UNIVERSIDADE ESTADUAL PAULISTA “JÚLIO DE MESQUITA FILHO” FACULDADE DE CIÊNCIAS HUMANAS E SOCIAIS CACILDO TEIXEIRA DE CARVALHO NETO A TRANSVERSALIDADE DA ÉTICA NA PÓS-GRADUAÇÃO EM SERVIÇO SOCIAL FRANCA 2018 CACILDO TEIXEIRA DE CARVALHO NETO A TRANSVERSALIDADE DA ÉTICA NA PÓS-GRADUAÇÃO EM SERVIÇO SOCIAL Tese apresentada à Faculdade de Ciências Humanas e Sociais, Universidade Estadual Paulista “Júlio de Mesquita Filho”, como pré- requisito para obtenção do Título de Doutor em Serviço Social. Área de Concentração: Trabalho e Sociedade. Orientadora: Prof.ª Dr.ª Helen Barbosa Raiz Engler FRANCA 2018 Carvalho Neto, Cacildo Teixeira de. A transversalidade da ética na pós-graduação em Serviço Social / Cacildo Teixeira de Carvalho Neto. – Franca : [s.n.], 2018. 304 f. Tese (Doutorado em Serviço Social). Universidade Estadual Paulista. Faculdade de Ciências Humanas e Sociais. Orientadora: Helen Barbosa Raiz Engler. 1. Serviço social - Pesquisa. 2. Serviço social - Estudo e ensino (Pós-graduação). 3. Etica da pesquisa. I. Título. CDD – 378.007 CACILDO TEIXEIRA DE CARVALHO NETO A TRANSVERSALIDADE DA ÉTICA NA PÓS-GRADUAÇÃO EM SERVIÇO SOCIAL Tese apresentada à Faculdade de Ciências Humanas e Sociais, Universidade Estadual Paulista “Júlio de Mesquita Filho”, como pré-requisito para obtenção do Título de Doutor em Serviço Social. Área de Concentração: Trabalho e Sociedade. BANCA EXAMINADORA Presidente: _________________________________________________ Prof (a). Dr (a). Helen Barbosa Raiz Engler 1º Examinador: _________________________________________________ Prof (a). Dr (a). Maria Cherubina de Lima Alves - Uni-FACEF 2º Examinador: _________________________________________________ Prof (a). Dr (a). Tais Pereira de Freitas – UFTM 3º Examinador: _________________________________________________ Prof (a). Dr (a). Maria Cristina Piana - FCHS-UNESP 4º Examinador: _________________________________________________ Prof. Dr. Marcos Alves de Souza - FCHS-UNESP Franca, 05 de março de 2018. Dedico este trabalho a minha família, com todo meu amor! AGRADECIMENTOS A Deus pela oportunidade de conquistar esse objetivo. Aos meus familiares pela paciência e peço desculpas pela minha ausência. Aos meus amigos pela cumplicidade. Aos meus amigos doutorandos pela comunhão. A todos professores da Faculdade de Ciências Humanas e Sociais pelo conhecimento e experiência, e aos servidores administrativos que direta e indiretamente contribuíram com esse processo, em especial Mauro, Denis e Laura. Ao Professor Dr. Ubaldo Silveira por abrir as portas da Pós-Graduação da UNESP para mim; pela dedicação e respeito no processo de formação. À Professora Dra. Helen pela amizade, pelo respeito, pela cumplicidade, pelo carinho, pela dedicação e acima de tudo por ter sido ser humano em todos os momentos! Meu muito obrigado!!!!! Gosto de ser homem, de ser gente, porque não está dado como certo, inequívoco, irrevogável que sou ou serei decente, que testemunharei sempre gestos puros, que sou e que serei justo, que respeitarei os outros, que não mentirei escondendo o seu valor porque a inveja de sua presença no mundo me incomoda e me enraivece. Gosto de ser homem, de ser gente, porque sei que a minha passagem pelo mundo não é predeterminada, preestabelecida. Que o meu ‘destino’ não é um dado, mas algo que precisa ser feito e de cuja responsabilidade não posso me eximir. Gosto de ser gente porque a história em que me faço com os outros e de cuja feitura tomo parte é um tempo de possibilidades, e não de determinismo. Daí que insista tanto na problematização do futuro e recuse sua inexorabilidade. Paulo Freire CARVALHO NETO, Cacildo Teixeira de. A transversalidade da ética na Pós- Graduação em Serviço Social. 2018. 304 f. Tese (Doutorado em Serviço Social) – Faculdade de Ciências Humanas e Sociais, Universidade Estadual Paulista “Júlio de Mesquita Filho”, Franca, 2018. RESUMO A presente tese tem como objeto de estudo a ética na pesquisa com seres humanos nas Ciências Humanas e Sociais, tendo como cenário de pesquisa o Programa de Pós-Graduação em Serviço Social da Faculdade de Ciências Humanas e Sociais – Unesp – Câmpus Franca/SP. O objeto de pesquisa provoca considerar a premência de trazer a ética como tema transversal para a construção das ciências, a realização das pesquisas e a formação strito sensu, enquanto fenômenos das relações sociais em seu conjunto. A fim de reconhecer a essência do objeto de pesquisa, esse trabalho tem como objetivo compreender o debate da ética na pesquisa com seres humanos nas Ciências Humanas e Sociais a partir do estudo de caso desse Programa. Para isso, adotou-se o método dialético por considerar que as relações que se consubstanciam nesse processo são históricas e sociais e por entender que esse método permite: extrapolar a aparência da realidade; revelar a essência do fenômeno; desvelar a relação íntima entre o objeto e sujeitos; e trazer à tona as contradições desse processo contínuo e inacabado. A natureza da pesquisa é qualitativa e, para sua apreensão, foram adotados os tipos de pesquisa bibliográfica, documental e de campo. Para conhecer a totalidade desse fenômeno os sujeitos inseridos nesse contexto, docentes e discentes, ganharam vozes e elevaram suas percepções sobre as conquistas e anseios que permeiam este cenário de pesquisa. Assim, a tese apresenta as contradições e possibilidades para a efetivação das Ciências Humanas e Sociais na atualidade do capital; articula a pesquisa enquanto objetivação humana construída nesse processo histórico ininterrupto de fazer e experimentar o conhecimento material e espiritual; e apreende a transversalidade ética. Nesse panorama de vicissitudes, encontramos vários desafios, mas nunca a resposta final para os devaneios que a Ciência provoca nos seus sujeitos no tempo e espaço determinados. Este trabalho está substancializado na apreensão da realidade, dessa totalidade que se manifesta na mediação entre pesquisa – ciência – ética, e elucida que todo o conhecimento construído ou produzido não esgota a realidade e a necessidade de se reinventar e criar o novo. Trazer a ética para a centralidade da vida no atual cenário nacional e mundial, requer ousadia e compromisso com o ser humano e a natureza. Exige capacidade de dialogar e refletir criticamente com os diferentes sujeitos que, individual e coletivamente, estabelecem as relações sociais em seu conjunto na construção da história da humanidade. Palavras-chave: ciência. ética. pós-graduação. Serviço Social. transversalidade. CARVALHO NETO, Cacildo Teixeira de. The transversality of ethics in the Social Work Graduate Program. 2018. 304 p. Thesis (Doctorate in Social Work) – School of Humanities and Social Sciences, São Paulo State University “Júlio de Mesquita Filho”, Franca, 2018. ABSTRACT This thesis has the goal the study of the ethic in the research with human beings in the Social and Human Sciences, having as the research milieu, the Programa de Pós-Graduação em Serviço Social da Faculdade de Ciências Humanas e Sociais – Unesp – Câmpus Franca/SP. The object of the research touches off the urgency of bringing ethic as a transversal theme to te construction of sciences, to the accomplishment of the researches, and to the strito sensu qualification while phenomenon of the social relationships in its content. In order to recognize the essence of the research object of this paper, this study has as an aim, comprehend the ethic discussions in the research with human beings in Social and Human Sciences from the Program case study. In order to reach this, a dialethical method was adopted for considering the relationships that are consolidated in this process which are historical and social and for understanding that this method allows: extrapolate the reality appearance; unveil the essence of the phenomenon; reveal the intimate relationship between the object and the subjects; gives prominance to the contradictions of this continuous and unfinished process. The nature of the research is qualitative and in order to acquire it, the study adopted the bibliographical, documental, and field research. To fully understand this phenomenon, the subjects who were inserted on this context were students and professors,who spoke out and elevated their perceptions about conquers and longings that permeates this scenery.Thus,the thesis, presents the contradictions and possibilities to the realization of the Human and Social Science nowadays; articulates the research while human objectitivation constructed on this non-stop historical process of making and experimenting the material and spiritual knowledge; and acquires the ethical transversality. In this context of changes we found lots of challenges,but never the final response to the daydreams Science provokes on its subjects in pre determined time and space.This paper is held on the aprehension of reality of this totality which is manifested on the mediation among research, science,ethics and explains that every knowledge built or produced do not run out the reality and the necessity of building something new.Bringing the ethic to life worldwide requires daring and commitment with the human being and nature.It requires capacity of dialoguing and think critically with the diferente subjects who individually e collectivelly establishes social interactions in the construction of human History. Keywords: science. ethic. graduation program. Social Work. transversality. CARVALHO NETO, Cacildo Teixeira de. La transversalidad de la ética en el Programa de Postgrado en Trabajo Social, 2018. 304 f. Tesis (Doctorado en Trabajo Social) - Facultad de Ciencias Humanas y Sociales, Universidad Estado São Paulo “Júlio de Mesquita Filho”, Franca, 2018. RESUMEN La presente tesis tiene como objeto de estudio la ética en la investigación con seres humanos en las Ciencias Humanas y Sociales, teniendo como escenario de investigación el Programa de Postgrado en Trabajo Social de la Faculdade de Ciências Humanas e Sociais - Unesp - Campus: Franca/SP. El objeto de investigación ocasiona tener en cuenta la premura de traer la ética como tema transversal para la construcción de las ciencias, para la realización de las investigaciones y para la formación strito sensu, como fenómenos de las relaciones sociales en su conjunto. Para reconocer la esencia del objeto de investigación este trabajo tiene como objetivo comprender el debate sobre la ética en la investigación humana en las Ciencias Humanas y Sociales desde el estudio de caso de este programa. Para ello, se adoptó el método dialéctico por considerar que las relaciones que se consubstancian en ese proceso son históricas y sociales y por entender que ese método permite: extrapolar el aspecto de la realidad; revelar la esencia del fenómeno; desvelar la relación íntima entre el objeto y los sujetos; y traer a la luz las contradicciones de ese proceso continuo e inacabado. La naturaleza de la investigación es cualitativa y para su aprehensión se han adoptados los tipos de investigación biblográfica, documental y de campo. Para conocer la totalidad de ese fenómeno los sujetos insertos en ese contexto, docentes y discentes, ganaron voces y elevaron sus percepciones sobre las conquistas y anhelos que permean este escenario de investigación. Así, la tesis presenta las contradicciones y posibilidades para la efectividad de las Ciencias Humanas y Sociales en la actualidad del capital; articula la investigación como objetivación humana construida en ese proceso histórico ininterrumpido de hacer y experimentar el conocimiento material y espiritual; y aprehende la traversalidad ética. En este panorama de vicisitudes encontramos varios desafíos, pero nunca la respuesta final para los devaneios que la Ciencia provoca en sus sujetos en el tiempo y espacio determinado. Este trabajo está sustancializado en la aprehensión de la realidad, de esa totalidad que