PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE SÃO PAULO (PUC-SP) PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM RELAÇÕES INTERNACIONAIS – UNESP, UNICAMP E PUC-SP RODRIGO AUGUSTO DUARTE AMARAL OCUPAÇÃO E RECONSTRUÇÃO DO IRAQUE: A ATUAÇÃO DA COALIZÃO DE AUTORIDADE PROVISÓRIA (2003-2004) SÃO PAULO 2017 RODRIGO AUGUSTO DUARTE AMARAL OCUPAÇÃO E RECONSTRUÇÃO DO IRAQUE: A ATUAÇÃO DA COALIZÃO DE AUTORIDADE PROVISÓRIA (2003-2004) Dissertação apresentada ao Programa de Pós- graduação em Relações Internacionais da Universidade Estadual Paulista “Júlio De Mesquita Filho” (Unesp), da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp) e da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP), como exigência para obtenção do título de mestre em Relações Internacionais, na área de concentração “Paz, Defesa e Segurança Internacional”, na linha de pesquisa “Estratégia, Defesa e Política Externa”. Orientador: Paulo José dos Reis Pereira. SÃO PAULO 2017 RODRIGO AUGUSTO DUARTE AMARAL OCUPAÇÃO E RECONSTRUÇÃO DO IRAQUE: A ATUAÇÃO DA COALIZÃO DE AUTORIDADE PROVISÓRIA (2003-2004) Dissertação apresentada ao Programa de Pós- graduação em Relações Internacionais da Universidade Estadual Paulista “Júlio De Mesquita Filho” (Unesp), da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp) e da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP), como exigência para obtenção do título de mestre em Relações Internacionais, na área de concentração “Paz, Defesa e Segurança Internacional”, na linha de pesquisa “Estratégia, Defesa e Política Externa”. Orientador: Paulo José dos Reis Pereira. BANCA EXAMINADORA ____________________________________________________ Prof. Dr. Paulo José dos Reis Pereira (Pontifícia Universidade Católica de São Paulo) ____________________________________________________ Prof. Dr. Reginaldo Mattar Nasser (Pontifícia Universidade Católica de São Paulo) ______________________________________________ Profa. Dra. Deisy de Freitas Lima Ventura (Universidade de São Paulo) São Paulo, 2017 AGRADECIMENTOS Esse trabalho foi desenvolvido com o auxílio de uma bolsa concedida pela Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior (CAPES). Agradeço pelo auxílio outorgado. AGRADECIMENTOS Primeiramente, agradeço profundamente aos professores Reginaldo Nasser e Paulo Pereira que, desde o início da minha empreitada acadêmica, me deram todo apoio, ensino e suporte necessário para poder chegar até aqui. Sem eles nada disso seria possível. Agradeço a Professora Deisy Ventura pelas análises, críticas e conselhos no exame de qualificação, que me ajudaram na fase final da pesquisa. Agradeço a todo corpo docente do Programa San Tiago Dantas por todo ensinamento ao longo do mestrado, em especial aos professores Hector Luis Saint-Pierre, Samuel Alves Soares, Flávia de Campos Mello, Suzeley Kalil Mathias, bem como demais professores e colegas que me ajudaram nessa caminhada: Cláudia Alvarenga Marconi (PUCSP) e Fernanda Mello Sant’Anna (Unesp). Colegas do San Tiago Dantas, agradeço em especial a Giovana Vieira, Graziela e Isabela Silvestre. Aos colegas de GECI, lhes agradeço por cada reunião e palestra juntos, cada debate e críticas que me fizeram amadurecer academicamente. Agradeço a todos os amigos de pós, tanto do mestrado quando do doutorado, que ao longo desses dois anos fizeram parecer que os conheço já há uma vida toda: Willian, Helena, Renato, Roberto, Gessica, Priscila, Tomaz, Rodrigo, Alexandre, Karina, A. Raphael, Bruna, Elze, Alfredo, Carol, Mariana, Bruno, João, Arthur, Livia, Jéssica, Laís, Sara, David, Denis, Daniela e Vitor e tantos outros colegas que fizeram parte desse período tão importante da minha vida, dentro e fora da sala. A minha companheira de vida, Michelly S. Geraldo, quem conheci no momento mais difícil do mestrado, apareceu para mim e me ajudou em tudo que precisei. Não tenho palavras de tanta gratidão. Meses parecem anos. Por fim, aos que amo e agradeço por tudo que vivi até hoje, agradeço aos meus pais João Batista do Amaral pela inspiração para entrar na Academia e admiração que tenho por todas as conquistas, espero conseguir ser metade da pessoa que ele é; e minha mãe Maria Lucia pela paciência, carinho e cuidado de uma mãe que não poderia ser melhor para mim. Ao meu irmão mais velho Lucas, quem compartilhei todas minhas experiências acadêmicas, positivas e negativas, quem sempre esteve disposto a me ajudar e aconselhar. RESUMO Entre março de 2003 e junho de 2004, os Estados Unidos da América, em conjunto com a Grã-Bretanha, ocuparam o Iraque e obtiveram o status de Autoridade Provisória emitido pelo Conselho de Segurança da Organização das Nações Unidas (CSONU) na Resolução 1483 para reconstruir o Estado iraquiano após a derrubada do Regime Baath. Pela primeira vez desde o final da segunda Guerra Mundial, uma potência ganhava status de força ocupante pela Organização das Nações Unidas (ONU), sem ser um mandato da ONU propriamente, como usualmente nas operações de paz (Peacekeeping operations) regidas pelo órgão internacional. A invasão do Iraque em 2003, contou com um consenso no pensamento político norte- americano no qual os EUA teriam a responsabilidade e o dever de derrubar o regime de Saddam Hussein, que supostamente cometia crimes contra humanidade, representava uma ameaça à segurança internacional. Em grande medida, a fórmula norte-americana para a invasão e ocupação do Iraque consistiu em justificar suas ações em termos de “razão humanitária” e legitimá-las por meio de mecanismos jurídicos. A execução do plano de ocupação do Iraque contou com um papel fundamental de membros da elite iraquiana da oposição ao Regime Baath em apoio a agenda das potências anglo-americanas. Entretanto, se esse inédito processo de statebuilding for analisado deixando de lado essas premissas humanitárias, ao contrário do que fazem as análises mainstream de política externa dos EUA, pode-se identificar possíveis benefícios político-econômicos consequentes a esse projeto de reconstrução do Iraque. A partir da análise dos documentos oficiais da Coalizão de Autoridade Provisória (CAP) e o questionamento às premissas liberais internacionalistas que pautaram a justificativa e posteriormente as críticas aos resultados da administração da CAP, pudemos identificar possíveis benefícios político-econômicos aos EUA e suas corporações durante os 14 meses de ocupação. Sobretudo nos setores de energia, agricultura, serviços de segurança e infraestrutura, e ainda outros benefícios financeiros a setores não-estatais (como das Organizações não Governamentais e as economias informais). Em termos de poder, a ocupação resultou na aproximação entre EUA e Iraque de domínio norte-americano, e em termos de mercado a CAP liberalizou a economia iraquiana permitindo acesso de multinacionais a diversos setores do mercado iraquiano. Assim, evidencia-se a consolidação de uma agenda político-econômica iraquiana submissa aos interesses norte-americanos. Palavras-chave: Ocupação. Reconstrução. Iraque. Coalizão de Autoridade Provisória. Resolução 1483 do CSONU. Agenda político-econômica dos EUA. ABSTRACT Between March 2003 and June 2004, the United States of America (US), together with Britain, occupied Iraq and obtained the status of Provisional Authority granted by the UN Security Council in Resolution 1483 to rebuild the Iraqi state after the overthrow of the Baath Regime. For the first time since the end of World War II, an international power gained occupying power status through United Nations (UN), without being a UN proper mandate, as usually in peacekeeping operations governed by the international body. The 2003 invasion of Iraq had a consensus in American political though that the United States would have the responsibility and duty to overthrow Saddam's regime, which allegedly committed crimes against humanity, posed a threat to international security. To a large extent, the American formula for the invasion and occupation of Iraq consisted in justifying its actions in terms of "humanitarian reason" and legitimizing them by means of legal mechanisms. Implementation of the Iraq occupation plan had a key role for members of the Iraqi opposition elite to the Baath Regime in support of the Anglo-American powers agenda. However, if this unprecedented statebuilding process is analyzed by leaving aside these humanitarian premises, unlike the mainstream US foreign policy analysis, one can identify possible political-economic benefits that result from this reconstruction project in Iraq. Based on the analysis of the official documents of the Provisional Authority Coalition (CPA) and questioning the internationalist liberal premises that guided the justification and later criticism of the results of CPA administration, we were able to identify possible political-economic benefits to the US and its corporations during The 14 months of occupation. Particularly in the energy, agriculture, security services and infrastructure sectors, as well as other financial benefits to non-state sectors (such as NGOs and informal economies). In terms of power, the occupation resulted in the US-Iraq approaching of US dominance, and in terms of market CPA liberalized the Iraqi economy allowing multinational access to various sectors of the Iraqi market. Thus, it is evident the consolidation of an Iraqi political-economic agenda submissive to the North American interests. Keywords: Occupation. Reconstruction. Iraq. Coalition of Provisional Authority. UN Security Council Resolution 1483. US Political-Economic agenda. LISTA DE ABREVIATURAS E SIGLAS ADMs Armas de Destruição em Massa AIEA Agência Internacional de Energia Atômica ASIL American Society of International Law BCI Banco Central do Iraque BP British Petroleum CAC Comitê de Ação Conjunta CAP Coalizão de Autoridade Provisória CAP-IG Escritório da Coalizão Provisória Autoridade do Inspetor Geral CCI Conselho de Coordenação Internacional CENTCOM Center Commander Chief – Comandante do Comando Central dos EUA CEO Chief Executive offcer CGI Conselho Governamental Iraquiano CIA Central Intelligence Agency CICV Comitê Internacional da Cruz Vermelha CINCCENT Commander in Chief, CENTCOM CJCS Chairman, Joint Chiefs of Staff CJTF Combined Joint Task Force CJTF-7 Combined Joint Task Force – 7 CLI Conselho da Liderança Iraquiana CMATT Equipes de Treinamento de Assistência Militar da Coalizão CMOC Civil Military Operations Center CNPI Companhia Nacional de Petróleo do Iraque CPA Coalition Provisional Authority – Documents CPCI Corte Penal Central do Iraque CSF Coalition Stability Force CSONU Conselho de Segurança da ONU DAESH al-Daula al-Islamiya al-Iraq wa Sham (Estado Islâmico do Iraque e Sham [Levante]) DIH Direito Internacional Humanitário DoD Departamento de defesa dos EUA DoD-IG Gabinete do Inspetor Geral do Departamento de Defesa EII Exército Islâmico do Iraque EMSP Empresa Militar de Segurança Privada EUA Estados Unidos da America FDI Fundo de Desenvolvimento do Iraque FAO Food and Agricultural Organization of the United Nations FMI Fundo Monetário Internacional FY2003 US Fiscal Year 2003 FY2004 US Fiscal Year 2004 GAO Government Accountability Office GII Governo Interino do Iraque IAMB International Advisory and Monitoring Board IFAD International Fund for Agricultural Development IGC Iraq Governing Council INA Iraq National Accord - Acordo Nacional Iraquiano INC Iraq National Congress - Congresso Nacional Iraquiano ISF Forças de Segurança Iraquiana ISFA International Security Assistence Force - Força de Assistência de Segurança Internacional KDP Partido Democrático do Curdistão Kv Quilovolt LGN Gás Natural Liquefeito MP Ministério do Petróleo MSC Major Subordinate Commands NCCI NGO Coordination Comitee for Iraq OCDE Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Econômico OMB Escritório da Gestão de Orçamento ONG Organizações não Governamentais ONU Organização das Nações Unidas ORHA Escritório de Reconstrução e Assistência Humanitária PIB Produto Interno Bruto PMO Escritório de gerenciamento dos Programas PNAC