UNIVERSIDADE ESTADUAL PAULISTA “JÚLIO DE MESQUITA FILHO” Campus de São José do Rio Preto Ingrid Zanata Riguetto UMA NOVA FORMA DE NARRAR A HISTÓRIA: A Renovação do Romance Histórico em Luiz Ruffato São José do RioPreto 2016 0 Ingrid Zanata Riguetto UMA NOVA FORMA DE NARRAR A HISTÓRIA: A Renovação do Romance Histórico em Luiz Ruffato Dissertação apresentada como parte dos requisitos para obtenção do título de Mestre em Letras, junto ao Programa de Pós-Graduação em Letras, Área de Concentração – Perspectivas Teóricas no Estudo da Literatura (PTEL), do Instituto de Biociências, Letras e Ciências Exatas da Universidade Estadual Paulista ―Júlio de Mesquita Filho‖, campus de São José do Rio Preto. São José do RioPreto 2016 1 Riguetto, Ingrid Zanata Uma nova forma de narrar a história : a renovação do romance histórico em Luiz Ruffato / Ingrid Zanata Riguetto. -- São José do Rio Preto, 2016 112 f. Orientador: Márcio Scheel Dissertação (mestrado) – Universidade Estadual Paulista ―Júlio de Mesquita Filho‖, Instituto de Biociências, Letras e Ciências Exatas 1. Literatura brasileira - Séc. XX - História e crítica - Teoria, etc. 2. Literatura experimental - História e crítica. 3. Brasil - História - Ficção. 4. História na literatura. 5. Ruffato, Luiz, 1961- Crítica e interpretação. I. Scheel, Márcio. II. Universidade Estadual Paulista "Júlio de Mesquita Filho". Instituto de Biociências, Letras e Ciências Exatas. III. Título. CDU – B869-1.09"19" Ficha catalográfica elaborada pela Biblioteca do IBILCE UNESP - Câmpus de São José do Rio Preto Ingrid Zanata Riguetto Uma Nova Forma de Narrar a História: A Renovação do Romance Histórico em Luiz Ruffato Dissertação apresentada como parte dos requisitos para obtenção do título de Mestre em Letras, junto ao Programa de Pós-Graduação em Letras, Área de Concentração – Perspectivas Teóricas no Estudo da Literatura (PTEL), do Instituto de Biociências, Letras e Ciências Exatas da Universidade Estadual Paulista ―Júlio de Mesquita Filho‖, campus de São José do Rio Preto. Orientador: Prof. Dr. Márcio Scheel Comissão Examinadora Prof. Dr. Márcio Scheel UNESP – São José do Rio Preto Orientador Prof. Dr. Ulisses Infante UNESP – São José do Rio Preto Prof. Dr. Fábio Lucas Pierini UEM - Maringá São José do Rio Preto 25 de fevereiro de 2016 2 Dedico esta conquista a Antônio Aparecido Riguetto, meu pai. 3 Algumas palavras Com o término desse mestrado internalizo o verdadeiro sentido da frase socrática ―só sei que nada sei‖, que apesar de muito pronunciada, foi, por mim, dentro desse processo acadêmico, sentida. A humildade dessa afirmação, embutida de grande amor ao conhecimento, a faz grandiosa, principalmente, quando pronunciada por esse grande filósofo. Logo, a partir do entendimento de que o mestrado é o início de uma carreira, termino-o com o desejo de mais conhecimento e, principalmente, sabedoria, pois muitas teorias foram-me apresentadas, no entanto, o que mais aprendi foi: é preciso saber coordenar a vida, já que ela não para diante de nossos problemas. Para isso, em todo esse processo, as amizades foram fundamentais ao ponto de fazerem destas palavras de agradecimento as mais difíceis de serem escritas, pois, por mais que nos esforcemos, sempre corremos os riscos de deixar alguém importante de fora. Perante tal desafio atrevo-me a agradecer, primeiramente, aos professores do curso de Licenciatura em Letras da Universidade Estadual Paulista Júlio Mesquita Filho, campus de São José do Rio Preto, pela minha formação em letras; aos professores da Universidade Estadual Paulista Júlio Mesquita Filho, campus de Franca, por despertarem em mim o senso crítico e o gosto pela história. Especialmente agradeço ao professor doutor Márcio Scheel pelos anos de orientação, dedicação e incentivo que o transformaram em um amigo, em um exemplo e em um grande orientador. Agradeço imensamente aos professores doutores Arnaldo Franco Júnior, Ulisses Infante e Fábio Lucas Pierini pelas sugestões no desenvolvimento de minha dissertaçãoe por me ampliaram o olhar sobre a literatura. Agradeço a CAPES pelo apoio financeiro. Agradeço aos amigos, sem eles nada seria possível, em especial: Larissa Fumis, Luciana Bauck, Mirella Amaral, Mariluci Fleury, Ursula Abelan, pela atenção e o carinho em me ouvir, vocês são muito importantes; Jhenifer Silva e Camila Danubia que foram extremamente pacientes em meus tensos e extensos telefonemas de desabafo; Mariana Rezende de Campos e Maria Aparecida da Silva, sempre ao meu lado, apesar da distância; Eduardo Rogério Gonçalves, com suas palavras de incentivo, que me acalentaram quando tudo parecia não fazer sentido; Anderson Ferris, Dibo Mussi Neto, Eloisa Valença, Jean Pimentel, Nathalia Trigo, Odair Júnior e Roberta Fiel aos momentos de muita amizade e alegria; Alessandra Maestrelli ao apoio psicológico. 4 Agradeço, por fim, a minha família, paciente diante da minha falta de paciência, e, principalmente, a minha mãe, Marilena Zanata, símbolo de força e de mulher, exemplo que sempre norteará meu caminho. Sou feliz por tê-los em minha vida. De certa forma, há sempre um ―bocadinho‖ de vocês em tudo o que faço. 5 Ruína Um monge descabelado me disse no caminho: ―Eu queria construir uma ruína. Embora eu saiba que ruína é uma desconstrução. Minha ideia era de fazer alguma coisa ao jeito de tapera. Alguma coisa que servisse para abrigar o abandono, como as taperas abrigam. Porque o abandono pode não ser apenas de um homem debaixo da ponte, mas pode ser também de um gato no beco ou de uma criança presa num cubículo. O abandono pode ser também de uma expressão que tenha entrado para o arcaico ou mesmo de uma palavra. Uma palavra que esteja sem ninguém dentro (O olho do monge estava perto de ser um canto). Continuou: digamos a palavra AMOR. A palavra amor está quase vazia. Não tem gente dentro dela. Queria construir uma ruína para a palavra amor. Talvez ela renascesse das ruínas, como o lírio pode nascer de um monturo. E o monge se calou descabelado. (Poemas completos – Manuel de Barros) 6 RESUMO Em nosso trabalho investigaremos as peculiaridades literárias que fazem das duas primeiras obras do projeto Inferno Provisório (2005-2012), de Luiz Ruffato, a saber, Mamma, son tanto felice (2005) e O mundo inimigo (2005), romances originais que, por sua linguagem experimental, sua organização interna e seu compromisso com o real, permitem-nos entrever uma releitura crítica dos discursos histórico e literário. De acordo com Jean Claude Schmitt (2001), a história, a partir do século XX, com a Escola dos Annales, perde seu caráter de representação dos grandes feitos e passa a considerar as mentalidades e a subjetividade como registros historiográficos importantes. Desse modo, abre-se caminho para a inter-relação da história com outras ciências humanas, as sociais, por exemplo, e com a própria arte, levando, portanto, a uma renovação das fronteiras entre a história e a literatura. Assim, a partir das perspectivas teóricas que relativizam tais fronteiras, entendemos que a obra de Ruffato pretende a revisão dos últimos cinquenta anos da história brasileira, em uma leitura a ―contrapelo‖ da história oficial nacional, sem, no entanto, perder ou diminuir as riquezas estéticas da arte literária. Por isso mesmo, é essencial, também, investigar como Luiz Ruffato trabalha a historicidade, já que é inegável a presença desta nos romances; entender se suas obras apresentam determinados aspectos narrativos, formais e temáticos que os aproximem da natureza do romance histórico, já que rompe com características tradicionais desse subgênero, determinadas por Georg Lukács (2011), principalmente por não representar ficcionalmente um determinado e pontual evento histórico, como uma revolução, mas todo o processo da modernização do Brasil por meio dos pontos de vista do proletariado urbano, flagrado em sua constituição como classe; por fim, investigaremos como as obras permitem relações com a metodologia da História Nova assim como estabelecida pela Escola dos Annales, ao desvelar literariamente as subjetividades dos indivíduos marginalizados socialmente. Palavras-chave: Experimentalismo; História Nova; Luiz Ruffato; Marginalização. 