se manifiesta en la mediación entre investigación, ciencia, ética, y elucida que todo el conocimiento construido o producido no agota la realidad y la necesidad de reinventarse y crear lo nuevo. Traer la ética a la centralidad de la vida en el actual escenario nacional y mundial, requiere osadía y compromiso con el ser humano y la naturaleza. Exige capacidad de dialogar y reflexionar críticamente con los diferentes sujetos quienes individual y colectivamente, establecen las relaciones sociales en su conjunto en la construcción de la historia de la humanidad. Palabras clave: ciencia. ética. postgrado. Trabajo Social. transversalidad. LISTA DE SIGLAS AIDS Síndrome da Imunodeficiência Adquirida Capes Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior CEP Comitê de Ética e Pesquisa CHS Ciências Humanas e Sociais CNPq Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico CNS Conselho Nacional de Saúde Conep Comissão Nacional de Ética em Pesquisa CS Ciências Sociais Decit Departamento de Ciência e Tecnologia Encep Encontro Nacional de Comitês de Ética em Pesquisa FAP’s Fundações de Amparo à Pesquisa Fapesp Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo FCHS Faculdade de Ciências Humanas e Sociais FHDSS Faculdade de História, Direito e Serviço Social Geocapes Sistema de Informações Georreferenciadas | CAPES GT-CHS Grupo de Trabalho – Ciências Humanas e Sociais IES Instituições de Ensino Superior MCTIC Ministério da Ciência, Tecnologia, Inovação e Comunicações MS Ministério da Saúde PD Pesquisa e Desenvolvimento PEP Projeto Ético-Político PIB Produto Interno Bruto PNE Plano Nacional de Educação PNPG Plano Nacional de Pós-Graduação PPG Programa de Pós-Graduação PPGSS Programa de Pós-Graduação em Serviço Social PUC Pontifícia Universidade Católica SCITIE Secretaria de Ciência, Tecnologia e Insumos Estratégicos Sisnep Sistema Nacional de Informações sobre Ética em Pesquisa TCLE Termo de Consentimento Livre e Esclarecido Unati Universidade Aberta à Terceira Idade Unesp Universidade Estadual Paulista Unicamp Universidade Estadual de Campinas USP Universidade de São Paulo LISTA DE TABELAS TABELA 1 - Total de investimentos diretos para Pós-Graduação em 2010 ..... 175 TABELA 2 - Orçamento – dotação e execução PPA – 2016/2017 – CAPES ..... 178 LISTA DE QUADROS QUADRO 1 - Painel de Investimentos CNPq – 2014 ............................................. 68 QUADRO 2 - Painel de Investimentos CNPq – 2016 ............................................. 69 QUADRO 3 - Dados comparativos da Pós-Graduação no Brasil no período de1975-1985 ..................................................................................... 168 QUADRO 4 - Natureza dos cursos de Pós-Graduação entre os anos 1996-2004 ......................................................................................... 171 QUADRO 5 - Projeção de número de bolsas de 2010 a 2020 considerando os números da Capes e CNPq ............................................................. 176 QUADRO 6 - Projeção do orçamento necessário entre 2013-2020 em concessões de Bolsas .................................................................... 176 QUADRO 7 - Escola Superior de Ciência da Santa Casa de Misericórdia de Vitória ............................................................................................... 190 QUADRO 8 - Fundação Universidade Federal de Sergipe ................................. 191 QUADRO 9 - Fundação Universidade Federal do Piauí ..................................... 192 QUADRO 10 - Universidade Católica de Pelotas ................................................ 193 QUADRO 11- Universidade de Brasília ................................................................ 194 QUADRO 12 - Universidade Estadual do Rio Grande do Norte ......................... 195 QUADRO 13 - Universidade Federal da Paraíba ................................................. 196 QUADRO 14 - Universidade Estadual do Ceará .................................................. 197 QUADRO 15 - Universidade Estadual do Oeste do Paraná ............................... 198 QUADRO 16 - Universidade Federal do Mato Grosso ........................................ 199 QUADRO 17 - Universidade Federal de São Paulo ............................................. 200 QUADRO 18 - Universidade Federal do Espirito Santo ..................................... 201 QUADRO 19 - Universidade Federal de Maranhão ............................................. 202 QUADRO 20 - Universidade Federal do Rio Grande do Sul ............................... 204 QUADRO 21 - Universidade Federal Fluminense ............................................... 205 QUADRO 22 - Universidade Federal Fluminense ............................................... 206 QUADRO 23 - Pontifícia Universidade Católica de Goiás .................................. 207 QUADRO 24 - Pontifícia Universidade Católica de São Paulo .......................... 208 QUADRO 25 - Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro ................... 211 QUADRO 26 - Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul ............ 212 QUADRO 27 - Universidade Estadual do Rio de Janeiro ................................... 214 QUADRO 28 - Universidade Estadual de Londrina ............................................ 215 QUADRO 29 - Universidade Federal da Paraíba / João Pessoa ........................ 216 QUADRO 30 - Universidade Federal de Alagoas ................................................ 217 QUADRO 31 - Universidade Federal de Juiz de Fora ......................................... 218 QUADRO 32 - Universidade Federal de Pernambuco ........................................ 219 QUADRO 33 - Universidade Federal de Santa Catarina ..................................... 221 QUADRO 34 - Universidade Federal do Amazonas ............................................ 223 QUADRO 35 - Universidade Federal do Pará ...................................................... 224 QUADRO 36 - Universidade Federal do Rio de Janeiro ..................................... 225 QUADRO 37 - Universidade Federal do Rio Grande do Norte ........................... 227 QUADRO 38 - Disciplinas do Programa de Pós-Graduação em Serviço Social com o termo Ética e/ou Ético-Político ......................................... 259 QUADRO 39 - Trabalhos de Conclusão – Dissertações e Teses, com o termo Ética e/ou Ético-Político ................................................................ 261 SUMÁRIO CONSIDERAÇÕES INICIAIS: A TRANSVERSALIDADE ÉTICA NA CONSTRUÇÃO DO OBJETO DE PESQUISA ................................... 16 CAPÍTULO 1 TRAÇOS HISTÓRICOS E DESAFIOS CONTEMPORÂNEOS DA CIÊNCIA E DA PESQUISA: A APREENSÃO DA TESE .................. 36 1.1 Breves considerações da ciência moderna .................................................... 37 1.1.1 O surgir da ciência moderna: breves notas ...................................................... 39 1.1.2 As Ciências Sociais: desafios para a atualidade .............................................. 53 1.2 A pesquisa nas Ciências Sociais ..................................................................... 76 CAPÍTULO 2 DESDOBRAMENTOS HISTÓRICOS DA ÉTICA NA PESQUISA: UMA POSSÍVEL ANTÍTESE ............................................................. 85 2.1 Primeira aproximação ....................................................................................... 86 2.2 Bioética: ética para a vida ................................................................................ 95 2.3 A bioética no Brasil: uma análise a partir das legislações do CNS ............ 102 2.3.1 Da Resolução CNS nº 196 de 1996 a Resolução CNS nº 466 de 2012: algumas considerações para uma análise crítica ........................................... 103 2.3.2 A construção da Resolução CNS nº 510 de 2016: lutas e resistências .......... 119 2.3.3 O Comitê de Ética em Pesquisa na Faculdade de Ciências Humanas e Sociais – Unesp – Câmpus de Franca/SP .................................................................. 142 CAPÍTULO 3 A TRANSVERSALIDADE DA ÉTICA NO PROGRAMA DE PÓS- GRADUAÇÃO EM SERVIÇO SOCIAL DA FACULDADE DE CIÊNCIAS HUMANAS E SÓCIAS – UNESP – CÂMPUS DE FRANCA/SP. UMA ANTÍTESE OU OUTRA TESE? ....................... 158 3.1 A Pós-Graduação no Brasil ............................................................................ 159 3.2 A Pós-Graduação em Serviço Social no Brasil ............................................ 180 3.2.1 O Programa de Pós-Graduação em Serviço Social da Unesp – Câmpus de Franca/SP ..................................................................................................... 234 3.2.1.1 A Transversalidade da ética no PPGSS da FCHS ...................................... 258 CONSIDERAÇÕES FINAIS: ÉTICA PARA O FUTURO – VELHOS CAMINHOS, NOVAS POSSIBLIDADES ....................................... 276 REFERÊNCIAS ....................................................................................................... 286 APÊNDICES APÊNDICE A Temas geradores para entrevista semiestruturada .................... 299 APÊNDICE B Questionário eletrônico para discentes sujeitos participantes da pesquisa ......................................................................................... 300 APÊNDICE C Termo de Consentimento Livre e Esclarecido ............................. 304 CONSIDERAÇÕES INICIAIS: A TRANSVERSALIDADE ÉTICA NA CONSTRUÇÃO DO OBJETO DE PESQUISA “O pesquisador deve reconhecer plenamente a autonomia da sua atividade pensante, caso contrário ele não pode ter esperança de obter a verdade e tampouco de distinguir a verdade e a não-verdade, e nem pode creditar ao seu pensamento qualquer validade.” Hans Jonas 17 Pensar a ética no tempo presente requer de nós pesquisadores compreendê- la na dialogicidade que versa entre os homens no tempo; nas suas apreensões filosóficas e culturais, na mesma intensidade nas relações sociais e seus condicionantes; imprimi uma responsabilidade para o presente e nos convida olhar para o futuro, para além das relações cotidianas “locais”, e extrapolar as possibilidades da vida na Terra. O presente trabalho buscar-se-á trazer a ética enquanto tema transversal na pesquisa nas Ciências Humanas e Sociais, especificamente no cenário da Pós- Graduação em Serviço Social. Torna-se necessário orientarmos sobre a transversalidade. A partir do conceito de qualidade daquilo que é transversal, entendemos a transversalidade enquanto construção de tema que ultrapassa a estrutura formal de trabalhar conteúdos separados, fragmentados entre si, apresentando-se em todo processo; essa construção requer uma análise teórica, da realidade, das transformações e de sua materialização no cotidiano, de forma a tornar-se apreensível e compreensível para diferentes sujeitos num mesmo processo. Considerando a ética na transversalidade da vida e de suas diferentes formas de se manifestar e do homem se objetivar, apresentaremos, nessas considerações iniciais, a ética no tempo presente, substrato para a construção desse trabalho e necessário para, então, compreendermos a transversalidade da ética na pesquisa com seres humanos nas Ciências Humanas e Sociais. Convidamos a todos (as) para leitura e apreensão de uma temática tão necessária no atual contexto da sociedade brasileira e mundial. A ética no tempo presente... A sociedade mundial presencia uma crise ética que perpassa os campos político, econômico, cultural e social. Especificamente, a sociedade brasileira vive a derrocada de valores que extrapolam as especificidades científicas, as manifestações culturais, a legalidade, as singularidades dos sujeitos coletivos. Presencia-se a banalidade da vida em seu conjunto e da liberdade de manifestar-se diante a sua diversidade. O contexto político e econômico na última década (2010...) marca uma instabilidade do mercado financeiro com o aumento do desemprego e dos juros, a 18 violência