Project for the New American Century POTUS President of US (Presidente dos EUA) PRB Program Review Board PRT Equipes de Reconstrução Provincial PUK União Patriótica do Curdistão REI Força Tarefa para Restaurar Eletricidade Iraquiana RI Relações Internacionais RSS Reforma no Setor de Segurança RTI Research Triangle Institute SECDEF Secretário do Departamento de Defesa dos EUA SCIRI Supremo Conselho para a Revolução Islâmica no Iraque SPI Serviço de Polícia do Iraque (Iraq Police Service) TAL Transitional Administration Law UM United Nations UNMOVIC Comissão das Nações Unidas de Monitoramento, Verificação e Inspeção UNSCOM Comissão Especial das Nações Unidas US United States of America USAID United States Agency for International Development - Agência dos Estados Unidos de Desenvolvimento Internacional USAID-IG Escritório do Inspetor-Geral da Agência dos Estados Unidos para o Desenvolvimento Internacional USDA US Department of Agriculture (Departamento de Agricultura dos EUA) SUMÁRIO 1 INTRODUÇÃO.....................................................................................................15 2 AS NARRATIVAS SOBRE A OCUPAÇÃO NORTE-AMERICANA NO IRAQUE.................................................................................................................25 2.1 O debate e a “razão humanitária”: a legitimação moral para a invasão do Iraque......................................................................................................................26 2.1.1 Confronto e encontro de ideias no pensamento político dos EUA: liberais e neoconservadores, o que dizem os teóricos sobre a ocupação norte-americana no Iraque?.....................................................................................................................28 2.1.2 A “razão humanitária” como justificativa...............................................................34 2.2 A legitimação da ocupação por meio de ferramentas legais..............................41 2.2.1 Tramitação jurídica nos EUA para um projeto de invasão e ocupação do Iraque (2003): do Ato de Libertação do Iraque (1998) à Resolução do Iraque (outubro de 2002) – O Nacional.................................................................................................42 2.2.2 Resolução 1483: consolidação da legitimidade de ocupar e administrar o território iraquiano, por meio do CSONU – O Internacional.................................................45 2.2.3 O estabelecimento de um conjunto normativo e estruturas institucionais para a reconstrução e restabelecimento da segurança nacional do Iraque, pela CAP - No Iraque.......................................................................................................................52 2.2.3.1 O conjunto normativo para ação da CAP no Iraque................................................53 2.2.3.2 O estabelecimento de estruturas institucionais para as práticas de reconstrução e restabelecimento da segurança nacional do Iraque, pela CAP...............................54 2.3 Conclusões parciais: O confronto de ideias e a consolidação de uma narrativa humanitária por meio de ferramentas jurídicas.................................................61 3 OS PRECEDENTES E A CONSTRUÇÃO DE UM PROJETO POLÍTICO- ECONÔMICO NORTE-AMERICANO.............................................................64 3.1 Os precedentes e a construção de um projeto de ocupação do Iraque.............65 3.1.1 Uma breve história do Iraque e sua submissão às potências globais......................66 3.1.2 Economia Política o Iraque a partir do Regime Baath e sua relação com as potências internacionais...........................................................................................70 3.2 Estabelecimento de uma ação conjunta das potências: EUA e Grã-Bretanha para o Iraque..........................................................................................................73 3.3 Articulação anglo-americana com as elites da “oposição iraquiana”...............79 3.4 O plano de ação da para a administração e reconstrução do Iraque...............85 3.4.1 A Estruturação do projeto norte-americano de ocupação e reconstrução do Iraque e suas mudanças.........................................................................................................86 3.4.2 Transformação do plano de ação no Iraque a partir da ocupação: Do Escritório de Reconstrução e Assistência Humanitária (ORHA) à CAP......................................90 3.5 Conclusões parciais : O Processo e a Estruturação do projeto de ocupação do Iraque......................................................................................................................94 4 OS RESULTADOS DA RECONSTRUÇÃO E DO ESTABELECIMENTO DE SEGURANÇA NO IRAQUE, SEGUNDO A LITERATURA MAINSTREAM NORTE-AMERICANA........................................................................................96 4.1 Reconstrução das bases iraquianas: Política, Economia e Infraestrutura.......97 4.2 Tática e ação pela segurança do Iraque e a Resistência civil..........................106 4.2.1 Tática e ação pela segurança do Iraque.................................................................106 4.2.2 Resistência Civil iraquiana durante a ocupação (2003-2004)...............................109 4.3 Identificando os problemas das ações no Iraque (2003-2004) sob comando CAP e a argumentação liberal de falhas da Coalizão no país..........................114 4.3.1 Recursos e Economia.............................................................................................116 4.3.2 Segurança...............................................................................................................118 4.3.3 Governança............................................................................................................120 4.3.4 Serviços Básicos....................................................................................................124 4.4 Conclusões parciais: O que foi feito no Iraque segundo a CAP e as abordagens mainstream norte-americanas.............................................................................127 5 OS RESULTADOS DOS 14 MESES DE OCUPAÇÃO FORMAL DOS EUA: UMA ARGUMENTAÇÃO SOBRE OS BENEFÍCIOS POLÍTICO- ECONÔMICOS PARA AS POTÊNCIAS OCUPANTES................................130 5.1 Um “bom negócio” para os EUA: possíveis benefícios político-econômicos da ocupação no Iraque.............................................................................................131 5.1.1 Elementos legais da CAP em direção à economia neoliberal iraquiana................132 5.2 Estabelecimento de “Segurança” e sua economia............................................135 5.2.1 Privatização da segurança: Ganhos econômicos da atuação das Empresas Militares e de Segurança Privada (EMSP) no Iraque ocupado.............................................135 5.2.2 Comércio de armas durante a Ocupação...............................................................140 5.3 A economia da Energia e Recursos Naturais: o Petróleo iraquiano, maior produto local........................................................................................................143 5.4 Possíveis benefícios advindos do mercado agrícola iraquiano........................150 5.5 Outros “negócios não-mencionados”.................................................................153 5.5.1 Fundos de Reconstrução e as dívidas iraquianas como elemento econômico funcional................................................................................................................154 5.5.2 ONGs no Iraque e o “mercado de ajuda humanitária”..........................................157 5.5.3 Crescimento da economia informal no país: Elemento transnacional lucrativo...159 5.6 Transferência de poder da CAP para o Governo Interino do Iraque: manutenção dos interesses das potências no Iraque........................................162 5.6.1 Consolidações políticas entre EUA e Grã-Bretanha com a “nova” elite do poder iraquiano: Aliança pela manutenção de projetos político-econômicos mútuos.....162 5.6.2 Determinantes legais para a transição do poder da CAP para o GII no Iraque.....164 5.7 Conclusões parciais: Possíveis benefícios político-econômicos das potências ocupantes..............................................................................................................168 6 CONSIDERAÇÕES FINAIS..............................................................................172 REFERÊNCIAS..................................................................................................181 APÊNDICE A – Cruzamento de informações sobre a elite iraquiana que apoiou a ocupação dos EUA e Grã-Bretanha no país.........193 APÊNDICE B – Lista de Empresas Militares de Segurança Privada (EMSP) no Iraque sob administração da CAP...................................198 ANEXO A – Organogramas e os planos de ação da Coalizão internacional no Iraque..............................................................................................199 ANEXO B - Lista da Coalizão de Autoridade Provisória no Iraque (Maio de 2003 à Junho de 2004): Regulações, Ordens oficiais, Atos Implementares e Memorandos.....................................................206 ANEXO C - Contratos concedidos pelas agências do Governo dos EUA, com dinheiro dos fundos Iraquianos....................................................213 15 1 INTRODUÇÃO Essa pesquisa tem como proposta identificar os possíveis benefícios político- econômicos aos EUA e suas corporações, resultantes da ocupação anglo-americana no Iraque entre março de 2003 e junho de 2004. Isso significa questionar os pressupostos liberais internacionalistas sobre os objetivos e resultados da referida intervenção, embasados em princípios como humanitarismo, democracia, boa governança e desenvolvimento. Ao contrário do que afirmam nessa literatura, partimos do pressuposto de que ao interpretarmos a ocupação anglo-americana no Iraque por meio de critérios político-econômicos, seus resultados foram positivos para as potências internacionais ocupantes, sobretudo o líder EUA, suas grandes corporações e alguns outros atores não-governamentais. Desta forma, levando em conta a liderança e o poder norte-americano, se comparado com o papel secundário da Grã-Bretanha, a questão orientadora desta dissertação será: Quais foram as consequências político-econômicas para os EUA e seus atores nacionais, sobretudo atores privados, com a ocupação do Iraque (2003-2004)? Inicialmente, para executar essa proposta consideramos necessário compreender dois momentos, o antes da ocupação e o durante a ocupação. Sobre esse primeiro momento compreender o debate no pensamento político norte-americano e quais as justificativas que endossaram o projeto de invasão e ocupação no plano das ideias, como se deu a tentativa norte-americana de construção de legitimidade para empreender esse projeto intervencionista e como foi o processo até o encadeamento da invasão em março de 2003. Sobre esse segundo momento apresentaremos o que a Coalizão Internacional realizou em solo iraquiano, indicando o argumento dos representantes da Coalizão de que os resultados trouxeram benefícios para o Iraque, bem como o argumento da literatura norte-americana mainstream de que os resultados foram negativos e por fim nosso argumento de que em termos político- econômicos a ocupação foi positiva para as potências ocupantes, suas corporações e outros entes não-governamentais. Antes de tudo, compreender como esse tema das ocupações internacionais está enquadrado nos estudos internacionais nos ajudará a entrar com mais clareza nesse caso da ocupação liderada pelos EUA no Iraque (2003-2004) e suas especificidades. Definimos aqui as ocupações internacionais como processos internacionais nos quais Estados invadem e dominam determinado território originalmente estrangeiro. Tais processos podem, ou não, ser consensuais, entretanto ocorrem majoritariamente sem o apoio da comunidade política (normalmente outro Estado, mas