetição ou imitação de um estilo ou variação linguística), intertextualidade explícita (citação direta de um texto – referências, traduções) e intertextualidade implícita (quando não há menção da fonte). No âmbito da literatura, a intertextualidade parece ser ainda mais inevitável, visto que “a prática da apropriação é um traço assumido pela literatura que se quer devoradora de outros textos (...). A retomada de um texto por outro (...) é, de qualquer forma, uma constante.” (PAULINO; WALTY, CURY, 1995, p. 22). Assim, no campo da intertextualidade na literatura, pretende-se analisar esse dialogismo entre as obras dos ingleses Neil Gaiman e Lewis Carroll. 3. INTERTEXTUALIDADE EM CORALINE Quando Neil Gaiman escreveu Coraline, utilizou-se de diversas referências da literatura mundial. A porta que leva a outro mundo já foi vista na obra de C. S. Lewis, The Chronicles of Narnia, e o aspecto macabro era uma das características marcante de Edgar Allan Poe, assim como dos tradicionais contos de fadas coletados pelos Irmãos Grimm. Entretanto, o trabalho será focado apenas na intertextualidade com as obras de Lewis Carroll, presente em diversos modos no romance de Gaiman. Para não estender muito o trabalho e também não o deixar muito vago, serão escolhidos três pontos na obra para a realização da análise. 3.1 Coraline e Alice No início de Alice’s Adventures in Wonderland, Lewis Carroll descreve a protagonista como uma criança entediada e curiosa, que se questiona sobre a utilidade de um livro sem figuras, o primeiro de muitos dos questionamentos de Alice. Alice was beginning to get very tired of sitting by her sister on the bank, and of having nothing to do: once or twice she had peeped into the book her sister was reading, but it had no pictures or conversations in it, “and what is the use of a book”, thought Alice, “without pictures or conversations?” (CARROLL, 1999, p. 11) Alice inicia sua aventura ao avistar um coelho branco com um relógio, característica determinante para acentuar a curiosidade de menina, que resolve segui-lo. (...) but, when the rabbit actually took a watch out of its waistcoat-pocket, and looked at it, and then hurried on, Alice started to her feet, for it flashed across her mind that she had never before seen a rabbit with either a waistcoat-pocket, or a watch to take out of it, and, burning with curiosity, she ran across the field after it, and was just in time to see it pop down a large rabbit-hole under the hedge. (CARROLL, 1999, p. 12) Assim, ela entra no túnel e cai em um longo buraco, e a partir de então ela está em Wonderland, e todas as suas aventuras vão começar. Neil Gaiman começa seu romance apresentando o “túnel” de Coraline, que, na verdade, é uma porta: “Coraline discovered the door a little while after they moved into the house.” (GAIMAN, 2003, p. 3). Então, ela sai para fazer uma das coisas que mais gosta, que é explorar lugares novos. E assim passa as primeiras semanas na nova casa, conhecendo as redondezas. Contudo, em dias de chuva e névoa, Coraline era obrigada a ficar dentro de casa, o que a deixava descontente: “‘But I want to carry on exploring.’” (GAIMAN, 2003, p. 7), “‘I’m bored’, she said.” (GAIMAN, 2003, p. 18), “Coraline was bored.” (GAIMAN, 2003, p. 25). Um dia, ao deitar-se, Coraline ouviu um barulho estranho. Levantou-se e foi verificar de onde vinha o som quando avistou uma sombra, que percorreu a casa até a sala onde ficava a porta, a mesma que Coraline havia aberto anteriormente e dava em uma parede de tijolos. That night, Coraline lay awake in her bed. The rain had stopped, and she was almost asleep when something went t-t-t-t-t-t. She sat up in bed. (…) Coraline got out of bed and looked down the hall, but saw nothing strange. She walked down the hall. (…) Something moved. (…) The black shape went into the drawing room, and Coraline followed it a little nervously. (…) Coraline was just wondering whether or not she ought to turn on the lights when she saw the black shape edge slowly out from beneath the sofa. It paused, and then dashed silently across the carpet toward the farthest corner of the room. There was no furniture in that corner of the room. Coraline turned on the light. There was nothing in the corner. Nothing but the old door that opened onto the brick wall. She was sure that her mother had shut the door, but now it was ever so lightly open. Just a crack. Coraline went over to it and looked in. There was nothing there – just a wall, built of red bricks. Coraline closed the old wooden door, turned out the light, and went to bed.” (GAIMAN, 2003, p.10-11) (…) Then, Coraline put her hand on the doorknob and turned it; and finally, she opened the door. It opened on to a dark hallway. The bricks had gone as if they’d never been there. There was a cold, musty smell coming through the open doorway: it smelled like something very old and very slow. Coraline