urbana, a crise dos serviços públicos, a falta de acesso aos direitos sociais essenciais e das políticas públicas nas áreas da saúde, educação, moradia, alimentação, entre outros. Nota-se um Estado em crise, um governo caótico, má gestão daquilo que é público, agentes políticos envolvidos em corrupção fazendo da máquina pública artifício para o bel-prazer e enriquecimento. Da mesma forma em que os valores morais como certo e errado estão intrínsecos nessa análise, outro valor precisa ser apontado, a liberdade, pois esse, entre outros, são valores perdidos em meio à barbárie social que denotam a tensão do agir ético. Manfredo Oliveira, na década de 1990, expôs que a sociedade brasileira, à época, era uma perversão estrutural no sentido da história humana (OLIVEIRA, M. A., 1993). Para o autor, naquele momento histórico, era necessário rever os valores éticos que permeavam as relações políticas e econômicas, mudar os arranjos sociais com vistas a potencializar os sujeitos, para que, houvesse a participação coletiva numa sociedade pluralista que prezasse pelos direitos humanos e a liberdade. No plano dos costumes políticos, a sociedade toma cada vez mais consciência da falta de qualquer princípio ético, o que se traduz em corrupção generalizada, clientelismo, autoritarismo e demagogia de diferentes formas em diferentes níveis, oportunismo desmascarado, irresponsabilidade como norma no exercício dos cargos públicos, violência e prepotência. Pode-se falar de abalo dos valores básicos da vida política, que em última análise, faz eclodir uma crise de legitimação das instituições e dos costumes vigentes em nosso contexto societário. (OLIVEIRA, M. A., 1993, p. 43-44). Presenciou-se nas duas últimas décadas do século XX um paradoxo entre a conquista de direitos sociais e sua retração. De um lado surge uma parcela da população de forma organizada por meio de manifestações de partidos, sindicatos, associações, categorias profissionais, entre outros, que ativamente provocou, no conjunto político, uma mudança significativa de conquistas de direitos, o que representou a tomada de consciência crítica desses sujeitos. Contudo, ao adentrar o século XXI, perde forças, principalmente em relação às categorias organizadas e representadas pelos sindicatos. Esse período de conquista de direitos e sua contração está marcado pela onda neoliberal que potencializou a mercantilização dos serviços públicos por meio das privatizações; flexibilizações no mundo do trabalho – precarização e 19 desemprego; a diminuição de investimentos para as políticas sociais e instituição de critérios de seletividade para aquilo que constitucionalmente é universal; e fortalecimento de uma política mínima para um Estado mínimo. Esse período de recessão dos direitos exacerbou aos segmentos pauperizados da sociedade uma busca incessante pela sobrevivência e a inversão dos valores, num movimento (in)constante em que “[...] os espelhos públicos acessíveis para as construções narcísicas passaram a refletir os jogos do mercado, facultando ingressos, seletivamente, e condenando à autopoiesis perversa os excluídos.” (SOARES, 2001, p. 61). Numa inversão de valores o ter sobrepõe o ser e, de forma perversa, a ideologia embutida na sociedade naturaliza o consumismo, o individualismo e a competitividade, formando peças de uma engrenagem que movem o desenvolvimento e a sociabilidade, relações interdependentes em que a objetividade e subjetividade respondem aos interesses desse sistema dando a ele continuidade. Logo, [...] todas as novas formas perversas de sociabilidade que já existem ou se estão preparando neste país, para fazer dele – ainda mais – um país fragmentado cujas diversas parcelas, de modo a assegurar sua sobrevivência imediata, serão jogadas umas contra as outras e convidadas a uma batalha sem quartel. (SANTOS, M., 2011, p. 48). Ainda em Milton Santos, presencia-se uma ética da competitividade que justifica o individualismo no âmbito econômico, político e territorial que atenuam valores arrebatadores e possessivos que institui ao outro o estado de coisa. Vivencia-se a exploração dos desejos dos homens por meio de mecanismos que exacerbam o consumismo, o utilitarismo como regra, elucidam o narcisismo estético e moral, implementam como natural e necessária uma ética pragmática individualista, numa direção ao abandono da solidariedade e da generosidade. “Não é de estranhar, pois, que realidade e ideologia se confundam na apreciação do homem comum, sobretudo porque a ideologia se insere nos objetos e apresenta-se como coisa.” (SANTOS, M., 2011, p. 39). Jacqueline Russ coaduna com esse posicionamento sobre o individualismo contemporâneo, segundo a autora, nele encontraremos: As delícias do narcisismo, bem mais que o acesso a uma autonomia, a explosão hedonista, mais que a conquista da liberdade. Promoção 20 dos valores hedonistas, permissivos, psicologistas, culto da ‘descontração’, vinculação às particularidades idiossincráticas [...].” (RUSS, 1999, p. 15). Nesse horizonte, o individualismo presente nessas relações tem intrínseca uma força que é tencionada pela produção e reprodução da vida humana em seu conjunto por meio da economia, ou seja, as forças econômicas conduzem as relações do homem em sociedade; num processo de coisificação e banalização, os bens material e espiritual tomam a mesma densidade e se confundem; as necessidades individuais sobrepõem às necessidades coletivas, já que o consumismo é a mola mestra dessas construções, numa direção de produção e acumulação material, “[...] vivendo numa sociedade que atrofiou por muitas razões a consciência de valores fundamentais na vida humana que estão para além da mentalidade utilitária da maximização dos ganhos próprios e minimização das perdas.” (OLIVEIRA, M. A., 2004, p. 33). Considerando os apontamentos aqui expostos, torna-se premente o debate da ética no atual contexto histórico, com vistas a responder nossa epocalidade (OLIVEIRA, M. A., 1993, 2004; JONAS, 2006), a qual evidencia a era dos homens e das tecnologias (DUPAS, 2001), em que há a prevalência da tirania do dinheiro (SANTOS, M., 2011) e as construções narcísicas (SOARES, 2001). Destarte, Quando se chega a um estado de coisas como este, quando a desgraça humana é encarada apenas como um aspecto repulsivo do espetáculo do mundo, quando os valores perdem consistência e credibilidade, quando os miseráveis tornam-se transparentes aos nossos olhos, formando uma verdadeira casta de milhões de intocáveis dos quais há que evitar – com asco e indiferença – o cheiro, o olhar e a palavra, é hora de convocar a ética para o centro dos debates. (ROITMAN, 2001, p. 9). Refletir e discutir a ética para o tempo presente para que se possa desencadear respostas aos questionamentos ou permitir outras reflexões sob o agir ético, parte-se de considerá-la enquanto capacidade eminentemente humana contemplada numa práxis tensionada entre a reflexão crítica e a prática, o subjetivo e o concreto, do despertar axiológico sob o fenômeno concreto. Assim, a ética está presente nas forças em tensão que emergem da relação do sujeito na sua singularidade com o coletivo, presente no movimento dialético “[...] de ir e vir do real aparente para o nível reflexivo e deste de volta para o real concreto.” (CARVALHO 21 NETO, 2013, p. 49). De tal modo, nas relações entre os homens o despertar ético se dá diante de uma ação concreta; enquanto reflexão crítica a ética permeia a subjetividade do sujeito, na apreensão dos valores historicamente construídos e volta para realidade concreta – concreto pensado. O refletir e o agir ético são repletos de valores que fazem parte da essência do homem que são construídas no processo histórico-social ao qual pertence. Desse modo, é notório que o pertencimento de cada sujeito reflete a sua condição de ser histórico, que se objetiva, ser em potência, que se move e se transforma diante das relações sociais das quais participa. Para Russ (1999, p. 61, grifo nosso), “Os valores se acham então afirmados, não a partir de uma referência a um universo ideal, não a partir de algum ‘outro mundo’, mas no seio daquilo que, hic et nunc (aqui e agora), nos é dado.” O homem é ser múltiplo e dinâmico, que por meio do trabalho e das relações estabelecidas, transforma a realidade e a si mesmo. O homem é mutável e as forças tendenciais que provocam nele toda essa mudança alcançam sua capacidade objetiva e subjetiva reproduzindo-o ou libertando-o das amarras impostas pela sociedade. O homem transformou o mundo e suas relações sociais, adequando-o às suas necessidades, por vezes, ultrapassando os limites da dignidade humana ao expor outros homens à escravidão e à barbárie do produtivismo/consumismo. Roger-Pol Droit (2012, p. 39) nos esclarece que “[...] o cerne da reflexão ética está ligado ao fato de que os seres humanos são múltiplos, de que eles têm entre si numerosas interações.” Nessa direção, há de se considerar que a ética emerge no cotidiano das relações entre os homens, momento de ideação e construção, num processo que permite ultrapassar a imediaticidade e renovar a história da humanidade. Por ser eminentemente humana, a ética é mutável ao tempo e às transformações sociais, pois responde a determinado período histórico em questão. Hans Jonas (2006) explica que a ética está intrinsecamente ligada à ação humana e a toda subjetividade a ela idealizada; que na história da humanidade o agir humano modificou-se, estando presente nas esferas culturais, econômicas, políticas, científicas, entre outras, e à ética cabe questionar/responder as novas dimensões alcançadas do agir humano. A etimologia da palavra ética tem origem grega – ethiké. Segundo Droit (2012) ética ou ethiké é adjetivo derivado de éthos que significa primeiramente 22 habitat, a maneira que ela habita o mundo ou caráter. De acordo com Silveira (1999), ética vem do grego ethos significando ‘modo de ser’. Em Roma, Cícero (aproximadamente 63 a.C.) apropriou-se da palavra ethiké de origem grega e urdiu para o latim a palavra mos que significa modos ou costumes, no plural mores. (DROIT, 2012). Para Silveira (1999), a palavra mos e mores de origem no latim traduz-se em moral, que significa costume ou maneira de se comportar. Compreende-se que foi na apropriação da palavra grega ethiké pelo latim que surge o termo mos ou mores que significa moral. Essa aproximação de seus significados provocou e provoca habitualmente uma acepção das palavras ética e moral de forma a serem utilizadas indistintamente, mas para Droit (2012) e Russ (1999) está clara a diferença ou distinção entre elas. Sánchez Vázquez (2011, p. 23) define a ética como "[...] a teoria ou ciência do comportamento moral dos homens em sociedade." Na mesma vereda, Silveira (1999, p. 91) aponta que "A ética é teoria, investigação ou explicação de um tipo de experiência humana, ou uma forma de comportamento dos homens, o da moral, considerada, porém, na sua totalidade, diversidade e variedade". Nessa perspectiva da ética enquanto teoria, Russ (1999, p. 8) esclarece que a ética: [...] é mais teórica que a moral, pretende-se mais voltada a uma reflexão sobre os fundamentos da moral. A ética se esforça para descontruir as regras de conduta que formam a moral, os juízos de bem e de mal que reúnem no seio da moral. [...] uma doutrina racionada sobre o bem e o mal, os valores e os juízos morais. Em suma, a ética desconstrói as regras de conduta, desfaz suas estruturas e desmonta sua edificação, para se esforçar em descer até os fundamentos ocultos da obrigação. Diversamente da moral, ela se pretende pois desconstrutora e fundadora, enunciadora de princípios ou de fundamentos últimos. Os autores supracitados anunciam a ética enquanto teoria ou ciência que explica a ação moral do homem. A ética enquanto teoria tem a função de explicar, esclarecer e investigar determinado fenômeno, numa dada realidade a partir de conceitos