7 ABSTRACT This study investigates the literary features which make Mamma, son tanto felice (2005) and O mundo inimigo (2005) – the first two books of the Inferno Provisório (2005-2012) pentalogy – into original novels whose experimental language, internal organisation and commitment to the real suggest a critical rereading of both the historical and literary discourses. According to Jean Claude Schmitt (2001), with the Annales School in the twentieth century, history has ceased to represent great feats and started considering the mentalities and subjectivity as important forms of historiographical record. This has paved the way for history to intersect with other fields of the humanities, like social sciences, as well as with art, which leads to the redrawing of the bounds between history and literature. Hence, considering the theoretical perspectives that blur these boundaries, we understand that Ruffato‗s works revise the past fifty years of Brazilian history by reading our official national history ―against the grain‖ without sacrificing the aesthetic richness of literary art. Therefore, to argue this case, we need to examine how Luiz Ruffato works out historicity in his novels in order to check whether or not his works contain formal and thematic aspects that bring them closer to the historical novel. works eschew the defining characteristics of this subgenre determined by György Lukács (2011), mainly because they do not fictionally represent a specific historical event, like a revolution. Instead, they portray the whole modernisation process in Brazil from the perspective of the urban proletariat pictured as class. Finally, we shall investigate how these works bear parallels with the methodologies of the Nouvelle histoire and the Annales School as they literarily unveil the subjectivity of the socially marginalised individuals. Keywords: Experimentalism; Nouvelle histoire; Luiz Ruffato; Marginalisation. 8 SUMÁRIO Introdução ..............................................................................................................................................10 Capítulo 1. Considerações sobre o romance: do seu surgimento à contemporaneidade .15 Capítulo 2. Antigas relações: História e Literatura ....................................................................30 2.1. Diálogos sobre o romance histórico .........................................................................................32 Capítulo 3. Da Escola dos Annales à História Nova ................................................................47 Capítulo 4. Entre a permanência e a ruptura: Os romances Mamma, son tanto felice e O mundo inimigo de Luiz Ruffato ....................................................................................................57 4.1. Um pouco sobre o Inferno Provisório ...................................................................................61 4.2. Mamma, son tanto felice .............................................................................................................64 4.3. O mundo inimigo ...........................................................................................................................79 5.1. Considerações finais .................................................................................................................. 104 Referências ...........................................................................................................................................106 9 INTRODUÇÃO O trabalho que ora apresentaremos fundamenta-se no modo de leitura ficcional diferenciado que Luiz Ruffato faz da contemporaneidade nas obras Mamma, son tanto felice (2005) e O mundo inimigo (2005), primeiro e segundo livros da pentalogia Inferno Provisório. De acordo com Ficção brasileira contemporânea (2009), de Karl Erik Schøllhammer, que se dedica ao mapeamento da literatura contemporânea nacional, é característica das últimas décadas o surgimento de uma literatura cada vez mais voltada para a representação da realidade, compondo obras extremamente representativas de questões históricas e sociais, que, por muitas vezes, são mostradas a partir de pontos de vista dos marginalizados como os pobres e os operários. Nesse sentido, a importância de um estudo abrangente das obras Mamma, son tanto felice (2005) e O mundo inimigo (2005) surge do fato de apresentarem a realidade brasileira a partir de uma perspectiva crítica ajustada à imagem contemporânea de Brasil firmada nas últimas duas décadas. A história narrada pela ficção de Ruffato é o processo de formação do proletariado brasileiro. Diante de tal objetivo, o autor busca, em meados do século XX, explicações para as situações de exclusão da contemporaneidade - o que torna a história, incorporada a sua escrita, a base sobre a qual se erguem elucidações aos problemas sociais brasileiros. Nas palavras do crítico literário: De modo geral, percebe-se, nos escritores da geração mais recente, a intuição de uma impossibilidade, algo que estaria impedindo-os de intervir e recuperar a aliança com a atualidade e que coloca o desafio de reinventar as formas históricas do realismo literário numa literatura que lida com os problemas do país e que expõe as questões mais vulneráveis do crime, da violência, da corrupção e da miséria. Aqui, os efeitos de ―presença‖ se aliam a um sentido específico de experiência, uma eficiência estética buscada numa linguagem e num estilo mais enfáticos e nos efeitos contundentes de diversas técnicas não representativas de apropriação dessa realidade. O uso das formas breves, a adaptação de uma linguagem curta e fragmentária e o namoro com a crônica são apenas algumas expressões da urgência de falar sobre e com o real (SCHØLLHAMMER, 2009, p. 14-15). Portanto, a ficção de Ruffato desenvolve-se pelo viés da fragmentação literária, o que proporciona a impressão de movimento frenético próprio do atual estágio de globalização, logo mais adaptada à realidade contemporânea. Segundo Schøllhammer (2009), Ruffato insere-se no ―novo realismo‖ literário, criado como reflexo da necessidade, por parte de alguns escritores, dessa interação, tanto com a realidade representada na obra quanto com a 10 realidade que contextualiza a produção da obra. É assim, por exemplo, que ―os romances de Ruffato tecem vidas que não se encontram nos noticiários policiais, [...] que chegam até nós como experiência humana graças às possibilidades da escrita‖ (DALCASTAGNÈ, 2011, p. 6). De acordo com Dalcastagnè (2011), Luiz Ruffato, por meio da linguagem fragmentária, faz uma leitura atenta da contemporaneidade, e, então, de forma engajada, constitui uma refinada crítica social, que torna explícita a face ocultada, tanto pela tradição literária quanto pela tradição histórica, do marginalizado. A escrita de Ruffato dá voz aos pobres e marginais, e, em uma leitura às margens da história brasileira, encontra-se com a proposta de discurso histórico da História Nova. Peter Burke, em A escola dos Annales (1929 – 1989): A revolução Francesa da historiografia (1997), entende o movimento historiográfico conhecido como História Nova, anunciado a partir de 1968, como o desenrolar e o ampliar de mudanças já estabelecidas na historiografia, na primeira metade do século XX, com a História dos Annales – que se dedicou a romper com os métodos cientificistas da história positivista 1 . Desse modo, já em 1920, a ciência histórica foi direcionada ao estudo das mentalidades e dos marginalizados. De acordo com Nilo Odália, na introdução da obra de Burke: A necessidade de uma história mais abrangente e totalizante nascia do fato de que o homem se sentia como um ser cuja complexidade em sua maneira de sentir, pensar e agir, não podia reduzir-se a um pálido reflexo de jogos de poder, ou de maneiras de sentir, pensar e agir dos poderosos do momento. Fazer uma outra história, na expressão usada por Febvre, era portanto menos redescobrir o homem do que, enfim, descobri-lo na plenitude de suas virtualidades, que se inscreviam concretamente em suas realizações históricas (ODÁLIA, 1997, p. 7) Frente a tais colocações, para a compreensão desse ―novo realismo‖, é necessária a desconstrução do conceito de realidade advindo da historiografia positivista, percebendo-a, dessa forma, como plural, logo adaptada à perspectiva teórica desenvolvida pela História Nova. Para esse fim, traremos à tona os princípios estruturadores do romance histórico formulados por Georg Lukács, em O Romance Histórico (2011), que se orienta, resumidamente, em narrar o grande fato histórico, destacar um único herói e desenvolver-se a partir de uma linguagem mimética da realidade factual, necessária para representar a sociedade burguesa. Logo, compreenderemos Luiz Ruffato como um romancista histórico por constituir romances que usam de temáticas históricas, a partir de uma visão historiográfica próxima da 1 O entendimento da história como próxima às ciências exatas, o que a tornou fundamentalmente representante de fatos pontuais, verídicos, vinculados às elites, e, portanto, passíveis de comprovação por documentos oficiais. 