não necessariamente) ocupada. A 16 primeira definição oficial sobre o fenômeno da ocupação no direito internacional humanitário (DIH) está no artigo 42 do Regulamento de Haia de 1907 estabelece que “um território é considerado ocupado quando é efetivamente posto sob a autoridade do exército hostil, a ocupação abrange apenas o território onde essa autoridade tenha sido estabelecida e possa ser exercida” (INTERNATIONAL COMMITTEE OF THE RED CROSS, 2004). Ainda, é fundamental compreender que o fenômeno da ocupação internacional é diferente do seu estudo nas Relações Internacionais (RI), ou áreas acadêmicas correlatas, que também se difere do que está contido no Direito Internacional sobre os princípios normativos internacionais que se referem à Ocupação. O fenômeno da ocupação é tão antigo quanto à própria guerra. Carl von Clausewitz (1979, p.94-95) afirma que uma consequência da guerra é a invasão do território inimigo com o objetivo de devastá-lo e forçá-lo, bem como sua população local, a ceder aos seus interesses. Ainda, Clausewitz indica que a ocupação de territórios inimigos, pode ser tanto para devastá-lo, como para cobrar impostos, ou seja, destruir suas bases, ou se aproveitar dos espólios da guerra e da sua estrutura, portanto se beneficiando economicamente. Assim, o objetivo imediato da invasão é infligir um prejuízo geral ao inimigo. Porém, é apenas no início do século XX que a comunidade internacional, representada sobremaneira pelas potências internacionais da época, principalmente, Inglaterra, França, EUA e Rússia, se definiu um consenso sobre regulamentar formas de ocupação internacional, vistas, sobretudo pelo viés militar de tomada de poder e autoridade sobre outro território, determinando diretrizes legais para práticas de ocupação internacional contidas no Direito Internacional Humanitário. No Direito Internacional, as práticas de ocupação internacional só foram regulamentadas a partir do Direito Internacional Humanitário, inicialmente na convenção de Haia em 1907, na sessão III de suas regulamentações, dedicada a temática da autoridade militar sobre o território de um Estado hostil. Nela, 15 regulações (artigo 42 ao 56)1 determinavam em que contextos a ocupação internacional era permitida e quais as diretrizes legais para se administrar um território ocupado sem prejudicar a população e as estruturas do designado Estado. Posteriormente as diretrizes legais para ocupação internacional foram atualizadas na Quarta Convenção de Genebra em 1949, em que na parte 3 sobre o tratamento e o status de pessoas protegidas, a partir da sessão I se estabelecem as disposições comuns aos territórios das partes conflitantes e aos territórios ocupados (Artigos 27 ao 34), porém de 1 Recomendamos acessar as Regulações de Haia (1907) para obter maiores informações sobre essas diretrizes legais sobre ocupação internacional. 17 maneira mais específica na sessão III sobre as disposições e regulações para territórios ocupados (artigos 47 ao 78). Finalmente em 1977, o Primeiro Protocolo Adicional às regulações de Genebra, que afirma todos os artigos se aplicam a situações de conflitos armados em que os povos lutam contra a dominação colonial e a ocupação estrangeira e contra os regimes racistas no exercício do direito dos povos à autodeterminação. Em resumo, todos esses conjuntos normativos que se referem ao DIH abrangem regulações que se aplicam tanto a contextos de ocupação internacional, quanto de guerra (ROBERTS, 1984, p.250). Adam Roberts (1984, p. 256) afirma que ocupações internacionais são precedidas por invasões. Nas palavras dele, nos manuais de guerra dos EUA e Grã-Bretanha consta que as regras de conduta para territórios ocupados devem respeitar as mesmas diretrizes legais das normas de conduta em contextos de guerra (warfare). Peter Paret (1986, p.206) trabalha a ocupação, em Clausewitz, como decorrente das guerras de expansão territorial. Michael Walzer (2003, p.234) problematizando elementos morais da guerra, afirma as diretrizes da ocupação internacional moralmente justificável, a partir do princípio de necessidade militar. Che Guevara (1982), preocupado com as guerras de guerrilha e resistências civis, afirma que em grande medida essas formas de guerra eram respostas às injustiças consequente das invasões e ocupações internacionais a territórios estrangeiros. Em grande medida os estudiosos tradicionais da filosofia da guerra trabalham a ocupação internacional em termos estratégicos e militares como um fenômeno ordinário dos conflitos internacionais. Nos estudos internacionais, sobretudo nas RI, nos anos 1990 emergem pesquisas sobre operações de paz (Statebuilding, Peacebuilding, etc), como parte da grande área de Estudos de paz, ou Paz Liberal (como denominam seus críticos). Nesse sentido, entendemos que paz liberal consiste na ideia de que certos tipos de sociedades (liberalmente constituídas) tendem a ser mais pacíficos, tanto nos seus assuntos internos como nas suas relações internacionais, do que os Estados “não-liberais” (NEWMAN; PARIS; RICHMOND, 2009, p.11). A partir do pós-segunda guerra, existe uma correlação entre as práticas de ocupação e a justificação humanitária por detrás desta mesma que emergem como uma agenda intervencionista que domina as relações internacionais2, tendo no respaldo da Organização das Nações Unidas (ONU) e suas Operações de paz, como forma de legitimação as ocupações contemporâneas. Portanto, esse fenômeno de transição dos tipos de ocupação internacional comumente militar e consequentes as guerras, de certa forma, passa a ser substituída por essas novas formas de 2 Dizemos Relações Internacionais (RI em maiúsculo) para nos referir à área acadêmica-científica, ou disciplina acadêmica, e relações internacionais (ri em minúsculo) para nos referir ao fenômeno das relações entre atores internacionais. 18 ocupação conhecida como intervenções humanitárias, ou seja, substituindo a aparente característica militar das ocupações internacionais pela característica humanitária. Para as potências, o argumento prevalecente era que o grande desafio que a comunidade internacional enfrentaria no pós-Guerra Fria era o problema cada vez mais difundido do conflito civil em Estados “não-liberais”. Como consequência, iniciam-se diversas operações, cujo propósito declarado visava impedir que a violência reiniciasse após a cessação inicial das hostilidades - comumente denominada “peacebuilding pós-conflito” - foram conduzidas em oito Estados destruídos pela guerra desde o fim da Guerra Fria: Namíbia, Camboja, El Salvador, Nicarágua, Angola, Ruanda e Bósnia (PARIS, 1997, p.54). Na realidade, nota-se na literatura a substituição do termo ocupação para termos como operações de paz, Statebuilding, Peacebuilding, intervenções humanitárias, entre outras denominações semelhantes, que na prática são ocupações praticadas por atores internacionais com alta capacidade (econômica, política, militar), ou seja, potências internacionais, por meio do respaldo e a bandeira da ONU (RATNER, 2005). Em oposição às ocupações internacionais do passado, cuja característica imperial de expansão territorial e poder era latente e clara nos conflitos, as ocupações internacionais contemporâneas se caracterizam pelo: “curto” período de ocupação, pois seriam ações provisórias (PARIS, 2010, p.350); elas seriam multilaterais (HARRIS, 2006); elas não teriam objetivos de “poder”, ou seja, sem pretensões de dominação e submissão entre Estados, ou transferência (e exploração) de recursos (PARIS, 2010, p. 349); e, talvez mais importante, objetivos estritamente humanitários (FOX, 2008, p.4). Desta forma, desde a década de 1990, as ocupações internacionais são legitimadas pela comunidade internacional a partir desse discurso de paz liberal, embasado numa razão humanitária (FASSIN, 2012, p.83). Esta se tornou geralmente aceita como uma causa justa para a ocupação, ou pelo menos como uma causa que não podia ser desafiada publicamente (FASSIN, 2012, p.91). Isso significa que desde o fim da Guerra Fria, o debate sobre a manutenção da paz internacional tem sido dominado pela questão do chamado direito de intervenção humanitária, que sob a égide do discurso humanitarista do liberalismo internacional, mais do que um direito, é uma responsabilidade das potências internacionais. Assim, os defensores desse modelo de ocupação contemporânea são em grande parte dos estados ocidentais que tendem a defender as reivindicações internacionalistas liberais das quais novas normas internacionais que priorizam os direitos individuais à proteção prometem um quadro de paz liberal, caracterizada por uma estrutura de segurança internacional coletiva (CHANDLER, 2004, p.59). 19 Todavia, curiosamente, o caso Iraquiano da ocupação anglo-americana (2003-2004) revela alguns elementos não comuns, se comparados com as ocupações internacionais que emergem na segunda metade do século XX, sobretudo, a partir dos anos 1990. Deste modo, o experimento de statebuilding é destacado pela literatura como um caso particular (CHITALKAR; MALONE, 2013; DOBBINS et al, 2009; HARRIS, 2006; NEWMAN; PARIS; RICHMOND, 2009; PARIS, 2004). Nesse âmbito, a ocupação do Iraque - envolvendo eleições, processos constitucionais, ajuste econômico e fortalecimento institucional - desafiou ainda mais a legitimidade do projeto mais amplo de construção da paz (NEWMAN; PARIS; RICHMOND, 2009, p.16). Ela envolveu um caso peculiar em que o Conselho de Segurança da ONU (CSONU), por meio da Resolução 1483, reconheceu os EUA e a Grã-Bretanha como potências ocupante, ou Autoridade provisória do Iraque no período imediatamente após a derrubada do Regime de Saddam Hussein. A primeira grande disparidade com os modelos de ocupação das operações de paz, se refere a liderança do projeto de statebuilding do Iraque. A ocupação do Iraque não foi por mandato da ONU, como tradicionalmente as suas operações de paz. Na realidade, a ONU autorizada a ocupação anglo-americana denominando ambas as potências autoridades provisória do Iraque. Contudo, apesar de ser uma ocupação multilateral, todo aparato destinado para reconstrução, ajuda humanitária, estabilização política foi articulado pelo governo dos EUA (CHITALKAR; MALONE, 2013), portanto, se oficialmente era uma ocupação multilateral, na prática eram os EUA quem dava as cartas para a administração e suposta reconstrução do Iraque. Outro fato ímpar na ocupação do Iraque se refere ao contexto global de “guerra ao terror”. Logo após o 11 de setembro os EUA buscaram endossar uma agenda internacional para combater “grupos terroristas”, voltando-se em grande medida para Estados do Oriente Médio cuja especulação e probabilidade de servirem de safe haven para grupos terroristas era alta, segundo os norte-americanos. Dentro desse contexto, a invasão e posterior derrubada de Saddam Hussein em março de 2003, tinha essa premissa como justificativa. De maneira que um dos propósitos sob a justificação de que o país estava desenvolvendo armas de destruição em massa (ADMs) e isso representava um risco à segurança internacional, principalmente, pois havia o risco de proliferação dessas ADMs para grupos terroristas e por esta razão a necessidade de se livrar do Regime de Saddam Hussein no Iraque (CHITALKAR; MALONE, 2013, p. 5). No que se refere ao DIH, boa parte dos pesquisadores (BENVENISTI, 2012; CHITALKAR; MALONE, 2013; COHEN, 2006/07; DAWISHA, 2009; FOX, 2008; LUCAS; 20 RYAN 2009; HARRIS, 2006; SCHEFFER, 2008) afirmam que a lei de ocupação tradicional deveria ser readaptada ao contexto contemporâneo. O rescaldo da intervenção EUA no Iraque apresentou um raro exemplo em que a palavra “ocupação” foi utilizada sem grandes questionamentos, já que vimos que o termo ocupação fora substituído por termos da paz liberal. Naquele momento, ainda existam sérias dúvidas quanto ao fato de a lei internacional da ocupação continua o conjunto normativo indicador mais adequado na era da guerra moderna (HARRIS, 2006, p.1). As circunstâncias particulares do caso da ocupação do Iraque (2003) dificultavam a aplicação da lei de