estabelecidos, e por expressarem aquilo que é essencialmente humano está regado de valor. Mas aquilo que a ética explica não está numa ação concreta isolada, mas considerada em sua totalidade, diversidade e generalidade; assim, cabe a ética tomar a moral, enquanto prática da humanidade em sua pluralidade, como objeto de sua reflexão, para compreendê-la em seu movimento e desenvolvimento. A ética como ciência propõe desvelar os fatos a partir de seus 23 princípios gerais. Por fatos compreendem-se os atos ou comportamentos humanos. Ela não deve apenas descrever os fatos, mas transcendê-los para elaborar conhecimentos sistemáticos e comprováveis com o mesmo rigor, coerência e fundamentação de outras preposições científicas (SÁNCHEZ VÁZQUEZ, 2011). Entretanto, torna-se relevante tensionar essa reflexão. Fabio Comparato (2006, p. 495) esclarece que “As normas éticas tampouco podem ser reduzidas a enunciados científicos, fundados na observação e na experimentação [...].” Sua ponderação se ergue na compreensão da ética e seus valores, principalmente a liberdade; o autor esclarece que sucumbir a ética a regras e parâmetros deterministas, seja leis naturais ou biológicas, é um engano, pois a ética é expressão do homem em sociedade e de seu comportamento, e vencer os limites deterministas tem sido um dos grandes desafios da humanidade. Assim, não concebe regras e métodos científicos que possam delinear a ética, principalmente por considerar que “A liberdade é o pressuposto da ética e a explicação da radical imprevisibilidade do comportamento humano.” (COMPARATO, 2006, p. 495). É fundamental, nesse momento, definir moral antes de tecer as considerações sobre os valores éticos apresentados aqui. Por moral entende-se: [...] um sistema de normas, princípios e valores, segundo o qual são regulamentadas as relações mútuas entre os indivíduos ou entre estes e a comunidade, de tal maneira que estas normas, dotadas de um caráter histórico e social, sejam acatadas livre e conscientemente, por uma convicção íntima, e não de uma maneira mecânica, externa ou impessoal. (SÁNCHEZ VÁZQUEZ, 2011, p. 84). A moral se apresenta como valores e normas que expressam as ações dos homens em sociedade, a prática entre homens, que tem como características ser histórica e mutável, com isso, não são/estão estanques e, ainda, mantém uma relação dialética entre o ato moral e a ética. A questão fundamental da moral consiste em saber como se podem regular legitimamente relações interpessoais. Trata-se não da reprodução de factos, mas da invocação de normas dignas de serem reconhecidas. Estas são normas que merecem reconhecimento no círculo dos seus destinatários. Evidentemente, este tipo de legitimidade afere-se, consoante o contexto social, por um consenso existente sobre aquilo que é reputado de justo. (HABERMAS, 2009, p. 368). 24 Na moral, por ser mutável, as normas e princípios que a institui mudam, tomando em consideração o contexto histórico e as relações sociais de determinado período e espaço. Nas sociedades contemporâneas, a ética e a moral apresentam- se com tencionalidades diferentes àquelas apreendidas nas sociedades ulteriores. A exemplo, valores como liberdade e autonomia são concebidos diferentemente na sociedade moderna, período que expressa a revolução do homem, do conhecimento, da ciência e da tecnologia, bem como da política, da cultura, da arte e das relações sociais e interpessoais. Destarte, a sociedade contemporânea, diante a sua pluralidade, requer valores e princípios que sejam atuais e transversais à diversidade que formam suas relações sociais. Dwight Furrow (2007), ao tratar dos princípios que instituem a moral, esboça que as sociedades modernas apresentam crescentes interações complexas e em constantes mudanças, o que exige princípios que atendam essa diversidade, multiplicidade. O autor tece uma reflexão crítica sobre a apropriação dos princípios norteadores da moral de forma rígida e particularista, as quais desconsideram as mudanças sociais, a complexidade da existência humana e sua generalidade. Há de se observar que “[...] os seres humanos tendem a focar sobre seus interesses próprios de modo demasiadamente estreito. O propósito do raciocínio moral é o de corrigir esta tendência.” (FURROW, 2007, p. 87). Nesse viés, para Habermas (2009) as pessoas em sociedade trazem e traçam objetivos pessoais diferentes que impactam no desenvolvimento dessa sociedade e nas formas como a vida se desenrola, com isso, as pessoas não se familiarizam umas com as outras. Esse fenômeno é consequente da pluralidade da vida coletiva e dos projetos de vida individuais presentes na sociedade. O autor esclarece que, diante desse pluralismo das formas de vida e de seus diferentes projetos de sujeitos individuais, exigem-se normas mais abstratas e gerais que atendam as mais variadas formas de vidas em sociedade, pois considera que os princípios da moral são gerados nessa pluralidade da vida e a ela deve responder. Os valores expressos na dialeticidade da ética e da moral anunciam a capacidade humana de se transformar objetivamente e subjetivamente, modificando a realidade e o cotidiano a partir da potencialização das forças em tensão que se movem nessa mesma realidade. Por valor entendemos “[...] o conjunto de todas as relações (produtos, ações, ideias, etc.) sociais que movem o desenvolvimento da 25 essência humana no estágio histórico tomado em consideração.” (HELLER, 2008, p. 105). A realidade institui forças que num movimento contraditório cria e recria toda cotidianidade, pois dialética, permite a superação ou a reprodução dessas mesmas forças. O homem enquanto ser histórico-social, ser em potência com habilidade de revolucionar a história, na sua capacidade de ação e reflexão tem intrínsecos valores que influenciam as suas decisões, os seus desejos. Tais valores manifestam-se no cotidiano: coercitivos ou não, em coesão ou não, impossibilitando ou não a capacidade de ser livre do homem. O paradoxo, hoje, na discussão da liberdade está em meio a capacidade de escolhas e decisões; de construir suas aproximações; de não estar estagnado no processo de produção e reprodução da vida em sociedade e de seus fenômenos. A liberdade é capacidade do homem em tomar suas decisões, escolher e agir diante a consciência de seu ser e do todo. A condição de liberdade do homem está relacionada ao conhecimento e à razão que possibilitam a transformação da realidade e do próprio homem e no reconhecimento do outro como ser livre. Ao reconhecer o outro como ser livre o homem tende a superar a necessidade do eu e assumir a necessidade do outro, do coletivo. Essa alteridade é o reconhecer consciente do outro enquanto ser livre. “A visão de alteridade é a capacidade de ver o outro como outro, e não como estranho. Só é possível falar numa ética que promova a vida digna coletiva se eu for capaz de olhar o outro como outro, e não como estranho.” (CORTELLA, 2014, p. 118-119). Manfredo Oliveira (1993, p. 130) aponta que a liberdade do eu está condicionada ao reconhecimento da liberdade do outro e a “[...] ação concreta de construção de um mundo objetivo que possibilite a comunhão” entre os homens e as liberdades. Ela emerge nas relações entre homens, a partir da razão enquanto possibilidade da vida histórica e da dimensão possível da vida concreta do homem em suas relações. A tarefa fundamental da existência humana é, portanto, a realização da comunhão das liberdades ou, numa palavra, ‘realização’ da liberdade, e sua história concreta pode ser entendida como tentativa sempre renovada de construção de um mundo no qual o encontro das liberdades seja possível através do reconhecimento mútuo. Nesse sentido, entendemos liberdade não só como capacidade radical do homem de distanciar-se de tudo, ou seja, a pura universalidade, que o faz ultrapassar todos os mundos concretos 26 através da crítica radical ao mundo, a liberdade da abstração, mas a liberdade é vista também e sobretudo como ato de encarnação de si mesma, através da construção de instituições que possibilitem o reconhecimento das liberdades. (OLIVEIRA, M. A.,1993, p. 129). Considerando que a razão é força histórica objetiva, que permite o homem reconhecer suas potencialidades (MARCUSE, 2004), a consciência só se revela a partir do contato com a realidade, ao qual ela se descobre histórica e social; o despertar da consciência se dá por meio da razão, por meio da trajetória histórica que permite essa mediação, pois a história é a realização da razão. Para Manfredo Oliveira (1993, p. 127), “A razão é presença da totalidade, unidade originária entre o homem e mundo, mas sobretudo entre o homem e homem. Porque o homem é a presença revelante da totalidade, pode ele manifestar o sentido das coisas, pode dizer sua essência.” Está na razão a capacidade de o homem ser e estar livre no mundo, a partir da sua construção histórica enquanto ser social que se relaciona com outros homens e desenvolve sua capacidade de identificar o outro como ser livre; por também ser homem em potência com capacidade de transformação de si, do meio social e da natureza. A potência é a capacidade ou poder que um ente possui, pela sua própria atividade (energuéia), de alterar outro, ou de alterar a si próprio. No homem, essa capacidade de mudança, que é uma faculdade racional, pode visar a finalidades contraditórias: pode ser dirigida ao melhor ou ao pior, tudo dependendo daquilo que representa a função própria (érgon) da arte ou técnica empregada, ou a função própria do ser humano no mundo. (COMPARATO, 2006, p. 468). A história nos mostra que os valores, por exemplo, a liberdade, presente nas sociedades dos séculos passados tinham uma objetivação diferente que na contemporaneidade; alguns desses valores perpetuaram-se no tempo outros não; e devem ser entendidos a partir das diferentes formas de se manifestarem na sociedade atual. Refletir sobre a liberdade, nesse contexto social, econômico e cultural, requer concebê-la num processo contínuo de rupturas de estigmas, símbolos e conceitos que, historicamente, estão presentes nas relações sociais e expressam a sua negação. O homem, enquanto ser em constante transformação, busca incessantemente pela universalização da liberdade, pelo reconhecimento da 27 vida e seus valores como expressões das conquistas históricas do conjunto da humanidade. Já que o ser do homem não é dado, mas é conquista e sua vida é luta pela conquista de si mesmo, então a luta do homem é, em última análise, a luta pela supressão dos horizontes particulares, esmagadores do ser-livre, pelo estabelecimento de mundos históricos possibilitadores da efetivação sempre nova do reconhecimento universal [...]