11 História Nova, como referenciais extraliterários para propor sua visão de modernização do Brasil permeada pela subjetividade de grupos excluídos, questionando tanto a história factual como o romance histórico estabelecido por Lukács. Dessa maneira, faz parte de nossos objetivos pensar de que modo os personagens, situações e espaços, nos romances Mamma, son tanto felice e Mundo Inimigo, de Luiz Ruffato, articulam-se tendo como base não só a teoria narrativa, mas também as perspectivas metodológicas da História Nova. A partir dessa hipótese de trabalho, investigaremos, também, como alguns elementos da história política e cultural brasileira da década de 1950, principalmente aqueles ligados ao processo de modernização brasileira, aparecem nos romances e de qual modo os dois primeiros volumes da pentalogia Inferno Provisório podem ser entendidos como romances históricos, ou seja, se apresentam determinados aspectos narrativos, formais e temáticos aproximando-os da natureza do romance histórico. Para cumprir tais propostas, dividiremos nosso trabalho em quatro capítulos. O primeiro, ―Considerações sobre o romance: do seu surgimento à contemporaneidade‖, traz ao debate as principais teorias acerca do romance, com isso, explicitaremos as constantes mudanças sofridas por esse gênero, ao ponto de sobreviver ao mundo contemporâneo. Ao iniciar nossos estudos estruturaremos de forma teórica os alicerces sobre os quais formularemos as análises literárias das obras de Luiz Ruffato. Utilizaremos como base conceitual dessa primeira parte: Ian Watt, Ascensão do romance (2010); Theodor Adorno, Sobre a ingenuidade épica (2003); Georg Lukács Teoria do romance (2000); Ference Fehér, O romance está morrendo? (1972); Donaldo Schüler, Teoria do Romance (1989); e Rosenfeld com sua obra Reflexões sobre o romance moderno (1976). Além disso, para que possamos entender um pouco mais sobre a modernidade e o período contemporâneo procuramos inserir na discussão Leo Huberman, História da riqueza do homem (1967), e Marshall Berman, Tudo que é sólido desmancha no ar. A aventura da modernidade (1986). Por essas obras desenvolveremos a proposição de que o romance é um gênero que se utiliza da forma realista para, em um primeiro momento, representar mimeticamente a sociedade burguesa, mas, rapidamente, diante das constantes transformações do mundo burguês, propõe-se a expor as falhas do capitalismo e a contestá-lo, modificando-se, para tanto, estruturalmente. Previamente, devemos esclarecer que o termo realismo, utilizado em nossa dissertação, não se refere ao movimento literário inaugurado por Flaubert em meados do século XIX, e, sim, ao processo de escrita inerente ao surgimento do romance em fins do século XVIII e início do século XIX, baseado na representação fiel da sociedade burguesa. 12 No segundo capítulo, ―Antigas relações: história e literatura‖, esmiuçaremos os pormenores do romance histórico ao buscar em Lukács, Romance histórico (2010), princípios que possam esclarecer-nos sobre o despontar, no século XIX, desse gênero, pois, assim, compreenderemos como são trabalhadas as questões históricas na estrutura formal das obras de Ruffato, além de perceber as rupturas da literatura contemporânea com relação à teoria estabelecida por Lukács. Dentro dessa perspectiva, traremos para compor nossa dissertação Fredric Jameson, O romance histórico ainda é possível? (2007) e Pierre Anderson, Trajetos de uma forma literária (2007). No terceiro capítulo, “Da escola dos Annales à História Nova‖, compreenderemos melhor o movimento da História Nova e também como a visão de história, advinda da historiografia contemporânea, é identificada nas composições de Ruffato. Nesse capítulo, utilizaremos Jean Glénisson, Iniciação aos Estudos Históricos (1961); Peter Burke, A nova história, seu passado e seu futuro (1992) e A Escola dos Annales (1929-1989): A revolução Francesa da historiografia (1997); José Carlos Reis, Escola dos Annales: A inovação em História (2000) e com História e teoria: Historicismo, Modernidade, Temporalidade e Verdade (2003). O quarto capítulo, ―Entre a permanência e a ruptura: os romances Mamma, son tanto felice e O mundo inimigo de Luiz Ruffato‖, se dedicará à análise das obras contemporâneas. Nessa parte, relacionaremos a teoria explicitada anteriormente à análise. Para tal fim, elencamos parte da crítica teórica acerca do trabalho de Luiz Ruffato, literatura contemporânea, romance contemporâneo e fragmentação literária. Utilizaremos, diante de tal proposta: Giorgio Agambem, O que é o contemporâneo e outros ensaios (2009); Danielle Corpas, Romance em pedaços: (os sobreviventes) (2008), De boas intenções o Inferno está cheio (2009) e O romance relâmpago de Luiz Ruffato: um projeto literário-político em tempos pós-utópicos (2007); Giovana Ferreira Dealtry, A história a contrapelo em Inferno Provisório, de Luiz Ruffato (2009); Roberto Schwarz, Os pobres na literatura brasileira (1983); João Manuel Cardoso Mello e Fernando A. Novais, Capitalismo tardio e sociabilidade moderna (1998). Por fim, duas questões devem ser esclarecidas: a primeira consiste em dizer que utilizaremos, para além destas, muitas outras obras não estão explicitadas nessa introdução, pois colocamos aqui apenas as obras estruturais de nosso trabalho; a segunda é o reconhecimento de que nosso trabalho desenvolve-se no campo literário, pois não pertence aos nossos objetivos discutir detidamente sobre a história e a historiografia contemporânea. Utilizaremos amplamente desse campo científico, no entanto para apoiar nossas asserções 13 acerca do romance histórico contemporâneo de Luiz Ruffato, não obstante, devido a isso, não nos cabem maiores definições e problematizações relacionadas à história. Trata-se de um estudo literário do modo como Luiz Ruffato lê a contemporaneidade, e como, justamente por isso, podemos considerá-lo um romancista histórico contemporâneo. 14 CAPÍTULO 1 - CONSIDERAÇÕES SOBRE O ROMANCE: DO SEU SURGIMENTO À CONTEMPORANEIDADE Nesse Capítulo nos ocuparemos de algumas peculiaridades do romance na sociedade contemporânea. Para tanto, o melhor modo de entendê-lo em sua atualidade ainda envolve o processo de historicização do gênero romanesco. Nesse primeiro capítulo, esmiuçaremos suas particularidades, desde o surgimento até a atualidade. O romance é o gênero da fase histórica caracterizada pelo fortalecimento do capitalismo e a tomada de poder pela burguesia. Ian Watt, em a Ascensão do romance (2010), mostra como o surgimento da burguesia e do romance são fatos que estão estritamente atrelados. Para o autor, o romance nasce com a ascensão da burguesia, transformado na expressão literária dessa classe, uma vez que, do ponto de vista narrativo, quem dá sustentação ao romance burguês é o realismo. O conceito de realismo, no que concerne a Watt (2010), tem relação com o modo como a realidade é representada formalmente na literatura, portanto é um realismo formal, ou seja, a representação da realidade material por meio de novas realizações formais incluídas no modo de escrita do romance, em seu surgimento, entre os fins do século XVIII e início do século XIX. Dentro dessa concepção, o romance acompanha todo um pensamento filosófico moderno que vê a realidade não mais como a manifestação de uma verdade imutável, única e pura ligada a uma comunidade e tendo em vista a totalidade dos seres, de acordo com o pensamento platônico e seus desdobramentos em diferentes formas de idealismo, e sim como a manifestação do indivíduo no mundo, ou seja, a relação entre o homem e a realidade material que o abriga. Dessa forma, há uma mudança de perspectiva para com o conceito de realidade a ser representado no romance: de universal para individual. O que marca essa ―revolução‖ no pensamento filosófico é a afirmação do novo sistema econômico, o capitalista, que vê no indivíduo o espírito que rege o mundo moderno, em contraponto com o sentimento de comunidade originário da antiguidade clássica, marca dos períodos históricos filosóficos anteriores. Para essa discussão o ensaio de Theodor Adorno, ―Sobre a ingenuidade épica‖, teoriza acerca do discurso épico e o caracteriza pela sua inerente contradição: representar, por meio da ―sólida e inequívoca‖ linguagem, a natureza ―oral e fungível‖ do mito (2003, p. 47), matéria-prima da grande epopeia. Desse modo, a épica toma contato com o mito, que é a representação do pensamento particular e próprio da comunidade, para poder racionalizá-lo em conceito, ou seja, torná-lo matéria geral. Em Adorno: 15 Esse murmúrio é o som do discurso épico, no qual o sólido e inequívoco encontra-se com o fluido e ambíguo, apenas para novamente se despedir. A maré amorfa do mito é a mesmice, o telos da narrativa é, porém, o diferente, e a identidade impiedosamente rígida que fixa o objeto épico serve justamente para alcançar sua própria diferenciação, sua não-identidade com o meramente idêntico, com a monotonia não-articulada. As epopeias desejam relatar algo digno de ser relatado, algo que não se equipara a todo o resto, algo inconfundível e que merece ser transmitido em seu próprio nome (ADORNO, 2003, p. 47-48). A epopeia relata algo que seja digno de ser narrado, o que há de superior e abrangente para a comunidade e não ―a mesmice‖ do mito (ADORNO, 2003, p. 47). Logo a ingenuidade épica é a tentativa de captar pela linguagem a fluidez do mito, porém a capacidade da épica não consiste, meramente, em afastar o particular do geral, ―por ser antimitológico ela se destaca no esforço iluminista e positivista de aderir fielmente e sem distorção àquilo que uma vez aconteceu, exatamente do jeito como aconteceu, quebrando o feitiço exercido pelo acontecido, o mito em seu sentido próprio‖ (ADORNO, 2003, p. 49). Assim, a grande épica, promove, pela linguagem racional 2 , conceitos, na procura de explicações para a totalidade do mundo, no entanto o mito guarda em si as propriedades da oralidade que se encarceram no peculiar (o que é próprio do ser) 3 . Por meio de Adorno (2003), como visto, somos esclarecidos sobre os principais traços, ligados à comunidade, da antiguidade clássica, além de sermos impulsionados a entender a modernidade pela capacidade racional do homem frente ao mundo que o cerca, dentro do período que vai da emergência da burguesia até a sua sustentação e solidificação ideológica e política como classe, portanto introduzindo, no mundo ocidental, o ideal de indivíduo e individualismo, necessários para a sustentação dos princípios capitalistas. 