unesp UNIVERSIDADE ESTADUAL PAULISTA “JÚLIO DE MESQUITA FILHO” Faculdade de Ciências e Letras Campus de Araraquara - SP RAQUEL LUCIANE CALOBRIZI CARROZZA OBJETOS DE APRENDIZAGEM PARA O ENSINO DO SISTEMA ALFABÉTICO ARARAQUARA – S.P. 2021 RAQUEL LUCIANE CALOBRIZI CARROZZA OBJETOS DE APRENDIZAGEM PARA O ENSINO DO SISTEMA ALFABÉTICO Dissertação de Mestrado apresentada ao Programa de Pós-graduação em Educação Escolar da Faculdade de Ciências e Letras – Unesp/Araraquara, como requisito para obtenção do título de Mestre em Educação. Linha de pesquisa: Formação do Professor, Trabalho Docente e Práticas Pedagógicas. Orientador: Prof. Dr. Edson do Carmo Inforsato. ARARAQUARA – S.P. 2021 C319o Carrozza, Raquel Luciane Calobrizi Objetos de Aprendizagem para o ensino do sistema alfabético / Raquel Luciane Calobrizi Carrozza. -- Araraquara, 2021 138 f. Dissertação (mestrado) - Universidade Estadual Paulista (Unesp), Faculdade de Ciências e Letras, Araraquara Orientador: Edson do Carmo Inforsato 1. Alfabetização. 2. Sistema alfabético. 3. Objetos de Aprendizagem. I. Título. Sistema de geração automática de fichas catalográficas da Unesp. Biblioteca da Faculdade de Ciências e Letras, Araraquara. Dados fornecidos pelo autor(a). Essa ficha não pode ser modificada. RAQUEL LUCIANE CALOBRIZI CARROZZA OBJETOS DE APRENDIZAGEM PARA O ENSINO DO SISTEMA ALFABÉTICO Dissertação de Mestrado apresentada ao Programa de Pós-graduação em Educação Escolar da Faculdade de Ciências e Letras – UNESP/Araraquara, como requisito para obtenção do título de Mestre em Educação. Linha de pesquisa: Formação do Professor, Trabalho Docente e Práticas Pedagógicas. Orientador: Prof. Dr. Edson do Carmo Inforsato. Data da defesa: 25/05/2021 MEMBROS COMPONENTES DA BANCA EXAMINADORA: Presidente e Orientador: Prof. Dr. Edson do Carmo Inforsato Universidade Estadual Paulista “Júlio de Mesquita Filho” Faculdade de Ciências e Letras – Campus de Araraquara Membro Titular: Profa. Dra. Ana Silvia Moço Aparício Universidade Municipal de São Caetano do Sul Membro Titular: Profa.Dra. Rosângela Sanches da Silveira Gileno Universidade Estadual Paulista “Júlio de Mesquita Filho” Faculdade de Ciências e Letras – Campus de Araraquara Local: Universidade Estadual Paulista Faculdade de Ciências e Letras UNESP – Campus de Araraquara Aos meus pais, que não tiveram a mesma oportunidade e sempre me incentivaram a prosseguir; ao meu marido, pelo apoio e incentivo; ao meu orientador, por acreditar na melhoria da Educação e contribuir para que ela ocorra; e, principalmente, às crianças. Que elas tenham sempre o direito de aprender. AGRADECIMENTOS Àquele que me criou conforme sua imagem e semelhança, e sempre me estendeu a mão, me auxiliando a prosseguir e a ser uma pessoa melhor; Aos meus pais, pelos valores ensinados, e o incentivo dado diante das adversidades; Ao meu marido, que sempre acreditou no meu trabalho, me apoiou e me incentivou a prosseguir; Ao meu orientador, Edson do Carmo Inforsato, por acreditar na melhoria educacional e contribuir para que ela ocorra; e me conceder a oportunidade de encontrar maneiras de melhorar o ensino; Ao meu colega Marcos Henrique Dias da Silva, pelo apoio e incentivo em toda essa trajetória academia. Aos queridos professores do Programa de Pós-Graduação em Educação Escolar, especialmente ao Prof. Dr. Silvio H. Fiscarelli, à Profa. Dra. Denise Maria Margonari Favaro, à Profa. Dra. Rosangela Sanches da Silveira Gileno e à Profa. Dra. Fabiana Cristina Frigieri de Vitta, pelo incentivo e contribuição acadêmica. Às diretoras, Rute e Mônica, e à professora coordenadora Lúcia, por incentivarem o meu trabalho e disponibilizarem os recursos necessários, contribuindo assim com a concretização da pesquisa e a melhoria das ações pedagógicas. Às minhas ex-colegas de trabalho, professoras e estagiárias, pela participação na pesquisa, e por me apoiarem e buscarem sempre a inovação pedagógica; Aos meus colegas do Programa de Pós-Graduação em Educação Escolar, especialmente à colega Andressa Cristina Dadério de Melo e ao colega Rafael Oliveira de Antônio pelo apoio. À Universidade Paulista “Júlio de Mesquita Filho” – FCLAR – Araraquara, pela oportunidade de formação continuada. http://lattes.cnpq.br/1294986257686669 http://buscatextual.cnpq.br/buscatextual/visualizacv.do?id=K4797710T9 http://lattes.cnpq.br/3696028065401053 http://lattes.cnpq.br/3696028065401053 “E, contudo, de repente eu sabia o que eram as letras, escutei-as em minha cabeça, elas se metamorfosearam, passando de linhas pretas e espaços em branco a uma realidade sólida, sonora, significante. Como conseguia transformar meras linhas em realidade viva, eu era todo- poderoso. Eu podia ler”. Alberto Manguel (1997, p. 05) RESUMO Esta pesquisa foi delineada diante da necessidade de identificar recursos com potencial de instrumentos ao métier (trabalho) docente, tendo em vista as particularidades das crianças em fase de alfabetização e a melhoria de ações didático-pedagógicas. À vista desta necessidade empreendemos uma investigação teórico-prática no decorrer do 2º ao 4º bimestre de 2019, durante as duas aulas semanais ministradas pela professora-pesquisadora nas duas turmas do 1º ano do Ensino Fundamental de uma escola municipal do interior paulista. A pesquisa teve por objetivo geral identificar as potencialidades dos Objetos de Aprendizagem (OA) enquanto instrumentos no trabalho docente da professora-pesquisadora, verificando e respondendo ao questionamento se, de fato, eles auxiliam no processo de ensino e aprendizagem. Nesse intento foi necessário trilhar alguns caminhos estabelecidos enquanto objetivos específicos, quais foram, identificar bibliografia especializada que sustentasse o tema e o estabelecimento dos fundamentos a serem seguidos, levando-se em conta as especificidades da alfabetização e a potencialização de seu processo; identificar e investigar os Objetos de Aprendizagem e suas potencialidades didáticas, instrumentalizando-os para uso pedagógico; utilizar esses instrumentos em ações didático-pedagógicas; e, verificar, descrever e analisar os resultados obtidos. Diante do apresentado pelo aporte teórico especializado por Soares (2018), Rabardel (2002), Cosenza, R. M; Guerra (2011), Dehaene (2012), Schlünzen (2011), dentre outros, e dos resultados obtidos a partir do uso dos OA, ambos constitutivos desta investigação, concluímos que os OA têm potencial para serem instrumentos pedagógicos ao abarcarem conteúdos e habilidades para a aprendizagem do sistema alfabético, serem artefatos culturais interessantes às crianças e oferecerem desafios e a manipulação multissensorial e lúdica desses conteúdos, sendo o professor o agente humano imprescindível à conversão dos artefatos em instrumentos e à potencialização do processo de ensino e aprendizagem. Palavras-chave: Alfabetização. Sistema alfabético. Objetos de Aprendizagem. Instrumentalização e Instrumentação. ABSTRACT This research was outlined faced with the need to identify artifacts with the potential as instruments to the teaching métier, bearing in mind the particularities of children in the literacy phase and the improvement of didactic-pedagogical actions. In view of this need, we undertook a theoretical-practical investigation over the 2nd to the 4th bimester of 2019, during the two weekly classes taught by the researcher professor in the two classes of the 1st year of Elementary School at a municipal school in the countryside of São Paulo. This research had the general objective of identify the potentialities of Learning Objects (LO), as instruments in the teaching métier of the research professor, verifying and responding to questioning whether, in fact, they help in the process of teaching and learning. For this, it was necessary to follow some paths established by the specific objectives, which were, to identify specialized bibliography, which would support the theme and the establishment of the foundations to be followed, taking into account the specificities of literacy and the potentiation of its process; identify and investigate the Learning Objects and their didactic potential, their instrumentalization for pedagogical use; use these instruments in didactic- pedagogical actions; verify, describe and analyze the results obtained. In face of the presented by the specialized theoretical contribution by Soares (2018), Rabardel (2002), Cosenza, R. M; Guerra (2011), Dehaene (2012), Schlünzen (2011), among others, and the results obtained from the use of LO, both as parts of this investigation, we conclude that LO have the potential to be pedagogical instruments, when they include contents and learning skills of the alphabetical system, to be interesting cultural artifacts to children, and offer challenges and multisensory and playful manipulation of these contents; being the teacher, the indispensable human agent to the conversion of artifacts into instruments and to the potentiation of the teaching and learning process. Keywords: Literacy. Alphabetical System. Learning Objects. Instrumentalization and Instrumentation. LISTA DE ILUSTRAÇÕES Ilustração 01 – Estrutura dos métodos analíticos e sintéticos 25 Ilustração 02 – Página da Cartilha da Infância - Galhardo 25 Ilustração 03 – Página da Cartilha da Infância - Galhardo 26 Ilustração 04 - Lições da “Cartilha Maternal” 27 Ilustração 05 - Metáfora da Lanterna na Janela 46 Ilustração 06 - Tela do OA Luz do Saber 63 Ilustração 07 – Tela inicial do OA Viagem Espacial 64 Ilustração 08 – Exemplo de atividade: identificação de escrita 65 Ilustração 09 – Atividade para o uso da percepção grafofônica/leitura 66 Ilustração 10 – Desafio de análise grafofônica para completar letras ausentes em cardápio 66 Ilustração 11 – Desafio: ligar sílabas para formar palavras 67 Ilustração 12 – Repositório virtual de Objetos de Aprendizagem Ludicamente.net 68 Ilustração 13 – OA do repositório virtual HVirtua 73 Ilustração 14 – Tela do OA Jogo do Alfabeto 74 Ilustração 15 – Tela do OA Brincando e Associando (desafio: ligar palavras às figuras) 74 Ilustração 16 - Tela do OA Sílabas e Figuras (desafio: arrastar sílabas para formar figuras) 75 Ilustração 17 - Tela do OA Abcdário (desafio: selecionar figuras correspondentes às letras) 75 Ilustração 18 – Tela dos OA de Língua Portuguesa: repositório virtual Ludo Educativo 76 Ilustração 19 – Tela inicial do OA Ludo Primeiros Passos 77 Ilustração 20 – Tela do OA LudoPrimeiros Passos (identificar figuras com mesma inicial) 77 Ilustração 21 – Tela do OA Ludo Primeiros Passos (identificar as letras iniciais) 78 Ilustração 22 – Tela do OA Ludo Primeiros Passos (desafio: análise: completar palavras) 78 Ilustração 23 – Tela do OA Ludo Primeiros Passos (desafio: analisar sílabas) 79 Ilustração 24 – Tela da atividade: desafio: arrastar e organizar as sílabas corretamente 79 Ilustração 25 – Tela dos OA de alfabetização - respositório virtual Escola Games 80 Ilustração 26 – Tela do OA Aprendendo o Alfabeto (repositório virtual Escola Games) 81 Ilustração 27 – Tela do OA Voo Educativo 81 Ilustração 28 – Tela do OA Brincando com as Vogais 82 Ilustração 29 – Tela do OA Dominó de Sílabas 83 Ilustração 30 – Tela do OA Jogo das Sílabas 83 Ilustração 31 – Tela do OA Qual é a Sílaba? 