. (OLIVEIRA, M. A.,1993, p. 179). O homem do século XXI vive em tempo de barbárie da vida humana e da destruição da natureza, fruto de determinado processo de produção e reprodução social com objetivos bem definidos. A discrepância das condições humanas para viver e sobreviver coloca em xeque os valores presentes nessa relação, pois deparamo-nos com condições objetivas e subjetivas de vida extremamente diferentes, enquanto testemunhamos a fome que mata no continente africano, fenômeno concreto da nossa história, nos países em desenvolvimento e centrais, o fetiche da mercadoria é a sombra que arrasta multidões. Claro que devemos ressaltar que nesses países há momentos de crise e alguns convivem com a miséria. No entanto, o que nos provoca aqui é a reflexão da diferença dos valores que estão intrínsecos nesses fenômenos e pensar se é possível uma humanidade solidária considerando que para ser livre o princípio axial é a dignidade humana, não particularizada, mas sim universal, e questionar se que se tem feito na atualidade está na direção da conservação da (des)humanização. É diante desses apontamentos que elucidamos a necessidade de estimular e fortalecer o debate da ética e de seus valores no cenário acadêmico científico, enquanto expressões históricas da humanidade em seu conjunto; de provocar novos questionamentos e reflexões críticas do atual contexto socioeconômico e cultural e seus rebatimentos no desenvolvimento humano e na construção e produção de conhecimento material e intelectual. O percurso metodológico da tese... Tecer a construção desse trabalho partiu de uma inquietação do pesquisador em apreender a ética na pesquisa nas Ciências Humanas e Sociais que data a sua inserção no Programa de Pós-Graduação em Serviço Social (PPGSS) da Faculdade 28 de Ciências Humanas e Sociais (FCHS) – Unesp, Câmpus Franca/SP, em 2011 no Mestrado, enquanto sujeito de determinado universo que pouco se discutia ética na pesquisa por seus sujeitos. No Doutorado partimos, então, para o desafio em compreender a transversalidade da ética no respectivo Programa, com ênfase na ética na pesquisa, por entendermos que a Universidade e, consequentemente, seus Programas fazem parte do processo de construção e reprodução dos valores humanos na sociedade, bem como, espaço de criatividade, criticidade e potencialidade humana, na sua objetivação material e espiritual, espaço de construção e produção de conhecimento, repleto de valores que constitui a ética. Diante disso, o objetivo geral desse trabalho foi compreender o debate da ética na pesquisa com seres humanos nas Ciências Humanas e Sociais (CHS) a partir do estudo de caso do Programa de Pós-Graduação em Serviço Social (PPGSS) da Faculdade de Ciências Humanas e Sociais (FCHS) – Unesp – Câmpus de Franca/SP. Para isso, foi necessário, especificamente desvelar a contribuição do referido Programa junto às pesquisas nas Ciências Humanas e Sociais; apreender a transversalidade da ética na pesquisa com seres humanos no aludido Programa; conhecer como os docentes do PPGSS articulam o debate da ética na construção da pesquisa com seres humanos; apreender a percepção dos discentes do referido Programa sobre o debate da ética na pesquisa com seres humanos. Para apreendermos a realidade e construirmos esse trabalho, adotamos o método dialético e traçamos como percurso metodológico a pesquisa de natureza qualitativa de tipo exploratória; os tipos e técnicas de pesquisa utilizados foram o estudo de caso, as pesquisas bibliográfica, documental e de campo. Para compreendermos o processo de construção metodológica da pesquisa elucidaremos, com a contribuição de outros autores, a fundamentação teórica que nos guiou. Adotamos o método dialético, por compreendermos que ele permiti problematizar “[...] com maior inteligência a relação entre sujeito e objeto, superando posições estanques e estereotipadas ligadas a visões estáticas da objetividade e da neutralidade.” (DEMO, 2010, p. 98). Com o método dialético, compreendemos a transversalidade do objeto no universo pesquisado e suas conexões dialéticas, reveladas a partir da apreensão da realidade e da relação com os sujeitos. 29 Triviños (2008, p. 73-74) explica que há um procedimento geral que orienta a apreensão do objeto por meio do método dialético, vejamos: A contemplação viva do fenômeno (sensações, percepções, representações). É a etapa inicial do estudo. Nela se estabelece a singularidade da ‘coisa’, de que esta exista, que é diferente de outros fenômenos. A ‘coisa’ apresenta-se como ela é, como o que representa, com seu significado para a existência da sociedade. Análise do fenômeno, isto é, a penetração na dimensão abstrata do mesmo. Observam-se os elementos ou partes que o integram. Estabelecem-se as relações sócio-históricas do fenômeno [...]. Aprecia-se sua situação no tempo e no espaço. A realidade concreta do fenômeno. Isto significa estabelecer os aspectos essenciais do fenômeno, seu fundamento, sua realidade e suas possiblidades, seu conteúdo e sua forma, o que nele é singular e geral, o necessário e o contingente etc. Para atingir a realidade concreta do fenômeno, realiza-se um estudo das informações, observações, experimento, etc. Para reconhecer e desvelar o movimento que constrói o objeto dessa pesquisa – a ética na pesquisa nas Ciências Humanas e Sociais -, adotamos o estudo de caso do PPGSS da FCHS – Unesp, Câmpus Franca/SP. Segundo Laville e Dionne (1999) o estudo de caso refere-se ao estudo de um determinado caso, pessoa, comunidade, mudança política, entre outros fenômenos, que permite compreender com profundidade o objeto de pesquisa. Para os autores: A vantagem mais marcante dessa estratégia de pesquisa repousa, é claro, na possibilidade de aprofundamento que oferece, pois os recursos se veem concentrados no caso visado, não estando o estudo submetido às restrições ligadas à comparação do caso com outros casos. (LAVILLE; DIONE, 1999, p. 156). O estudo de caso permitiu ao pesquisador: criatividade para atender as exigências que se fizerem presentes no decorrer da pesquisa, adaptar os instrumentos, modificar sua abordagem, precisar alguns detalhes e construir uma compreensão do caso (LAVILLE; DIONNE, 1999). Para isso, essa pesquisa se orientou por uma abordagem qualitativa, que segundo Minayo (2007, p. 21): [...] ela trabalha com o universo dos significados, dos motivos, das aspirações, das crenças, dos valores e das atitudes. Esse conjunto de fenômenos humanos é entendido aqui como parte da realidade social, pois o ser humano se distingue não só por agir, mas por pensar sobre o que faz e por interpretar suas ações dentro e a partir da realidade vivida e partilhada com seus semelhantes. O universo 30 da produção humana que pode ser resumido no mundo das relações, das representações e da intencionalidade e é objeto da pesquisa qualitativa [...]. Compreendemos que a pesquisa qualitativa permite uma construção, uma relação direta entre sujeito e pesquisador, ao passo que proporcionou um resultado que evidenciou a realidade social destes sujeitos, mas para isso foi necessário reconhecê-los como ser social na sua totalidade, que vive suas experiências e constroem suas relações concretas. Assim entendido, buscamos na pesquisa de tipo exploratória oriente para realização desse estudo por considerarmos que “[...] são desenvolvidas com o objetivo de proporcionar visão geral, de tipo aproximado, acerca de determinado fato” (GIL,1994, p. 45); no caso desta pesquisa, a apreensão geral da realidade vivida pelos sujeitos inseridos no PPGSS. O percurso metodológico construído para a realização desse estudo apropriou, também, das pesquisas bibliográfica, documental e de campo, assim compreendidas: A pesquisa bibliográfica é aquela que se realiza a partir do registro disponível, decorrente de pesquisas anteriores, em documentos impressos, como livros, artigos, teses etc. Utiliza-se de dados ou de categorias teóricas já trabalhados por outros pesquisadores e devidamente registrados. (SEVERINO, 2007, p. 122) As produções científicas sobre o tema foram necessárias para fundamentarem as categorias que surgiram com a pesquisa, pois “Tais documentos se definem pela natureza dos temas estudados e pelas áreas em que os trabalhos se situam.” (SEVERINO, 2007, p. 134). A pesquisa documental, para Lakatos e Marconi (1996, p. 57), tem como característica “[...] que a fonte de apreensão de dados está restrita a documentos, escritos ou não. Estes podem ser feitos no momento em que o fato ou fenômeno ocorre, ou depois." Consideramos que a pesquisa documental, nesse trabalho, está presente na análise das Resoluções, Portarias e Decretos, e na pesquisa realizada no Portal Capes, que possibilitou a construção dos quadros descritivos com os dados dos Programas de Pós-Graduação em Serviço Social do Brasil. A pesquisa de campo possibilitou apreender a relação entre o objeto de pesquisa e os sujeitos, trazer à tona a compreensão que os sujeitos têm do objeto pesquisado e a realidade do PPGSS da FCHS. 31 No campo, fazem parte de uma relação de intersubjetividade, de interação social com o pesquisador, daí resultando um produto novo e confrontante tanto com a realidade concreta como com as hipóteses e pressupostos teóricos, num processo mais amplo de construção de conhecimentos. (MINAYO, 2004, p. 105). Assim elucidado, o cenário de pesquisa foi o Programa de Pós-Graduação em Serviço Social da FCHS – Unesp – Câmpus Franca/SP. O universo desvelado é formado por 21 (vinte e um) docentes do respectivo Programa com formação nas diversas áreas das Ciências Humanas e Sociais e 45 (quarenta e cinco) doutorandos inscritos regularmente. Tendo esses dois grupos de sujeitos participantes, optou-se em convidar para pesquisa de campo 4 (quatro) docentes e todos os discentes doutorandos matriculados a partir de 2014, pois trata-se do ano de ingresso do pesquisador responsável dessa tese no Doutorado. De forma intencional, foram convidados 4 (quatro) docentes do PPGSS para participarem da pesquisa, os quais têm acerto na representatividade coletiva do corpo docente do referido Programa de Pós-Graduação. Para a escolha dos docentes, decidimos que ocupassem os cargos de: (1) Coordenador do Programa de Pós-Graduação (PPG) em Serviço Social da FCHS; (1) Vice Coordenador do PPG; (2) membros titulares do Conselho de Pós-Graduação em Serviço Social da FCHS. Caso alguns desses sujeitos não aceitassem participar da pesquisa, o critério a ser adotado seria convidar os membros suplentes do referido Conselho. Num primeiro contato, foram enviados e-mails convite para os quatro sujeitos, desses, apenas 1 (um) membro do Conselho de PGSS aceitou participar. Com isso, enviamos convites para 3 (três) membros suplentes do referido Conselho. Aceitaram a participar 2 (dois) membros. Diante o impasse de ter esgotado nossos critérios e, ainda, não ter alcançado o número de sujeitos propostos para a pesquisa, convidamos de forma intencional e diretiva um docente da PPGSS para participar da pesquisa, resultando em aceite. A escolha desse sujeito se deu por ser, também, membro do Comitê de Ética em Pesquisa (CEP) na FCHS. Assim, foi realizada a pesquisa de campo. Utilizou-se como instrumento de pesquisa com os docentes a entrevista de forma semiestruturada, pois a partir de temas geradores (Apêndice A), referentes aos objetivos da pesquisa, buscamos apreender as informações e reflexões 32 necessárias. Na realização da entrevista optamos em gravar o áudio por meio digital, previamente autorizado pelos sujeitos. Após a realização da entrevista, o material foi transcrito e devolvido para os sujeitos participantes docentes para apreciação. Os docentes participantes devolveram com observações que foram respeitadas, tais como: correções e alterações nas falas e pedido para que trechos da entrevista fossem retirados e não analisados. Na devolutiva, os sujeitos destacaram a autorização para a análise e publicação na tese. Apesar de representar um número pequeno de sujeitos docentes, por ser tratar de uma pesquisa de natureza qualitativa, a participação teve intensidade e profundidade objetiva e subjetiva. Para a realização da pesquisa com os discentes, optamos pela realização de questionário eletrônico (Apêndice B). Os critérios adotados foram: serem alunos regularmente matriculados no programa, nível de doutorado, a partir de 2014. Considerando a heterogeneidade do perfil dos discentes, residentes em cidades e Estados diferentes, esse instrumento de pesquisa permitiu o acesso a todos os 45 (quarenta e cinco) doutorandos. Desses, apenas 13 (treze) responderam o referido questionário. Os sujeitos participantes da pesquisa foram orientados sobre os preceitos éticos que nortearam nosso estudo, com base nas Resoluções CNS nº 466/2012 e nº 510/2016; para os docentes coube contemplar o Termo de Consentimento Livre e Esclarecido (Apêndice C); para os discentes, o aceite para participar e responder o questionário estava restrito àqueles que aceitassem os termos presentes na sua apresentação e dos princípios éticos nele elencados. Sobre a devolutiva do resultado da pesquisa, nos