went through the door. (GAIMAN, 2003, p. 26) Nesses trechos, percebe-se claramente que Gaiman recorre à mesma construção feita por Carroll: caracteriza a criança como curiosa, e esta característica é crucial para que ocorra a imersão no mundo paralelo. Enquanto essa inserção é feita por meio de um buraco na história de Alice, em Coraline será feita através do túnel atrás da porta de madeira. Outro elemento usado por Gaiman é a figura estranha que aguçará a curiosidade da menina. Neste caso, é a sombra que faz com que Coraline vá até a sala e veja a porta aberta, mesmo tendo certeza de que sua mãe a fechara. É devido a essa sombra que Coraline abre a porta no dia seguinte e, em vez de uma parede de tijolos, encontra um túnel, que a leva ao outro lado. Gaiman substituiu o coelho branco de Lewis Carroll pela sombra da “outra mãe” de Coraline. Ambas as personagens mostram-se corajosas e os autores constroem uma atmosfera onde é necessário ter coragem. Carroll cria um ambiente nonsense, do qual Alice tenta sair a todo custo. Ela conhece várias criaturas, mas nenhuma é capaz de ajudá-la e, portanto, ela está sozinha. Sendo assim, precisa enfrentar todos os obstáculos sem a ajuda de ninguém, tendo que criar coragem para tomar decisões. “And who are these?” said the Queen, pointing to the three gardeners who were lying round the rose-tree; for, you see, as they were lying on their faces, and the pattern on their backs was the same as the rest of the pack, she could not tell whether they were gardeners, or soldiers, or courtiers, or three of her own children. “How should I know?” said Alice, surprised at her own courage. “It’s no business of mine.” The Queen turned crimson with fury, and, after glaring at her for a moment like a wild beast, began screaming “Off with her head! Off with – ” “Nonsense!” said Alice, very loudly and decidedly, and the Queen was silent. (CARROLL, 1999, p. 82) Coraline está situada em uma atmosfera de horror, assustadora. Apesar de não estar sozinha como Alice, já que conta com a ajuda do gato, a menina precisa voltar ao mundo paralelo, com sua “outra mãe” – a má, para resgatar seus pais verdadeiros. Então, lembra-se de um episódio que ocorrera quando era menor, no qual seu pai fala sobre o que é coragem: os dois tinham ido a um terreno baldio para que Coraline pudesse explorar o lugar. Contudo, havia um vespeiro em que, provavelmente, eles tinham pisado no caminho. O pai ficou sendo picado, para que desse tempo da filha sair de lá. Quando foi sua vez de escapar, esqueceu os óculos. Então, teve de voltar ao lugar, e explicou a Coraline que o que havia feito anteriormente, ao ficar atraindo as vespas, não era coragem porque ele não tivera medo: na verdade, era a única coisa a ser feita. Porém, voltar ao lugar para pegar os óculos, sabendo que as vespas ainda estavam lá, aquilo era coragem, pois dessa vez sentia medo. “‘Because’, she said, ‘when you’re scared but you still do it anyway, that’s brave.’” (GAIMAN, 2003, p. 59). Nas duas obras, as meninas são representadas pela inocência e, ao mesmo tempo, pela esperteza das crianças. Durante as narrativas, tanto Alice quanto Coraline vivem questionando os acontecimentos e chegando a suas próprias conclusões. Talvez a maior diferença entre as duas seja o fato de Alice estar em mundo desregrado, não importando muito o que ela faça, já que não há nexo nas atitudes dos indivíduos que ali vivem, enquanto Coraline precisa calcular seus passos e acertar nas decisões para que tudo se resolva. 3.2 Cat e Cheshire Cat Outra figura presente nas duas obras é a do gato. Em Alice’s Adventures in Wonderland, ele aparece na forma do famigerado Cheshire Cat. Sua primeira aparição é na cozinha da Duquesa, onde Alice avista o animal sorrindo. Curiosa, pergunta o porquê de o gato estar sorrindo o tempo todo. “‘It’s a Cheshire-Cat,’ said the Duchess, ‘and that’s why.’” (CARROLL, 1999, p. 60). Adiante, Alice encontra-o no galho do uma árvore e tenta algum auxílio. Tem-se aqui um dos diálogos mais conhecidos da obra: “Cheshire-Puss,” she began, rather timidly, as she did not at all know whether it would like the name: however, it only grinned a little wider. “Come, it’s pleased so far,” thought Alice, and she went on. “Would you tell me, please, which way I ought to go from here?” “That depends a good deal on where you want to get to,” said the Cat. “I don’t much care where-” said Alice. “Then it doesn’t matter which way you go,” said the Cat. “-so long as I get somewhere,” Alice added as an explanation. “Oh, you’re sure to do that,” said the Cat, “if you only walk long enough.” (CARROLL, 1999, p. 64-65). Sem sucesso, Alice segue para a casa da March Hare, para o também famoso episódio do Mad Tea-Party. É importante retomar a obra de Gaiman considerando dois universos paralelos, onde aquele através do túnel é uma cópia do real, com personagens semelhantes (ao menos a uma