84 Ilustração 32 – Avaliação aplicada antes do uso de OA (final do 1º bimestre) 88 Ilustração 33 – Avaliação realizada pela aluna A6 antes do uso do OA 91 Ilustração 34 – OA utilizado: Ludo Primeiros Passos 92 Ilustração 35 – Avaliação comparativa realizada pela aluna A6 após o uso do OA 95 Ilustração 36 – Questionário dirigido aos alunos 97 Ilustração 37 – Avaliação realizada pela aluna B6 após uso dos OA 102 Ilustração 38 – Avaliação comparativa da aluna B6 104 Ilustração 39 – Avaliação realizada pelo aluno B13 107 Ilustração 40 – Avaliação comparativa do aluno B13 após o uso dos OA específicos 114 Ilustração 41 – Questionário utilizado na entrevista com as professoras e estagiárias 122 Ilustração 42 – Parecer da estagiária da Turma A 123 Ilustração 43 – Parecer da professora de classe da Turma A 124 Ilustração 44 – Parecer da estagiária da Turma B 124 Ilustração 45 – Parecer da professora de classe da Turma B 125 Ilustração 46 – Parecer da professora do 2º ano 126 LISTA DE GRÁFICOS Gráfico 01 – Conhecimentos dos alunos a respeito do sistema alfabético 89 Gráfico 02 – Quantidade de acertos antes e após o uso dos OA- Turma A 96 Gráfico 03 – Quantidade de acertos antes e após o uso dos OA - Turma B 96 Gráfico 04 – Pareceres iniciais sobre OA 98 Gráfico 05 – Comparativo de acertos antes e após o uso de OA – Turma A 105 Gráfico 06 – Comparativo de acertos antes e após o uso de OA – turma B 105 Gráfico 07 – Acertos: vogais ausentes após uso dos OA – Turma A 106 Gráfico 08 – Acertos: vogais ausentes após uso de OA – Turma B 106 Gráfico 09 – Acertos antes do uso dos OA específicos – Turma A 115 Gráfico 10 – Acertos após do uso dos OA específicos – Turma A 115 Gráfico 11 – Acertos antes do uso dos OA específicos – Turma B 116 Gráfico 12 – Acertos após o uso dos OA correspondentes – Turma B 116 Gráfico 13 – Avanços do aluno portador de necessidades educacionais especiais 117 Gráfico 14 – Cmparativo dos níveis de escrita espontânea – Turma A 120 Gráfico 15 – Comparativo dos níveis de escrita esposntânea – Turma B 120 LISTA DE TABELAS Tabela 01 – Sinopse das fases dos métodos de alfabetização 23 Tabela 02 – Repositórios virtuais para busca de Objetos de Aprendizagem 62 Tabela 03 – Relação de OA do repositório virtual Ludicamente.net 69 Tabela 04 – Relação de alguns repositórios virtuais com OA de alfabetização 84 Tabela 05 – Etapas da realização da pesquisa interventiva 86 Tabela 06 – Situação pedagógica dos alunos antes do uso dos OA 89 Tabela 07 – Pareceres dos alunos 98 Tabela 08 – Alguns dos OA utilizados para análise de regularidades grafofônicas 100 Tabela 09 – Alguns dos OA utilizados para análise e composição de palavras 103 Tabela 10 – Alguns dos OA utilizados para análise e aprendizagem de sílabas 108 Tabela 11 – Comparativo dos níveis de escrita espontânea - Turma A 118 Tabela 12 – Comparativo dos níveis de escrita espontânea - Turma B 119 SUMÁRIO 1 INTRODUÇÃO 14 2 FUNDAMENTAÇÃO TEÓRICA 18 2.1 A ALFABETIZAÇÃO: CONCEITOS E MÉTODOS: UMA BREVE ABORDAGEM 18 2.2 CONTRIBUIÇÕES DA NEUROCIÊNCIA À ALFABETIZAÇÃO 37 2.3 INSTRUMENTOS À ALFABETIZAÇÃO 47 3 PERCURSOS DA PESQUISA 59 3.1 LEVANTAMENTO E ANÁLISE DOS OBJETOS DE APRENDIZAGEM 61 3.2 A PESQUISA PARTICIPANTE / INTERVENÇÃO PEDAGÓGICA 85 3.3 RESULTADOS E DISCUSSÃO 88 4 CONSIDERAÇÕES FINAIS 128 REFERÊNCIAS 131 14 1 INTRODUÇÃO O ensino da alfabetização no Brasil é marcado por questionamentos e uma sucessão de alterações teórico-metodológicas ao longo do tempo. Diante disso, a maioria dos professores alfabetizadores têm buscado uma segurança didática com o foco voltado para a concretização do processo de ensino e aprendizagem do sistema de escrita sem partidarismo por uma ou outra matriz teórica. A busca por encontrar e definir encaminhamentos didático-metodológicos é motivada tendo em vista a importância de se aprender o sistema de escrita na atualidade e o que essa aprendizagem acarreta. Conforme Coelho (2011), o processo de alfabetização concebido como a aquisição do sistema alfabético é importante porque assegura não somente o entendimento desse sistema como também promove sinapses cerebrais mais avançadas do que a criança tinha, levando ao aumento das capacidades cognitivas. Assim, o processo de ensinar/aprender a ler e a escrever é importante tanto em seu “fim primeiro” - permitir a apropriação e utilização do sistema de escrita e assim a ampliação de sinapses cerebrais-, quanto em seu “fim último” - compreender e utilizar a escrita para fins superiores -, conforme Saviani (2005, apud Dangió, 2017, p. 88). À vista disso, os resultados das avaliações externas, tais como os da Avaliação Nacional da alfabetização - ANA1 2016, tornam-se preocupantes ao revelarem que 55% das crianças do 3º ano do Ensino Fundamental encontram-se nos dois piores níveis de leitura e 35% nos dois piores níveis de escrita. Esses indicadores representativos de nossa realidade educacional apontam, por exemplo, a dificuldade em localizar informações simples, em ler e escrever pequenos textos e até mesmo em ler e escrever palavras com diferentes estruturas silábicas. Essas dificuldades também são identificadas continuamente em minha trajetória como professora do componente curricular de leitura e escrita: ano a ano e em todas as séries me deparo com a dificuldade das crianças em reconhecer as estruturas do sistema alfabético, embora já tenham participado das etapas que se ocupam desse objeto de estudo. Esse fato sinaliza a necessidade da destinação de tempos e espaços suficientes e de recursos potenciais para o trabalho com uma das facetas da alfabetização – a faceta linguística. 1 INEP. http://www.brasil.gov.br/educacao/2017/05/resultados-preliminares-da-avaliacao-de alfabetiza cao- estao-disponiveis. 15 Diante desse cenário e da motivação obtida durante um curso de formação de professores em mídias na educação, a pesquisa buscou trazer contribuições do ponto de vista socioeducacional, ao favorecer e fomentar às crianças o ensino de conteúdos do sistema alfabético e seu funcionamento, considerando ser esse um conhecimento básico de suma importância ao desenvolvimento da aprendizagem da escrita e consequentemente à autonomia e ao prosseguimento dos estudos. Além disso, a pesquisa buscou trazer contribuições do ponto de vista científico, por meio do levantamento e análise de dados, informações e encaminhamentos didáticos relacionadas à alfabetização e aos recursos para alfabetizar, partindo da hipótese de que os Objetos de Aprendizagem (OA) de alfabetização são instrumentos pedagógicos potenciais para o ensino e aprendizagem do sistema alfabético. Tal hipótese se sustenta a partir da consideração de algumas características dos OA, dentre elas, a presença de desafios que abarcam o estudo, análise e manipulação das estruturas lógicas do sistema alfabético por meio de estímulos multissensoriais e lúdicos que despertam o interesse dos nativos digitais. Esses fatores intrínsecos à tão almejada e necessária melhoria pedagógica foram a motivação primeira que deu origem a uma pesquisa realizada durante o curso de especialização em Mídias na Educação (2013), oferecido a nós, professores de Educação Básica, pelo Governo Federal em parceria com a Escola de Comunicação e Artes (ECA-USP) e a Universidade Federal de Pernambuco (UFPE). Em suma, a pesquisa supracitada se ocupou em identificar e conhecer os Objetos de Aprendizagem e Softwares disponíveis de alfabetização e destacou o OA que melhor atendia à alfabetização sob a perspectiva Sociolinguística2 de Mendonça (2011). Em continuidade ao estudo anterior, porém com alterações tais como o acréscimo de outros fundamentos teóricos, a aplicação dos OA e a exclusão da perspectiva Sociolinguística como delimitação base para análise dos OA, a presente pesquisa foi realizada com vistas à ampliação/atualização das análises e das reflexões desenvolvidas no estudo anterior e por meio de um estudo prático/realista a fim de descobrir se, de fato, os OA contribuem para o ensino e aprendizagem do sistema alfabético. 2 Método que surge a partir do questionamento à prática do Construtivismo que tende a desenvolver apenas a função social da escrita em detrimento dos conhecimentos específicos, indispensáveis ao domínio da leitura e da escrita, que ficam diluídos no processo. A partir disso, Mendonça elabora o método Sociolinguístico: "Sócio", porque desenvolve efetivamente o diálogo no contexto social de sala de aula, e "Linguístico" por trabalhar o que é específico da língua[...], no intento de utilizar as contribuições do método construtivismo, sem deixar de lado o trabalho com o sistema alfabético, fundamentado em Paulo Freire. 16 A partir desse questionamento e sob essa nova motivação, além das anteriormente mencionadas, esse estudo propôs, por objetivo geral, investigar as potencialidades dos Objetos de Aprendizagem, identificando suas contribuições e resultados a partir de seu uso enquanto instrumento no trabalho docente. Nesse intento, a pesquisa teve por objetivos específicos, a) identificar bibliografia especializada que sustentasse o tema e o estabelecimento dos fundamentos a serem seguidos, levando-se em conta as especificidades da alfabetização e a potencialização de seu processo; b) identificar e investigar os Objetos de Aprendizagem (OA) e suas potencialidades didáticas, instrumentalizando-os para uso pedagógico; c) utilizar esses instrumentos em ações didático-pedagógicas; d) verificar, descrever e analisar os resultados obtidos. À vista de tais objetivos, a pesquisa foi sistematizada, elaborada e organizada, conforme descrito nesse primeiro capítulo e nos capítulos que se seguem. No segundo capítulo considerou-se alguns fundamentos encontrados no aporte teórico que trata de alfabetização, da neurociência e de recursos para o ensino, bem como os fundamentos gerais da teoria da instrumentação, servindo à identificação, análise e aplicação dos recursos com o potencial de instrumentos – os Objetos de Aprendizagem (OA). Uma vez identificados os fundamentos para sustentação e delineamento da intervenção pedagógica, bem como dos recursos (artefatos) a serem utilizados, o terceiro capítulo expôs a análise potencial dos artefatos (Objetos de Aprendizagem), a sua inclusão no métier docente da professora-pesquisadora e seus resultados. A inclusão dos artefatos (Objetos de aprendizagem) no métier docente da professora- pesquisadora foi realizada tendo em vista a sua instrumentação. A pesquisa interventiva foi realizada pela professora-pesquisadora durante a ministração de suas duas aulas semanais do componente curricular de leitura e escrita3, ocorrendo a partir do 2º bimestre do ano letivo de 2019 e tendo como público-alvo as suas duas turmas de 1º ano do Ensino Fundamental de uma escola municipal do interior paulista. Essa pesquisa interventiva propiciou a obtenção dos resultados, que, por sua vez, culminaram na verificação do potencial dos Objetos de Aprendizagem enquanto instrumentos de ensino e aprendizagem do sistema alfabético. 3 Nessa rede municipal de ensino do interior paulista existe o componente curricular de leitura e escrita. As duas aulas semanais desse componente curricular são atribuídas para uma professora específica. Sendo assim, essas aulas não são ministradas pela professora da classe, mas pela professora para quem são atribuídas as duas aulas semanais de leitura e escrita, que nesse caso é a professora-pesquisadora. 17 De posse de tais verificações foi possível tecer as considerações finais descritas no quarto capítulo, reiterando-se o potencial desses recursos, a importância de sua instrumentalização e instrumentação e, portanto, do papel do professor e de formação nessa área. 18 2 FUNDAMENTAÇÃO TEÓRICA 2.1 A ALFABETIZAÇÃO: CONCEITOS E MÉTODOS: UMA BREVE ABORDAGEM Há algum tempo, se perguntássemos a um professor o que é alfabetizar, ele não teria nenhum problema em responder que se tratava de “ensinar a decodificar”, ou de “ensinar as relações entre letras e sons” [...]