comprometemos a enviar uma cópia da tese para os sujeitos docentes participantes após a aprovação em banca examinadora e tramitação do arquivamento em repositório institucional. Para os discentes o acesso ao resultado da pesquisa culminará com sua publicação no Portal da Pós-Graduação. A pesquisa de campo foi realizada entre os meses de abril a setembro de 2017. Do perfil dos docentes, sujeitos participantes: 2 (dois) eram membros do Comitê de Ética em Pesquisa da FCHS, no período da pesquisa; 2 (dois) têm por formação outras áreas do conhecimento e não Serviço Social. Para resguardar o anonimato desses sujeitos, as áreas não serão expostas, pois o número de 33 docentes que compõe o PPGSS é relativamente pequeno e essa informação poderá quebrar o princípio do anonimato. Para darmos identidade aos nossos sujeitos, eles serão chamados de Antônio, Maria, Dolores e Sheila. Do perfil dos discentes, sujeitos participantes: De acordo com o ano de ingresso no PPGSS:  6 (seis) em 2014;  4 (quatro) em 2015; e  3 (três) em 2017. De acordo com a área de conhecimento da Graduação:  1 (um) em Administração;  1 (um) em Educação e Economia;  10 (dez) em Serviço Social; e  1 (um) em Educação e Pedagogia. De acordo com a área de conhecimento do Mestrado:  1 (um) em Ciências da Saúde;  1 (um) em Desenvolvimento Regional;  3 (três) em Educação (1 especificou sendo Educação e Sociedade – Ciências e Práticas Educativas); e  8 (oito) em Serviço Social. Os sujeitos discentes serão identificados por: Boris, Mateus, Sonia, Vanda, Luana, Vitor, Mariana, Jorge, Sofia, Lorena, Monize, Eduardo e Celio. A heterogeneidade da formação dos docentes e discentes é visto nesse trabalho como algo contributivo, pois permitiu uma leitura que ultrapassasse as barreiras do conhecimento fragmentado das Ciências e arejar, por vezes, o Serviço Social. A partir da apreensão dos dados e da análise sobre o objeto de pesquisa e sua relação íntima como os sujeitos participantes, construímos um trabalho com intenção de interpretar e analisar as conexões dialéticas dessa realidade – com recorte de tempo e espaço -, a partir da tríade dialética tese, antítese e síntese, assim disposto: 34 O primeiro capítulo, intitulado Traços históricos e desafios contemporâneos da ciência e da pesquisa: a apreensão da tese, apontaremos uma breve consideração da Ciência Moderna desde seu surgimento e da sua relação com as transformações cultural, econômica, social e política na Europa. Nesse item, teceremos algumas considerações de autores que contribuíram para a construção da Ciência Moderna; o leitor observará que não contemplaremos todos os filósofos e cientistas, nossa proposta é a de promover uma breve apresentação desse período que perpassa os séculos XI até XIX, a transformação da ciência e da técnica a partir da relação já construída com a economia e a política. Para isso, alguns expoentes do conhecimento foram sinalizados como Santo Agostinho e Santo Tomás de Aquino, necessário para elucidarmos o processo de ruptura do teocentrismo para o antropocentrismo e o chegar do Iluminismo, da industrialização e da expansão comercial. Esse item se encerrará com dois outros grandes pensadores, Hegel e Marx, assim dispostos por serem relevantes para a compreensão da dialética. Nesse capítulo, abordaremos também os desafios para as Ciências Sociais e o processo de construção do conhecimento material e espiritual apropriado pelo sistema capitalista, seus rebatimentos na atual conjuntura econômica e os impactos para a realização de pesquisas nessa grande área do conhecimento. Caminhamos para o último item desse capítulo que tratará da pesquisa nas Ciências Sociais, possibilidades e desafios para uma prática essencial para a construção da história da humanidade, capaz de desvelar parte da totalidade da vida humana e suas relações sociais e ambientais (natureza). O segundo capítulo, Os desdobramentos históricos da ética na pesquisa: uma possível antítese, inicia com a apreensão dos sujeitos participantes sobre a ética na pesquisa, a relevância e desafios presentes nesse debate. Em seguida, apresentaremos o tratado da Bioética, valores e legislações; os fenômenos mundiais que provocaram cientistas, filósofos, teólogos a tencionarem o debate da ética na pesquisa e buscarem a legitimação da Bioética e a criação de normativas para as pesquisas que envolvem seres humanos. Exposto o tema em nível mundial, traremos o debate para o Brasil, apresentaremos o processo de elaboração das Resoluções que norteiam a discussão da ética na pesquisa envolvendo seres humanos no país. Faremos uma análise baseada no debate atual sobre a crítica às 35 Resoluções CNS nº 196/1996 e CNS nº 466/2012 no que tange à esfera das Ciências Humanas e Sociais e apresentar os embates e desafios da Resolução CNS nº 510/2016, a partir de autores dessas áreas e dos sujeitos participantes da pesquisa (MINISTÉRIO DA SAÚDE, 1996, 2012, 2016). Nesse capítulo, apresentaremos o Comitê de Ética em Pesquisa (CEP) da FCHS, sua formação, o trabalho, as possibilidades e os emprazamentos; e elucidaremos a visão que os sujeitos de pesquisa têm sobre o respectivo CEP. O terceiro capítulo, A transversalidade da ética no Programa de Pós- Graduação em Serviço Social da Faculdade de Ciências Humanas e Sociais – Unesp – Câmpus de Franca/SP. Uma síntese ou outra tese?, apresenta a construção da Pós-Graduação (PG) no Brasil, sua legitimação enquanto campo de construção do conhecimento, mas também os impasses provocados pelas injunções dos governos de Estado, a apropriação pelo capitalismo e a lógica economicista e produtivista introduzida na Pós-Graduação. Em seguida, trataremos da Pós- Graduação em Serviço Social, sua história, avanços, rupturas e persistências. No que tange a ética na pesquisa, apresentaremos a transversalidade da ética nos Programas de PG em Serviço Social (PPGSS) no Brasil, no que tange a disciplinas e pesquisas. Nessa direção, apresentaremos o PPGSS da FCHS – Unesp – Câmpus de Franca/SP, sua construção, a apreensão dos seus sujeitos diante as possibilidades e afirmações de se fazer ciência. Apontaremos, ainda, a transversalidade da ética nesse contexto. Traçadas as considerações iniciais, cabe-nos entender que nessas relações de produção e reprodução da vida e de seu sentido, historicamente, as Ciências e a pesquisa estão presentes enquanto instrumento do desenvolvimento humano, do seu progresso e da sua destruição. Compete-nos, agora, dialogar com a Ciência, a pesquisa e a Pós-Graduação para entendermos a transversalidade da ética nesse processo histórico-social. CAPÍTULO 1 TRAÇOS HISTÓRICOS E DESAFIOS CONTEMPORÂNEOS DA CIÊNCIA E DA PESQUISA: A APREENSÃO DA TESE “A sabedoria da humanidade parece depender do diálogo profundo entre as diversas formas de conhecimento. Nele, certamente, cada uma delas conhecerá melhor sua própria natureza e seus limites.” Clodoaldo Meneguello Cardoso 37 1.1 Breves considerações da ciência moderna Na história da humanidade a ciência se apresenta como fruto do desenvolvimento humano em suas potencialidades; o resultado da busca incessante de respostas pelo desconhecido, a desconstrução e reconstrução daquilo já revelado; bem como de sua interação com o meio natural e social para suprir suas necessidades. O ser humano é um constante vir a ser nas transformações das relações sociais e na vida planetária. Ser em transformação contínua, é a representação objetiva e subjetiva daquilo que foi, é, e ainda será. O animal e o homem mantêm com a natureza relações essenciais para a sobrevivência da espécie, cada qual com sua capacidade biológica e racional de interação. O animal, de forma biológica e instintiva, interage com o meio e as espécies para manter sua sobrevivência – alimentar e reproduzir; capaz de construir suas casas, como o joão-de-barro e a aranha, por meio de ações mecânicas e repetidas; a variação dos atos dos animais é notada minimamente através das gerações, pois “[...] a transmissão da ‘experiência’ é feita quase exclusivamente pelo código genético” (ANDERY et al., 2014, p. 9) o que condiz com ações imediatas. O homem se difere dos animais por pensar, elaborar e realizar suas ações de forma a atender suas necessidades, não só para a sobrevivência da espécie, mas também para saciar outras necessidades produzidas a partir das relações sociais estabelecidas. O homem apresenta algumas características que o difere dos animais nessa relação com a natureza, entre elas a capacidade teleológica, a razão, a consciência; essas capacidades, potencialidades do ser humano, permitiram a transformação da natureza e de si mesmo. O homem, por meio do trabalho, transforma a natureza para atender suas necessidades essenciais, adapta-a para melhor se manter no meio ambiente (natureza e sociedades urbanas); essas transformações não são imediatistas como as ações dos animais, pois são planejadas e executadas com certo nível de inteligência. A partir do momento que o homem se identifica no outro, vive em grupos, mantém uma relação para sobrevivência, a manutenção da prole e transforma o meio para atender necessidades coletivas, estabelecem-se as relações sociais. Cidades são construídas para os homens viverem coletivamente, trocam experiências e meios para a sobrevivência da espécie; o homem torna-se um ser social. Nesse momento, o homem estabelece as condições sociais de produção e 38 reprodução, mas não rompe com a natureza tendo em vista sua dependência para a manutenção da humanidade. O ser social come, bebe e respira, essas necessidades essenciais são permanentes, independentes da evolução científica-tecnológica, o que modifica são as relações estabelecidas para o uso e consumo dos recursos naturais para saciar essas necessidades. O que presenciamos no século XXI é a barbárie do homem contra a espécie humana e a natureza, uma contradição – a busca incessante do progresso versus a autodestruição da espécie e dos meios naturais para a sobrevivência. A capacidade do homem em transformar a natureza e o meio social é chamada de trabalho. O trabalho é condição exclusivamente humana, pois é resultado da capacidade teleológica, fruto da tomada de consciência da ação a ser realizada, uma vez que ela é concebida pelas condições objetiva e subjetiva. Mesmo o trabalho mecânico, repetitivo, realizado pelo homem nas relações sociais de produção são efeitos da organização do trabalho que é elaborado. O que o homem fez no processo histórico foi potencializar suas condições laborativas e intelectivas transformando as condições e as relações de trabalho. A ênfase a ser dada a categoria trabalho, aqui, é toda capacidade humana de transformação da natureza e da sociedade, potencializada pelas forças objetivas e subjetivas do homem na construção do novo, pois “Não fiquem estranhados, porque a ideia de trabalho não significa só trabalho econômico, o trabalho que se realiza na fábrica, no escritório ou no campo. Trabalho é atividade material e espiritual.” (IANNI, 1984, p. 102 apud BOURGUIGNON, 2008, p. 53). É nas relações construídas a partir dessa capacidade humana que encontramos a ciência. De acordo com Andery et al. (2014, p. 13), “A ciência caracteriza-se por ser a tentativa do homem de entender e explicar racionalmente a natureza, buscando formular leis que, em última instância, permitem a atuação humana.” A ciência é compreendida como fruto da ação intelectual e material do homem, entendida como a expressão da criação humana e é a partir dessa compreensão da capacidade do ser humano de criar e renovar o conhecimento que alicerça a ciência. Assim, a proposta, nesse estudo, é dialogar sobre a ciência na contemporaneidade. Dessa forma, para o desenvolvimento do presente trabalho deve-se tratar a ciência moderna, situando-a no tempo e espaço, compreendendo que todo fenômeno da ciência é histórico e espacial. 