ocupação no seu aporte tradicional, de maneira que no plano ideal, o seu mandato deveria aplicar princípios (particularmente humanitários) da lei de ocupação que permanecem relevantes, ou aqueles que são jus cogens3; avançaria princípios sob o direito internacional moderno referente, por exemplo, aos direitos humanos, autodeterminação, meio ambiente e desenvolvimento econômico; e, em geral iria criar um regime jurídico adaptado exclusivamente para o território em questão. O reconhecimento de que certos princípios de direitos de ocupação são jus cogens, pode exigir a aplicação desses princípios nas circunstâncias implantação de tropas conforme a aprovação da ONU. No Iraque, as forças de ocupação anglo-americana da CAP excederam os princípios conservacionistas do direito de ocupação, assim perturbando profundamente a sociedade iraquiana, contribuindo para o crescimento de milícias e o sectarismo, deteriorando os padrões de vida local, acarretando na fuga de milhões de refugiados e elevando número de mortes de civis nos anos seguintes a intervenção de 2003 (SCHEFFER, 2008). Ainda, todo este processo de redefinições acerca da ocupação do Iraque demonstra como o Conselho de Segurança é vulnerável ao fluxo e refluxo da política internacional (CHITALKAR; MALONE, 2013), sobretudo das potências internacionais. Sendo assim, todas essas normas e diretrizes legais que se aplicavam aos contextos de ocupação internacional, bem estabelecidos nos regulamentos de DIH em Genebra e Haia, têm discrepâncias no caso da ocupação do Iraque (2003-2004). Afirmamos isso, pois nele encontramos peculiaridades que afasta o caso iraquiano das demais ocupações padrão que emergem a partir dos anos 1990. Apesar dos argumentos anglo-americanos que se centram em: 1) A ação não era dos EUA para o Iraque, senão a ação de uma Coalizão internacional, portanto multilateral; 2) Objetivos estritamente humanitários, no intuito de reconstruir as estruturas políticas e econômicas de um Estado Falido; 3) O fluxo de recursos seriam 3O termo jurídico jus congens que significa: norma peremptória; norma imperativa do Direito Internacional geral que é aceita e reconhecida pela sociedade internacional em sua totalidade, como uma norma cuja derrogação é proibida e só pode sofrer modificação por meio de outra norma da mesma natureza. (Art. 53 da Convenção de Viena sobre Direito dos Tratados de 1969). 21 injetados internacionalmente no Iraque, com o objetivo de prover subsídios para reerguer o país; 4) A ação seria provisória, portanto se tinha claro que o monopólio do gerenciamento do Iraque era temporário, que duraria o período necessário para uma transição de poder completa para um novo governo iraquiano pós-Baath, conforme veremos especificamente no primeiro capítulo. Claramente, houve uma preocupação em legitimar as ações anglo-americanas em direção a ocupação do Iraque. Entretanto, quatorze meses após a ocupação, com a retirada da CAP enquanto órgão responsável em administrar o Iraque, foi visto posições distintas no que se referem aos resultados desse processo de reconstrução do país. A CAP, por exemplo, considerava que depois de décadas de ditadura, a conseqüência da ocupação foi que o povo iraquiano passou a controlar seu destino, tendo todas as condições necessárias para um futuro livre e próspero. Assim, o Iraque estaria pronto para promover o desenvolvimento nacional baseado numa economia de mercado. E estaria livre de construir palácios para a elite e desenvolver armas de destruição em massa, poderia usar seus recursos para o benefício de seu povo. No cerne deste novo Iraque, para a CAP estaria o desenvolvimento de uma sociedade civil democrática, responsável e autogovernada, respeitadora dos direitos humanos e da liberdade de expressão. E ainda, apesar dos muitos desafios que teria pela frente o país estaria pronto para ser uma nação unida, próspera e capaz de tomar o seu lugar como um membro responsável da região e da comunidade internacional (CAP, 2004, p.71). Esta foi à forma pela qual a CAP do Iraque descreveu o “sucesso” das suas ações no processo de reconstrução do Iraque entre março de 2003 e junho de 2004. Porém, tal visão não é um consenso para políticos, analistas e pesquisadores internacionais. No que se refere à literatura tradicional acerca da ocupação norte-americana no Iraque entre 2003 e 2004, em que os EUA, e Grã-Bretanha, eram reconhecidos internacionalmente como autoridade provisória do Iraque, conforme prescrito na Resolução 1483 do CSONU, as ações no Iraque não foram eficazes, pelo contrário foram problemáticas em diversos aspectos, tanto políticos, econômicos, como de segurança. Tal literatura está concentrada majoritariamente por pesquisadores cuja premissa analítica está em imersa numa lógica liberal humanitária, da qual o intervencionismo contemporâneo é justificável se for embrenhado por uma “razão humanitária”4. Sendo assim, se as intervenções não atingissem esse propósito liberal humanitário elas teriam sido “falhas”. 4Termo cunhado por Didier Fassin (2012), o qual exploraremos de maneira mais aprofundada no primeiro capítulo. 22 Entretanto, e se considerarmos que os propósitos reais dessa atividade intervencionista seja algo que não essa razão humanitária? Se entendermos que a ocupação norte-americana teve objetivos político-econômicos que não a reconstrução e estabilização do Iraque? Ainda que pequena, há uma literatura, sobretudo nos estudos de Economia-Política Internacional, a qual argumentará o oposto desta liberal humanitária. Apesar das declarações emitidas pelas entidades e figuras do governo norte-americano (bem como britânica) nos documentos referentes à reconstrução do Iraque, existem objetivos político-econômicos bastante evidentes os quais não foram explicitamente declarados, mas que ao analisar os detalhes dos documentos e o desenvolvimento do “processo de reconstrução” é possível encontrar agentes beneficiários desse processo, sobretudo corporações anglo-americanas (DORAN, 2012; HALPERIN, 2011; HARVEY, 2005; HERRING, 2008; HERRING; RANGWALA, 2005; 2006; MOORE; PARKER, 2007; MUTTITT, 2012; NEOCLEOUS, 2014, entre outros). Talvez, mais importante que julgar se a intervenção anglo-americana no Iraque (2003- 2004) “deu certo”, ou “deu errado”, seria perguntar: para quem deu certo, ou errado? Indo além, mais importante é compreender quais são os pressupostos que levam alguns afirmarem que “deu certo, ou errado”. Afinal, se analisássemos por meio de uma lente teórica, ou ideológica, liberal, faríamos afirmações e conclusões sobre as condicionantes e resultados da reconstrução do Iraque, sobre a promoção de paz e ordem local, sobre o desenvolvimento de um regime político democrático, entre outras afirmações, assumindo que de fato o grande propósito da ocupação era humanitário e em prol do desenvolvimento do Iraque, conforme faz a literatura mainstream. Entretanto, optamos por uma análise dos resultados materiais político-econômicos, isso nos leva a afirmações e respostas sobre as relações sociais de produção, circulação, distribuição e comercialização de bens materiais durante a ocupação anglo-americana no Iraque, sobretudo voltando os olhares para o desenvolvimento de uma economia de mercado aberta e as consequências para corporações que participaram de alguma forma da ocupação iraquiana. Nesse sentido, partindo desse argumento sobre os benefícios político-econômicos da ocupação do Iraque, o propósito desta dissertação será justamente identificar o que se deu na prática durante a atuação da CAP (2003-2004) no Iraque. Assim, partimos do pressuposto de que os objetivos em termos de economia política dos EUA iam além do propósito humanitário. De forma que essa razão humanitária serviu de argumento justificador para os EUA, como líder da coalizão internacional, empreender a ocupação do território iraquiano. Diante disso, esta dissertação está estruturada da seguinte forma: No primeiro capítulo, 23 inicialmente apresentaremos o confronto e encontro de ideias no pensamento político dos EUA, sobre o que diziam os teóricos a respeito da ocupação norte-americana no Iraque, no contexto precedente a sua execução. Num segundo, momento veremos como as EUA construíram um aparato legal – em nível nacional (EUA), internacional (ONU), no território estrangeiro (Iraque) - para tentar justificar sua invasão e ocupação do Iraque, em conjunto com a Grã-Bretanha. As normas tornaram-se parte do conjunto de ferramentas estabelecido pelas Relações Internacionais para analisar o comportamento dos atores internacionais que é movido não apenas por uma preocupação com a maximização do interesse próprio, mas por uma “lógica de adequação” (MARCH; OLSEN, 1998). Assim, um ator internacional que promove regras e desenvolve aparatos legais para qualquer tipo de ação de origem intervencionista, é um ator poderoso, portanto a construção de uma legitimidade por meio do legalismo é mais um exercício de poder que poucos podem praticar. No segundo capítulo, iremos apresentar como se deu o processo da ocupação do Iraque. Nesse capítulo veremos os precedentes e a construção de um projeto político-econômico norte-americano e britânico, retomando argumentos históricos sobre a relação entre as potências e o Iraque desde a sua criação no início do século XX. Ele será fundamental para levantar os primeiros fatos que contribuirão para nossa hipótese de que houve benefícios político-econômicos nessa intervenção e que para além dos argumentos em favor da ocupação, que prevaleceram mergulhados numa lógica liberal humanitária, existiram razões (não-declaradas) para a intervenção que podem ser justificadas em termos de economia política. Fatos como a relação histórica de submissão do Iraque as potências, a estratégia de se coligar com determinadas elites da oposição iraquiana para viabilizar a ocupação e poder pleitear uma agenda dos interesses das potências, reforçam esse nosso argumento. No terceiro capítulo, já tendo em vista como se estruturou a agenda intervencionista para o Iraque e a forma como se realizaria em prática a reconstrução e a manutenção da segurança e ordem civil iraquiana. Apresentaremos inicialmente como se deu a prática de reconstrução e de segurança no Iraque. Em seguida, apresentaremos o que a literatura norte- americana mainstream afirmou sobre os resultados da ocupação e seus projetos de reconstrução, de maneira que, constataremos um padrão de afirmação de que o projeto deu “errado”, tendo como pressuposto as razões declaradas, as quais foram vistas sobremaneira no capítulo 1. No quarto capítulo, iremos apresentar os dados referentes à nossa hipótese de que houve benefícios político-econômicos para os EUA e suas corporações durante os 14 meses de ocupação do Iraque. Traremos das informações a respeito da inserção de corporações no 24 mercado iraquiano propriamente dito, das corporações que se beneficiaram, ou obtiveram contratos (subsídios públicos norte-americanos, ou de fundos internacionais) para a reconstrução e manutenção da ordem civil iraquiana durante esse período. Sendo assim, oporemos as afirmações do mainstream da literatura norte-americana que afirma que a ocupação foi um “fracasso”, pois deixaremos de lado os pressupostos liberais humanitários sobre a responsabilidade de reconstruir e proteger Estados “fracos” e levaremos em conta o pressuposto pragmático da economia de mercado. Este trabalho é uma análise descritiva do caso da ocupação anglo-americana no Iraque. Sendo assim, quanto às vias procedimentais, utilizaremos como fonte primária os documentos da CAP no Iraque, ou seja, regulações, atos implementares, ordens, memorandos e notas públicas, as quais foram todas compiladas por Stefan Talmon em 2013, na obra The Occupation of Iraq – Volume 25, no item “table of documents” das páginas xxiii - xxviii, os quais inserimos em anexo nesta dissertação, já que grande parte desses documentos serão referenciados ao longo desta dissertação (ver anexo A).6 Além disso, nos referimos a quatro tipos de literatura especializada para o desenvolvimento do nosso argumento: Uma que se refere ao pensamento político norte-americano, a qual será analisada no momento precedente a ocupação (o que disseram os teóricos antes da ocupação no capítulo 1) e no momento posterior (o que disseram esses teóricos após a saída da CAP em 2004, no cap. 3); outra descritiva sobre o processo de ocupação e seus precedentes (capítulo 2); outra sobre relato dos representantes da CAP no Iraque (capítulo 3); e por fim, outra sobre a economia-política da ocupação, trazendo argumentos elementares os quais nos baseamos para indicar os possíveis benefícios político-econômicos das potências e suas corporações e demais entes não- governamentais (capítulo 4). 