primeira impressão, já que depois Coraline lamenta tê-los achado parecidos uma vez) criados pela “outra mãe”. Contudo, o gato aparenta ser o mesmo nos dois mundos: ele e Coraline parecem ser os únicos capazes de transitarem entre os dois lugares análogos. Além disso, o gato é capaz de falar no outro mundo, o que faz Coraline questionar se eles podem falar em qualquer local: “She also wondered whether cats could all talk where she came from and just chose not to, or whether they could only talk when they were here – wherever here was. (GAIMAN, 2003, p. 38). Quando fala com o gato pela primeira vez, Coraline irrita-se com a arrogância do bicho, mas, ao pedir ajuda, recorre ao mesmo recurso de Alice e pede educadamente a ele informações sobre o outro mundo: There was something irritatingly self-centered about the cat, Coraline decided. As if it were, in its opinion, the only thing in any world or place that could possibly be of any importance. Half of her wanted to be very rude to it; the other half of her wanted to be polite and deferential. The polite half won. “Please, what is this place?” The cat glanced around briefly. “It’s here,” said the cat. “I can see that. Well, how did you get here?” “Like you did. I walked,” said the cat. “Like this.” Coraline watched as the cat walked slowly across the lawn. It walked behind a tree, but didn’t come out the other side. Coraline went over to the tree and looked behind. The cat was gone.” (GAIMAN, 2003, p. 37-38) O gato de Neil Gaiman utiliza a mesma lógica adotada pelo Cheshire Cat: se a pessoa andar, chega a algum lugar. Aqui, seria a etapa final dessa “caminhada”, pois ele já chegara ao destino. Ainda, da mesma forma que o gato de Coraline desaparece de maneira misteriosa, o Cheshire Cat de Carroll também o faz: “‘All right,’ said the cat; and this time it vanished quite slowly, beginning with the end of the tail, and ending with the grin, which remained some time after the rest of it had gone.” (CARROLL, 1999, p. 67) Porém, a principal diferença entre os dois é que o gato de Coraline exerce papel fundamental para que a menina obtenha sucesso em seu resgate. É ele quem auxilia Coraline, mostrando onde os pais da garota estavam no dia em que sumiram: “Do you know where Mummy and Daddy are?” The cat blinked at her, slowly. “Is that a yes?” The cat blinked again. Coraline decided that was indeed a yes. “Will you take me to them?” The cat stared at her. Then it walked out into the hall. She followed it. It walked the length of the corridor and stopped down at the very end, where a full-length mirror hung. (…) Coraline turned on the light in the hall. The mirror showed the corridor behind her; that was only to be expected. But reflected in the mirror were her parents. (GAIMAN, 2003, p. 53) O gato também dá dicas sobre como ela pode criar uma estratégia para resgatar seus pais e a alma das crianças fantasmas: “‘Do you have any advice?’ asked Coraline. The cat looked as if it were about to say something else sarcastic. Then it flicked its whiskers and said, ‘Challenge her. There’s no guarantee she’ll play fair, but her kind of thing loves games and challenges.’” (GAIMAN, 2003, p. 65). Deste conselho resulta a ideia de Coraline propor à “outra mãe” um jogo, no qual se a menina conseguisse achar as três almas das crianças- fantasmas, que se encontravam em bolas de gude, mais os pais dela, poderia ir embora daquele mundo. Cabe dizer que a “outra mãe” possuía alguns ratos como cúmplices, que a obedeciam e informavam sobre o que acontecia por lá (“‘...but the rats in this place are all spies for her. She uses them as her eyes and hands...’” (GAIMAN, 2003, p. 75)). Como outro gato qualquer, o auxiliar de Coraline não simpatizava com o pequeno animal. Assim, por duas vezes, o gato mata ratos, sendo a segunda determinante para que Coraline pudesse pegar a bola de gude que faltava: She opened the eyes and saw the rat. It was lying on the brick path at the bottom of the stairs with a surprised look on its face – which was now several inches away from the rest of it. Its whiskers were stiff, its eyes were wide open, its teeth visible yellow and sharp. A collar of wet blood glistened at its neck. Beside the decapitated rat, a smug expression on its face, was the black cat. It rested one paw on the gray glass marble. “I think I once mentioned,” said the cat, “that I don’t like rats at the best of times. It looked like you needed this one, however. I hope you don’t mind my getting involved.” (GAIMAN, 2003, p. 122) Outra importante intervenção do gato na história acontece no final, quando Coraline já resgatou as três bolas de gude com as almas das crianças, e falta apenas pegar o globo de vidro contendo seus pais. Então, para distrair a “outra mãe”, Coraline lança o gato para cima da mulher, conseguindo alcançar o globo. And, hard as she could, she threw the black cat toward the other