4 Sistematizados pela burguesia, no poder com a revolução industrial e com as revoluções burguesas no continente europeu, os conceitos de indivíduo e individualismo surgem, portanto, e tornam-se as características principais dessa fase histórica. Os preceitos de liberdade, igualdade e fraternidade, colocados pela Revolução Francesa (1789-1799), são 2 No último parágrafo do ensaio Adorno(2003) cita Nietzsche : ―Não são indivíduos, mas idéias que lutam entre si‖. (NIETZSCHE apud ADORNO, 2003, p. 54) 3 Não se deve entender o termo ―peculiar‖ como indivíduo, entendimento esse próprio da lógica capitalista, pois, o que é considerado particular no mito da antiguidade clássica são as histórias que procuravam explicações sobre o mundo, ainda sem a tentativa de conceituar a respeito da realidade, essa propriedade da linguagem, a saber o conceito, somente será recorrente, de acordo com Adorno (2003) a partir do século XIX, ou seja, quando o entendimento do mundo torna-se de cunho científico. Assim, no mito não há indivíduo moderno. O mito deve ser repetível. O indivíduo moderno é – como ideia e ideal – o oposto disso. O indivíduo moderno é irrepetível. Ele é uma unidade racional inserida no tempo histórico (concebido como linear). Há, porém, aqueles que não chegam a se constituir como indivíduos. 4 Haveria, pois, na epopeia, além do paradoxo, uma semente de esclarecimento ou racionalização. E o herói épico seria a evidência desta racionalização. Nele o conceito moderno de indivíduo já estaria em germe. 16 manifestações desse individualismo. Esses foram motivos levantados contra a igreja e o absolutismo que tanto assombravam os burgueses com seus princípios de controle, baseados num duplo poder: Deus, de um lado, e o Estado, também divinamente investido na figura do rei, de outro, e ambos determinando a ação dos homens. Sobre esse período, Leo Huberman, em História da riqueza do homem (1967) 5 , esclarece sobre a necessidade de justificação dessa liberdade individual, que permite a sustentação da burguesia, por meio de teorias econômicas. Segundo Huberman, ―Ricardo, Malthus, James Mill, McCulloch, Senior e John Stuart Mill‖ (1967, p. 208), foram alguns economistas que defendiam a liberdade de lucro e de consumo, criando economicamente as bases teóricas para a afirmação do liberalismo. Para a conquista dessa independência individual todos deveriam ter a ―liberdade de escolher‖ seus destinos, ―escolher‖, inclusive, a quantidade de horas a trabalhar, mesmo que essa quantidade de trabalho fosse desumana, como na época da qual tratamos, cuja jornada tinha em média 16 horas diárias. Esse tipo de pensamento favorecia uma burguesia ascendente, já que esses, que trabalhariam 16 horas por dia, eram operários que precisavam, para sobreviver, trabalhar excessivamente, pois seus salários eram indignos (para não mencionar as próprias condições de trabalho). Diante disso, por não possuir tradição filosófica ou cultural, ainda que, do ponto de vista econômico e político, já tinha se tornado a classe dominante, para além dessas teorias econômicas e filosóficas, o romance também surge como afirmação dessa nova classe no poder: Era preciso mudar muitas outras coisas na tradição da ficção para que o romance pudesse incorporar a percepção individual da realidade com a mesma liberdade com que o método de Descartes e Locke permitiam que seu pensamento brotasse dos fatos imediatos da consciência. Para começar os agentes no enredo e o local de suas ações deviam ser situados numa nova perspectiva literária: o enredo envolveria pessoas específicas em circunstâncias específicas, e não, como fora usual no passado, tipos humanos genéricos atuando num cenário basicamente determinado pela convenção literária adequada. Essa mudança na literatura foi análoga à rejeição dos universais e à ênfase nos particulares que caracterizam o realismo filosófico. Aristóteles talvez tivesse concordado com a premissa básica de Locke, segundo a qual os sentidos são ―os primeiros a introduzir idéias particulares e a abastecer o armário vazio ― da mente. Mas teria prosseguido, insistindo em que o exame de casos particulares era de pouca serventia; a missão intelectual do homem consistia em combater o fluxo inexpressivo da sensação e adquirir um conhecimento dos universais que constitui a realidade definitiva e imutável. Esse enfoque generalizador confere à maior parte do pensamento ocidental 5 O capítulo ―Leis Naturais‖ de Quem?‖, da obra de Huberman , especificamente utilizado em nosso trabalho, fala sobre como as leis naturais do homem, ou seja, as leis que todos teriam desde o nascimento, como as de igualdade e liberdade, eram forjadas por uma ideologia econômica burguesa, que visava a obtenção cada vez maior do lucro a partir da exploração das camadas mais pobres. 17 até o século XVII uma forte semelhança que supera todas as suas múltiplas diferenças: da mesma forma, quando o Philonous de Berkeley afirmou, em 1713, que ―é uma máxima universalmente aceita a de que tudo que existe é particular‖, ele estava expressando a tendência moderna oposta que dá certa unidade de perspectiva e método ao pensamento posterior a Descartes (WATT, 2010, p. 17). A burguesia, deste modo, vê no romance, assim como no pensamento filosófico e econômico, um meio de efetivação de sua política, instaurando no imaginário da população os valores tipicamente burgueses. Para tanto, o romance assume características que apoiam a expressão individual dos homens, dentre elas personagens bem definidas, inclusive com nomes próprios, próximos dos utilizados cotidianamente. O tempo e o espaço da diegese também aparecem detalhadamente especificados, tudo com o intuito de representar a realidade da sociedade capitalista, o mais fielmente possível. 6 Georg Lukács, em sua obra Teoria do romance (2009), faz também uma análise das condições de surgimento do romance na era moderna, formulando uma das mais importantes obras teóricas acerca do romance, sendo de fundamental importância para o nosso trabalho. Partindo de uma perspectiva bastante próxima do que seria a sua fase marxista de pensamento, no qual as forças econômicas agem com o intuito de mudar concepções ideológicas, a obra Teoria do romance desenvolve-se em torno da seguinte afirmação: o romance é a epopeia da modernidade ou, como quer o filósofo húngaro, a epopeia burguesa. Nessa obra, Lukács ainda não havia amadurecido as posições sociológicas que o transformariam num dos mais importantes e incisivos críticos da sociedade burguesa, inclusive a partir de suas manifestações artísticas. No entanto, não parece excessivo afirmar que já podemos entender parte dos argumentos do autor, em sua teoria acerca do gênero romanesco, como a tentativa de estabelecer uma sociologia do romance. Isso porque, do ponto de vista metodológico, o autor opõe o romance à epopeia, levando em conta as características da sociedade em que cada gênero surge. Segundo Lukács, "felizes aqueles em que o mundo é o mapa da alma" (2009, p. 25), referindo-se aos tempos da antiga narrativa como a expressão de uma realidade na qual homem e mundo são unidades inseparáveis de um mesmo sistema, representação de um mundo fechado e articulado. No mundo da epopeia, a antiguidade clássica, como defende Lukács, não há alteridade: mundo e homem estão unidos sincronicamente. 6 E não só para se referir à realidade exterior à obra, mas também para, do ponto de vista da estrutura interna da história, conceber a ideia de um mundo particular e singularizado, devidamente organizado por meio dos ambientes que aparecem investidos da própria experiência burguesa, como as casas dos comerciantes, os salões e as festas, os quartos, as ruas de comércio das cidades etc. 18 O mundo antigo era definido pelos Deuses, os homens buscavam assemelharem-se a eles, sendo que toda a amplitude da vida era permeada pela noção de destino fundamentada por esse ideal de religião grega. Todos os acontecimentos da vida eram construções dos deuses e as ações humanas eram previstas pelo destino ou, tecidas pelas Moiras 7 , responsáveis por enredar as vidas humanas, de acordo com a mitologia clássica. 