5 Ao longo desse trabalho utilizamos majoritariamente a obra de Stefan Talmon (2013) Occupation of Iraq: Volume 2, a qual compila todas as Regulações, Ordens, Atos Implementares, Memorandos e Notas Públicas , documentos oficiais e decretos da CAP no Iraque. 6 Também recomendamos ao leitor, acessar ao mapa interativo do Iraque de 2003, elaborado pela CIA, contido online no website da Library of Congress norte-americano (UNITED STATES OF AMERICA, 2003a). 25 2 AS NARRATIVAS SOBRE A OCUPAÇÃO NORTE-AMERICANA NO IRAQUE Os EUA, a Grã-Bretanha e os parceiros da Coalizão, agindo sob o regime de comando e controle existente através do comandante das forças de coalizão, criaram a Autoridade Provisória da Coalizão [...] para exercer os poderes de governo temporariamente e, se necessário, especialmente para garantir a segurança, para permitir a entrega de ajuda humanitária e para eliminar as armas de destruição em massa (GREENSTOCK; NEGROPONTE, apud TALMON, 2013, p. 1.397, tradução nossa). Essa carta, escrita pelos Representantes Permanentes dos EUA e da Grã-Bretanha em 8 de maio de 2003, expressa um momento crucial da intervenção anglo-americana no Iraque, fase em que o regime Baath já havia sido derrubado pela Coalizão liderada pelos EUA e o próximo passo seria a reestruturação do Estado iraquiano. Porém, para implementar tal projeto, os norte-americanos e britânicos precisavam de autonomia para pôr em prática sua agenda no país. Para isso era necessário apoio e reconhecimento internacional em busca de legitimidade para uma ocupação provisória do Iraque. Neste sentido, esse primeiro capítulo vem apresentar o processo de tentativa de construção da legitimidade norte-americana para empreender a ocupação do Iraque, dividido em duas partes, que veremos nos tópicos a seguir: uma se refere à esfera “das ideias” sobre as razões para se invadir, ocupar e reconstruir o Iraque, permeadas predominantemente por um discurso humanitário e como parte do projeto “contraterrorista” internacional dos EUA, e sobre a necessidade de intervir no país e derrubar o regime Baath; a outra se refere à esfera legal, relativa a como foi conduzida a invasão, ocupação e reconstrução do Iraque em 2003, amparadas por diretrizes jurídicas de vários níveis (nacionais, tanto nos EUA como no Iraque, e internacionais, tanto pelo direito internacional como pela ONU). Primeiramente buscaremos enquadrar o confronto de ideias nos EUA no que concerne à intervenção e ocupação, ou não, do Iraque. A ideia inicial, portanto, é apresentar o que os teóricos dizem sobre a ocupação norte-americana do Iraque a partir da compreensão das narrativas contidas no pensamento político norte-americano, desde aqueles que endossavam o projeto até àqueles que a ele se opunham, analisando seus argumentos. Concomitantemente a esses debates, houve um processo legal para a execução da invasão e ocupação do Iraque. Demonstraremos o esforço do governo Bush e seu staff para aprovar internamente seu projeto intervencionista para o Iraque. Para isso, analisaremos o trâmite dessa aprovação nos EUA. Já no âmbito internacional, se num primeiro momento a ONU não aprovou a invasão anglo-americana do Iraque, a busca por legitimidade deu-se por completo pelo CSONU, a partir da Resolução 1483, com o reconhecimento dos EUA e da Grã-Bretanha como potências ocupantes do Iraque, responsáveis por executar a reconstrução 26 do país, sob o véu humanitário de que o Estado iraquiano precisava ser reconstruído. Por fim, com a CAP reconhecida pela ONU como instituição legítima no Iraque, dá-se início ao estabelecimento de um conjunto normativo composto de regulamentos, ordens, memorandos e notícias públicas (editais) para as práticas de reconstrução político-econômica e restabelecimento da segurança nacional do Iraque, que descreveremos como mecanismo jurídico para consolidação do projeto de ocupação, conforme os interesses das potências ocupantes, sobretudo dos EUA. Podemos dividir as razões para se empreender o projeto de invasão e ocupação do Iraque, em 2003, em três esferas: 1) como parte do grande projeto de “guerra ao terror”, porque havia a suspeita de que o país estava desenvolvendo armas de destruição em massa (ADMs), e isso representava um risco à segurança internacional, principalmente, pois havia o risco de proliferação dessas ADMs para grupos terroristas; 2) pela necessidade de se livrar do regime de Saddam Hussein e do Partido Baath no Iraque, sob a acusação de ser um regime político violento, que violava os direitos humanos (CHITALKAR; MALONE, 2013, p. 5); 3) para promover o desenvolvimento da democracia no Oriente Médio, iniciando esse projeto no Iraque. Nesse sentido, o discurso norte-americano consistia em reconstruir o Estado iraquiano tendo como base valores liberais como democracia, livre-mercado, etc. Todavia, para além desse fato, que se inserem às justificativas humanitárias e em prol da segurança internacional, o Regime de Saddam era um problema para ambas as potências internacionais no que se refere aos acessos políticos e econômicos para o Oriente Médio. Desde 1970, o Iraque era um país com relações econômicas e diplomáticas restritas, após a invasão anglo-americana inicia- se um processo de aproximação entre os países que permanece, mesmo após a ocupação. Isso é fundamental para posteriormente, compreendermos as razões não contidas nos discursos, e os resultados político-econômicos desse processo intervencionista que modificou as bases do Iraque. 2.1 O debate e a “razão humanitária”: a legitimação moral para a invasão do Iraque Diferentemente da invasão do Afeganistão, dias após os atentados do dia 11 de setembro, a ideia de invadir o Iraque em 2003 foi tema de polêmica e debate entre analistas, pesquisadores e políticos norte-americanos. Quando o Senado norte-americano votou pela intervenção no Iraque, havia muitos que questionavam a investida dos EUA contra o regime Baath. Se a invasão e empreitada no Afeganistão teve apoio quase completo, a aprovação de 27 uma agenda intervencionista no Iraque não foi unânime, contando com 70% do Congresso e Senado norte-americanos. Qual a razão dessa queda de credibilidade no projeto intervencionista dos EUA? A consequência imediata dos dias subsequentes aos ataques do 11 de setembro foi a constatação,pelo governo dos EUA,da necessidade de políticas contraterroristas para detectar, prevenir e combater o terrorismo. No início, as declarações de G. W. Bush e seus representantes do governo7 caracterizavam-se pela retórica agressiva e crescente exaltação dos princípios da liberdade civil e segurança norte-americana. Assim, moldavam-se nos EUA as primeiras bases do projeto de combate ao terrorismo internacional, que previa reforçar a segurança nacional, detectar e prevenir a ameaça terrorista, e que fora formalmente estabelecido com a aprovação do Ato Patriótico8 (USA, 2001), ratificado quase com unanimidade pelo Senado norte-americano.9 Nesse contexto, o presidente Bush declarou que o objetivo era desmontar organizações terroristas internacionais que ameaçavam a segurança nacional e global. Três dias após o ocorrido, o discurso era o mesmo: “[...] nossa responsabilidade com a história já estáclara: responder a esses ataques e livrar o mundo do mal. A guerra tem sido travada contra nós [...]” (BUSH, 2001b).10 As autoridades norte-americanas logo prescreveram que a resposta a essa ameaça à segurança nacional deveria ser dada por meio de uma solução militar. Indubitavelmente os ataques do 11/9 impulsionaram os EUA a tomarem rumos estratégicos não previstos antes dos ataques, como intervir em território soberano estrangeiro para derrubar um governo sob o argumento de que esse governo apoiava organizações terroristas, como no caso da intervenção no Afeganistão. O governo norte-americano afirmava que o regime do Talibã no Afeganistão apoiava a Al-Qaeda, de Osama Bin Laden, de maneira que estabeleceu estratégias político- militares para derrubar o Talibã e destruir a infraestrutura da Al-Qaeda no país. Desde alianças regionais com países vizinhos ao Afeganistão (Paquistão, Uzbequistão e Tajiquistão); assistência militar e treinamento a regimes aliados aos EUA; coalizões internacionais para legitimar sua “guerra ao terror”, como com os serviços de inteligência e policial da Europa e 7 No dia 20 de setembro de 2001, G. W. Bush declara “guerra ao terror” em uma sessão conjunta no Congresso dos EUA para os congressistas e o povo norte-americano (BUSH, 2001a). 8Ato Patriótico, ou US Patrio tAct, é o documento assinado pelo presidente G. W. Bush em 26 de outubro de 2001, que teve como objetivo estabelecer as primeiras diretrizes contraterroristas nos EUA. Seu acrônimo afirmava sua função: “Ato de Unir e Fortalecer a América Providenciando Ferramentas Apropriadas e Necessárias para Interceptar e Obstruir o Terrorismo” (UNITED STATES OF AMERICA, 2001). 9Noventa e oito senadores dos EUA votaram a favor do US Patriot Act of 2001. As exceções foram: o senador Landrieu, que não votou, e o senador Russ Feingold, de Wisconsin, o único que votou contra o Patriot Act em 24 de outubro de 2001. (ADACHI, 2006). 10No dia 14 de setembro de 2001, G. W. Bush discursa na American National Cathedral, em Washington D.C. (BUSH, 2001b). 28 Ásia, mobilizados para romper o fluxo financeiro da Al-Qaeda; até o uso da diplomacia pública para reduzir o apoio popular do grupo no Oriente Médio (CRENSHAW, 2010, p.69- 70) foram as estratégias iniciais de combate ao terrorismo internacional, representado pela figura da Al-Qaeda. O furor nacional após o primeiro ataque internacional ao solo continental norte- americano instigou o apoio popular ao projeto da “guerra ao terror”, que implicava uma grande estratégia, com três veias: 1) desenvolvimento de leis e políticas de combate ao terrorismo no território norte-americano; 2) desenvolvimento de uma agenda global de “combate ao terrorismo”, por meio do apoio ao desenvolvimento de leis e políticas contraterroristas na ONU e em outros Estados que não os EUA; 3) práticas intervencionistas em Estados que funcionam como safe havens para “grupos terroristas”, aos olhos norte- americanos (NASSER, 2010, p.41). Este terceiro elemento se materializou inicialmente com a invasão do Afeganistão, como vimos em 2001, e posteriormente, em 2003, deu forças ao projeto de invasão do Iraque sob o argumento de que o governo Baath, comandado por Saddam Hussein, desenvolvia ADMs que poderiam acabar nas mãos de terroristas, uma vez que o Iraque era, segundo os norte- americanos, um safe haven para células terroristas na região. Em 29 de janeiro de 2002, Bush11 enfatizou que o Iraque apoiava o terrorismo e estaria conspirando para desenvolver armas nucleares e outras de destruição em massa. Um ano depois, em 28 de janeiro de 2003, Bush usou o termo “eixo do mal” para se referir ao Irã, Coreia do Norte e Iraque (países que constituíam um eixo do mal), que ameaçavam a paz mundial, supostamente por buscarem armas de destruição em massa (ALEXANDER; KRAFT, 2008, p.245). Esta era a conjuntura de furor nos EUA, imediatamente antes da invasão do Iraque, em 2003. Neste cenário, o que diziam os teóricos, think tanks, pesquisadores, analistas políticos à época sobre esse projeto intervencionista para o Iraque? 