mother. It yowled and landed on the mother’s head, claws flailing, teeth bared, fierce and angry. Fur on end, it looked half again as big as it was in real life. Without waiting to see what would happen, Coraline reached up to the mantelpiece and closed her hand around the snow globe, pushing it deep into the pocket of her dressing gown. (GAIMAN, 2003, p. 131) 3.3 Outros recursos de intertextualidade Após a comparação entre as personagens principais, Alice e Coraline, e os gatos, presentes nas duas obras, esta seção irá tratar de forma mais abrangente alguns recursos utilizados por Neil Gaiman que remetem mais uma vez à obra de Lewis Carroll. Ao decorrer da narrativa, Gaiman coloca, de maneira personalizada, alguns elementos contidos tanto em Alice’s Adventures in Wonderland quanto em Through the Looking-Glass and What Alice Found There. Será mostrado como o autor se apropria desses elementos e de que forma os adapta no seu romance Coraline. 3.3.1 Os poemas Lewis Carroll, além de livros sobre aritmética e lógica, escrevia também poemas. Suas duas obras sobre as aventuras de Alice contêm diversos poemas feitos pelo autor, alguns como paródias de outras canções da época, e muitos deles nonsense. Muitas dessas paródias, devido à época em que a obra foi criada, não são perceptíveis aos leitores. Em Alice’s Adventures in Wonderland, no capítulo “A Mad Tea Party”, no qual Alice vai tomar um chá com o Hatter e a March Hare, há um exemplo de paródia que pode ser percebido pelo leitor. O chapeleiro conta que, em um concerto organizado pela rainha, ele teve que cantar a música: “Twinkle, twinkle, little bat! How I wonder what you’re at! Up above the world you fly Like a tea-tray in the sky. Twinkle, twinkle-” (CARROLL, 1999, p. 73-74) Trata-se de uma paródia da primeira estrofe do famoso poema “The Star”, de autoria de Jane Taylor: “Twinkle, twinkle, little star, How I wonder what you are! Up above the world so high, Like a diamond in the sky.” Outros famosos poemas de Carroll são o nonsense “The Walrus and the Carpenter” e a paródia do poema “The Spider and the Fly”, de Mary Howitt, “The Morck Turtle” (adaptada pela banda Franz Ferdinand para compor a trilha sonora do filme Alice in Wonderland, de 2010, dirigido por Tim Burton). Em Coraline, Neil Gaiman cria algumas estrofes, contendo quatro versos, e faz com que estas sejam as vozes dos ratos do outro mundo, espiões da “outra mãe”, que sempre cantam em coro. No primeiro capítulo, quando Coraline vai deitar-se, sonha com “Little black shapes with little red eyes and sharp yellow teeth.” (GAIMAN, 2003, p. 11). E essas silhuetas cantavam para ela: “We are small but we are many We are many we are small We were here before you rose We will be here when you fall” (GAIMAN, 2003, p.12) Outra estrofe aparece, representando as vozes dos ratos, na primeira vez que Coraline visita o outro mundo. Eles aparecem em uma apresentação do tipo circense, treinados pelo outro Mister Bobo (que era um dos vizinhos de Coraline no mundo real e que, como tudo, existia no outro mundo também): “We have teeth and we have tails We have tails we have eyes We were here before you fell You will be here when we rise” (GAIMAN, 2003, p. 31) Gaiman faz uma analogia ao primeiro poema, e é assim com a outra estrofe, que aparece nos últimos capítulos, quando Coraline está em busca das bolas de gude. Apesar de as estrofes de Gaiman não serem tão longas e elaboradas quanto os poemas de Carroll, tornam-se interessantes por sempre representarem as vozes das criaturas do esgoto, dando um aspecto mais sombrio à obra. 3.3.2 A questão da identidade Quando Alice encontra-se com a Catterpillar, a primeira pergunta a ser feita pelo inseto é: who are you? E, devido às suas constantes mudanças de estatura, ela responde: “‘I–I hardly know, Sir; just at present – at least I know who I was when I got up this morning, but I think I must have been changed several times since then.’” (CARROLL, 1999, p. 47). Alice fica confusa e se questiona várias vezes sobre quem é. Logo quando chega à sala com várias portas, a menina se pergunta se poderia ter sido trocada durante a noite: “Dear, dear! How queer everything is to-day! And yesterday things went on just as usual. I wonder if I’ve been changed in the night? Let me think: was I the same when I got up this morning? I almost think I can remember feeling a little different. But if I’m not the same, the next question is ‘Who in the world am I?’ Ah, that’s the great puzzle!” And she began thinking over all the children she knew that were of the same age as herself, to see if she could have been changed for any of them. (CARROLL, 1999, p. 22-23) Carroll usa esse jogo de dubiedade de identidade durante todo o livro – há a parte em que o coelho branco chama Alice de Mary Ann e ordena-lhe que pegue suas luvas. Alice obedece e só depois de uns minutos nota que foi confundida com aquela que deveria ser a criada do coelho. Em Coraline, a primeira vez que a menina conversa com o gato é marcada por essa dúvida quanto à identidade real do animal. Primeiro, após Coraline ter percebido que no outro mundo havia pessoas iguais às do mundo real, ela questiona se o gato é também apenas o outro gato. “The cat shook its heads. ‘No,’ it said. ‘I’m not the other anything. I’m me.’ It tipped its head to one side; green eyes glinted. ‘You people are spread all over the place. Cats, on the other hand, keep ourselves together. If you see what I mean.’” (GAIMAN, 2003, p. 36) Depois de se desculpar com o gato, que se sente ofendido quando Coraline diz que gatos não podem falar, a menina tenta recomeçar uma conversa. “Please. What’s your name?” Coraline asked the cat. “Look, I’m Coraline. Okay?” The cat yawned slowly, carefully, revealing a mouth and tongue of astounding pinkness. “Cats don’t have names,” it said. “No?” said Coraline. “No,” said the cat. “Now, you people have names. That’s because you don’t know who you are. We know who we are, so we don’t need names.” (GAIMAN, 2003, p. 37) Essa discussão sobre nomes é retomada posteriormente, quando Coraline já está presa no outro mundo: “Oh. It’s you,” she said to the black cat. “See?” said the cat, “It wasn’t so hard recognizing me, was it? Even without names.” “Well, what if I wanted to call you?” The cat wrinkled its nose and managed to look unimpressed. “Calling cats,” it confided, “tends to be a rather overrated activity. Might as well call a whirlwind.” “What if it was dinnertime?” asked Coraline. “Wouldn’t you want to be called then?” “Of course,” said the cat. “But a simple cry of ‘dinner!’ would do nicely. See? No need for names.” (GAIMAN, 2003, p. 65) Uma discussão acerca do mesmo tema é vista também em Through the Looking-Glass and What Alice Found There, no momento em que Humpty Dumpty pede a Alice para que se apresente. “My name is Alice, but – “ “It’s a stupid name enough!” Humpty Dumpty interrupted impatiently. “What does it mean?” “Must a name mean something?” Alice asked doubtfully. “Of course it must,” Humpty Dumpty said with a short laugh: “my name means the shape I am – and a good handsome shape it is, too. With a name like yours, you might be any shape, almost.” (CARROLL, 1999, p. 208) 3.3.3 O nonsense As obras de Carroll são evidentemente marcadas pelo uso do nonsense, que é caracterizado pela falta de coerência na ordem das coisas, considerado como absurdo. Nas duas obras de Alice, o autor aproveita a atmosfera onírica para usar livremente aspectos surrealistas e dadaístas (mesmo com os termos não sendo difundidos na época) nas histórias. O mais conhecido exemplo de nonsense de Carroll é seu poema Jabberwock, contido na segunda história de Alice. Em Through the Looking-Glass and What Alice Found There, para chegar à terceira casa, Alice precisa pegar um trem. Quando a menina chega perto da máquina, o guarda pede que ela lhe apresente o bilhete pra entrar: “Tickets, please!” said the Guard, putting his head in at the window. In a moment everybody was holding out a ticket: they were about the same size as the people, and quite seemed to fill the carriage. “Now then! Show your ticket, child!” the Guard went on, looking angrily at Alice. And a great many voices all said together (“like the chorus of a song”, thought Alice) “Don’t keep him waiting, child! Why, his time is worth a thousand pounds a minute!” “I’m afraid I haven’t got one,” Alice said in a frightened tone: “there wasn’t a ticket- office where I came from.” And again the chorus of voice went on. “There wasn’t room for one where she came from. The land is worth a thousand pounds an inch!” “Don’t make excuses,” said the Guard: “you should have bought one from the engine-driver.” And once more the chorus of voices went on with “The man that drives the engine. Why, the smoke alone is worth a thousand pounds a puff!” Alice thought to herself “Then there’s no use in speaking.” (CARROLL, 1999, p. 169-170) Mesmo na edição comentada, não foi descoberto o significado da expressão usada por Carroll: “Worth a thousand _____ a _____”, contendo apenas suposições acerca do enunciado. O nonsense em Coraline é introduzido em uma cena bastante parecida com a do trem de Alice. Quando Coraline chega à outra casa das irmãs Miss Spink e Miss Forcible, no outro mundo, há um espetáculo prestes a começar. Ela observa várias poltronas livres e, ao entrar, é abordada por um cachorro, que imediatamente pede à menina o bilhete para assistir à apresentação: The dog put the flashlight down on the floor, and looked up at her. “Right. Let’s see your ticket,” he said gruffly. “Ticket?” “That’s what I said. Ticket. I haven’t got all day, you know. You can’t watch the show without a ticket.” “Coraline sighed. “I don’t have a ticket,” she admitted. “Another one,” said the dog gloomily. “Come in here, bold as anything. ‘Where’s your ticket?’ ‘Haven’t got one,’ I don’t know…” It shook its head, then shrugged. “Come on, then.” (GAIMAN, 2003, p. 39-40) O cão deixa a criança entrar e ela se senta, esperando a atração ter seu início. Então, as duas vizinhas de Coraline aparecem e começam a apresentação com algo que é habitualmente visto em circos: Miss Spink sobre um monociclo fazendo malabares, enquanto sua irmã a segue, pulando e espalhando pétalas de flores pelo palco. Até então, nada de estranho acontecera, até que o nonsense se manifesta na obra de Gaiman: Then they unbuttoned their fluffy round coats and opened them. But their coats weren’t all that opened: their faces opened, too, like empty shells, and out of the old empty fluffy round bodies stepped two young women. They were thin, and pale, and quite pretty, and had button eyes. The new Miss Spink was wearing green tights, and high brown boots that went most of the way up her legs. The new Miss Forcible wore a white dress and had flowers in her long yellow hair. (GAIMAN, 2003, p. 40-41) Assim, as irmãs chamam Coraline ao palco para participar de um número, no qual uma bexiga é colocada sobre a cabeça da menina e Miss Forcible atira uma faca, que estoura o balão. A menina então volta ao seu lugar e conversa com os cachorros, que compõem a plateia do espetáculo, sobre a duração da apresentação das irmãs, que naquele momento encenavam algumas cenas: “This bit finishes soon,” whispered the dog. “Then they start folk dancing.” “How long does this go on for?” asked Coraline. “The theater?” “All the time,” said the dog. “For ever and always” “Here,” said Coraline. “Keep the chocolates.” “Thank you,” said the dog. Coraline stood up. “See you soon”, said the dog. “Bye,” said Coraline. (GAIMAN, 2003, p. 44) A infinidade do show das irmãs remete ao episódio do Mad Tea-Party, de Alice’s Adventures in Wonderland, no qual Alice fica furiosa com as charadas sem respostas feitas pelos participantes da mesa de chá: Alice sighed wearily. “I think you might do something better with the time,” she said, “than wasting it in asking riddles that have no answers.” “If you knew Time as well as I do,” said the Hatter, “you wouldn’t talk about wasting it. It’s him.” “I don’t know what you mean,” said Alice. “Of course you don’t!” the Hatter said, tossing his head contemptuously. “I dare say you never even spoke to Time!” “Perhaps not,” Alice cautiously replied; “but I know I have to beat time when I learn music.” “Ah! That accounts for it,” said the Hatter. “He wo’n’t stand beating. Now, if you only kept on good terms with him, he’d do almost anything you liked with the clock.” (CARROLL, 2003, p. 72) Logo após, o chapeleiro explica a Alice que, no concerto organizado pela Queen of Hearts, ele brigou com o Tempo e que, desde então, ele não o obedecia mais. “‘And ever since that,’ the Hatter went on in a mournful tone, ‘he wo’n’t do a thing I ask! It’s always six o’clock now.’” (CARROLL, 2003, p. 74). E esse seria o motivo pelo qual eles tomavam chá a todo o momento. Assim, de diversas maneiras a intertextualidade se faz presente na obra de Gaiman, dialogando com a obra de Carroll tanto na construção dos personagens quanto no desenvolvimento da narrativa, na forma de diálogos, eventos e até mesmo recursos estilísticos. A apropriação textual da obra do século XIX por Neil Gaiman em Coraline, por vezes chamado pela crítica de “dark Alice”, é significativa para a construção da sombria história da menina que, através de uma porta, entra em um mundo paralelo igual e, ao mesmo tempo, muito diferente do seu. De acordo com Paulino, Walty e Kury (1995, p. 15), “falar em autonomia de um texto é, a rigor, improcedente, uma vez que ele se caracteriza por ser ‘um momento’ que se privilegia entre um início e final escolhidos.” Dessa maneira, o que Gaiman realiza é uma adequação da literatura de Carroll que, acrescida de objetos pertencentes à contemporaneidade, como será apresentado no próximo capítulo, resulta em seu bem sucedido primeiro romance infantil. 4. CORALINE, FREUD E O UNCANNY Freud define o uncanny [insólito], originalmente Unheimlich, como o estado de estranhamento de algo que, de alguma forma, parece conhecido. O psicanalista rompe com os padrões da estética vigente, os quais abordam o paradigma do belo, e leva em consideração o aterrorizante, aquilo que causa repulsa e aflição. A princípio, explica a etimologia da palavra alemã Unheimlich. Seria o contrário de Heimlich, que significa familiar, doméstico. Assim, o Unheimlich deveria ser o que não é familiar. Porém, Freud faz uma denominação mais complexa da palavra: define Unheimlich como algo que é familiar, mas estranho ao mesmo tempo; é aquilo que deveria ter permanecido oculto, mas, de alguma maneira, veio à luz. Então, para exemplificar o uncanny, recorre a diversificados exemplos, também na literatura, como, por exemplo, ao conto The Sandman, de