8 Contudo, a tecedura do destino humano pelos deuses e pelo destino não pré-traça a vida individual como roteiro marcado de antemão. O herói épico , assim como o herói trágico, vive o conflito da escolha e suas ações, tendo de sofrer os efeitos venturosos ou desventurosos do que elas causam aos deuses, ao Cosmo e diante do destino. Dessa forma, na epopeia, as ações das personagens contornam-se na busca da grandeza e da plenitude, no universo da estrutura fechada e organizada da grande épica. Não obstante, os homens representados pelo romance, na sociedade moderna, estão em formação. Vagueiam pelo mundo onde se constroem e definem-se, como reflexos da modernidade industrial e da complexa organização da realidade social burguesa. Nascido dos feitos individuais, de acordo com Lukács (2009), o romance é a expressão de um mundo dividido. Com a modernidade, os homens não são mais apoiados pela segurança de um futuro já determinado, e a incerteza do individualismo capitalista domina-os, pois eles tornam-se radicalmente livres - o que tem um custo: o desencantamento do mundo, a assunção de suas condições de sujeitos da história. Segundo Lukács O círculo em que vivem metafisicamente os gregos é menor do que o nosso: eis por que jamais seríamos capazes de nos imaginar nele com vida; ou melhor, o círculo cuja completude constitui a essência transcendental de suas vidas rompeu-se para nós; não podemos mais respirar num mundo fechado. Inventamos a produtividade do espírito: ei s porque, para nós, os arquétipos perderam inapelavelmente sua obviedade objetiva e nosso pensamento trilha um caminho infinito da aproximação jamais inteiramente concluída. Inventamos a configuração: eis por que falta sempre o último arremate a tudo que nossas mãos, cansadas e sem esperança, largam pelo caminho. Descobrimos em nós a única substância verdadeira: eis por que tivemos de cavar abismos intransponíveis entre conhecer e fazer, entre alma e estrutura, 7 As moiras eram responsáveis por fabricar, tecer e cortar aquilo que seria o fio da vida de todos os indivíduos, eram, portanto, domadoras de homens, tudo passava por suas mãos e era controlada por elas. Para melhores esclarecimentos: BULFINCH, Thomas. O livro de Ouro da Mitologia: Histórias de deuses e Heróis. Rio de Janeiro: Ediouro, 2003. 8 A nosso ver a identidade entre homem e mundo na Antiguidade, trazida por Lukács (2009), é, creio, questionável. Parece que ela cumpre uma duração de contraste entre um, antes, não capitalista, e um hoje, capitalista. Ela é, pois, um mito que se presta a alicerçar os argumentos de Lukács em relação à era burguesa, moderna e capitalista. Logo, ele não está errado ao sublinhar o desacordo e as incongruências do homem moderno no mundo burguês e capitalista. O indivíduo moderno viverá um número maior de problemas e conflitos na relação homem-mundo do que seus predecessores (o homem medieval, o homem da Antiguidade Clássica). Mas a suposta identidade entre homem e mundo no contexto da épica antiga é delimitada pela condição de casta. Acreditamos que o mundo e o herói épico têm uma harmonia (Odisseu e o mundo, por exemplo), mas, essa mesma harmonia não pode ser observada, como por exemplo, na figura dos escravos. 19 entre eu e mundo, e permitir que, na outra margem do abismo, toda a substancialidade se dissipasse em reflexão (LUKÁCS, 2009, p. 30-31). Há, no período moderno, uma adaptação da população ao tempo artificial, governado pelo apito da fábrica e pelo relógio. O homem, que antes possuía seu tempo marcado pelo ritmo da natureza, com os ciclos das estações do ano, nos quais dividia o seu tempo entre as colheitas e o artesanato, passa, na modernidade, a ser impulsionado a viver nas cidades e a trabalhar nas fábricas, pois não há mais espaço competitivo para as suas mercadorias, já que o ritmo da fabricação artesanal é muito menos produtivo do que no modelo fabril, por motivos claros: a aceleração da produção com a utilização das máquinas na indústria. Nas cidades, os apitos da fábrica, nos horários de entrada e saída, e o relógio no centro da praça, colocados devido à necessidade de maior controle do tempo, coordenam o homem moderno. O homem já não domina nem mesmo o controle de suas funções biológicas (sono, fome, etc.), que são prefixadas por esse tempo administrado pela máquina. Alienado do controle de seu mundo, o homem é dominado pela angústia, formada pela lembrança de um passado mais estável, na agricultura, e a incerteza com relação ao futuro, forçando-o a buscar novas representações no mundo moderno. Quanto a essa modernidade, Marshall Berman, filósofo estadunidense de ideologia marxista, depreende: Se nos adiantarmos cerca de um século, para tentar identificar os timbres e ritmos peculiares da modernidade do século XIX, a primeira coisa que observaremos será a nova paisagem altamente desenvolvida, diferenciada e dinâmica, na qual tem lugar a experiência moderna. Trata-se de uma paisagem de engenhos a vapor, fábricas automatizadas, ferrovias, amplas novas zonas industriais; prolíficas cidades que cresceram do dia para a noite, quase sempre com aterradoras consequências para o ser humano; jornais diários, telégrafos, telefones e outros instrumentos de medida, que se comunicam em escala cada vez maior; Estados nacionais cada vez mais fortes e conglomerados multinacionais de capital; movimentos sociais de massa, que lutam contra essas modernizações de cima para baixo, contando só com seus próprios meios de modernização de baixo para cima; um mercado mundial que a tudo abarca, em crescente expansão, capaz de tudo exceto solidez e estabilidade. Todos os grandes modernistas do século XIX atacam esse ambiente, com paixão, e se esforçam por fazê-lo ruir ou explorá- lo a partir do seu interior; apesar disso, todos se sentem surpreendentemente à vontade em meio a isso tudo, sensíveis às novas possibilidades, positivos ainda em sua negação radicais, jocosos e irônicos ainda em seus momentos de mais grave seriedade e profundidade (BERMAN, 1986, p. 17). Berman (1986) compreende como moderno o conjunto de experiências vitais conduzidas por esse espírito ambíguo da modernidade, que, ao mesmo tempo em que mostra a ruptura com as certezas oferecidas ao homem pela antiguidade clássica, oferta a liberdade de escolhas. Todavia, dessa possibilidade de liberdade engendra-se a angústia própria do homem 20 moderno: o livre arbítrio oferece liberdade de escolhas, no entanto essa liberdade é limitada pela desigualdade social necessária para a sobrevivência do sistema capitalista 9 . Utilizando a asserção do Manifesto do partido Comunista de Karl Marx ―tudo o que é sólido desmancha no ar‖ 10 , Berman refere-se à modernidade como o momento em que as certezas das estruturas antigas e feudais diluem-se, não deixando, ao homem, novas bases econômicas e sociais. O romance, assim, é o gênero dessa modernidade em construção permanente e busca a representação desse homem em crise com o seu tempo. Não há formas fixas que prendem esse gênero; suas personagens constroem-se no decorrer do enredo. Tudo no romance é mutável, pois representa um mundo cuja identidade principal é a liberdade de conquistas individuais, portanto a liberdade de agir no mundo para construir o seu futuro. Segundo Lukács, "O romance é a epopeia do mundo abandonado por deus; a psicologia do herói romanesco é a demoníaca; a objetividade do romance, a percepção virilmente madura de que o sentido jamais é capaz de penetrar inteiramente a realidade, mas de que, sem ele, esta sucumbiria ao nada da inessencialidade." (2009, p. 89-90). Este é o herói problemático de Lukács: o homem sem valores sublimes, que não se inspira mais nos deuses, caminhando em busca da sua completude (por si mesmo, por seu destino e pelo sentido da vida), mas que nunca a encontra, motivando as angústias próprias do mundo moderno. São homens em confronto com a realidade e distantes da tradição, homens comuns, indivíduos inseridos na ordem capitalista, que sobrevivem a cada dia ao aventurarem-se pela existência, sem nada saberem sobre seu passado ou sobre o que viria a ser o seu futuro. O romance representa um homem incompatível com o mundo, por, na modernidade, não ser encontrada essa totalidade, pois, homem e mundo já não se reconhecem mais, o que, segundo Lukács, o caracterizaria como um gênero fracassado e o levaria ao seu fim. 9 É importante frisar que Berman (1986) divide a modernidade em três etapas: A primeira do século XVI até o fim do século XVIII; a segunda começa com a onda revolucionária de 1790; e a terceira fase no século XX. Portanto, Berman compreende como terceira fase do modernismo o período, século XX, em que muitos filósofos, como Jean-François Lyotard, entendem como pós-moderno. 