2.1.1 Confronto e encontro de ideias no pensamento político dos EUA: liberais e neocons, o que dizem os teóricos sobre a ocupação norte-americana no Iraque? Sobre a paisagem intelectual norte-americana, a literatura sobre política externa e a grande estratégia dos EUA no mundo tem um domínio próprio que está contido na elite de segurança do país e se estende desde a academia (universidades) à burocracia (governo), às 11 Discurso do presidente George W. Bush, State of the Union Address, Washington, D.C., 29 de janeiro de 2002 (ALEXANDER; KRAFT, 2008, p.265-266). 29 fundações, aos think tanks e à mídia. Os indivíduos dessas instituições transitam em um movimento contínuo entre gabinetes do governo, fundações, institutos de pesquisa, cadeiras universitárias, independentemente do partido no controle do governo (ANDERSON, 2015, p.139). O ethos do pensamento político norte-americano sobre sua ação no mundo é historicamente composto pela busca hamiltoniana de vantagens comerciais para empresas norte-americanas no exterior, pelo dever wilsoniano de promover os valores como liberdade e democracia pelo mundo, pelo interesse jeffersoniano de preservar as virtudes da república das tentações estrangeiras e pela coragem jacksoniana em agir em defesa dos EUA e de seus cidadãos ante a quaisquer ameaças à honra e à segurança do país (ANDERSON, 2015, p.142). Perry Anderson (2015, p.152) dirá que, desde a década de 1940, o pensamento predominante em termos de política externa norte-americana é o wilsoniano e suas versões híbridas. Para Leffler e Legro (2008, p.3) as declarações de estratégia de política externa de Bush contêm muito mais do que platitudes sobre o valor da liberdade e dignidade humanas. Elas delineiam políticas que vão muito além da ênfase na ação militar unilateral e preventiva: concentrando uma atenção considerável nas vantagens de uma economia internacional aberta, defendem a importância do crescimento econômico global através de mercados livres e do livre comércio. Inserido nesse cenário, em grande medida o pensamento norte-americano, no que se refere à política externa do país, pode ser enquadrado em duas grandes correntes mainstream: liberal e neoconservadora. Nesse contexto, imediatamente anterior à invasão e à ocupação do Iraque, os conservadores norte-americanos tenderam a ser mais céticos sobre projetos de reconstrução nacional como uma espécie de bem-estar social internacional, ao passo que os liberais têm visto o esforço para criar um Iraque democrático como uma extensão do império norte-americano. No entanto, ambas as extremidades do espectro político vieram a apoiar os esforços de construção nacional no Iraque em diferentes momentos –como parte da “guerra contra o terrorismo”, para os conservadores, e em prol da intervenção humanitária, para os liberais (FUKUYAMA, 2005, p.1), ambos em congruência com o plano de invasão e ocupação do Iraque. O pensamento político liberal norte-americano sobre a intervenção no Iraque em geral se concentra na ideia de que os problemas vitais de segurança nacional, após os ataques terroristas de 11 de setembro, dependem do esforço e comprometimento dos EUA em promover a modernização do Oriente Médio. Isso implicaria internacionalizar o Iraque, ou seja, mudar as estruturas nacionalizadas do país, sobretudo economicamente (DAALDER, 2003). Segundo Daalder e Lindsay (2003), utilizavam a expressão “vencer a paz” para designar a condução correta da guerra contra o regime Baath, a reconstrução do Estado 30 iraquiano e a promoção dos valores democráticos no país. Para isso, o governo Bush deveria articular suas ações em parceria com a comunidade internacional, ou seja, não unilateralmente. John Ikenberry (2011) define os EUA como um “Leviatã liberal”, de maneira que, ao longo do governo Bush, os Estados Unidos seriam um fornecedor global de segurança, mas também ficariam menos sobrecarregados por regras e instituições. Na concepção de Ikenberry pré-invasão (2002), os EUA de Bush demonstravam uma ambição imperial de um Estado revisionista que procurava transformar suas vantagens momentâneas em poder. Ao contrário dos Estados hegemônicos do passado, na sua visão, os Estados Unidos não buscam território ou dominação política direta na Europa ou na Ásia: “A América não tem um império para se estender e nem uma utopia para estabelecer” (BUSH apud JARRATT, 2006, p.91), observou Bush em seu discurso em West Point. Mas as vantagens puras de poder que os Estados Unidos possuem e as doutrinas de preempção e antiterrorismo que está articulando, na realidade, desestabilizam governos e pessoas ao redor do mundo, como um império. Já Michael Mandelbaum (2002) exalta os EUA como um “governo do mundo”, sendo a missão no Iraque um contexto próprio para o país colocar em prática a tríade wilsoniana de estabelecimento dos valores: paz, democracia e livre mercado. Anne Marie Slaughter (2004) traz o exemplo da ocupação no Iraque para refletir o papel que os Estados Unidos assumiram de liderança, ao insistir em que muitos problemas internacionais têm raízes internas e que são abordados a esse nível – dentro das nações, e não simplesmente entre eles –, mas também estão a compreender a necessidade vital de abordar esses problemas multilateralmente, e não unilateralmente, por razões de legitimidade, partilha de encargos e eficácia, entendendo então que um mundo de redes governamentais, trabalhando ao lado e mesmo dentro de organizações internacionais tradicionais, deve ser particularmente atraente para o país (SLAUGHTER, 2004, p.4). No que se refere ao neoconservadorismo norte-americano, com o 11 de setembro, seus teóricos puderam retomar a visão do poder imperial dos EUA, que os neoconservadores defendiam há anos, mas que havia sido abandonada na última década. Prevalecia a ideia de que o terrorismo e os Estados que supostamente financiam ou apoiam tais grupos terroristas eram os grandes inimigos internacionais, substituindo o comunismo, durante a Guerra Fria, ou o fascismo, na Segunda Guerra Mundial. Contudo, diferentemente do contexto de Guerra Fria, em que havia um mundo bipolar, no do “combate ao terror” os EUA eram a única superpotência global responsável tanto por sua própria segurança como pela manutenção de uma ordem global compatível a seus interesses (TEIXEIRA, 2010, p.35-36). 31 Boa parte desses neoconservadores compreendia que os EUA deveriam assumir seu papel imperial global (BOOT, 2003; FERGUSON, 2005; KAPLAN; KRISTOL, 2003). Para Boot (2003), o país é um império desde 1803, quando os EUA compraram o território da Lousiana, porém, diferentemente do imperialismo europeu, denomina o modelo norte- americano como um “império liberal”, com o propósito de disseminar a democracia em territórios tiranos, para acabar com o terrorismo, os abusos militares e a proliferação de armas de destruição em massa. Nesse contexto pós-11 de setembro, dar uma resposta ao terrorismo seria devidamente a forma como uma potência à altura dos EUA deveria agir, demonstrando força e poder. Boot (2003), inclusive, indica que um modelo de “escritórios coloniais” (como no Iraque) deveria ser replicado para melhor garantir a reconstrução de países ocupados pelos EUA. Nial Ferguson (2005, p.16) afirma que o Iraque é a única linha de frente de um império americano, que, como todos os grandes impérios mundiais da história, aspira a muito mais do que apenas o domínio militar, ao longo de uma vasta fronteira estratégica. Ferguson (2005) olhava para os casos das intervenções no Afeganistão e no Iraque compreendendo que ummodelo de “império liberal” fazia sentido em termos de autointeresse e altruísmo norte- americano.Um modelo imperial liberal oferece melhores perspectivas para o crescimento econômico, garantindo não apenas a abertura econômica, mas, o mais importante, os fundamentos institucionais para o desenvolvimento bem-sucedido. Para Ferguson (2005), os EUA e seus cidadãos deveriam assumir esse papel imperial, de maneira que os Estados Unidos adquiriram um império, mesmo que os próprios americanos não tenham o espírito imperial. No entanto, ao contrário da maioria dos neoconservadores, Francis Fukuyama (2006) se opunha à investida no Iraque. Para Fukuyama (2006), o neoconservadorismo baseou-se em um conjunto de princípios coerentes que, durante a Guerra Fria, deram origem a grandes e sensatas políticas tanto no país como no estrangeiro. Os princípios, no entanto, podiam ser interpretados de várias maneiras e, durante os anos 1990, eles foram usados para justificar uma política externa americana que enfatizou demais o uso da força e levou logicamente à guerra no Iraque (1991). O neoconservadorismo acabou irreversivelmente identificado com as políticas da administração de George W. Bush em seu primeiro mandato, e qualquer esforço para recuperar o rótulo neste momento é provavelmente inútil.12 Fukuyama (2004) se incomodava com o excessivo idealismo de que os Estados Unidos poderiam transformar o 12 É notório que tal divergência de Fukuyama em relação aos demais neoconservadores à época o levou a criar um novo periódico, The American Interest, em 2005, composto por outros neoconservadores como Walter Russel-Mead, Eliot Cohen e Zbigniew Brzezinski. 32 Iraque em uma democracia deestilo ocidental e prosseguir, a partir daí, para democratizar o Oriente Médio amplamente. Afora essas duas vertentes (liberal e neoconservadora), houve uma dispersão de vozes eloquentes de oposição interna, sem eco no sistema político norte-americano, que entendia negativamente a ideia de “império norte-americano” (ANDERSON, 2015, p.115), afirmando que o processo de ocupação norte-americana é expressão de um projeto “imperialista” norte- americano, porém, de maneira crítica, condenando a invasão e ocupação (ANDERSON, 2015: HARVEY, 2005; HERRING; RANGWALA, 2005; 2006; LUNDESTAD, 2012; MANN; 2003; 2008; PARIS, 2010). Essa visão dos EUA como “império” e consequentemente o Iraque como sua “colônia” estaria, justamente, no fato de que os EUA ocuparam fisicamente o Iraque, instalaram um governo e aprovaram grande parte da legislação iraquiana por decreto, podendo sugerir-se o domínio quase total dos EUA sobre as forças globalizantes no país e, portanto, que o Estado iraquiano é quase exclusivamente um instrumento do império norte- americano (HERRING; RANGWALA, 2005). Herring e Rangwala (2005, p.668) irão apresentar duas formas de interpretar o caso iraquiano como reflexo desse novo imperialismo. Em uma extremidade do espectro, a globalização imperial é vista como efetivamente uma forma descentralizada da governança global, com os EUA como um Estado e capital dos Estados Unidos, que perdeu o seu papel de liderança. As forças da globalização são, portanto, organizadas hierarquicamente no que diz respeito aos Estados, economias e sociedades que estão se reconstituindo, mas não hierarquicamente uns em relação aos outros. Globalização descentralizada pode ser internacional (envolvendo vários Estados como atores dominantes) ou transnacional (envolvendo uma classe “desterritorializada” que governa por meio de Estados e outras instituições). Na outra extremidade do espectro, globalização é visto como um instrumento dominado pelos EUA. Roland Paris (2010, p.345) afirmará que os esforços para estabilizar o Iraque após a invasão também tiveram, pelo menos, uma semelhança parcial com as estratégias liberais de construção da paz empreendidas pelas Nações Unidas em outros lugares e por outras agências internacionais em países emergentes de guerras civis. As eleições, os processos constitucionais, o ajuste econômico orientado para o mercado e o fortalecimento institucional foram fundamentais para o plano norte-americano no Iraque e também eram parte da fórmula padrão para operações de paz sob mandato da ONU. Dadas essas semelhanças aparentes e os efeitos desastrosos da invasão do Iraque, não demorou muito para que os comentaristas começassem a relacionar a guerra do Iraque, e as missões internacionais de construção da paz, 33 a parte de um abominável fenômeno de “imperialismo democrático” ou de “construção nacional imperial”.13 Porém, apesar dessas críticas e concepções em oposição à invasão e à posterior ocupação do