. (FRADE, 2005, p. 45). A partir do trecho acima Frade (2005) expõe a existência de certa hesitação em responder “o que é alfabetizar”, engendrando assim o questionamento por meio do qual esse capítulo é iniciado: Afinal, o que é alfabetização? O questionamento é abordado tendo em vista expor alguns conceitos atribuídos a esse conteúdo/processo escolar tão fundamental aos seres humanos, uma vez que a escrita, incorporada como um meio de comunicação e registro, pode garantir não somente o acesso a novos conhecimentos, mas também a participação na sociedade. E é por isso que a aprendizagem da leitura e da escrita é um direito - destacado inicialmente pelos ideais republicanos para o “esclarecimento das massas iletradas” como um “instrumento privilegiado de aquisição de saber/esclarecimento e imperativo da modernização e desenvolvimento social” (MORTATTI, 2000, p. 297) - contemplado e sistematizado pela escola obrigatória e gratuita. De acordo com Frade (2005, p. 45) se essa pergunta fosse lançada atualmente encontraríamos respostas, tais como: “trata-se de trabalhar com a escrita e a leitura para que os alunos possam fazer uma leitura crítica do mundo e participar ativamente da cidadania”; “trata-se de ensinar a ler e escrever para que o alfabetizado possa usar a escrita nas suas diferentes funções e em diferentes contextos”; ou ainda “é promover o processo de construção de conhecimento do aluno sobre a escrita”. Segundo a autora podemos perceber um conceito bem específico na primeira resposta e, nas demais, definições multifacetadas e mais amplas que abarcam outros níveis de ensino da escrita; e que essas diferentes definições decorrem das influências de pesquisas e de movimentos sociais surgidos ao longo do tempo. Em suma, as definições mais difundidas são aquelas em que o propósito da alfabetização é o uso social da língua escrita e/ou o ensino e aprendizagem que permite a leitura e a escrita desse sistema. 19 Soares (2011) destacou a alfabetização enquanto processo de ensino e aprendizagem do sistema de representação da língua escrita, tendo em vista a etapa do ensino para qual se destina e suas especificidades: a aprendizagem inicial da escrita. Para o processo que considera o uso competente e o domínio da linguagem como forma de comunicação e conhecimento a pesquisadora utilizou-se de uma definição diferente - o letramento. Corroborando tais ideias, Monteiro (2009, p. 30) diz que: Alfabetização se refere ao processo por meio do qual o sujeito domina o código e as habilidades de utilizá-lo para ler e escrever. Trata-se do domínio da tecnologia, do conjunto de técnicas que o capacita a exercer a arte e a ciência da escrita. Letramento, por sua vez, é o exercício efetivo e competente da escrita e implica habilidades, tais como a capacidade de ler e escrever para informar ou informar-se, para interagir, para ampliar conhecimento, capacidade de interpretar e produzir diferentes tipos de texto, de inserir-se efetivamente no mundo da escrita, entre muitas outras. No entanto, para Freire (2001) a alfabetização se define como um processo amplo: ela é em si mesma um processo de ensino e aprendizagem da leitura e da escrita fluente e proficiente, ou seja, um processo que vai além da simples apropriação das estruturas e funcionamento do sistema alfabético. Freire (2001) considera que a alfabetização deve garantir não somente a apropriação "mecânica" da língua, ou seja, a compreensão do sistema alfabético, ou seja, como se faz para ler e escrever palavras, mas também uma apropriação compreensiva - o domínio da linguagem escrita como forma de comunicação e de conhecimento, sendo o texto, o contexto para alfabetizar. De acordo com os pressupostos teóricos da Pedagogia Histórico-Crítica4, a alfabetização seria a " instrução das convenções da língua e da comunicação, como uma condição para a integração de todos na vida social e profissional" (DANGIÓ, 2017, p. 86), sendo a 4 De acordo com Dangió, 2017, p. 24-25 "Concepção teórica elaborada por uma coletividade de autores e liderada pelo professor emérito da UNICAMP, Dermeval Saviani (1943-...), que tem como principal objetivo estabelecer princípios norteadores do processo educativo" a fim de que se constitua "como um espaço de apropriação dos conhecimentos científicos”. De acordo com Saviani (2005 apud Dangió, p. 25), "a pedagogia histórico-crítica surgiu no início dos anos 1980 como uma resposta à necessidade amplamente sentida entre os educadores brasileiros de superação dos limites tanto das pedagogias não críticas", estas, "representadas pelas concepções tradicional, escolanovista e tecnicista, como das visões crítico-reprodutivistas, expressas na teoria da escola como aparelho ideológico do Estado, na teoria da reprodução e na teoria da escola dualista". Suas concepções de sociedade, homem e de educação escolar estão fundamentadas na filosofia materialista histórico- dialética. "Trata-se de uma pedagogia radicada num aporte teórico-filosófico deveras comprometido com a emancipação do ser humano e com a superação da sociedade capitalista". (DANGIÓ, 2017, p. 86) 20 aprendizagem da leitura e da escrita a base para as demais aprendizagens, e, portanto, a alfabetização, o "fim primeiro" da escola, por meio de um processo formal e sistemático (transmissão-assimilação), conforme Saviani (2005, apud Dangió, 2017, p. 88). Segundo tal concepção: Por alfabetização entendemos, anuentes com Martins e Marsiglia (2015, p. 73), como sendo o "[...] processo de apropriação de uma forma específica de objetivação humana: a escrita", sendo que (idem, p. 74) "[...] a alfabetização propriamente dita dispensa o letramento ao contê-lo por interioridade, de sorte que ideários que advogam a alfabetização como letramento redundam, no mínimo, tautológicos do ponto de vista vigotskiano. (DANGIÓ, 2017, p. 25). Levando em conta as concepções de Freire (2001), Martins e Marsiglia (2015), Saviani (2005) e Dangió (2017) concluímos que não haveria a necessidade do termo letramento, ou seja, definir em separado os objetos de estudo de um mesmo processo: a alfabetização. Entretanto, Soares (2011) explica que essas especificações não tiveram a proposição de dicotomizar seus objetos, mas a de tê-los claros para integrá-los. Segundo Soares (2011) essa proposição foi motivada a partir da década de 80 devido à mudança significativa nas concepções de aprendizagem e de ensino da língua escrita em decorrência dos avanços obtidos pelas ciências linguísticas. A Psicolinguística, a Linguística, a Sociolinguística, a Análise do Discurso e a Linguística Textual são então aplicadas ao ensino da língua materna e reconfiguram o objeto e o processo de ensino e aprendizagem em Língua Portuguesa (idem, 1999). Esses estudos destacaram a complexidade e a diversidade dos objetos de conhecimento que a alfabetização abarca. Portanto, Frade (2005) e Soares (2018) salientam que ao se falar em alfabetização é necessário identificar as especificidades de cada objeto de estudo: o texto, o código (aqui considerado sistema alfabético) e o uso social. O primeiro e o último são conteúdos que perpassam todos os níveis de ensino e o objeto de estudo relativo ao código (aqui considerado sistema alfabético) é um conteúdo/objeto da alfabetização destinado especificamente aos anos iniciais (ou classes de alunos não alfabetizados). Soares (2011) assinala que as mudanças de concepções decorreram não somente do surgimento de pesquisas e teorias de aprendizagem que destacaram o papel fundamental de uma interação intensa e diversificada da criança com práticas e materiais reais de leitura e escrita, mas também dos resultados de avaliações de aprendizagem que apontaram tal necessidade; assim como 21 a evolução das formas de trabalho, que exigiu a transposição do analfabetismo funcional à proficiência da língua e de seus usos. Embora de acordo com a concepção ampla de alfabetização por contemplar em si mesma todos os aspectos necessários ao desenvolvimento da língua escrita, o fato é que no Brasil essa concepção não é ou nem sempre foi levada a cabo como um caminho sistemático - um método. Caso contrário não teríamos a preocupação em superar o analfabetismo funcional, apontado nas avaliações internas e externas5 de aprendizagem. Assim, levando-se em conta os problemas específicos demonstrados nas provas de desempenho escolar; as necessidades pedagógicas apontadas por teorias e pesquisas (mesmos as antagônicas à distinção entre alfabetização e letramento); bem como, a importância de se destacar outros objetos de ensino que não apenas a aprendizagem do sistema alfabético, definiu-se por letramento o processo que se ocupa de ultrapassar o domínio do sistema alfabético e ortográfico. Processo esse que objetiva o “estado ou condição de quem não apenas sabe ler e escrever, mas cultiva e exerce as práticas sociais que usam a escrita” (SOARES 2001, p. 47). Seja ela concebida como um processo único ou como multiprocessos vemos que em ambas as concepções está presente o objetivo de ensinar/aprender a ler e a escrever para um propósito e que, portanto, a importância da alfabetização se dá por seu “fim primeiro” (permitir a aprendizagem do sistema alfabético e a ampliação de sinapses cerebrais, de acordo com Coelho, 2011), bem como por seu “fim último” (compreender e utilizar a escrita para fins superiores) Saviani (2005, apud Dangió, 2017, p. 88). E nesse ensinar a ler e a escrever para um propósito "temos vivido o dilema de lidar com duas ordens de problemas no ensino: propiciar a vivência da língua como objeto cultural e tratar o sistema de escrita como objeto de reflexão” (FRADE, 2005, p. 10). Para as teorias os assuntos normalmente estão bem defendidos e definidos, porém: A prática de alfabetização é composta de modos de fazer assumidos por quem alfabetiza e também pelas teorias que vão se consolidando a cada época e, seja com o nome de técnicas, de métodos, de metodologia ou de didáticas de alfabetização, o fato é que os professores sempre precisaram/precisam conhecer e criar caminhos para realizar da melhor forma o seu trabalho (FRADE, 2005, p. 8, grifo nosso). 5 As avaliações internas são as que ocorrem internamente nas unidades escolares, e as avaliações externas são as provas que compõem o universo empírico do sistema avaliativo nacional. Várias avaliações ao longo do tempo mostram o déficit na leitura e escrita básica (identificação de palavras) e na proficiente. A última avaliação é possível acessar em: INSTITUTO NACIONAL DE ESTUDOS E PESQUISAS EDUCACIONAIS ANÍSIO TEIXEIRA (INEP). ANA 2016. Brasília: MEC, 2017. Disponível em: portal.mec.gov.br/docman/ outubro-2017- pdf/75181-resultados-ana-2016-pdf/file. 22 Para tratar do primeiro problema envolvido no dilema mencionado Frade (2005, p. 10, grifo nosso) explica que “devemos nos abrir para a multiplicidade de situações e promover uma aproximação com os usos da linguagem escrita” e, em contrapartida, ter certo “distanciamento” dos usos da linguagem escrita para tratar do segundo problema: “ensinar um sistema estável de escrita”. Em suas palavras: Para a apropriação dos usos, podemos defender um trabalho por imersão, em que se aprende lendo e escrevendo textos em situações autênticas, mas, para um trabalho com o ensino/aprendizado do sistema alfabético e ortográfico, precisamos assumir, sem medo de incoerências, que há necessidade de distanciamento da linguagem escrita, para observação de algumas de suas propriedades. Para isso há estratégias específicas e a história dos métodos de alfabetização muito nos revela sobre estratégias de aproximação/distanciamento da escrita (ibidem, grifo nosso). E não é pouca a história da alfabetização. De acordo com Frade (2005, p. 9) “a alfabetização tem uma história de longa duração, sobre a qual pouco conhecemos”. As práticas de alfabetização não começaram nos séculos XX e XXI, estão em constante transformação desde que se necessitou ensinar alguém a ler e escrever. Não fomos nós que inventamos a alfabetização e nem foi a escola que inventou a alfabetização. Afinal, são mais de 5.000 anos de invenção da escrita e pouco mais de dois séculos de escolarização de massa no mundo ocidental (GRAFF, 1990). Isso significa que a busca de maneiras de ensinar a escrita passou, antes da escola, por espaços domésticos e outros espaços privados, por iniciativas informais e só depois por sistemas púbicos de ensino (ibidem). Tendo em vista que “é no diálogo com práticas passadas e com as práticas atuais que poderemos compreender nossos problemas, compreender que soluções fizeram avançar a prática e desconfiar de soluções mágicas e fáceis [...]” (FRADE, 2005, p. 8) recorreremos brevemente à história da alfabetização, especificamente aos períodos mais significativos. Para Araújo6 (1996 apud MENDONÇA 2011) a história da alfabetização se divide em três períodos. No primeiro período (antiguidade e Idade média) predominou o método da soletração. Contra o método da soletração, entre os séculos XVI e XVIII, inicia-se o segundo período com a criação de métodos analíticos e sintéticos, sendo criadas as cartilhas amplamente utilizadas, estendendo-se até as décadas de 1960 e 1980. 