10 Na primeira parte do Manifesto do partido Comunista de Karl Marx, denominado ―Burgueses e proletários‖: ―A burguesia não pode existir sem revolucionar incessantemente os instrumentos de produção, por conseguinte as relações de produção e, com isso, todas as relações sociais. A conservação inalterada do antigo modo de produção constituía-se, pelo contrário, na condição primeira de existência de todas as classes industriais anteriores. Essa subversão contínua da produção, o ininterrupto abalo de todas as condições sociais, a permanente incerteza e a constante agitação distinguem a época burguesa de todas as épocas precedentes. Dissolvem-se todas as relações sociais antigas e cristalizadas, com o seu cortejo de representações e concepções secularmente veneradas; todas as relações que as substituem envelhecem antes de se solidificarem. Tudo o que era sólido se desmancha no ar, tudo o que era sagrado é profanado, e as pessoas são finalmente forçadas a encarar com serenidade sua posição social e suas relações recíprocas (MARX, 2001, p. 33)‖. 21 É preciso considerar que Lukács foi um dos primeiros teóricos do século XX a formular uma teoria do gênero romanesco, em sua obra Teoria do romance, e o fez a partir de uma perspectiva ainda fortemente hegeliana, mas já insinua a passagem teórica ao marxismo, característica de seu pensamento posterior. Sendo assim, é natural que, em função desse diálogo com Hegel, Lukács parta justamente de uma discussão de fôlego acerca do próprio problema do gênero, mostrando como as condições materiais interferiram na criação de formas artísticas e filosóficas novas desde fins do século XIX. Nesse sentido, Ference Fehér (1972), em sua obra O romance está morrendo?, dialogará com Lukács, mas sua contribuição à reflexão consistirá em mostrar que o romance, diferentemente do que pensou Lukács, não é um gênero fracassado, mas ambivalente, ou seja, pode caminhar por vários sentidos e renovar-se a cada instante. Para Fehér, essa é a grande riqueza do romance, pois ao mesmo tempo em que foi apropriado pela burguesia com a missão, sob muitos aspectos de representá-la, acaba por reagir contra ela, o que faz esse gênero adaptar-se às diversas fases da história do capitalismo. Para o teórico húngaro, e nesse ponto ele concorda com Lukács, o romance formula a crise de representação na sociedade industrial, devido à dissociação entre mundo e homem 11 . Segundo Fehér: De fato, a limitação geral da harmonia do universo da epopeia aparece, sobretudo, na qualidade quase individual de seus heróis. Hegel e Lukács consideram, do mesmo modo, esse herói da epopeia como modelo, bem acima do individual, da coletividade. Essa qualidade coletiva do indivíduo da epopeia significa que cada um de seus heróis é mais expressão de uma virtude etnográfica do que uma entidade única em seu gênero e que não se repete nunca (FEHÉR, 1972, p. 54). E prossegue o autor: Enfim, a epopéia não toca jamais na esfera do banal, pois os indivíduos são coletivos, as expressões de poder vital geral, a relação entre gênero e indivíduos se apresenta como inteiramente direta. Segundo nossa tese, é possível compreender todas as virtudes e antinomias da pintura do indivíduo no romance a partir da idéia de Marx de que o homem moderno é um indivíduo fortuito, o que quer dizer, sobretudo, que fornecer o nome ou a genealogia do herói não acrescenta nada do ponto de vista de seu 11 O romance passa a representar os feitos fortuitos dos indivíduos no mundo. Por meio destes, mostra o homem em desenvolvimento; o homem que, com seus próprios esforços individuais, conquista seu futuro. Nada mais está pré-determinado, como na antiguidade clássica. Perspectiva que, dentro de um modo de pensar liberal (modelo filosófico e econômico que conquistam o mundo com o advento da burguesia industrial), precisa decretar o fim da comunidade e, consequentemente, faz nascer o capitalismo. Por isso, a realidade passa a ser encarada de forma diferente, ela passa a ser as concepções que o sujeito possui sobre o mundo material, e não mais as ideias comunitárias, sobre a vida, e a partir de então passa a ser encarada como o que é, não mais o que é permanente ou universal, segundo as teorias idealistas de realidade. 22 conhecimento, que a evidência direta do caráter dado pela situação se perde (FEHÉR, 1972, p. 55). De acordo com Fehér (1972), o indivíduo não corresponde a padrões ou formas de comportamento por isso ele é constantemente reinventado. Essa individualidade romanesca traz o ambiente da casa, ambiente privado, ao plano principal de representação do romance. Esse espaço que antes, no período clássico, era menos importante, passa a compor a célula base do gênero romanesco. A obra Madame Bovary, de Gustave Flaubert, publicada originalmente em 1857, constitui-se em uma obra singular do Realismo Francês e coloca a psicologia do indivíduo como proposta principal do romance ao criar um universo romanesco que, em larga medida, é filtrado pelas concepções interiores de Emma Bovary, uma mulher provinciana, criada por freiras e grande leitora dos romances ―açucarados‖ 12 , do início do século XIX. Por essas características basilares, o romance de Flaubert nos servirá como um bom exemplo da ―ambivalência do romance‖, termo referido por Fehér, que passa gradualmente da representação da burguesia à crítica dessa sociedade. Como um de seus motivos principais é o adultério, esse romance tornou-se polêmico, já que reflete uma sociedade burguesa moralista, que se choca com a personalidade romântica de Emma Bovary, a protagonista, por meio da ―pintura‖ de seus arquétipos: a nobreza decadente em Rodolphe; o conformismo na pessoa de Charles; o sucesso da pequena burguesia em Leon; a burguesia enriquecida em Lheureux e Guillaumin; a prosperidade da ciência na figura de Homais; e, finalmente, Emma Bovary, o próprio retrato da crise da sociedade. Bovary é uma mulher insatisfeita: com a vida provinciana, com a falta de paixão, com o limite do espaço privado de sua casa e com suas obrigações femininas. Madame Bovary é insatisfeita com o mundo para o qual foi criada: o mundo moderno burguês. Aquela miséria duraria para sempre? Será que nunca sairia dela? Ela valia, contudo, tanto quanto as pessoas que viviam felizes! Vira duquesas em Vaubyessard que possuíam uma cintura mais grossa e maneiras comuns, e execrava a injustiça de Deus; apoiava a cabeça nas paredes para chorar, invejava as existências tumultuadas, as noites dissimuladas, os insolentes 12 Por romances ―açucarados‖ deveremos entender o gênero romanesco em sua fase inicial, o romance romântico, de representação fidedigna da sociedade burguesa dos fins do século XVIII e início do século XIX, como desenvolve Ian Watt (2010), nos quais a sociedade passa a ser representada dentro de padrões de individualismo burguês, em que o casamento deixa de ser, gradualmente, um evento social e passa a ser uma escolha do indivíduo, não completamente livro, mas assim concebido romanticamente. Assim, a paixão e o amor passam a ser exibidos nos romances como condição essencial do casamento. 23 prazeres com todos os desvarios que não conhecia e que eles deviam trazer (FLAUBERT, 1993, p. 70). Para distanciar-se da mesmice de seus dias, a personagem principal de Flaubert, foge para a ficção dos romances e deixa-se dominar por eles. Faz de tudo para ter uma vida igual às damas fictícias, busca a paixão mostrada pelas personagens, mas logo entende que não é possível, deixando-se levar pela angústia. Emma Bovary, formada intelectualmente pelos romances românticos burgueses, aspira a uma vida de paixões e amores eternos, uma formação inapropriada para a realidade do mundo burguês e, articulando essa visão inteiramente bovarista 13 (para usar um termo filosófico provindo justamente dessa obra literária), ou seja, uma visão romanticamente idealista do mundo, dos homens e das relações afetivas e sociais. Dessa forma, Madame Bovary é a heroína problemática de Flaubert: não possui aspirações em comunidade, não possui um pensamento de plenitude e grandiosidade. Ao contrário, Emma necessita o apaziguamento de suas necessidades passionais, de seus desejos individuais de amor e de glória, sendo que, para satisfazê-los, rompe inclusive com a moral e a ética estabelecidas pela própria burguesia. Madame Bovary é a representação ficcional dessa sociedade em crise, pois ela própria, inadaptada ao seu tempo, não se estabelece, em razão de sua formação romântica, que a condenou a buscar a sua mais completa satisfação individual. A forma de exposição narrativa de Flaubert causou escândalo e foi motivo para que o autor fosse processado, segundo o Ministério Público, por ofender a moral pública e religiosa da sociedade francesa. Mas, essa recusa dramática de Madame Bovary pelo Estado, pode-se dizer, foi reflexo de seu acatamento social. A sua leitura causou desconforto, demonstrando que a mudança de foco do romance, de representação mimética à crítica social (estabelecida pelo romance realista 14 ), longe de representar o fim desse gênero, como profetizava Lukács, mostra a sua capacidade de renovação, como argumenta Fehér. Por meio da exposição dessas visões acerca da teoria do romance, nas perspectivas de Lukács e Fehér, entendemos que o romance como gênero não morreu com as mudanças da sociedade capitalista, mas, por ser ambivalente e, portanto, adaptável, passou a ser gerado dentro de uma nova forma. Dentro dessa perspectiva, trazemos para compor nossas 13 De acordo com o dicionário de filosofia Nicola Abaggnano (2007) : ―BOVARISMO (fr. Bovarisme). Termo derivado do nome da famosa heroína de Flaubert (Madame Bovary, 1857), para indicar a atitude de quem cria para si mesmo uma personalidade fictícia e procura viver em conformidade com ela, chocando-se contra a sua própria natureza e contra os fatos. O termo foi criado por Jules de Gaultier (Le bovarisme, 1902)‖(ABBAGGNANO, 2007, p. 122). 