Iraque, prevaleceu a ideia de que tal processo era necessário. De um lado, neoconservadores apoiavam o exercício do poder imperial norte-americano, de outro lado, liberais ressaltavam a responsabilidade norte-americana pela segurança internacional e pelos direitos humanos. De maneira geral, muitos dos analistas, teóricos e pesquisadores liberais partilharam da crença neoconservadora de que os EUA teriam o direito e a responsabilidade de exercer uma “liderança global”, mesmo quando esse papel envolva uso do poder militar e a constante interferência nos assuntos internos de outros países. Isso traduz a ideia de um consenso neoconservador e liberal para empreender a invasão e ocupação do Iraque. Em ambas as visões, predomina o pensamento de que os EUA não poderiam se isolar dos problemas globais, mas, pelo contrário, graças a seu poder e natureza excepcional, caberia ao país agir e zelar por uma ordem internacional estável, pacífica e fundada nos princípios liberais da tradição wilsoniana, em busca de um liberalismo internacional (MAGALHÃES, 2008). Para Stephan Walt (2011), a única diferença intelectual importante entre os neoconservadores e os intervencionistas liberais é que os primeiros desprezam as instituições internacionais (que veem como restrições ao poder dos EUA), enquanto os segundos veem como uma maneira útil de legitimar o domínio americano. Ambos os grupos exaltam as virtudes da democracia e acreditam que o poder dos EUA – e especialmente o seu poder militar – pode ser um instrumento altamente eficaz do Estado. Ambos os grupos estão profundamente alarmados com a perspectiva de que as armas de destruição em massa possam estar nas mãos de qualquer um, exceto dos Estados Unidos e de seus aliados mais próximos. Ambos os grupos acham que é o direito e a responsabilidade dos Estados Unidos corrigir muitos problemas em todo o mundo.14 Talvez, a expressão prática dessa convergência neoconservadora seriam as cartas escritas pelo think tank neoconservador norte-americano, já extinto, Project for the New American Century (PNAC), em 2003, poucos dias antes da invasão, apoiando e justificando a investida dos EUA no Iraque, assinada, sobretudo por intelectuais neoconservadores, mas 13Termos utilizados por essa literatura crítica à paz liberal contemporânea, em que sua função prática é designadamente imperial e não corresponde ao léxico humanitário para o qual se justifica. 14Nesse contexto, Walt se referia à intervenção norte-americana na Líbia, porém é cabível aproximá-lo do caso da intervenção no Iraque, visto que a todo momento o autor faz essa associação, sobretudo pelas razões que os EUA alegaram para invadir o Iraque e derrubar Saddam Hussein, semelhantes às do exemplo da Líbia, para derrubar Muammar Gaddafi. 34 também liberais. Francis Fukuyama (2006, p.190) definirá que o papel norte-americano de liderança e poder global poderia ser exercido nessa conjuntura internacional pós-11 de setembro não através apenas do exercício do poder militar, mas através da capacidade dos Estados Unidos de moldar as instituições internacionais.Não basta exercer seu poder unilateralmente, senão obter apoio das estruturas e instituições do sistema internacional. É justamente isso que procuraremos ver a seguir, a saber, como os EUA conseguiram legitimidade para sua ação como potência ocupante do Iraque. No plano do discurso, dessa liderança norte-americana, vinculada à responsabilidade do país enquanto potência capaz, prevaleceu a justificativa permeada pela “razão humanitária”, que deu forças ao projeto intervencionista norte-americano para o Iraque, basicamente sob o argumento de que o Iraque era um “Estado falido” e precisava de suporte internacional para substituição do seu governo (que consistia em derrubar Saddam Hussein), pautando-se então em duas frentes: reconstrução e democratização do Iraque. 2.1.2 A “razão humanitária” como justificativa Retomando o ideal liberal internacional, que está imerso nos preceitos humanitários da paz liberal, há de se concordar que o discurso norte-americano para legitimar suas práticas intervencionistas no Iraque estava mergulhado nesse imaginário. Isso é visível sobretudo no pensamento político liberal, em cuja base estão valores como democracia, liberdade civil, liberdade dos mercados, etc. Contudo no aporte teórico neoconservador, também se encontram justificativas em prol da disseminação desses valores, como a responsabilidade e o dever norte-americano enquanto maior potência global. Utilizamos o termo “razão humanitária” para se referir ao campo ideacional pelo qual se justificam práticas em prol de um objetivo moralmente aceitável: no caso do Iraque, salvar a população civil iraquiana das mãos do regime Baath e da ameaça terrorista pode se enquadrar nesse léxico. Tanto em nível nacional como internacional, o vocabulário do sofrimento, da compaixão, da assistência e da responsabilidade de proteger faz parte da vida política, servindo para qualificar as questões envolvidas e para justificar as escolhas feitas (FASSIN, 2012, p.2). Assim, temos que, em geral, tanto a intervenção como a ocupação do Iraque pelos EUA estão mergulhados nesse léxico envolvido pela “razão humanitária”. Historicamente, essa “razão humanitária” é dominada pelo léxico epistemológico da 35 “paz liberal”.15 Esse conjunto teórico, parte dos Estudos de Segurança Internacional, nasce na década de 1950, quase que em oposição aos Estudos Estratégicos, trazendo a “humanidade” e o indivíduo como objeto de referência, em vez do Estado, de certa forma evocando a tradição liberal de realizar um escrutínio crítico das relações entre cidadãos e as instituições de autoridade e soberania (BUZAN; HANSEN, 2012, p.166). Um dos primeiros teóricos dos Estudos de Paz, o sociólogo norueguês Johan Galtung (1969), definirá que o objeto de estudo desse conjunto teórico é a paz, partindo da premissa de que paz é a ausência de violência, portanto, para entendê-la, é necessário compreender primeiro o que é violência. Desde então, seus estudos avançaram quantitativamente, em estudos universitários, think tanks e institutos autônomos de pesquisa, como o precursor Instituto Internacional de Estudos de Paz de Oslo, no qual Galtung fora pioneiro (BUZAN; HANSEN, 2012, p.169). Nesse sentido, estudos de “paz liberal” teriam como premissa que democracias bem estabelecidas (Estados liberais) tendem a ser mais pacíficas internamente e internacionalmente, se comparadas a outros Estados com democracia frágil (ou Estados não liberais)16 (PARIS, 2004, p.51). Havia um crescente consenso entre as potências ocidentais de que o quadro da segurança internacional coletiva, instituído sob o regime da Carta das Nações Unidas em 1945, precisa ser reconsiderado para responder aos novos problemas e novas demandas do mundo pós-Segunda Guerra Mundial e posteriormente pós-Guerra Fria. Debatia-se o conflito entre o que é considerado necessário e legítimo, e o que é permitido no quadro da Carta das Nações Unidas, sobretudo diante de intervenções norte-americanas não autorizadas. Os defensores das intervenções alegaram que a intervenção era humanitária e, portanto, tinha uma legitimidade moral e refletia o surgimento de novas normas internacionais, que deveriam se sobrepor à Carta das Nações Unidas (CHANDLER, 2004). Debates como esse cerceavam as discussões dos Estudos de Paz, que se intensificaram na década de 1990. Sendo assim, há um predomínio da literatura de “paz liberal” no que concerne a abordagens sobre situações pós-conflito, reconstrução de Estado e construção da paz, sobretudo a partir da década de 1990, quando emergem de maneira acentuada as operações de paz internacional, sob caráter de operações de paz peacebuilding17 (PARIS, 2004). No âmbito 15Termos como Estudos de Paz, Paz Liberal e Pesquisas de Paz são parte do mesmo léxico aqui referido. 16Estados liberais versus não liberais, conforme a concepção dada por Michael Doyle (2005, p. 463) quando define, da mesma maneira que Paris, as premissas da “paz liberal”. 17Conforme a própria definição de Paris (2004, p. 38): “Peacebuilding é uma ação realizada no final de um conflito civil para consolidar a paz e evitar a repetição de luta. Uma missão de peacebuilding envolve a implantação de esforços militares e civis de várias agências internacionais, com um mandato para realizar a construção da paz em um país que está apenas emergindo de uma guerra”. 36 internacional, é nos projetos de peacebuilding, nation-building18 ou statebuilding19 que se materializa todo o compêndio teórico dos Estudos de Paz. Com isso nos referimos ao poder político exercido diretamente por países ou consórcios de países (multilateral), ou agências internacionais como autoridades de ocupação ou por uma forte relação direta com o governo local (FUKUYAMA, 2004b, p.37). Portanto, é nas intervenções internacionais que se encontram as formas de promover a paz e a democracia conforme geralmente estabelecido, ou seja, ocupando territórios cujos Estados não têm capacidade de prover segurança para seus cidadãos e representam uma ameaça para a comunidade internacional. Práticas internacionais de ocupação são tão antigas quanto à própria guerra. Tradicionalmente, a ideia de ocupação estava imediatamente ligada com a concepção de ocupação militar, a qual convencionalmente ocorre no contexto de uma guerra e consiste no controle direto de um território de um Estado hostil pelas forças armadas do Estado rival (ROBERTS, 1984, p.251). A partir das regulações de Haia de 1907, começaram os processos de regulamentação das práticas de ocupação internacional, porém ela não é algo rígido, portanto, ao longo da história das relações internacionais, foi passível de mudanças na sua forma. Sendo assim, desde a década de 1990, as ocupações internacionais são legitimadas pela comunidade internacional por uma razão humanitária (FASSIN, 2012, p.83) que se tornou aceita em geral como uma causa justa para a ocupação ou pelo menos como uma causa que não podia ser desafiada publicamente (FASSIN, 2012, p.91). Ainda, a partir deste período existe um movimento em que organizações internacionais, sobretudo com a bandeira da ONU, começam a efetuar ocupações internacionais em conjunto com os Estados, atores que, tradicionalmente, praticam as ocupações internacionais (RATNER, 2005). A construção de uma nação significa a criação de capacidade estatal autossustentável que pode sobreviver assim que o conselho e o apoio estrangeiros forem retirados. Os Estados Unidos assumiram novas e importantes responsabilidades na construção da nação no Afeganistão e no Iraque, na esteira de ações militares (FUKUYAMA, 2004b). No que diz respeito a práticas de intervenção internacional, os EUA, na sua história recente, assumiram diversos projetos políticos dessa natureza, porém o caso iraquiano (pós-2003) é excepcional por diversos motivos. O Iraque foi o sétimo Estado, em menos de uma década, em que os 18Nation-building (construção da nação), como é comumente referido nos Estados Unidos, envolve o uso da força armada como parte de um esforço mais amplo para promover reformas políticas e econômicas com o objetivo de proporcionar paz a uma sociedade emergente de conflito e a seus vizinhos (DOBBINS et al., 2007). 19Statebuilding ([re]construção do Estado) designa a criação de novas instituições governamentais e o fortalecimento das existentes. Fukuyama (2008) argumenta que a construção do Estado é uma das questões mais importantes para a comunidade mundial, porque os “Estados fracos ou falidos” (termo também comum no léxico da paz liberal) são a fonte de muitos dos problemas mais graves do mundo, da pobreza à Aids, das drogas ao terrorismo. 