6 ARAÚJO, M. C. de C. S. Perspectiva histórica da alfabetização. Viçosa: Universidade Federal de Viçosa, 1996. 23 Em oposição ao período anterior marcado pelo uso dos métodos analíticos e sintéticos inicia-se o terceiro período, em meados da década de 1980, com a divulgação da teoria da Psicogênese da língua escrita7, questionando-se a ênfase dada sobre a necessidade de se associar os sinais gráficos da escrita aos sons da fala para aprender a ler e escrever. Araújo (1996 apud MENDONÇA 2011, p. 28) retrata, conforme imagem a seguir, os métodos utilizados para alfabetizar e a sequência didática utilizada em cada método. Tabela 01 – Sinopse das fases dos métodos de alfabetização Fonte: Mendonça (2011, p. 28). Segundo Mendonça (2011) os métodos da soletração, o fônico e o silábico, são em grande medida correspondentes às várias cartilhas utilizadas a partir do século XVI8, onde as crianças faziam exercícios repetitivos com letras e sílabas (método sintético) para então seguir à análise da escrita a partir de palavras, frases, ou pequenos textos, frequentemente esvaziados de sentido. De acordo com Vieira (2017) a formatação das lições das cartilhas pautadas no método sintético era baseada no ensino das letras e das sílabas. Dentre as primeiras cartilhas 7 Pesquisa de Emília Ferreiro e Ana Teberosky, sobre aspectos linguísticos pertinentes à alfabetização. Trouxe resultados sobre como a criança concebe a língua escrita, proporcionando bases para o professor levar a criança até a hipótese alfabética sobre como ler e escrever. Teoria baseada na teoria do Construtivismo, de Piaget. FERREIRO, Emília e TEBEROSKY, Ana. Psicogênese da Língua Escrita. Porto Alegre: ArtMed, 2008. 8 De acordo com Vieira, 2017, a primeira cartilha de João de Barros, foi adotada no século XVI. 24 podemos citar “o Metodo portuguez para o ensino do ler e escrever” ou “Método Castilho” de Antônio Feliciano de Castilho. Segundo Cagliari (1998a, p. 23), esse método traz o “[...] emprego dos chamados alfabetos picturais ou icônicos, já usados na Grécia antiga além de textos narrativos”. Os demais métodos partiam do todo (método analítico), ou seja: palavra, frase e/ou texto, fazendo-se a partir daí, a análise do sistema de representação da escrita, conforme podemos ver na ilustração 01. De acordo com Soares (2018), embora os métodos de alfabetização não sejam uma questão em discussão exclusivamente do Brasil, em nosso país ela é constantemente debatida. Os métodos de alfabetização foram construídos e diversificados ao longo do tempo a partir de diferentes conceitos e pressupostos, ou seja, a partir dos "sentidos que ao longo do tempo foram sendo atribuídos à alfabetização" (SOARES apud MORTATTI, 2000, p.14). Diante disso, Mortatti (2000b) lista quatro períodos específicos entre os anos de 1876 e 1994, conforme Dangió (2017), a saber: disputa entre o método João de Deus9 -método da palavração e os métodos sintéticos (das primeiras cartilhas); disputa entre o método analítico (palavração, sentenciação e "historietas") e os métodos sintéticos (silabação); disputa entre o método misto (analítico-sintético ou sintético-analítico) e método analítico; e, por último, disputa entre a "revolução conceitual" proposta pela pesquisadora Emília Ferreiro (construtivismo) e os métodos tradicionais (defendidos pelos “velados e silenciosos” defensores do método misto, segundo Mortatti, 2000b, p. 27). Para Soares (2000, p. 14) "a história que nesta obra se reconstitui é a história dos métodos de ensino de leitura e de escrita, que é, na verdade, a história dos sentidos que ao longo do tempo foram sendo atribuídos à alfabetização". Mortatti (2000b) e Soares (2018) explicam que a partir do século XIX, mais especificamente em suas últimas décadas e início do século XX, houve no Brasil uma constante variação entre métodos sintéticos (método fônico, silábico) e analíticos (método da palavração, da sentenciação, global). O que difere um e outro método é o foco, conforme imagem a seguir: 9 João de Deus foi um advogado e poeta português, autor da Cartilha maternal ou arte da leitura, publicada em 1876, segundo Silva (2011), baseada no método da palavração, que é o ensino pautado na palavra e sua análise. 25 Ilustração 01 – Estrutura dos métodos analíticos e sintéticos Fonte: Mendonça (2011, p. 28). Nos métodos denominados sintéticos o valor sonoro de letras e sílabas é priorizado sob a concepção de que se deve partir dos fonemas e sílabas (unidades menores) em direção às unidades maiores (palavra, frase, texto) para aprender a ler e escrever, conforme exemplo mostrado na próxima ilustração: Ilustração 02 – Página da Cartilha da Infância – Galhardo Fonte: Mortatti (2000a). Já nos métodos analíticos a concepção é a de que se aprende a ler “lendo as palavras” (Silva Jardim, 1884, apud Mortatti, 2000b, p.48), ou seja, a aprendizagem deve partir das unidades portadoras de sentido (palavras, frases, textos). Eles devem ser analisados para que se obtenha a compreensão das unidades menores (fonemas, sílabas), conforme exemplo a seguir: 26 Ilustração 03 – Página da Cartilha da Infância - Galhardo Fonte: Mortatti (2000b). Representante do primeiro momento, a metodização do ensino da leitura por meio do "método João de Deus" foi apresentada no relatório de 18 de julho de 1882 e entregue ao presidente da província do Espírito Santo pelo professor e positivista Antônio da Silva Jardim, conforme Mortatti (2000b). Assim, a divulgação sistemática do "método João de Deus", ou seja, do método da palavração, "contribuiu decisivamente para a constituição da alfabetização como objeto de estudo no Brasil", segundo Mortatti (2000b, p. 72), “destituindo, dessa maneira, a tradição da soletração e da silabação” (DANGIÓ, 2017, p. 197). A “Cartilha Maternal ou Arte da leitura” (1ª edição em 1876) baseada no método da palavração, ou Método de alfabetização de João de Deus foi introduzida na Escola Normal de São Paulo em 1883 pelo então professor Antônio da Silva Jardim. Embora valorizando as contribuições passadas, João de Deus apresenta a “Cartilha” como uma escapatória ao “flagelo da cartilha tradicional”, provavelmente ao trazer a palavra e o texto como objeto de estudo e deleite, em vez de exercícios repetitivos. 27 Ilustração 04 - Lições da “Cartilha Maternal” Fonte: Magalhães (2013). Segundo Dangió (2017, p.197), “nessa trajetória de efervescência pela disputa hegemônica do ensino da leitura e da escrita, normatiza-se a tradição do método”, "apresentando-se o "método João de Deus" (palavração) como fase científica e definitiva nesse ensino e fator de progresso social" (MORTATTI, 2000, p. 73). A disputa entre os métodos novos (intuitivos e analíticos) delimita o segundo período, decorrente da reforma da instrução pública paulista (1890) iniciada por dois diretores de escola (Dr. Antônio Caetano de Campos e Gabriel Prestes) e executada por Cesário Motta Junior. Esse período “veio oficializar, institucionalizar e sistematizar um conjunto de aspirações educacionais amplamente divulgadas no final do Império brasileiro” (MORTATTI, 2000b, p. 78): uma pedagogia moderna com base na psicologia da infância e suas bases biológicas. As aspirações de cunho positivista convergiam para a busca de cientificidade em detrimento do empirismo na educação da criança e “delineavam a hegemonia dos métodos intuitivos e analíticos para o ensino de todas as matérias escolares, especialmente a leitura” (ibidem, grifo nosso), criando-se as escolas modelos para aplicação e disseminação de seus sistemas e métodos ao professorado primário paulista. Em 1909 é indicado oficialmente o método analítico, sendo adotado pelas escolas até ser implantada a reforma Sampaio Dória em 1920 - que garantiu a autonomia didática aos professores. 28 Silva (2011, apud Dangió, 2017, p. 198) explica que "é também nesse período, no final da década de 1910, que o termo "alfabetização" passa a designar a aprendizagem inicial da leitura e da escrita". A partir dessa reforma inicia-se o terceiro período em meados de 1920-1970: o período da “constituição da alfabetização como objeto de estudo" (MORTATTI, 2000b, p. 142). Esse período é influenciado pelos princípios da Escola Nova10 e marcado por um “contexto político de discussões acirradas” entre o discurso “acadêmico-institucional” e o subjugado “discurso do cotidiano escolar” (MORTATTI, 2000b apud DANGIÓ, 2017, p. 200). As discussões metodológicas da alfabetização ficam em segundo plano, no entanto, as cartilhas prosseguem e, sempre seguindo um(s) ou outro(s) métodos (analítico ou misto). Mortatti (2000, p. 144) explica que: Embora o método analítico continue a ser considerado o "melhor" e "mais científico", sua defesa apaixonada e ostensiva vai se diluindo, à medida que se vai secundarizando a própria questão dos métodos de alfabetização, em favor dos novos fins, para a consecução dos quais, se respeitadas tanto a maturidade individual necessária na criança quanto a necessidade de rendimento e eficiência, podem ser utilizados outros métodos, em especial o método analítico-sintético - misto ou "eclético" -, e se obterem resultados satisfatórios. Até aqui foram sintetizadas as três disputas/períodos entre os diferentes métodos de alfabetização no Brasil, conforme Mortatti (2000b), os quais retomamos: "método João de Deus" (palavração) e métodos sintéticos (primeiras cartilhas); método analítico e métodos sintéticos (silabação); método misto (sintético-analítico ou analítico-sintético) e método analítico (com ênfase nas questões de ordem psicológicas e cunho mais relativizado em relação à importância do método). Conforme discorremos, a alternância entre esses métodos na prática pedagógica ocorreu a partir das orientações dadas em diferentes momentos em que um ou outro predominou, conforme reforça Soares (2018). No entanto, se o estudo é iniciado por letras e sílabas (métodos sintéticos) ou introduzido por palavras, frases e textos (métodos analíticos), dá-se o fato de que indiferentemente de uma ou outra concepção adotada o objetivo comum a 10 De acordo com Mortatti (2000b, p. 143), movimento marcado a partir do “[...] Manifesto dos pioneiros da educação nova (1932) - particularmente por aqueles que aliam atividades intelectuais e acadêmicas com atividades político-administrativas”, a exemplo de Lourenço Filho, Fernando de Azevedo e Anísio Teixeira, e o professor Lourenço Filho. A síntese desse manifesto pode ser dada pelas "diretrizes de uma política escolar, inspirada em novos ideais pedagógicos e sociais e planejada para uma civilização urbana e industrial" (Azevedo, 1963 apud Mortatti, id), “com o objetivo de romper com a tradição e adaptar a educação à nova ordem política e social desejada”. 