E.T.A. Hoffmann. Após o resumo do conto, destaca que o uncanny está ligado ao Sandman e à ideia de ter os olhos arrancados. Acrescenta que, na psicanálise, é provado que um dos maiores temores, tanto de crianças quanto adultos, é perder os olhos. Considerando esse ponto de Freud, pode ser discutida a questão de que Neil Gaiman utilizou-se de recursos contidos nos estudos do psicanalista, como o uncanny, por exemplo. No artigo “‘Something Very Old and Very Slow’: Coraline, Uncanniness, and Narrative Form”, o autor Richard Gooding mostra a outra casa, onde Coraline descobriu um mundo parecido com o seu, como a manifestação do uncanny: (…) a home that is familiar but unknown, an instance of what “ought to have remained hidden and secret, and yet comes to light” (Freud 376). There are doubles, the dead, talking animals, toys coming to life, the constant threat of blindness and mutilation (not only in the black button eyes of the other parents but also in Coraline’s blinding of the other father and the bargain she strikes with the other mother), the apparent reading of Coraline’s mind, immediate wish fulfillment, and so on. The most striking uncanny effects are achieved independent of Coraline’s perspective, and they emerge from arresting, nightmare transformations of mundane conversation. (GOODING, 2008, p. 394) Em um primeiro momento, Coraline simpatiza com a outra casa, com a “outra mãe”, a outra família – tudo parece perfeito. Entretanto, quando a “outra mãe” diz que, para ela ficar lá e ser feliz para sempre, terá de trocar seus olhos por botões (como todos os que viviam lá), a menina se desespera e deseja sair do lugar. A escolha dos olhos por Gaiman parece proposital, visto que, na análise freudiana, é destacado o quão temido é a perda do órgão pelo ser humano e a relação disso com a perda da noção de realidade. Depois, diz: “Many people experience the feeling [uncanny] in the highest degree in relation to death and dead bodies, to the return of the dead, and to spirits and ghosts.” (FREUD, 1999, p. 13). Na passagem em que Coraline faz um trato com a “outra mãe” e faz a mulher jurar que o cumpriria, há essa relação com cadáveres e corpos mortos, bem como o retorno à vida: “How do I know you’ll keep you word?” asked Coraline. “I swear it,” said the other mother. “I swear it on my own mother’s grave.” “Does she have a grave?” asked Coraline. “Oh, yes,” said the other mother. “I put her in there myself. And when I found her trying to crawl out, I put her back.” “Swear on something else. So I can trust you to keep your word.” (GAIMAN, 2003, p. 92-93) Entretanto, Coraline demonstra não se incomodar com o relato da “outra mãe”. Gooding aponta que, no romance de Gaiman, o efeito desse sentimento é mais percebido por leitores adultos, já que os leitores jovens, assim como a protagonista, não estranharão certos elementos. While many adult readers undoubtedly perceive such moments as uncanny, children are theoretically less sensitive to them. With some notable exceptions to which I will return later, Coraline, with whom younger readers are likely to identify, generally seems immune to feelings of uncanniness. Elements related to animism—the living toys in the other bedroom, for example—are just intensely interesting to her (“This is more like it, thought Coraline” [30]), even though she is initially presented as having outgrown her toys and will later feign interest in her dolls to outwit the other mother. (GOODING, 2008, p. 394) Há também a ideia do duplo proposta por Freud. Ele sugere que quando a repetição passa a ser estranha em vez de aparente coincidência, há o uncanny. Em Coraline, essa repetição acontece quando a menina reconhece sua casa no outro mundo, com seus pais e seus vizinhos, porém o botão no lugar dos olhos remete à impressão do estranho que é familiar. Outros fatores mostrados como representações do duplo são as sombras e as imagens refletidas no espelho, ambas presentes no romance inglês. No filme, esses elementos freudianos parecem ser ainda mais explorados. Um novo personagem é inserido: um menino, que dá de presente a Coraline uma boneca bastante parecida com a garota, mas com botões em vez de olhos. Aqui, é reforçada a ideia do duplo como manifestação do uncanny: ao ver a boneca, Coraline sente-se atraída por algo que lhe parece familiar e, ao mesmo tempo, perturbador. Os conceitos propostos por Freud utilizados por Neil Gaiman elevam a posição de Coraline de um simples livro para crianças para uma obra mais elaborada, fazendo com que o autor pareça ter a psicanálise como referência de seu trabalho. Finalizando essa breve consideração sobre a psicanálise freudiana na obra de Gaiman, uma citação do artigo de Richard Gooding acerca da narrativa do autor inglês: Gaiman’s preference for these psychonarrative strategies allows readers greater interpretive latitude and therefore helps establish