37 EUA intervieram, ao lado de Kuwait, Somália, Haiti, Bósnia, Kosovo e Afeganistão (DOBBINS, 2009). Para além da característica intervencionista dos EUA, sobretudo a partir de 1990, a própria ONU, sob a égide de intervenções humanitárias, desenvolveu uma série de “operações de paz” e missões de “construção estatal”. Em geral, os projetos norte-americanos de nation-building se caracterizam por dois objetivos: promoção da democracia e a criação de economias “vibrantes” (DOBBINS, 2005). O caso da ocupação do Iraque liderada pelos EUA difere da grande maioria dos referidos pelos pesquisadores dos Estudos de Paz e seus críticos, já que esses, em grande medida, dizem respeito às operações de paz, sobretudo aquelas lideradas pela ONU. Paris (2004) se refere a operações sob o comando da ONU como peacebuilding e statebuilding, conforme está contido nos mandatos da ONU, porém o caso da ocupação do Iraque (2003) fora liderado por um Estado, não pela ONU. Além disso, se comparado com os projetos de reconstrução de Estados liderados pelos EUA, o caso iraquiano é inédito, pois envolve pela primeira vez a autorização da ONU de uma ocupação formal regida pelas leis internacionais de ocupação, conforme prescrita na Resolução 1483 (SCHEFFER, 2003; MALONE, 2006). Por fim, o contexto sistêmico da ocupação no Iraque contava com o projeto de internacionalização da “guerra ao terror” endossada pelos EUA como uma necessidade global para segurança internacional, ou seja, invadir o Iraque também como parte das práticas internacionais de contraterrorismo norte-americano pós-11 de setembro (CHITALKAR; MALONE, 2013). No plano das justificativas, em geral podemos compreender que o argumento norte- americano para a ocupação legítima do Iraque consistia nas seguintes determinantes: 1) a ação não era dos EUA para o Iraque, senão a ação de uma coalizão internacional, portanto multilateral; 2) tinha objetivos estritamente humanitários, no intuito de reconstruir as estruturas políticas e econômicas de um Estado falido; 3) o fluxo de recursos seria injetado internacionalmente no Iraque, com o objetivo de prover subsídios para reerguer o país; 4) a ação seria provisória, portanto, era claro que o monopólio do gerenciamento do Iraque seria temporário, durando o período necessário para uma transição de poder completa para um novo governo iraquiano pós-Baath. Assim, definimos quais os elementos que compunham a razão humanitária para uma ação intervencionista no país. Sob o argumento de ser uma ocupação multilateral, o rescaldo da intervenção EUA no Iraque apresentou um raro exemplo em que a palavra “ocupação” foi utilizada sem grandes questionamentos, ainda que existam sérias dúvidas quanto ao fato de a lei internacional da ocupação continuar sendo o conjunto normativo indicador mais adequado na era da guerra 38 moderna (HARRIS, 2006, p.1). Harris (2006, p.78) argumentará que a “era da ocupação multilateral” – que teve início em 1990, como entendemos aqui – ignora em grande parte os princípios e objetivos da lei internacional da ocupação. As intervenções humanitárias e de mudança de regime deram origem a um novo modelo de ocupação para o qual o nation- building é o principal objetivo político. O novo modelo criou um abismo entre o que é “legal” e o que é “legítimo”. Os recursos e a legitimidade necessários para conduzir com êxito a construção da nação criam uma “mão invisível” que empurra os poderes de ocupação para multilateralizar a partilha de encargos e obter apoio internacional. Assim, o multilateralismo substituiu o direito tradicional da ocupação como fonte primária de autoridade e legitimidade em ocupação (HARRIS, 2006, p.17). Muitas das medidas tomadas pelos Estados Unidos no Afeganistão e no Iraque e pelas Nações Unidas em vários territórios administrados pela ONU são tecnicamente ilegais, à luz do direito internacional de ocupação, mas são, no entanto, vistas como legítimas pela comunidade internacional. O discurso humanitário prevaleceu como grande mote para justificar as intervenções contemporâneas. Como um ato humanitário, muitos analistas consideraram que um limite tinha sido cruzado na definição de “guerras justas”.20 Para Fassin (2012, p.223), as subsequentes intervenções das forças militares ocidentais no Afeganistão, em 2001, e no Iraque, em 2003, confirmaram esta impressão, demonstrando que a linguagem humanitária poderia ser mobilizada no centro das operações militares. Quando os EUA invadiram o Iraque,o discurso norte-americano inicial de emergência humanitária confirmava que a legitimidade das intervenções se deslocou do âmbito jurídico para a esfera moral, deleitando- se na defesa dos direitos humanos e até mesmo, de forma mais restritiva e mais específica, do direito humanitário – uma vez que não tinham o apoio inicial das Nações Unidas (FASSIN, 2012, p.224). Com a aprovação da Resolução 1483, isso mudou, e a consolidação do projeto intervencionista se deu via transição e aprovação legal das ações intervencionistas, como veremos nos tópicos adiante. Mais substancialmente, ainda dentro dessa perspectiva teórica liberal humanitária, que vai justificar as ocupações de caráter humanitário a partir da década de 1990, o caso iraquiano trouxe à literatura uma nova interpretação das ocupações sob o nome de ocupações transformativas (BUTHA, 2005; CARCANO, 2011; FOX, 2012; POWER, 2014; ROBERTS, 2006; entre outros). Adam Roberts (2006) introduziu o termo “ocupação transformativa” para 20Referimo-nos à literatura advinda da Doutrina de Guerra Justa, cujo representante maior é Michael Walzer, que desenvolve de maneira pioneira uma “teoria da Guerra Justa”, com a obra de 1970, “Guerras Justas e Injustas”, basicamente uma corrente de pesquisa que segue os padrões do liberal humanitarismo. 39 descrever o Iraque e outras ocupações cuja finalidade declarada (efetivamente alcançada ou não) é mudar os Estados que falharam ou estiveram sob domínio tirânico. Nehal Butha (2005) afirma que a ocupação norte-americana do Iraque é considerada com precisão uma ocupação transformativa, sendo que sua realização está repleta de riscos políticos, pois seu sucesso depende de uma precária dialética de subordinação e legitimação. No limite, a legitimação da ocupação do território iraquiano e subjugação de seu governo, por meio do argumento de que este era um processo necessário, provisório, humanitário, para o desenvolvimento democrático do Iraque e seus civis, mascara os objetivos político-econômicos das potências ocupantes (EUA e Grã-Bretanha). Nessa mesma linha, alguns teóricos se utilizarão da terminologia jus post bellum (“justiça após a guerra”) para argumentar em favor das ocupações pós-guerra, entendendo o caso do Iraque como um contexto pós-guerra em que os EUA teriam a responsabilidade de reconstruir o país.21 Outro elemento de justificativa dizia respeito ao fluxo de recursos: diferentemente das ocupações colonialistas tradicionais, nas quais a colônia provia recursos para a metrópole, ou a ocupação se dava justamente pela busca de recursos (YOUNG, 2015, p.31), tem-se que no caso iraquiano e em outras operações de statebuilding contemporâneas (regida pela ONU ou por um Estado) o fluxo se dá do ocupante para o ocupado, analogamente ao da metrópole para a colônia. Assim, o colonialismo foi praticado em grande parte para beneficiar os próprios Estados imperiais, inclusive através da extração de recursos materiais e humanos da sociedade colonizada. Entretanto, as potências liberais justificam que, pelo contrário, o fluxo predominante de recursos, na construção da paz contemporânea, tem sido na direção oposta: dos atores internacionais ao Estado anfitrião (PARIS, 2010). Nesse caso a justificativa é que seriam os EUA e a Grã-Bretanha os responsáveis por prover recursos para a reconstrução do Estado iraquiano. Entretanto, apesar dessa justificativa sobre o fluxo de recursos, entendemos que o caso da ocupação do Iraque forneceu às potências ocupantes privilégios e benefícios político-econômicos, conforme veremos no capítulo final. Paris (2002) dirá que alguns observadores afirmam que a construção da paz moderna ainda envolve formas sutis de exploração econômica. Nesse sentido, Young (2015, p.132) dirá que, junto com o desenvolvimento dos mercados globais, a exploração dos recursos tem sido uma característica central da expansão do capitalismo desde o século XIX, e isso se intensifica com o que Young (2015) chama de “neocolonialismo”, que seria uma espécie de “império sem colônia”, ou seja, a exploração de recursos sem uma dominação 21Conforme citado em vários capítulos da obra de Carsten Stahn, Jennifer Easterday e Jens Iverson (2014). 40 direta. No caso iraquiano, existe a dominação e ocupação diretas e a exploração indireta dos recursos através de benefícios político-econômicos conseguidos pela mudança das leis locais iraquianas, porém permanece no argumento norte-americano que não existe esse tipo de exploração. Ainda, a justificativa de que a ocupação era provisória é outro argumento das potências ocupantes no caso estudado. A Resolução 1483 do CSONU indicava que EUA e Grã-Bretanha teriam status de potência ocupante, porém isso seria provisório, até a reconstrução do Estado iraquiano e a reestruturação política do país. Comparando-se com o velho argumento de mission civilisatrice da era colonial, Roland Paris (2002, p.652) afirma que, em contraste com o antigo colonialismo, as missões de consolidação da paz– e podemos estendê-lo às missões de statebuilding – têm sido normalmente desdobradas por períodos limitados, a pedido dos partidos locais, com a aprovação de organizações internacionais e com o objetivo de estabelecer condições para que os Estados destruídos pela guerra se governem. No caso iraquiano, havia o apoio da oposição iraquiana (partidos que se opunham ao regime Baath) para a ocupação provisória do Iraque, pelos EUA e Grã-Bretanha, até que um novo governo iraquiano fosse estabelecido. No fim da ocupação formal norte-americana no Iraque, em junho de 2004, o que é comum aos pensadores políticos norte-americanos mainstream, sejam liberais, sejam neoconservadores, é o discurso de que o projeto não deu certo. Isso se dá, pois o pressuposto liberal-humanitário de que os EUA deveriam promover a democracia e a reconstrução do Estado iraquiano não se consolidou. À frente questionaremos esses pressupostos, partindo de uma análise da economia política da ocupação do Iraque para os EUA. Assim, existe uma parte da literatura crítica a essa perspectiva humanitarista das ocupações e intervenções contemporâneas que dirá que a prática da consolidação da paz internacional nos últimos anos tem sido principalmente uma imposição neocolonial, de cima (das potências) para baixo (países que sofrem as intervenções),de uma paz liberal que favorece os negócios sobre o desenvolvimento local do trabalho e do bem-estar dos civis que sofrem com esses processos de paz e reconstrução, e que ignora suas preferências (HERRING, 2008). Conforme aponta Paris (2010, p.345), é inegável que a reação dos EUA ao 11 de setembro – incluindo a declaração de uma “guerra contra o terrorismo” e a invasão do Afeganistão e do Iraque – acrescentou combustível aos argumentos dessas construções de paz como expressões do imperialismo contemporâneo. Mas antes, a invasão do Iraque para derrubar o regime Baath foi algo fundamental e inédito para a política externa do governo Bush e para o projeto de poder norte-americano. 41 Pela primeira vez, após a Guerra Fria, foi ratificada uma lei para derrubada de um governo estrangeiro, no Ato de Libertação do Iraque, de 1998. Ela foi aprovada pelo Congresso norte- americano, rubricada pela Casa Branca, em 2002, e executada, em 2003, pelos militares e demais instituições do país (ANDERSON, 2015, p.112). Como se deu esse processo? 2.2 A legitimação da ocupação por meio de ferramentas legais A busca por uma causa justa ou por legitimidade internacional para empreender ações de política externa é uma tema que consta na agenda de pesquisa das Relações Internacionais (RI) desde sua origem. Essas são algumas das prerrogativas para a atividade internacional, seja qual for o âmbito problematizado: comercial, bélico, ambiental, etc. Quando as RI se tornaram uma área acadêmica autônoma, no início do século XX, no período mais específico do fim da Primeira Guerra Mundial, enfocando-se como disciplina para compreender os fatores que precipitaram a guerra e os meios para prevenir a