29 ambos os métodos (sintéticos e analíticos) é que se aprenda o sistema alfabético. Eles “são postos a serviço da aprendizagem do sistema de escrita” (SOARES, 2018, p.19), pois o que se quer é que o estudante aprenda o sistema alfabético. Após os três períodos caracterizados por disputas entre os métodos analíticos e sintéticos inicia-se então, no final da década de 1970, aproximadamente, o quarto período assinalado por Mortatti (2000b, p. 26), ou seja, a disputa entre os “partidários da "revolução conceitual" proposta pela pesquisadora argentina Emília Ferreiro, de que resulta o chamado construtivismo”, e os “defensores - velados e muitas vezes silenciosos, mas persistentes e atuantes - dos tradicionais métodos (sobretudo o misto)”. Soares (2018) explica que o novo paradigma se opõe aos métodos - até então considerados antagônicos e concorrentes, onde um prioriza apenas a percepção auditiva (sintéticos) e o outro a percepção visual (analíticos). Esse novo paradigma desloca o foco do professor para o aprendiz e traz uma ruptura metodológica ao enfatizar que: [...] o processo de aprendizagem da língua escrita pela criança se dá por uma construção progressiva do princípio alfabético, do conceito de língua escrita como um sistema de representação dos sons da fala por sinais gráficos; propõe que se proporcione à criança oportunidades para que construa esse princípio e esse conceito por meio de interação com materiais reais de leitura e de escrita [...] apagando-se assim, a distinção, que métodos sintéticos e analíticos assumem, entre aprendizagem do sistema de escrita e prática de leitura e de escrita... (FERREIRO E TEBEROSKY 1986 apud SOARES, 2018, p. 21) Para Soares (2018) o que o construtivismo traz é uma nova fundamentação teórica e conceitual do processo da língua escrita e, por esse motivo, esse paradigma passou a ser questionado com o passar do tempo: ele não apontava instrumentos e um ensino sistemático, ou seja, um método para o professor encaminhar a criança à compreensão e ao domínio do princípio alfabético e de todo o seu sistema de representação, chegando inclusive a negá-los, segundo Mortatti (2000b) e Mendonça (2011). Houve então uma desmetodização em prol da disputa pela hegemonia do novo (ibidem). Dangió (2017, p. 184) diz que “a vara11 curvou para o lado totalmente oposto e, desprovida de bases teóricas sólidas, deslizou sem direção metodológica para caminhos nunca antes percorridos”, uma vez que os estudos advogavam “a aprendizagem da língua escrita 11 Analogia de Saviani (2001) “para consertar uma vara torta não basta trazê-la para a posição correta. É necessário vergá-la para o lado oposto.”. SAVIANI, Demerval. Escola e Democracia. 34. 29d. Ver. Campinas, Autores Associados, 2001. (Col. Polêmicas do Nosso Tempo; vol. 5). 94 p. 30 ocorrendo por meio de conflitos cognitivos e "erros construtivos", os quais desestabilizam as hipóteses infantis” (ibidem, p. 210). De acordo com Mortatti (2000 apud Dangió 2017, p. 210), em 1984 “esta perspectiva de aprendizagem incorporou-se na educação paulista, sendo disseminada por meio de programas de alfabetização” formações e publicações. Esses programas destinados à formação de professores alfabetizadores no Brasil trouxeram contribuições e questionamentos. Um desses programas, o Letra e Vida, Programa de Formação de Professores Alfabetizadores, oferecido durante mais de uma década pela Secretaria de Estado da Educação e aderido pela rede municipal, contribuiu ao enfatizar “a importância de o professor constituir-se como leitor e planejar boas situações didáticas de leituras diárias para seus alunos. Essa prática não era tão disseminada entre os professores alfabetizadores de então” (DANGIÓ, 2017, p. 31). Se por um lado o curso trouxe discussões em prol da ressignificação das práticas de leitura e escrita e a ampliação de seu repertório, por outro lado despertou a indagação a respeito da ausência de abordagens e de encaminhamentos metodológicos sobre a consciência fonológica e demais estruturas linguísticas que compõem o nosso sistema de escrita, segundo Dangió, (2017). Esse questionamento também foi levantado por Mendonça (2011). A autora afirma que os pressupostos construtivistas, alvo de compreensões inadequadas e aderidos equivocadamente enquanto método de alfabetização, deixa lacunas ao "[...] desenvolver apenas a função social da escrita em detrimento dos conhecimentos específicos, indispensáveis ao domínio da leitura e da escrita, que ficam diluídos no processo" (MENDONÇA 2011, p. 24). Não diferentemente, no programa de formação Pacto Nacional de Alfabetização na Idade Certa – PNAIC, de iniciativa do governo federal, oferecido posteriormente ao curso Letra e Vida, também encontramos “a insuficiência de aprofundamento acerca das questões linguísticas” a partir dos estudos de Vieira e Rodrigues (2016, apud DANGIÓ, 2017, p. 32). Neste sentido, problematiza-se uma das lacunas linguísticas dentro o PNAIC, pois se um dos objetivos do programa é ― entender as relações entre consciência fonológica e alfabetização, analisando e planejando atividades de reflexão fonológica e gráfica de palavras, utilizando materiais distribuídos pelo MEC (BRASIL, 2012, Caderno de apresentação, p. 31) qual caderno contempla a contento esses saberes fonológicos e fonéticos da língua? (VIEIRA; RODRIGUES, 2016, p. 168) 31 Percebem-se então, segundo Mendonça (2011), vestígios de um dos equívocos da disseminação de um método geral de ensino aplicado como método de alfabetização: o não ensino (ou não ensino organizado e sistemático) do sistema de representação da fala. Corroborando tais ideias, Mortatti (2016 apud Dangió, 2017, p. 28) aponta para a implementação de um "construtivismo à brasileira, como resultado de um conhecimento aligeirado acerca dos pressupostos dessa corrente pedagógica, sem a leitura, pelos professores, dos textos originários a ela”. Segundo as autoras, “disto resultou a negação do ensino dos elementos linguísticos necessários à aprendizagem da leitura” (ibidem). Retomando o quarto período assinalado por Mortatti (2000b, p. 26), ou seja, a disputa entre os “partidários da "revolução conceitual" proposta pela pesquisadora argentina Emília Ferreiro, de que resulta o chamado construtivismo”, e os “defensores - velados e muitas vezes silenciosos, mas persistentes e atuantes - dos tradicionais métodos (sobretudo o misto)”, constatamos em suma, de acordo com Dangió (2017, p. 28) que: Em meados dos anos oitenta, a perspectiva construtivista constituiu-se hegemônica na alfabetização, priorizando o trabalho com o texto como unidade de sentido, sendo o letramento a figura principal no ensino da língua escrita. Nessa lógica, os conhecimentos acerca das relações grafema- fonema saem de cena, deixando os alunos subjugados às suas hipóteses individuais, postulando como "mais desejáveis as aprendizagens que o indivíduo realiza por si mesmo, nas quais está ausente a transmissão" (DUARTE, 2001, p. 36). De acordo com Frade, (2003, p. 18-19), “esse processo fez com que uma das facetas mais importantes da alfabetização - a decodificação - tenha sido esquecida”, e esse fato, além de outros, tais como as concepções sobre ensino e aprendizagem, suscitam indagações e inquietações entre os professores e pesquisadores, sobretudo os “defensores - velados e muitas vezes silenciosos, mas persistentes e atuantes - dos tradicionais métodos” (MORTATTI 2000, p. 26-27). Se levarmos em conta as contribuições de Ferreiro (1995) sobre a Psicogênese da Língua Escrita, ou seja, as concepções das crianças sobre a escrita, concluímos que, de fato, ensinar somente sílabas e letras não garante que a criança escreva alfabeticamente, pois ela também precisa compreender os procedimentos da escrita alfabética e o sentido da escrita. Caso contrário, não constataríamos o fato de haver crianças que conhecem todas as letras e sílabas, mas que não conseguem organizá-las para escrever uma palavra. Por outro lado, conforme Dangió (2017), se definirmos o problema da alfabetização somente como um mero problema de ordem conceitual, ignora-se as estruturas linguísticas 32 (simbólicas) que compõem a escrita e o fato de que sua compreensão não é simples e inata à criança, desconsiderando, portanto, a necessidade de seu ensino e o fato de que “dificilmente alguém aprenderá a ler ou escrever sem que opere com os fonemas e o modo de representá-los graficamente” (FRADE, 2005, p. 49). Prova disso é o fato de existirem crianças que compreendem em certa medida a constituição silábica da escrita, entretanto não escrevem ou leem alfabeticamente por não conhecerem ou não terem se apropriado de todas as estruturas lógicas que compõem o sistema de escrita: os símbolos e suas combinações (letras e sílabas). Desse modo: O risco que se corre num período de maiores modificações conceituais, como diria Berta Braslavsky (1988), é o de uma negação de que há caminhos a seguir na intervenção em sala de aula. Para essa autora, a principal consequência negativa de alguns movimentos nesse sentido é uma defesa da não-intervenção na alfabetização, que leva, ao extremo, a uma ideia de que a alfabetização deve ser desescolarizada. Isso tem implicações sérias para países em que a escola ainda é a principal via de acesso para a aprendizagem da escrita. (FRADE, 2005, p. 18) Em relação ao construtivismo e sua “desmetodização” ou “desescolarização” citada por Frade (2005), Soares (2005) explica que: Foi um fenômeno – o chamado "Construtivismo" na alfabetização – que, sob um ponto de vista sociológico, mereceria ser estudado. Foi um movimento que invadiu as escolas de todo o País, e se multiplicaram os cursos para ensinar aos professores o "Construtivismo". Mas o que se ensinava a eles não era como alfabetizar a criança, era como a criança aprendia. Os métodos de alfabetização até então usados passaram a ser negados, com o argumento de que eles ignoravam o processo como a criança aprende. O que é uma verdade apenas parcial. Costumo dizer que, antes do Construtivismo, os professores alfabetizadores tinham um método e nenhuma teoria. Eles ensinavam pelo global, pelo silábico, pelo fônico, mas as teorias que fundamentam esses métodos não eram discutidas. Eu mesma, quando formava professoras no então chamado Curso Normal, no que dizia respeito à alfabetização, discutia os métodos existentes e como é que se aplicava cada um. O Construtivismo veio negar esses métodos, mas não propôs outro método que os substituísse, trouxe uma teoria sobre a aprendizagem da língua escrita. Assim, antes se tinha um método e nenhuma teoria; depois passou-se a ter uma teoria e nenhum método. Passou-se até a considerar que adotar um método para alfabetizar era pecado mortal. Como se fosse possível ensinar qualquer coisa sem ter método (SOARES, 2005, n.p.). 33 A partir dos caminhos e/ou “descaminhos” 12 percorridos pelo construtivismo enquanto método de alfabetização ampliam-se as discussões, pesquisas e análises acerca da alfabetização, sobretudo após uma década de “supremacia do construtivismo” (MORTATTI, 2000, apud DANGIÓ, 2017, p. 210). Em síntese, neste quarto momento, o ensino-aprendizagem da leitura e escrita vem-se sedimentando como um objeto de estudo e pesquisa acadêmico integrado a um campo de conhecimento específico - ensino da língua [...]