14 O termo realista utilizado nesse trecho se refere ao realismo como escola literária, e não, como foi utilizado anteriormente, segundo a teoria de Ian Watt, como característica inerente à fundação do romance. 24 discussões, Donaldo Schüler (1989), com sua obra Teoria do Romance. Nessa obra, o autor faz uma importante discussão teórica acerca do romance moderno, ampliando sua leitura até o contemporâneo, ao trabalhar seus argumentos, também dentro da seguinte asserção: o romance só sobrevive devido a essa capacidade de mudança. O que se encerrou com o romance moderno, de acordo com Schüler, foi a forma descritiva da sociedade burguesa do século XX. As extensas descrições da realidade material têm seu fim para fazer surgir formas romanescas mais adaptáveis às condições sociais da modernidade. Nascem formas que procuram representar, cada vez mais, as nossas percepções sensoriais sobre o mundo, para isso não faltará fragmentação formal: ―O romance está morrendo e deve continuar a morrer". Um gênero que perdeu a possibilidade de morrer é que realmente está morto [...]. Morta, a epopeia eternizou-se. ―Alimentando-se de suas muitas mortes, é que o romance se mantém vivo‖ (SCHÜLER, 1989, p. 9). Assim, Schüler vincula o romance à modernidade e vai além, afirmando-o como o gênero da contemporaneidade, ao defini-lo pela sua capacidade de renovação. O romance sempre renasce das falhas na moral burguesa, pois, sendo crítico, explora-as, constituindo-se em um gênero ambivalente, por estar sempre apto a transformar-se e a renovar-se. Madame Bovary, nosso exemplo utilizado, apesar de manter muitas das características da primeira fase do gênero romanesco, caracterizada pelo descritivismo intenso da realidade material (como o tempo cronológico e as ambientações), já dá indícios de uma reorganização estrutural, principalmente com relação à perspectiva focalizada pelo romance, já que deixa clara a exposição de um ponto de vista filtrado pelas concepções interiores de sua personagem principal. Portanto, no que Lukács diz ser a fraqueza do romance, a incongruência mundo/homem, reconhece-se sua força. A literatura moderna define-se a partir de uma maior liberdade de composição, a fragmentação, ou seja, rompe com narradores bem delimitados, assim como personagens, espaços e temporalidades lineares. São recorrentes, no entanto, variedade de perspectivas, pontos de vistas, multiplicidade de personagens e narradores que recorrentemente confundem- se na narrativa. Quanto ao tempo da narrativa, o tempo cronológico, muitas vezes, é usado concomitantemente ou confunde-se como o tempo psicológico, o da subjetividade das personagens. Segundo Rosenfeld (1976), que também trabalha com a questão do romance na contemporaneidade, essas mudanças estruturais chegam ao máximo na contemporaneidade. 25 Para Rosenfeld, o romance do mundo globalizado tende a uma ―desrealização‖ 15 (1976, p. 76), ou seja, o romance passa a mostrar cada vez mais as impressões que temos sobre o mundo. Logo, muitos romancistas permitem-se a narrar mais sobre o que se pensa e o que se sente sobre o mundo, e menos de forma descritiva: Nota-se no romance do nosso século uma modificação análoga à da pintura moderna, modificação que parece ser essencial à estrutura do modernismo. À eliminação do espaço, ou da ilusão do espaço, parece corresponder no romance a da sucessão temporal. A cronologia, a continuidade temporal foi abalada, ―os relógios foram destruídos‖. O romance moderno nasceu no momento em que Proust, Joyce, Gilde, Faulkner começam a desfazer a ordem cronológica fundindo passado, presente e futuro (ROSENFELD, 1976, p. 80). Todas essas modificações na estrutura do romance moderno mostradas por Rosenfeld, tornam-se viáveis devido ao sentido plural que o conceito de realidade assume. Com o avanço da modernidade e o crescimento das cidades, a sociedade encarnou um novo ritmo, tão veloz quanto a produção fabril, que agora se utiliza da robótica para triplicar a sua produção, fazendo emergir novos sujeitos na história, novos agentes sociais, portanto novas realidades. Agora, então, passa a ser considerado como real o modo pelo qual esses diversos e múltiplos indivíduos concebem o mundo que os cerca e não mais o ideal de um único grupo econômico mais favorecido, como era no século XVIII e XIX, dentro das perspectivas positivistas e cientificistas. Foi então que novos romances nasceram, alguns priorizando o individualismo ao extremo mostraram uma total alienação do indivíduo frente ao mundo material, outros demonstraram o indivíduo apartado, inclusive, de seu próprio universo interior. O romance contemporâneo surge, portanto inovando padrões 16 de formas e sentidos impossíveis de catalogar ou rotular, pois, a partir de gêneros que se entrelaçam, personagens volúveis e imagens fragmentárias da realidade, formam quadros de uma realidade fluida, na qual sua fixação linear é impossível, até mesmo, para as ciências humanas, como a história. Para elucidar a problemática em questão trazemos à tona nossos objetos de estudo, as obras de Luiz Ruffato, Mamma, son tanto felice e O mundo inimigo, ambas de 2005. Essas obras são as duas primeiras de uma pentalogia encerrada em 2011 (com a obra Domingo sem 15 Segundo Rosenfeld, 1976, na contemporaneidade, a humanidade passa a ter uma nova percepção do que é real, sendo o real, na literatura, não mais a representação fiel da sociedade, mas as impressões que podem ser concluídas acerca dessa sociedade, portanto impressões que não precisam ser narradas de forma fidedigna. Assim, quando Rosenfeld fala sobre uma desrealização, ele se refere a um rompimento com a forma de narrar a realidade instituída no século XIX, pelo romance burguês, no qual se entendia como real os feitos individuais. De acordo com Watt, no final do século XVIII, realidade é o fortuito, o que muda. 16 Por exemplo: o tempo subjetivo e o discurso indireto-livre. 26 deus), cuja intenção é recontar a história do Brasil, de meados do século XX até os dias atuais. De acordo com Dalcastagnè ( 2011), Luiz Ruffato realiza uma leitura da contemporaneidade com crítica social e engajamento político. Com um grande senso crítico Ruffato investiga a fundo a exclusão social e explicita com seu realismo a face oculta da realidade, a face dos marginalizados: ―Os romances de Ruffato tecem vidas que não se encontram nos noticiários policiais, [...] que chegam até nós como experiência humana graças às possibilidades da escrita‖ (DALCASTAGNÈ, 2011, p. 6). Ruffato insere-se, portanto, dentro de um novo realismo, que não mais vê no modo tradicional (o realismo mimético), a sua melhor expressão. Ao contrário, Ruffato brinca com o silêncio, mostrando uma literatura inacabada, aberta, que dá margem à interpretação pelo leitor, usa e abusa da fragmentação literária. Toda essa técnica, inspirada nos modernos, deve- se à pretensão de mostrar os descaminhos da sociedade, ou seja, imita o ritmo da sociedade contemporânea, rápido e descontínuo, que não se enxerga mais, somente, pelos modelos lineares de literatura. Ao envolver-nos em seu jogo com as palavras, acelerando e desacelerando a cadência de suas linhas, cria um ritmo próprio, causa ao leitor uma sensação de realidade: Orgulhoso, aos quatorze anos André [...] de dia esculachado em-dentro do brim e da camisa-de-manga comprida riscada, bota dura no pé, chapéu-de- palha esfiado, cigarro sem filtro margando o céu de boca, mas depois, lavados pés, cara, braços e as partes, virava outro, iludido em cima da sua Göricke espelhos retrovisores e campainhas trim-trim, no guidão (RUFFATO, 2005, p. 23). No trecho acima, a modernidade brasileira de meados do século XX é explorada por meio de citações a objetos típicos e recorrentes do universo material daquela temporalidade. A marca da bicicleta, a roupa, o cigarro, são objetos que nos remetem sensorialmente ao ambiente rural e urbano da década de 1950. Além disso, a descrição, primeiramente dos utensílios utilizados no campo (como o brim, a camisa, a bota, o chapéu e o cigarro), para só depois fazer referência à cidade (com a figura da bicicleta), nos faz entender que se trata de um período de transição do campo para a cidade. Dessa forma, fica claro que todas essas explicações foram intuídas, ou melhor, foram interpretadas, sendo que os objetos foram apenas citados na narrativa. Em um trecho da obra O mundo inimigo, mais especificamente no capítulo ―Amigos‖, cuja temática principal, e