and maintain the double audience Gaiman claims for his work. However, by masking Coraline’s anxieties, these strategies complicate the task of assessing what kind of “big trouble” Coraline faces. While Coraline seems comfortable with the animistic world of fairy tales, narratorial coyness about her emotional responses to elements most closely associated with repression—dismemberment, live burial, blindness—places the precise extent of Coraline’s psychic development in the shadows. Clues to this second wellspring of the uncanny—repression—lie in the innovations to the narrative pattern Gaiman inherits from Lewis Carroll and C. S. Lewis. (GOODING, 2008, p. 396) Como assinalado na última oração da citação acima, a intertextualidade tanto com a obra de Carroll quanto a de Lewis remete a aspectos não somente de enredo ou de personagens com desenvolvimento narrativo semelhantes, mas para um recurso advindo da teoria psicanalítica freudiana a que Gaiman e todo escritor do século XX teve acesso, ao contrário de Carroll. Este aspecto marca também uma diferença significativa entre a obra do século XIX e a do século XXI, visto que a complexidade do componente psíquico que Freud e outros críticos delinearam acrescenta aos expedientes narrativos do maravilhoso e do fantástico a sombria realidade de um mundo infantil em que medos, repressão e ameaças fazem parte não somente latente, mas sensível na experiência da personagem Coraline, atualizando o texto literário com as perspectivas que o conhecimento sobre o desenvolvimento da criança na sociedade contemporânea tem produzido até agora. 5. CONSIDERAÇÕES FINAIS O objetivo do trabalho foi mostrar em quais pontos Coraline dialoga com as duas obras de Lewis Carroll. Como dito, há intertextualidade entre o romance de Neil Gaiman com outras; porém, é necessário ressaltar que o escritor inglês criou uma obra singular, bastante inovadora entre as histórias infantis contemporâneas. Enquanto Lewis Carroll cria sua personagem e faz que suas aventuras ocorram em um nível onírico, com tudo se desfazendo quando Alice acorda, o sonho – ou pesadelo – de Coraline será apenas mais um espaço para que uma ação determinante ocorra: é no sonho que as crianças-fantasmas aparecem para avisar Coraline que não está tudo acabado, que a mão da “outra mãe” está no mundo real em busca da chave que liga os dois mundos, que ficou com Coraline. Como se viu, a narrativa de Neil Gaiman é rica em tensão e o uso dos recursos utilizados por Carroll é apenas um complemento para sua criação, e não o elemento principal. E Gaiman consegue utilizar-se deles apropriadamente, adaptando-os ao seu modo e tornando- os ideais ao texto. A construção de personagens com características parecidas com a de Carroll cabe perfeitamente à história, bem como os diálogos e outros recursos que dialogam com as obras do matemático. Propõe-se também que o autor tenha se utilizado do uncanny sugerido por Freud, justamente com a intenção de criar o aspecto assombroso da obra. Partindo do conceito de Julia Kristeva de que todo texto terá conteúdos de outros e passando brevemente pela psicanálise freudiana, procurou-se mostrar as possíveis e prováveis origens de determinados elementos, apresentando suas semelhanças, bem como destacando suas diferenças, mostrando como Neil Gaiman conseguiu apropriar-se dos mesmos, construídos há mais de um século, sem tirar o caráter original do seu “conto de fadas” contemporâneo. 6. REFERÊNCIAS CARROLL, Lewis. Alice’s Adventures in Wonderland. In: GARDNER, Martin. The Annotated Alice: The Definitive Edition. New York: W.W. Norton & Company, 1999. ______. Through the Looking Glass and What Alice Found There. In: GARDNER, Martin. The Annotated Alice: The Definitive Edition. New York: W.W. Norton & Company, 1999. CUDDON, John Antony. The Penguin Dictionary of Literary terms and Literary Theory. England: Penguin Books, 1992. p. 454. FREUD, Sigmund. The uncanny. [S.l.: s.n., 1919]. Disponível em: . Acesso em: 05 dez. 2011. GAIMAN, Neil. Coraline. New York: Harper Trophy, 2003. GOODING, Richard. "Something Very Old and Very Slow": Coraline, Uncanniness, and Narrative Form. Children's Literature Association Quarterly, v. 33, n.4, p. 390-407. 2008. Disponível em: . Acesso em: 05 dez. 2011. KOCH, Ingedore; BENTES, Anna Christina; CAVALCANTE, Mônica. Intertextualidade: Diálogos possíveis. São Paulo: Cortez, 2007. PAULINO, Graça; WALTY, Ivete; CURY, Maria Zilda. Intertextualidades: teoria e prática. Belo Horizonte: Lê, 1995 TODOROV, Tzvetan. Introdução à literatura fantástica. São Paulo: Perspectiva, 1975. 7. ANEXOS ANEXO A – Alice: Ilustração de John Tenniel ANEXO B – Coraline: Ilustração de Dave McKean CAPA FOLHA DE ROSTO RESUMO ABSTRACT SUMÁRIO 1. INTRODUÇÃO 2. METODOLOGIA: O CONCEITO DE INTERTEXTUALIDADE 3. INTERTEXTUALIDADE EM CORALINE 4. CORALINE, FREUD E O UNCANNY 5. CONSIDERAÇÕES FINAIS 6. REFERÊNCIAS 7. ANEXOS