. Todavia, o interesse crescente que os problemas relativos a esse processo de ensino-aprendizagem têm despertado em pesquisadores de outras áreas - como história, antropologia, sociologia - indica uma tendência de a alfabetização se constituir um campo de conhecimento superespecializado, autônomo e, simultaneamente, interdisciplinar. (MORTATTI, 2000, p. 288, grifo nosso). Como brevemente exposto, a história dos métodos, ou mais precisamente os embates ou disputas entre o há de melhor para a alfabetização, mostra que houve contribuições advindas dos vários modos de fazer, bem como equívocos ao se promover um caminho, um método elegido e/ou adotado como o único e ideal, conforme Mortatti (2000b), Frade (2005), Mendonça (2011), Dangió (2017) e Soares (2018). Sendo assim: É preciso deixar bem claro que, ao problematizar a temática das metodologias, não estamos prestando tributo aos métodos como salvadores da pedagogia da alfabetização. (FRADE, P. 14) [...] o que acontece na sala de aula é muito mais do que imaginamos, porque os professores não se apropriam da mesma maneira das prescrições existentes em determinado método. Usam de competências, de conhecimento e de intuição, advindos de suas práticas de sucesso. Entendemos que os termos metodologias e/ou didáticas da alfabetização se referem a um conjunto amplo de decisões relacionadas ao como fazer. Para nós, decisões metodológicas sobre procedimentos de ensino são tomadas em função dos conteúdos de alfabetização que se quer ensinar e do conhecimento que o professor tem sobre os processos cognitivos dos alunos, quando estes tentam compreender o sistema alfabético e ortográfico da linguagem escrita e seu funcionamento social. (FRADE, 2005, p. 14-16, grifo nosso). Embora não se possa atribuir o fracasso na alfabetização apenas ao caminho (método) utilizado, uma vez que coexistem fatores como os de natureza social e psicológica, a questão dos métodos reaparece continuamente. E não seria diferente no início do século XXI, 12 Soares e Mendonça (2011) abordam os caminhos, descaminhos e equívocos do construtivismo implementado como método alfabetizador. In: UNIVERSIDADE ESTADUAL PAULISTA. Prograd. Caderno de formação: Formação de professores, didática dos conteúdos. São Paulo: Cultura Acadêmica, 2011. 34 principalmente ao persistir o fracasso na alfabetização, em que há registros expressivos de alunos semianalfabetos ou analfabetos (Mendonça, 2011 e Soares, 2018). Além do fracasso, a discussão prossegue em virtude das “concepções diferentes sobre o objeto da alfabetização, isto é, sobre o que se ensina quando se ensina a língua escrita” (SOARES, 2018, p. 25). Segundo a autora, a diferenciação dada ao objeto da alfabetização decorre do próprio conceito de alfabetização, que no estado atual das ciências linguísticas, da Psicologia cognitiva e da Psicologia do Desenvolvimento traz a alfabetização como um processo complexo, dando abertura para se privilegiar um ou alguns de seus componentes, também denominados pela autora como facetas. Ou seja, ocorre a possibilidade de que se privilegiem alguma(s) facetas em detrimento de outra(s). Para Soares (2018), quando se trata do ensino e aprendizagem da escrita há de se considerar todas as facetas. Na faceta linguística, por exemplo, o objeto de conhecimento é o sistema alfabético e suas representações grafofonêmicas, ou seja, o significado, a representação visual e sonora desse sistema de representação da fala. Segundo Mortatti (2000b), Frade (2005), Mendonça (2011) e Dangió (2017), o ensino desse objeto de conhecimento é imprescindível à aprendizagem inicial da escrita. As facetas interativa, vinculada à compreensão e expressão de mensagens, e a faceta sociocultural, que trata a escrita em contextos socioculturais e seus valores e funções, estão presentes em todos os níveis de ensino, pois se ocupam de objetos de estudos que ultrapassam o domínio do sistema alfabético e ortográfico, ou seja, do domínio funcional da linguagem escrita. Essas facetas e seus objetos de ensino e aprendizagem são encontrados nos documentos oficiais, nos materiais didáticos e nas práticas escolares. Nos documentos há a recomendação enfática de que os professores devem destinar tempos e espaços para o ensino e aprendizagem da linguagem em sua função social, bem como do sistema alfabético e suas representações. A constatação das multifacetas no processo de ensino e aprendizagem da língua revela a complexidade da linguagem e os vários objetos de conhecimentos que devam ser integrados para compor o repertório de linguagem da criança. Embora esses objetos de conhecimentos sejam priorizados e ensinados de diferentes maneiras em virtude do método utilizado, eles devem ser abordados nos processos de ensino oferecidos pela escola a fim de desenvolver competências específicas em relação a cada objeto ou faceta que compõe a nossa língua, conforme enfatiza Soares (2018), especialmente 35 a faceta linguística e seu objeto (o sistema alfabético) tão importantes à aprendizagem inicial da escrita. Em resumo: há procedimentos e conteúdos típicos do período inicial da alfabetização – afinal o que se faz nos outros níveis de ensino até os níveis mais superiores da escolarização é o desenvolvimento das competências em relação à escrita e não o ensino inicial da escrita. Há procedimentos que só os alfabetizadores realizam e, ainda quando esses mesmos professores têm que tratar de capacidades mais amplas, o foco de seu trabalho tem uma especialidade que exige a adoção de alguns caminhos. Há uma identidade especial que caracteriza o professor alfabetizador e este precisa conhecer e compreender aspectos históricos que ajudaram a construir/constituir uma tradição metodológica própria do nível de ensino em que atua. Isso inclui o conhecimento dos métodos de alfabetização. (FRADE, 2005, p. 16, grifo nosso) Levando em conta o exposto pelas autoras, bem como as experiências e práticas escolares em alfabetização, em consonância com constatações de demais professores alfabetizadores, reiteramos, conforme Soares (2018), que não há um método milagroso operado na escola, pois “[...] a resposta à questão dos métodos é plural: há respostas, não uma resposta, e a questão não se resolve com um método, mas com múltiplos métodos (ou procedimentos) segundo a faceta que cada um busca desenvolver” (SOARES, 2018, p. 35, grifo nosso). Diante disso, “é necessário reconhecer que, além do desenvolvimento científico da área, há um outro campo de produção de conhecimento: o da experiência acumulada de vários professores sobre como desenvolver a didática da alfabetização” (FRADE, 2005, p. 18, grifo nosso). Embora sejamos convictos de que todas as facetas devem contempladas no ensino inicial da escrita, evitando, assim, o mecânico e alienante 13, vale ressaltar, entretanto, que “quando se trata de estudos e pesquisas, é inevitável: se o todo é complexo e multifacetado, se cada faceta é de natureza específica, cada uma só pode ser investigada isoladamente” (SOARES, 2018, p. 32, grifo nosso). Assim como em qualquer área multifacetada, ao analisar os conteúdos da aprendizagem da língua escrita, temos em vista que: [...] o todo só pode ser compreendido se cada uma de suas partes é compreendida; por isso, para a ciência, para a pesquisa, é necessário fragmentar essa aprendizagem, tomar cada uma de suas facetas 13 No contexto da alfabetização, Dangió, (2017, p. 31) menciona como exemplo de ensino/aprendizagem mecânico e alienante “o verbalismo como forma de ensino, a repetição mecânica para uma memorização sem sentido, conteúdos assimilados sem serem compreendidos, entre outros aspectos”. 36 separadamente, a fim de compreender as características específicas a cada uma. (SOARES, 2018, p. 33, grifo nosso) Mortatti (2000b), Frade (2005), Mendonça (2011), Dangió (2017) e Soares (2018) trazem a discussão sobre a importância de não perder de vista um conteúdo central do ensino inicial da escrita - as estruturas linguísticas do sistema alfabético. Portanto, ao eleger a parte a ser investigada, considera-se o que as referidas autoras especialistas destacam em consonância com Frade (2005, p. 16): “há procedimentos e conteúdos típicos do período inicial da alfabetização [...] há procedimentos que só os alfabetizadores realizam”. Mas afinal, que conteúdos são esses? Sabe-se que um tipo de conteúdo da alfabetização continua estável: trata-se de ensinar as relações entre letras e unidades da cadeia sonora da fala [...] Com essa abordagem, também se possibilita uma chave de interpretação para decifrar qualquer palavra nova. Ressaltamos que dificilmente alguém aprenderá a ler ou escrever sem que opere com os fonemas e o modo de representá-los graficamente [...] As relações entre letras e sons não são simples. São de natureza complexa. Para compreender o funcionamento do nosso sistema alfabético, é preciso descobrir e ser informado sobre o que distingue a escrita de outras representações simbólicas, o espaçamento e a direção da escrita, conhecer o alfabeto, as combinações possíveis entre as letras. Essas descobertas vão resultar na consciência da relação da representação alfabética com segmentos da fala. É importante que a criança focalize o aspecto sonoro da língua, observando segmentos como sílabas, rimas, começos ou finais de palavras. Somente assim estabelecerá relações entre a escrita e a cadeia sonora da fala, apreendendo regras de correspondência entre grafemas e fonemas. Em outros termos, a consciência fonológica e os processos de codificação e decodificação são componentes essenciais da alfabetização. Para a criança que se inicia nesse aprendizado, o uso da decodificação é mais pertinente e necessário do que para um leitor avançado ou fluente que, gradualmente, abandona a decodificação na leitura, só recorrendo a ela em situações especiais (palavras difíceis e desconhecidas, por exemplo). (FRADE, 2005, p. 46-49, grifo nosso). Em consonância ao exposto, a nova Base Nacional Curricular Comum – BNCC (2018) situa essa faceta elementar da alfabetização, ao dizer que: Embora, desde que nasce e na Educação Infantil, a criança esteja cercada e participe de diferentes práticas letradas, é nos anos iniciais (1º e 2º anos) do Ensino Fundamental que se espera que ela se alfabetize. Isso significa que a alfabetização deve ser o foco da ação pedagógica. Nesse processo, é preciso que os estudantes conheçam o alfabeto e a mecânica da escrita/leitura – processos que visam a que alguém (se) torne alfabetizado, ou seja, consiga “codificar e decodificar” os Dominar o sistema de escrita do português do Brasil não é uma tarefa tão simples: trata-se de um processo de construção 37 de habilidades e capacidades de análise e de transcodificação linguística. [...] Assim, alfabetizar é trabalhar com a apropriação pelo aluno da ortografia do português do Brasil escrito, compreendendo como se dá este processo (longo) de construção de um conjunto de conhecimentos sobre o funcionamento fonológico da língua pelo estudante. Para isso, é preciso conhecer as relações fono-ortográficas, isto é, as relações entre sons (fonemas) do português oral do Brasil em suas variedades e as letras (grafemas) do português brasileiro escrito. Dito de outro modo, conhecer a “mecânica” ou o funcionamento da escrita alfabética para ler e escrever significa, principalmente, perceber as relações bastante complexas que se estabelecem entre os sons da fala (fonemas) e as letras da escrita (grafemas), o que envolve consciência fonológica da linguagem: perceber seus sons, como se separam e se juntam em novas palavras, etc. Temos aí, portanto, o eixo da análise linguística/semiótica, que envolve o conhecimento sobre a língua, sobre a norma-padrão e sobre as outras semioses, que se desenvolve transversalmente aos dois eixos – leitura/escuta e produção oral, escrita e multissemiótica – e que envolve análise textual, gramatical, lexical, fonológica e das materialidades das outras semioses. (BNCC, 2018, p. 79, 87 e 88). Dentro desse eixo da análise linguística/semiótica trazida pela BNCC (2018), temos de proporcionar aos alunos o ensino e aprendizagem de alguns objetos de conhecimento e de habilidades, tais como, “Reconhecer o sistema de escrita alfabética como representação dos sons da fala” (BNCC, 2018, p. 97); “Identificar fonemas e sua representação por letras” (BNCC, 2018, p. 97); “Relacionar elementos sonoros (sílabas, fonemas, partes de palavras) com sua representação escrita.” (BNCC, 2018, p. 99); “Comparar palavras, identificando semelhanças e diferenças entre sons de sílabas iniciais, mediais e finais.” (BNCC, 2018, p. 99); “Nomear as letras do alfabeto e recitá-lo na ordem das letras.” (BNCC, 2018, p. 99). Uma vez apontada a necessidade da aprendizagem do sistema alfabético e de seu conjunto de representações, essa pesquisa se ocupa da investigação de instrumentos potencializadores para esse processo de ensino e aprendizagem. Nas próximas seções são abordados alguns fundamentos a respeito da importância do ensino e aprendizagem desse objeto de conhecimento, bem como do uso de instrumentos nesse processo. 