39 1.1.1 O surgir da ciência moderna: breves notas Esse item tem o objetivo de traçar, brevemente, algumas das principais características que marcaram a emergir da ciência moderna em determinado recorte temporal, século XI ao século XIX. O texto busca apreender o desenvolvimento da ciência e da técnica a partir das transformações econômicas e políticas na Europa, também, berço de grandes pensadores desse tempo. A análise aqui construída está consubstanciada em autores que debruçaram sobre o tema e escreveram a partir de determinado lugar e compreensão histórica. Não é pretensão nossa esgotar o tema, bem como os vieses de análise e suas profundidades. Para esse trabalho, coube um breve apanhado histórico para situarmos a ciência moderna. Antecedente a ciência moderna, tomemos como referência a civilização ocidental que monta a história da Idade Média, marcada por transições econômicas, políticas, culturais e sociais, fundamentais para a transformação das ciências. Destaco o período que vai do feudalismo à acumulação primitiva e dessa para o capitalismo, pois aqui está a expressão da relação consubstanciada do progresso da civilização com o avanço da ciência. O recorte temporal nos revela um contexto em que o poder econômico está centralizado na terra e o político no rei, tendo esse parceria relevante com a Igreja Católica (clero). A organização social era majoritariamente formada por feudos – terras concedidas pelo rei aos senhores feudais que as redistribuíam entre os servos. Nesse ínterim, as poucas cidades que existiam não possuíam importância, dada a organização econômica que se mantia por meio dos feudos – a produção agrícola e a autossuficiência. Somente a partir do século XI que há a expansão das cidades, tendo como característica principal as Cruzadas, com as conquistas territoriais, a expansão comercial, com a introdução de novas técnicas trazidas pelos bárbaros teutônicos que ocasionou o aumento da produção agrícola, a diminuição de mão de obra no campo e migração para as cidades. Com o aumento populacional nas cidades, surgem outras demandas, o incremento de novas atividades econômicas, o crescimento do comércio e do artesanato. A interação com povos do oriente contribui com o avanço de novas técnicas, tais como: a roca e o tear na atividade têxtil; a força hidráulica na produção de 40 tecidos e nas serralherias; fundição de ferro, papel, imprensa, pólvora e o canhão; o leme de popa e o mastro na proa no aperfeiçoamento náutico; além do conhecimento em matemática, astronomia, medicina, química (RUBANO; MOROZ, 2014). Nesse período, o conhecimento era de domínio da Igreja – a escrita, a leitura e a prática. Apesar de nos parecer contraditório, a ênfase dada estava na contemplação divina ao invés daquilo que era empírico. Relacionado a Deus, a fonte de todos os saberes estava na Bíblia que reproduziu um conhecimento inquestionável e trouxe uma característica para o pensamento medieval “[...] a concepção hierárquica e estática do universo.” (RUBANO; MOROZ, 2014, p. 144). Dos expoentes que traçaram ideias relevantes para o período em tela, estão Santo Agostinho (354-430) e Santo Tomás de Aquino (1225-1274). Sob influência de Platão, Agostinho revela seu conceito de verdade – a vida do homem em busca do Bem. Esse Bem é o bem supremo, Deus. Todo universo foi criado por Deus, tendo o homem como ser superior sobre as outras criaturas, pois esse é o único ser no planeta com inteligência e razão, sendo seu conhecimento um ato de iluminação divina. Com base nas ideias platônicas, Agostinho concebe o conhecimento a partir das coisas sensíveis e das coisas inteligíveis. O sensível está nos sentidos, aquilo que é percebido pelo homem; no inteligível está a razão, aquilo que é apreendido pela mente humana. É a partir da autorreflexão (inteligível) que o homem percebe-se no mundo e o desvela, mas essa percepção passa pelo sensível que provoca a reflexão interior, ou seja, existentes na memória (RUBANO; MOROZ, 2014). Assim como em Platão, o "[...] sensível participa do inteligível, tem relações com ele; encontra-se separado dele, mas, não significa que seja estranho." (CHÂTELET, 1995, p. 63). O conhecimento inquestionável imprimido nesse recorte histórico está na compreensão de que, se o verdadeiro conhecimento está em Deus e que o conhecimento humano é um ato de iluminação divina, a verdade (Deus) é eterna e imutável, ao homem cabe sua contemplação, alcançada pela inteligência revelada. Santo Agostinho, a partir de sua compreensão de Bem supremo, coloca que a organização social de seu tempo deva ser análoga à relação de Deus com o homem. Para ele o Estado deve ser subordinado à Igreja, pois essa é a 41 representação institucional de Deus na terra e, assim como seus representantes, deve ter autoridade sobre os representantes do Estado. Séculos à frente, ainda com princípios teocêntricos, Santo Tomás de Aquino expressa que Deus é o bem comum ao qual os homens devem alcançar. A sua ideia, em síntese, revela que o universo e a realidade têm um movimento propulsor que gera todo o ciclo da vida e da existência, essa força motriz é Deus; a causa primária para toda existência, a sabedoria absoluta e o responsável pela organização de todo mundo. Na construção da Lei Eterna na Suma Teológica, Aquino dá direções diferentes para a filosofia e a teologia; a primeira estaria em busca da verdade pela razão, a outra tem a verdade por meio da fé. Entretanto, há um ponto de intersecção, quando busca provar a existência de Deus a partir da razão. Por reconhecer a razão na produção de conhecimentos e a fé nas verdades reveladas, Santo Tomás de Aquino compreende dois caminhos para o conhecimento: o primeiro está na revelação divina e o segundo, no conceitual. O primeiro se baseia na verdade oriunda da fé, por meio de uma força sobrenatural que revela toda a construção da realidade. O segundo se baseia na razão, na capacidade empírica e racional do homem em construir o conhecimento. O conhecimento conceitual tem suas premissas, nos sentidos e no intelectual. O sentido permite ao homem conhecer a base estrutural da matéria, já o intelectual permite desvelar sua essência. Na busca da verdade, a capacidade intelectiva mantém conexões com o que é sensível, ou seja, consegue manter uma relação com o sensível, por meio da razão. Como apontado por Rubano e Moroz (2014, p. 157) ao analisar Tomás de Aquino, a razão “[...] é o elemento de mais alto nível da alma humana, [...].” Conforme as autoras, a razão distingue o homem dos outros seres, bem como conduz a produção de conhecimento e as ações humanas do ponto vista moral e político, e o auxilia na busca do bem supremo (RUBANO; MOROZ, 2014). Para Aquino, o Estado deve sucumbir às ordens da Igreja e com isso toda a sociedade aos denodos de seus representares – o clero. Esse pensamento de Santo Tomás de Aquino perpassa por quatro séculos enquanto expressão para a construção do conhecimento, mas com o avançar das transformações societárias, já nos meados do século XVI e início do século XVII, a ideia com a centralidade em Deus não atende mais a lógica desejada para a 42 organização social que se construía, o pensamento medieval passa a ser questionado; abre-se um hiato entre a realidade e a necessidade de um apotegma que consubstanciasse as transformações até agora experimentadas. Deparava-se com um homem renovado, à procura de respostas para novos questionamentos, um homem em potencial para transformar ainda mais toda realidade que estava a sua frente. Esse homem, então, passa a estar na centralidade do universo – antropocentrismo. Toda essa transformação está intimamente ligada ao avanço comercial, do crescimento das cidades, da introdução de novas técnicas que ocasionaram uma mudança significativa nas relações econômicas e políticas; assim descritas:  O poder econômico não está mais concentrado na terra, mas sim, na moeda (dinheiro) e seu fortalecimento – a mercantilização; a expansão marítima com o domínio de novas colônias de exploração; a produção de mercadorias antes feitas por artesões são modificadas, há a mecanização, surge, então, o sistema fabril – possível por existir mão de obra e acúmulo de capital.  O poder político toma outro rumo, criam-se as monarquias absolutas – com intuito de manter a concentração de poder, a burguesia alia-se ao rei que acreditava ter e ser o monarca absoluto, mas com a concentração de capital nas mãos dos burgueses, o rei acatava as orientações desses, além de obter, às vezes, por meio de empréstimos, recursos financeiros por eles oferecidos. Para além das mudanças acima apresentadas, ressaltamos ainda a busca por uma nova visão de homem e mundo, por uma ciência prática e não contemplativa e para a produção de conhecimento que pudesse responder as relações do homem com a natureza. Estão, no século XVII, os principais filósofos que enalteceram esse rompimento com o conhecimento contemplativo e inauguraram um novo período denominado de ciência moderna: Francis Bacon (1561-1626) com empirismo; Galileu Galilei (1564-1642) e Isaac Newton (1642-1727) interpretaram os fenômenos da natureza a partir das leis do movimento e leis mecânicas; René Descartes (1596- 1650) utilizou das leis mecânicas para analisar a natureza e o homem – racionalismo; Thomas Hobbes (1588-1679) estendeu a lei mecânica a todo 43 conhecimento; e John Locke (1632-1704) debruçou-se sobre o conhecimento e sua origem (PEREIRA; GIOIA, 2014). A utilização da razão, de dados sensíveis e da experiência (contraposição a fé) são traços que marcam o trabalho dos pensadores desse período, como consequência da transferência da preocupação com as relações Deus-homem para a preocupação com as relações homem-natureza. Esses traços aparecem, embora com ênfases muito diferenciadas, nos trabalhos de Galileu, Bacon, Descartes, Hobbes, Locke e Newton. (PEREIRA; GIOIA, 2014, p. 178). O homem não se compreende mais como parte de um único espaço, de uma única lei universal; passa a apreender o objeto, enquanto coisa, exterior aos seus sentimentos de unicidade, ao mesmo tempo em que desenvolve sua interioridade, sua subjetividade. Esse movimento de distanciar-se da experiência de vida junto aos feudos provocou no homem a sua capacidade de subjetividade, ou seja, de se compreender enquanto indivíduo, de sua particularidade diante da relação construída com o exterior, seja com as pessoas, com a natureza ou com os objetos. Ao despojar-se desse mundo exterior, o homem desenvolve a capacidade particular de construí-lo, Fourez concebe essa capacidade de objetividade. A objetividade aparece, assim, como uma maneira de ver o mundo que permite destacar aquilo que se vê da globalidade: a civilização moderna dispõe de representações mentais mediante as quais ela vai poder inserir descrições de objetos separados. (FOUREZ, 1995, p. 160). Desse modo, as representações mentais permitem a comunicação entendível à civilização. Com a expansão comercial e aumento das relações entre homens de diferentes culturas, ocasionou o avanço do conhecimento e, com isso, das ciências. Para que a ciência se fizesse compreensível, racional, foi necessária a universalidade da linguagem para as novas interações científicas. É licito designarmos por racional a vontade formada discursivamente, porque as propriedades formais dos discursos e da situação de deliberação constituem uma garantia suficiente de que um consenso apenas pode ser conseguido por intermédio de interesses passíveis de universalização, adequadamente interpretados, pelos quais entendo: necessidades que são comunicativamente partilhadas. (HABERMAS, 2009, p. 12). 