2.2 CONTRIBUIÇÕES DA NEUROCIÊNCIA À ALFABETIZAÇÃO Como abordado na subseção anterior, o sistema alfabético é composto por conteúdos/estruturas linguísticas, dentre os quais, as unidades menores (letra e sílaba) e, portanto, não devem ser desconsideradas. 38 A fim de ressaltar os elementos defendidos até aqui como essenciais ao trabalho pedagógico com a língua materna, nos apoiaremos na neurociência, apresentando conteúdos neurolinguísticos fundamentais para o entendimento da leitura e da escrita e questões relacionadas às unidades de processamento da linguagem. Quando se fala em processamento da linguagem escrita é possível identificar duas linhas de trabalho, de acordo com Andrade; Andrade; Capellini (2014 apud Dangió 2017): abordagens pautadas no trabalho com o sistema alfabético (rota fonológica) e no trabalho com o significado (rota lexical). As abordagens didático-metodológicas pautadas no sistema alfabético (rota fonológica) “[...] tem como ponto de partida as unidades menores da linguagem oral (fonemas e sílabas) e as unidades menores da linguagem escrita (letras e combinações de letras), tendo como resultado o acesso indireto ao significado” (DANGIÓ, 2017, p. 212), a exemplo dos métodos alfabético, silábico, fônico e outros apresentados na subseção anterior. Já nas abordagens pautadas no trabalho com o significado (rota lexical), o texto é o ponto de partida e “o principal objetivo é a compreensão do que está sendo lido”. Sendo assim, os métodos globais, ideográficos, construtivistas, sociointeracionistas e outros, sustentados pelas ideias de que “as crianças podem aprender a ler tão naturalmente como aprendem a falar" (Andrade; Capellini, 2014, p. 26), são exemplos de abordagens pautadas no trabalho com o significado. De acordo com Belintane (2006. p. 263, grifo nosso), esse embate didático metodológico (já brevemente apresentado na subseção anterior) vem desde o final do século XIX submetendo o ensino da leitura a uma “polaridade discursiva”: [...] o ensino da leitura vem sendo submetido a uma polaridade discursiva que opõe, de um lado, às linhas teóricas que acentuam a importância do código no processo da aprendizagem da leitura (métodos alfabético, silábico, fônico e outros), cuja entrada no ensino se dá a partir de uma rígida sistematização das fases iniciais da aprendizagem e cuja premissa básica assume que a leitura fluente resulta de um domínio seguro da correlação entre as unidades mínimas da fala e as da escrita. De outro, posicionam-se as linhas que dão relevo aos sentidos prévios construídos pelo leitor e a suas habilidades em utilizar-se de conhecimentos já assimilados para monitorar o processo de leitura, cuja entrada no ensino valoriza, entre outros, a cultura, a construção do conhecimento e a interatividade (métodos globais; ideográficos; construtivismo; sociointeracionismo e outros). Diante disso somos levados a questionar, se, afinal, o aprendizado da leitura é “um processo natural no qual as crianças extraem o significado diretamente do texto por meio da 39 construção de hipóteses e adivinhação pouco envolvendo a transcodificação ortográfico- fonológica?” ou “[...] um processo de decodificação ortográfico-fonológica para a obtenção de significado a partir da fonologia?” (ANDRADE, ANDRADE E CAPELLINI, 2014, apud DANGIÓ, 2017 p. 214). Em concordância com Dangió (2017), ressaltamos que para se tomar uma posição diante de tal questionamento é necessário buscar respostas nas análises científicas a respeito dos “processos de aprendizagem da leitura e da escrita em seus aspectos fonológicos e lexicais para que, munidos desses conhecimentos, possamos argumentar acerca do trabalho mais adequado com a alfabetização” (DANGIÓ, 2017, p. 214). E assim fazendo, estaremos considerando as contribuições das bases científicas materiais e orgânicas do avanço da neurociência e fortalecendo a defesa da importância do ensino e aprendizagem das unidades menores da escrita na fase de alfabetização. Dehaene (2013) explica que a aprendizagem da leitura no cérebro começa a ser conhecida por meio do processo de rastreamento dos neurônios. Exames de neuroimagem têm mostrado o que acontece e quais áreas são ativadas nos processos de leitura e escrita e sua aprendizagem. Em linhas gerais, o processamento do significado e da representação da sonoridade das palavras é realizado por vias de leitura, e diversos neurônios são ativados em diferentes regiões do cérebro. Segundo Dangió (2017, p. 215), essas informações podem nos ajudar na “escolha do melhor encaminhamento metodológico para se alfabetizar”, já que as descobertas "[...] apontam em direção a princípios gerais de ensino e permitem descartar certos métodos inapropriados: aprender a ler consiste em acessar, através da visão, as áreas da linguagem falada" (DEHAENE 2013, p. 148, grifo nosso). Dehaene (2012), explica que o processamento da leitura ocorre pelas vias da rota fonológica e/ou rota lexical. A autora explica que "[...] as palavras regulares e os neologismos são reconhecidos pela via da tradução das letras em sons (conversão grafema-fonema)”; e “[...] as palavras frequentes ou irregulares são identificadas num léxico mental que permite o acesso à identidade e ao significado das palavras" (DEHAENE, 2012, p. 120), Em suma, conforme Ellis (1995 apud Silva e Calobrizi, 2018), a leitura de palavras desconhecidas é feita através da rota fonológica, pois é necessário identificar as correspondências gráficas e sonoras que constituem essas palavras, para então verbalizá-las. É feita a análise de sua sequência grafêmica em unidades menores e sua associação aos respectivos sons – fonemas. Há ainda, a junção dos segmentos fonológicos para então se 40 concretizar a pronúncia. Assim, se a pessoa ainda não memorizou a palavra “lata”, ela lerá a palavra da seguinte forma: L+A=LA; T+A= TA: LATA. Corroborando com tais ideias, Lemle (1988, p. 43-44), explica que: É certo que nosso saber do mundo pode, em alguns casos, minimizar as exigências de leitura-decodificação, quase dispensando-a, e permitir uma leitura-quase-adivinhação. No entanto, parece fora de dúvida que toda a informação imprevisível contida num texto deva ser lida mediante a decodificação pela ordem letras-sons-sentido. (LEMLE 1988, p. 43-44, grifo nosso). Conforme o excerto, a conversão pode ser rápida ou lenta, conforme a habilidade do leitor. Entretanto, quando uma palavra conhecida é visualizada, não é necessário fazer a conversão grafofonêmica estrita, ou então, a identificação exclusivamente pela rota fonológica, uma vez que é possível identificá-la utilizando a rota lexical. Sendo assim, a rota lexical é o caminho de acesso à memória ortográfica, ao léxico, onde ficam armazenadas as palavras memorizadas. Isso ocorre porque o contato frequente com as palavras permite o armazenamento de sua imagem gráfica. Se as palavras “taxi” e “box”, por exemplo, forem conhecidas pela criança, a leitura é feita por meio da rota lexical, ou seja, é acessada a memória ortográfica. A criança que não conhece tais palavras não irá encontrá-las na memória, portanto, fará a leitura por meio da conversão grafema-fonema, ou seja, da rota fonológica, podendo identificá-las como “tachi” e “boche”. Quando a leitura não acontece ou então é muito lenta é um indicativo de que há um problema em uma das rotas de leitura ou em ambas. Se para ler palavras desconhecidas é necessária a conversão grafema-fonema, conclui-se que a criança precisa aprender esse sistema, portanto suas estruturas e correspondências. Por outro lado, é preciso estimular a rota lexical por meio do contato e prática frequente da leitura e da escrita, a fim de que esse processo se automatize e também se amplie o léxico de palavras, garantindo a leitura ágil e evitando a perda semântica ocasionada pela possível lentidão no processo de identificação fonológica. Em síntese: A decodificação e a compreensão caminham lado a lado: os alunos que sabem ler melhor as palavras e as pseudopalavras isoladas são também os que compreendem melhor o conteúdo de uma frase ou de um texto. Bem entendido, aprender a soletrar a pronúncia das palavras não deverá se constituir num fim em si mesmo. É bom que a maior parte dos livros escolares de hoje façam bem logo apelo a pequenos textos significativos 41 mais que os chamados textos matraca "Mimi mama mumu". Mas a compreensão passa antes de tudo pela fluência da decodificação. Quanto mais rápida essa etapa for automatizada, melhor o aluno poderá se concentrar no significado do texto. (DANGIÓ, 2017, p. 226, grifo da autora) Scliar-Cabral (2013) e Dangió (2017) ressaltam que a incorporação desse sistema de representação, seu uso e contato frequente permitem a automação da leitura e que essa constatação tem induzido à explicação de que o processo de leitura é “eminentemente global”, ou seja, não é necessário fazer análise silábica/grafofônica para ler. Essa generalização pode ser feita a partir de situações de leitura em que não é necessário identificar uma palavra exclusivamente por suas relações grafofônicas. Ou seja, se uma pessoa já memorizou a palavra casa, não necessitará juntar os sons das letras/sílabas C+A=CA e S+A=SA. Essa lógica advogou a eficácia do método global, desconsiderando o fato de que a análise grafofônica é dispensável somente aos leitores proficientes, ou seja, aos leitores que tiveram o processo de leitura automatizada no cérebro e a ampliação da memória ortográfica/léxico devido à prática constante e ao contato frequente com as palavras. Diante disso: [...] fica esclarecido que na língua portuguesa, que é de base alfabética, no início do processo de alfabetização utilizamos mais as regiões auditivas na decodificação da fonologia da língua. Seguindo o raciocínio proposto até o momento, em consonância com os estudos sobre a neurolinguagem, defendemos que, para a aprendizagem da escrita alfabética, faz-se necessário o reconhecimento da letra e do seu respectivo som, ou seja, o reconhecimento da marca gráfica e a sua conversão em conteúdo simbólico. Comprovando essas considerações, Dehaene (2012, p. 242, grifo nosso) nos coloca que o reconhecimento visual das palavras não repousa sobre a apreensão global de seu contorno, mas, sim, sobre a decomposição em elementos mais simples, as letras e os grafemas. A região cortical da forma visual das palavras trata todas as letras em paralelo, o que, historicamente, é responsável pela impressão da leitura global. Mas o fato de a leitura ser imediata não é senão uma ilusão, suscitada pela extrema automatização das etapas, que se desenrolam fora de nossa consciência. (DANGIÓ, 2017, p. 220 e 221, grifo nosso) Dehaene (2012, p. 244) explica que a leitura global ativa o hemisfério direito do cérebro, mobilizando “um circuito inapropriado, diametralmente oposto ao lado da leitura esperta". Ou seja, o método global "não permite generalizar o processo da leitura para as palavras novas. Ora, essa generalização joga um papel essencial na aprendizagem da leitura na criança”, sendo assim: 42 [...] há que se assegurar, por anterioridade, o reconhecimento, de acordo com Scliar-Cabral (2013b, p. 10), "[...] dos traços e das letras, sua representação mais abstrata em grafemas e a lincagem aos respectivos