44 Concomitante à expansão comercial da burguesia, está a expansão ideológica, de um posicionamento universal do seu conhecimento, de sua capacidade em despojar-se das coisas, corroborando com o ideal de domínio. Esse ideário passa a ser naturalizado, não só nas interfronteiras comerciais, mas alcança e extrapola as fronteiras do conhecimento técnico e científico. A sociedade ocidental do século XVIII demonstrou como a ascensão da burguesia refletiu diretamente nos valores, no pensamento e na formação da civilização. Conhecido como Século das Luzes ou por Iluminismo, é representado por filósofos que reescreveram a interpretação do homem a partir da razão, sendo essa a única capaz de promovê-lo à liberdade; mas para isso era necessário desvencilhar-se da análise teocêntrica. Esse movimento das ideias e ideais iluministas está marcado por uma mudança significativa das relações sociais de produção e dos valores engendrados em todo o contexto político e econômico e por uma revitalização da compreensão da ciência e do homem na construção do conhecimento. Os valores que permearam esse movimento e foram prementes na dimensão política e econômica estão na liberdade, na igualdade e no individualismo, valores que apontam a ascensão da burguesia e seus objetivos. A partir dos autores por nós consultados, nossa análise traz um destaque para a liberdade econômica e a igualdade jurídica, mas compreendemos que o debate em sua generalidade não se restringe a esses vieses. A liberdade compreendida nesse período estava relacionada à livre concorrência, ao livre comércio. Esse pensamento é consequência de uma intenção da expansão comercial e industrial que emergia na Europa, tendo como referência a Inglaterra, a França e a Alemanha. Momento em que se buscava a liberdade nos acordos comerciais, sem impedimentos fronteiriços e a formação de um Estado laico com a sua mínima intervenção. Para isso, alçava-se a liberdade de crenças e de ideias (PEREIRA; GIOIA, 2014). Segundo Fabio Comparato (2006, p. 217) para John Locke a concepção de liberdade presente nesse contexto é fruto de uma intencionalidade burguesa, com intuito de legitimar a liberdade individual como meio a garantir o direito da propriedade privada, consequentemente, era necessário romper com o Estado monárquico e com o poder da Igreja sob o Estado, pois “[...] as 45 liberdades individuais não são respeitadas se a organização dos poderes públicos não representar, por si só, uma espécie de garantia institucional para esse feito.” Ao exacerbar a defesa intransigente da liberdade individual, o individualismo emerge como valor do cidadão burguês, o indivíduo despojado do mundo exterior; “[...] que se baseia na existência do indivíduo livre e autônomo, consciente e capaz de se autodeterminar.” (MARCONDES, 2001, p. 203). Representa o valor do particular, do privado, engendrado no cidadão burguês para satisfazer seus anseios. A ideia de liberdade individual gerou outro valor, a igualdade jurídica que, necessário para obtenção dos desejos individuais burgueses, garantiria a supressão da monarquia absolutista. Parafraseando John Locke, Comparato (2006, p. 226), explica que esse pensamento está alicerçado na ideia de que as leis deveriam garantir ao povo o direito de posse e que todos os indivíduos teriam os mesmos direitos, mas “Uma vez estabelecida a igualdade formal de todos perante a lei, a antiga separação estamental foi substituída pela desigualdade patrimonial, em muitos sentidos mais opressivas do que aquela.” Esses valores, para Pereira e Gioia (2014), que consubstanciaram a transformação das dimensões política, social e econômica do século XVIII na Europa, podem ser vistos, também, na concepção de educação. Presenciava-se uma dissensão entre a educação para a classe burguesa e a formação de mão de obra para classe trabalhadora. Essa formação era necessária para atender o desenvolvimento1 comercial e industrial que experimentava o incremento tecnológico, principalmente nas indústrias têxteis, para isso era necessária formação técnica para os trabalhadores, assunto que provocou divergência entre pensadores e a classe burguesa. A burguesia defendia a instrução para o povo porque no novo sistema fabril uma educação elementar era necessária ao operário; entretanto, defendia diferentes tipos de instrução para diferentes tipos de operários: educação primária para a massa de trabalhadores não especializados, educação média para os trabalhadores especializados e educação superior para os altamente especializados. (PEREIRA; GIOIA, 2014, p. 283). As autoras expõem que a divergência entre os pensadores pode ser destacada a partir de Voltaire, que considerava a massa indigna de instrução e 1 É relevante destacar que o desenvolvimento técnico e científico desses países aconteceu de forma diferente, pois se deu mediante as particularidades e às novas necessidades técnicas de cada país. 46 Diderot, que ao contrário, defendia a instrução de toda a massa (PEREIRA; GIOIA, 2014). O avanço técnico, nesse momento da história, não estava relacionado ao desenvolvimento da ciência, visto que a preocupação era com o aprimoramento das técnicas que ampliariam a produção; esse período conhecido como Revolução Industrial marca um caminhar paralelo entre ciência e técnica, mas não uma interdependência entre elas. Cabe considerar que, A técnica é o campo em que a atuação do homem se revela criadora por ela mesma, na medida em que o homem se descobre capaz de explorar o possível do mundo, de objetivar o virtual, de produzir mais que uma imitação da natureza ao efetuar aquilo que ela está na impossibilidade de realizar. (BALANDIER, 1999, p. 77-78 apud DUPAS, 2001, p. 74). No entanto, o capitalismo, com seu crescente, trouxe para a ciência novas exigências e desafios para responder os problemas que emergiam nas relações sociais de produção, foi a busca por respostas que promoveu a inter-relação entre ciência e técnica. A ciência passa a ser um elemento essencial na produção de bens e de consumo, bem como na reprodução humana aos denodos do capital. Segundo Pereira e Gioia (2014, p. 291), “A partir do século XVIII, a ciência dedicou-se à solução dos problemas produtivos e foi sendo gradativamente enfatizada.” Com a expansão e o aperfeiçoamento da ciência, a sua relação com as forças de produção do capital se estendeu aos séculos seguintes. Torna-se relevante considerar que toda história da ciência é representada por convergentes e divergentes concepções teóricas e tecnológicas; o progresso da humanidade e das ciências nos mostra que as condições concretas para esse avanço estavam condicionadas às possibilidades de escolhas (ou não) entre técnicas e os fatores econômicos e políticos, até dado momento alçados. Do recorte histórico elucidado, deparamo-nos com um momento relevante para as ciências na desconstrução e reconstrução de conceitos, na apreensão do homem perante o mundo, período que transcende o século XVIII, representado por pensadores franceses que reconstroem as relações sociais do homem e de sua capacidade objetiva e subjetiva, a natureza, as instituições. Partiremos das características apontadas por Rubano e Moroz (2014) para iniciar nossa análise. De acordo com as autoras: 47 Alguns aspectos podem ser levantados como característicos do pensamento francês desse período: a crença no poder da razão como instrumento de obtenção do conhecimento e de modificação da realidade, a ênfase aos dados obtidos por meio da observação e da experiência, o antidogmatismo (e, consequentemente, a crítica à religião) e a noção de progresso. (RUBANO; MOROZ, 2014, p. 326). Os filósofos franceses, como Condillac (1715-1780), Voltaire (1694-1778), Diderot (1713-1784), d’Alembert (1717-1783), entre outros, partem da apreensão e compreensão da razão a partir da crítica elaborada a René Descartes. Para esse, a razão estava relacionada a ideais inatas vinculadas a Deus e seu método para análise das verdades, o método dedutivo, parte de verdades universais para construir novos conhecimentos. A razão anunciada por outros filósofos, a crítica, parte da compreensão de sê-la uma capacidade eminentemente humana, que conduz o homem à descoberta consciente da realidade, de impressões anteriores, capaz de comunicar-se com outros sentidos humanos, na condução para a construção de novos conhecimentos e desvendar as transformações humanas. No racionalismo para o homem conhecer é preciso observar e desvelar, a partir da experiência, o que a razão os revela, enquanto capacidade natural e não divina. A própria noção de Iluminismo, Ilustração, ou ainda Esclarecimento, como o termo é por vezes traduzido, indica, através da metáfora da luz e da claridade, uma oposição às trevas, ao obscurantismo, à ignorância, à superstição, ou seja, à existência de algo oculto, enfatizando, ao contrário, a necessidade de o real, em todos os seus aspectos, tornar-se transparente à razão. O grande instrumento do Iluminismo é a consciência individual, autônoma em sua capacidade de conhecer o real; suas armas são, portanto, o conhecimento, a ciência, a educação. (MARCONDES, 2001, p. 202). A busca por novos conhecimentos, desvencilhados da revelação divina, conduziu a elaboração de leis naturais que fossem capazes de explicar a realidade; o método exigia a observação dos fenômenos, a partir da experiência, a análise e cálculos. A tentativa de explicar a realidade, incluindo os fenômenos sociais, por leis naturais, seria possível devido à regularidade e uniformidade dos fenômenos, pois parte-se do pressuposto que as leis estão na natureza das coisas (RUBANO; MOROZ, 2014). A centralidade no homem e não mais em Deus, desencadeou uma postura antidogmática entre os filósofos como Diderot, Montesquieu, Voltaire, em razão de, para eles, o homem se autorrealizar no mundo, suas relações são consubstanciadas 48 por leis naturais, sendo ele responsável pela formação e condução da sociedade. Distanciando Deus das relações sociais, as instituições, bem como o Estado, são criadas por homens e devem ser organizadas e conduzidas por homens. O posicionamento axial do homem, no domínio da razão nas apreensões dos fenômenos e na construção de novos conhecimentos, o elevou como agente responsável pelo progresso humano, pois “[...] o progresso ocorre na medida em que existe a aplicação crescente da razão no controle do ambiente físico e cultural.” (RUBANO; MOROZ, 2014, p. 334). Sua capacidade de elaborar o novo e ser responsável por sua obra atribuiu-lhe a liberdade de não responder aos dogmas, às revelações divinas e imposições políticas fruto da aliança entre clero e nobreza. Essa perspectiva está alicerçada pelo ideal burguês que almejava uma transformação político-econômica, de um Estado laico e de um comércio livre. Esse pensamento e direção objetiva para a mudança no contexto social, político e econômico são delineados pelos valores elucidados anteriormente: liberdade, igualdade jurídica e individualismo. A análise do progresso humano, tendo como base de sustentação o conhecimento racional, foi criticado por Jean-Jacques Rousseau. Para ele, ao relacionar o progresso humano ao desenvolvimento científico racional, a moralidade à consciência culta, o homem não se desenvolveu, mas “[...] contribuiu para a decadência em nível de costumes, valores e práticas: a origem de suas misérias é fruto do pretenso aperfeiçoamento humano”; e ainda, “[...] é a própria sociedade a responsável pela desigualdade, injustiça e arbitrariedade existentes.” (RUBANO; MOROZ, p. 334-335). Diferente da Inglaterra e Alemanha, os pensadores franceses apresentaram uma nova leitura da relação homem-natureza; promoveram uma desconstrução das verdades absolutas; e introduziram na ciência a concepção de natureza humana e a capacidade de interpretação do mundo e respostas aos fenômenos naturais. A partir da compreensão do homem em suas relações sociais, econômicas, políticas e culturais, autores como Voltaire e Paul-Henri Thiry (Barão de d’Holbach) promoveram uma nova concepção de história, relacionando-a às ações humanas e não às concepções anteriores, calcadas nas descendências monárquicas e na predestinação divina. Outra proposta que desencadeou desconforto foi a tentativa de desvincular a aplicabilidade da metodolo