fonemas, para o reconhecimento da palavra e o acesso à significação básica". À vista disso, a aprendizagem dos fonemas e dos grafemas, apesar de demandar mais esforço por parte da criança, resultam em maiores benefícios, visto que esse é o princípio de regularidade da língua portuguesa. Portanto, conhecer as letras e seus sons permitirá a leitura de palavras novas, sendo necessário que esse mecanismo se automatize de modo sistemático para que o aluno realize a generalização do processo de abstração das letras. [...] os estudos mencionados predizem que a leitura, para ser concluída no cérebro, precisa alcançar o seu lado esquerdo. Esse processo demandará da criança um esforço muito grande, porém, quando ele se automatiza, os benefícios são enormes, tornando a leitura mais eficaz (DANGIÓ, 2017, p. 222-223, grifo nosso). Diante de todo o exposto e apoiados em Davidov (1988), Lemle (1988), Ellis (1995), Frade (2005), Dehaene (2012), Scliar-Cabral (2013), Dangió (2017) e Soares (2018) verificamos a importância das conversões grafofônicas e que as unidades menores (letras e sílabas) e seu funcionamento na escrita são conteúdos basilares da alfabetização, uma vez que essa aprendizagem permite ler e escrever qualquer palavra. Frade (2005, p. 29) acrescenta que “o método silábico tem uma vantagem: ao se trabalhar com a unidade sílaba, atende-se a um princípio importante e facilitador da aprendizagem: quando falamos, pronunciamos sílabas e não sons separados.” Frade (2005) e Lemle (1988) reforçam que a aprendizagem das conversões grafofônicas desenvolve um saber não somente racional, mas também ilimitadamente criativo, proporcionando a autonomia para ler e escrever novas palavras e ter acesso a elas. Coelho (2011), corrobora tais ideias ao dizer que o processo de alfabetização concebido como a aquisição do sistema alfabético é muito importante porque assegura não somente o entendimento desse sistema, mas também promove sinapses cerebrais mais avançadas, levando ao aumento de suas capacidades cognitivas. Dangió (2017) destaca encaminhamentos anteriores aos processos pedagógicos específicos para compreensão/identificação do sistema alfabético. Segundo a autora deve haver um trabalho pedagógico prévio em torno da linguagem falada e seu desenvolvimento (consciência fonológica e atribuição de significado), tendo em vista as implicações das áreas cerebrais responsáveis pela linguagem oral nas áreas responsáveis pela escrita. Embora as regiões especificamente envolvidas com o processamento da linguagem verbal oral (as regiões frontal inferior e temporal anterior esquerdas) estejam biopsicologicamente programadas para tal, pois toda criança normal exposta à interação linguística adquire seu domínio de 43 forma espontânea e compulsória, o mesmo não se pode dizer em relação aos neurônios da região responsável pelo reconhecimento da palavra escrita. Existe um potencial nos neurônios do córtex occipital ventral esquerdo que será aproveitado, após aprendizagem, para o reconhecimento dos traços das unidades que constituem os sistemas escritos. Esse potencial se manifesta nas propriedades que caracterizam os neurônios responsáveis pelo processamento dos sinais visuais (SCLIAR-CABRAL, 2010, apud DANGIÓ, 2017, p. 217, grifo nosso). Tendo isso em vista todo o exposto nessa subseção, enfatizamos a importância de “priorizar um percurso didático de exposição, reflexão, análise e generalização sobre os mecanismos da língua escrita alfabética, para que os alunos aprendam a ler e a escrever” Dangió (2017, p. 223). Perante o que temos apresentado e munidos das ciências linguísticas e neurológicas, aproximamo-nos da forma na alfabetização por meio do equilíbrio da vara entre os métodos sintéticos e analíticos, representantes da pedagogia tradicional e nova, respectivamente. Tal equilíbrio se dará quando o professor alfabetizador tiver consciência de que a apropriação da escrita é um processo complexo. Além disso, o equilíbrio também irá depender de como esse professor se apropriará dos conteúdos linguísticos necessários à compreensão desse processo, visando a construção de uma prática que garanta a qualificação do psiquismo. Tais práticas deveriam então garantir aos alunos a apropriação do sistema de escrita a partir de suas vivências. Portanto, a forma dependerá do conteúdo a ser ensinado e da natureza linguística desse conteúdo. Em outras palavras, se estamos lidando com compreensão textual, então o foco será na interpretação de texto. Isso demandará sequências didáticas que possibilitem: experiências com diferentes gêneros; ampliação do repertório vocabular; utilização de estratégias para compreensão leitora; etc. Contudo, se o trabalho for o ensino do sistema de escrita em direção ao desenvolvimento da função simbólica e de seus significados, além do trabalho com o texto (como narrativa e descrição de fatos e acontecimentos), e com a estrutura da palavra (como expressão de significado), faz-se necessária uma sequência de ações didáticas que priorizem a relação grafema-fonema, desenvolvendo a consciência da palavra e a sua composição de sons. (DANGIÓ, 2017, p. 225, grifo nosso) Diante dessa necessidade pedagógica retomamos os estudos da neurociência, que mostram em síntese, a necessidade de ativar áreas específicas como a occípito-temporal dos processos visuoespaciais e formas de escrita, responsável pelo reconhecimento visuoespacial (de letras/diferentes formas de escrita), bem como a área de Wernecke (relacionada à compreensão dos processos fonológicos), uma vez que os processos de leitura e escrita dependem do trabalho em conjunto dessas áreas. 44 Além disso, retomamos que as metodologias focadas em leitura global (uma aprendizagem mais visual do que auditiva) estimula em demasia o visual e pouco a memória de longo prazo e as áreas relacionadas aos processos fonológicos de compreensão, tão importantes para se concretizar e automatizar a leitura e a escrita. Tendo isso em vista, Tieppo (2019, n.p., grifo nosso) reforça que: [...] precisamos entender que a alfabetização é um sistema notacional de escrita alfabética e ortográfica [...] Outra coisa que precisamos saber sobre aprendizagem de leitura e escrita é que, nas pesquisas do Stanislau Dahaene, a alfabetização é muito mais rápida quando se ensina que as letras representam diferentes sons. Quando eu faço o processo de decodificação e codificação, estou entendendo que, apesar dessa letra ter um nome, ela tem um som atrelado. Precisamos entender a combinação dessas letras e desses grafemas e o que elas representam. [...] No desenvolvimento da consciência fonológica, é necessário que a criança faça a percepção sonora dos componentes sonoros da fala e dos fonemas que também estão dentro da consciência fonológica. Então, a criança precisa desenvolver consciência de palavra, consciência de sílaba e consciência do fonema auditivamente falando para que ela possa depois corresponder isso na sua leitura e na sua escrita. Concordante com os estudos da neurociência a respeito do processamento da leitura e da escrita e de suas implicações, Benedetti (2020) ressalta a importância de se ter claro o conteúdo-chave da faceta linguística, inclusive em fases anteriores a que preconiza a sistematização da alfabetização: A fase preparatória para a alfabetização deve contar com atividades nas quais a criança manipule os sons da fala (fonemas) e faça o reconhecimento do formato das letras. A Manipulação dos sons da fala permite o desenvolvimento da consciência fonológica, habilidade metalinguística formada por dois níveis ou componentes: a consciência suprafonêmica (consciência de segmentos maiores do que os fonemas, como sílabas, rimas, aliterações e palavras) e a consciência fonêmica (consciência dos fonemas da língua). O reconhecimento visual gráfico é, ao lado do desenvolvimento da consciência fonológica, uma das bases fundamentais da aquisição da leitura-escrita e deve ser o objetivo central dos métodos de alfabetização [...] a maneira como se alfabetiza configura as conexões desse aprendizado no cérebro (BENEDETTI, 2020, p. 131, grifo nosso). Diante das respostas obtidas por meio dessa análise reiteramos a abordagem dos processos fonológicos de compreensão na etapa da alfabetização, tão importantes para a concretização e a automação da leitura e da escrita. Conforme Coch e Ansari (2009), ao descrever a estrutura e funcionamento do sistema nervoso, a neurociência auxilia a educação na definição de conteúdos e encaminhamentos, e 45 por isso é muito importante considerar as informações da neurociência para que sejam elaboradas estratégias pedagógicas. Além do conteúdo-chave apontado pela neurociência, também retomamos a necessidade de estabelecer “[...] uma sequência de ações didáticas que priorizem a relação grafema-fonema, desenvolvendo a consciência da palavra e a sua composição de sons.” (DANGIÓ, 2017, p. 225). Guerra (2011) também sugere a busca por estratégias pedagógicas em prol do ensino e aprendizagem e a consideração de informações trazidas pela neurociência. A autora explica que são necessários estímulos para a reorganização do sistema nervoso, a exemplo da ampliação de sinapses cerebrais (conexões entre as células cerebrais para obtenção de respostas/aprendizagem). As estratégias pedagógicas utilizadas intencionalmente pelos professores durante o ensino e aprendizagem podem ser esses estímulos à reorganização do sistema nervoso e à aprendizagem. Em outras palavras, as experiências de aprendizagem podem influenciar na quantidade de neurônios e nas suas conexões (sinapses), portanto na aquisição de habilidades no manejo com a língua escrita. Esses estímulos devem levar em conta o foco da atenção, um aspecto diretamente relacionado à formação da memória, e esta, por sua vez, à consolidação da aprendizagem. Guerra (2011) acrescenta que os recursos multissensoriais são considerados estímulos/estratégias pedagógicas potenciais para o desenvolvimento da atenção, da memória e da aprendizagem, respectivamente: Atenção é importante função mental para a aprendizagem, pois nos permite selecionar, num determinado momento, o estímulo mais relevante e significativo, dentre vários. Ela é mobilizada pelo que é muito novo e pelos padrões (esquemas mentais) que já temos em nossos arquivos cerebrais. Daí a importância da aprendizagem contextualizada. É difícil prestar atenção por muito tempo. Intervalos ou mudanças de atividades são importantes para recuperar nossa capacidade de focar atenção. Dificilmente um aluno prestará atenção em informações que não tenham relação com o seu arquivo de experiências, com seu cotidiano ou que não sejam significativas para ele. O cérebro seleciona as informações mais relevantes para nosso bem estar e sobrevivência e foca atenção nelas. Memorizamos as experiências que passam pelo filtro da atenção. Memória é imprescindível para a aprendizagem. As estratégias pedagógicas devem utilizar recursos que sejam multissensoriais, para ativação de múltiplas redes neurais que estabelecerão associação entre si. Se as informações/experiências forem repetidas, a atividade mais frequente dos neurônios relacionados a elas, resultará em neuroplasticidade e produzirá sinapses mais consolidadas. Esse conjunto de neurônios associados numa rede é o substrato biológico da memória. Os registros 46 transitórios - memória operacional - serão transformados em registros mais definitivos - memória de longa duração. (GUERRA, 2011, p. 6, grifo nosso): Vemos que a implementação de estratégias pedagógicas enquanto estímulos à atenção e à memória, bem como a repetição de informações e experiências, resultam em neuroplasticidade, produzindo sinapses mais consolidadas. Cocenza e Guerra (2011), explicam que a atenção poderia ser metaforicamente comparada a uma lanterna numa janela aberta ao mund