que permeia também, de certa forma, toda a pentalogia, consiste em mostrar a relação entre os homens e o capitalismo, desvelando a imagem de sujeitos em crise 27 diante da permanência das tradições rurais ao mesmo tempo em que inseridos no mundo da produção, do lucro e do consumo urbanos: - É que a gente já está meio alto... - Meio alto? E daí? Foda-se! Não devemos nada pra ninguém... Você devia é ir pra São Paulo, cara. Logo-logo arrumava uma colocação, ia ganhar muito dinheiro, ficava bem de vida! - Bobagem, Gildo... Pra mim não dá mais não... Agora, então, que casei... - Mas você não tem onde cair morto, cara! Desculpe eu falar assim, mas é mentira? Você tem que largar isso aqui, ir embora... Tem um mundo te esperando lá fora... (RUFFATO, 2005, p. 23). Nesse capítulo, dois amigos de infância, Luzimar e Gildo, reencontram-se, depois de muito tempo, em Cataguases. Nessa conversa, episódios do passado voltam à tona, juntamente com momentos tensos de reflexão sobre a vida a partir de longos diálogos regados a cerveja, expondo conflitos existenciais e sociais. Gildo foi para São Paulo, ganhou a vida trabalhando em grandes indústrias, comprou um carro e dizia-se socialmente bem estabelecido; Luzimar casou-se, decidiu-se por ficar em Cataguases, e vivia a vida simples dos pequenos centros urbanos. Apesar de destinos diferentes, ambas as personagens sentem na pele a exclusão: Gildo por sentir-se como um estrangeiro em São Paulo e Luzimar, pela pobreza, que, de certa forma, também o marginaliza e o faz sentir-se como um estrangeiro, no entanto, em sua própria cidade natal. Entende-se que o romance reinventa-se e adapta-se às condições da sociedade contemporâneas. A fragmentação é a forma encontrada para representar o mundo globalizado, pois, nos sentimos fragmentados diante da imensa carga de informação bombardeada a todo instante. A literatura contemporânea, nessa guerra tecnológica, tenta recolher nossos cacos: algumas obras os acham e montam-nos, como se fossem quebra-cabeças, ousando nos mostrar algum sentido à vida, no entanto, outras, os espalham ainda mais e escancaram a nossa total falta de completude. No entanto, não podemos dizer que a forma tradicional não é mais possível, na verdade o que se vê, na contemporaneidade, é o convívio de múltiplas formas de escritas e gêneros em constantes diálogos. Luiz Ruffato tenta dar algum sentido histórico à nossa realidade. Em sua literatura, passado e presente tornam-se um mesmo continuum em construção, pois deixa claro que nossa condição de excluídos só pode ser explicada no passado histórico brasileiro, pois penetra na história, indo até meados do século XX, para explicar o Brasil contemporâneo. No entanto não nos acalenta por muito tempo, e logo nos faz entender que não há nenhuma saída milagrosa, ou revolucionária, para a nossa excludente condição humana. Estamos perdidos dentro de nossa própria existência, faltando-nos integridade. 28 Vista a importância da história para a literatura de Luiz Ruffato, no próximo capítulo procuraremos entender as relações entre a literatura e a história, partindo da antiguidade até a contemporaneidade, para que possamos compreender como o autor estudado utiliza-se da história em suas criações ficcionais. Assim, acreditamos colocar Ruffato sobre a perspectiva do novo romance histórico contemporâneo. 29 CAPÍTULO 2 - ANTIGAS RELAÇÕES: HISTÓRIA E LITERATURA A história e a literatura possuem antigos vínculos e, apesar de parecerem compostas de matérias distintas, nascem de uma mesma raiz, sendo que, por isso mesmo, confundiram-se e interpenetraram-se durante muito tempo. Segundo Tereza Aline Pereira de Queiroz e Zilda Márcia Grícoli Iokoi, no livro A história do historiador (1999), antes da história havia as cosmogonias, as lendas. Procurava-se entender o mundo por meio de narrativas contadas oralmente, em grupos, transmitidas de geração para geração, sobre deuses e a formação de tudo o que existia, para, com isso, solidificar tradições e costumes de comunidades a partir da construção do sentimento de união e pertencimento. O sagrado e o profano, portanto, juntam- se na perpetuação da história dos mais diversos povos, e mesmo com Heródoto, na Grécia Antiga, considerado o primeiro historiador, a historiografia ainda vivia na dependência dos mitos. Na historiografia 17 , a verdade histórica só será vista como indubitável a partir da idade moderna e, sobretudo, com o advento do positivismo 18 , que dá o tom cientificista ao discurso historiográfico e, sob muitos aspectos, marca uma espécie de distanciamento que parece definitivo entre história e literatura. É justamente em função desse tom cientificista que os historiadores irão propor a história dos grandes feitos, das elites, dos heróis, das nações, das revoluções transformadoras como verdades irrefutáveis, já que passíveis de comprovação por meio de documentos. O marxismo, como tendência de pensamento, surge no final do século XIX e, apesar de se constituir cientificamente em função da noção de materialismo histórico dialético 19 , também propõe a representação de grupos humanos em uma leitura científica da 17 Para aprofundamento na teoria da história: ANDERSON, Perry. Considerações sobre o marxismo ocidental. Porto: Afrontamento, 1976. CARDOSO, Ciro F. S. e BRIGNÓLI, Héctor. Os métodos da história. 4. ed. Rio de Janeiro, Graal, 1983. CARDOSO, Ciro F. S. ; VAINFAS, Ronaldo. Domínios da História. Rio de Janeiro: Campus, 1997. GARDINER, Patrick (Org.). Teorias da história. Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian, s/d.HOBSBAWM, Eric. Sobre história. São Paulo: Cia. das Letras, 1998.REIS, José Carlos. História e Teoria. Historicismo, Modernidade, Temporalidade e Verdade. 3ª ed. Rio de Janeiro: ed. FGV, 2006. REIS, José Carlos. Tempo, História e Evasão. Campinas: Papirus Editora, 1994. 18 É justamente a partir do positivismo que a historiografia passa a pensar e registrar a história pelas leis da causalidade, ou seja, os acontecimentos históricos passam a ser pensados e organizados pelo que seriam os grandes eixos causais. É isso que cria, no século XIX, a ideia do relato histórico como verdade científica, metodologicamente organizada, e não como interpretação. 19 De acordo com o dicionário de filosofia Nicola Abbagnano (2007): ―o materialismo histórico refere-se [...] ao cânon de interpretação histórica proposta por Marx, mais precisamente o que consiste em atribuir aos fatores econômicos (técnicas de trabalho e de produção, relações de trabalho e de produção) peso preponderante na determinação dos acontecimentos históricos. O pressuposto desse cânon é o ponto de vista antropológico defendido por Marx, segundo o qual a personalidade humana é constituída intrinsecamente (em sua própria natureza) por relações de trabalho e de produção de que o homem participa para prover as suas necessidades. A "consciência" do homem (suas crenças religiosas, morais, políticas, etc.) é resultado dessas relações, e não seu pressuposto. Esse ponto de vista foi defendido por Marx sobretudo na obra Ideologia alemã (Deutsche Ideologie, 30 sociedade, baseada na compreensão dos fenômenos envolvidos na constituição da realidade material, a partir da dialética da luta de classes. Diante de tal concepção, de acordo com Jean-Claude Schmitt, ―A história dos marginais‖ (2001), artigo em que se procura estabelecer as novas perspectivas à história, a narrativa historiográfica, desde sua separação com o sagrado, constituía-se em justificação das elites: da monarquia, do poder burguês, dos mais favorecidos e das macroestruturas econômicas. A história sempre se articulava a partir do ―centro‖ e a verdade passou a ser identificada com os valores, as ideologias, as formas de ação e de comportamento das elites econômica, sendo que, aos grupos que circundavam a margem dessa zona de influência e favorecimento, restavam-lhes o silêncio e o anonimato. No entanto, na segunda metade do século XX, a noção de verdade histórica, assim como foi estabelecida, é questionada, e essa historiografia das elites passa a ser repensada. A história, entendida como o discurso científico de uma verdade irrefutável, aos poucos é posta de lado e as vozes múltiplas dos menos favorecidos ecoam mais fortemente na historiografia com o surgimento da Escola dos Annale 20 s, ampliando-se, posteriormente, dentro do movimento historiográfico denominado como História Nova. Com essa nova orientação, o conceito de marginal passa a existir na história, assim como uma maior relação da história com outras disciplinas (como a sociologia, a psicologia, a arte e, consequentemente, com a própria literatura). Dentro dessa linha de pensamento, o próprio ato de escrever, como atividade intelectual, pressupõe escolhas estilísticas e lógicas que partem da subjetividade do indivíduo. 1845-46). [...] Portanto, o modo de produção da vida material em geral condiciona o processo da vida social, política e espiritual" (Zur Kritik derpolitischen Òkonomie, 1859, Pref.: trad. it., p. 17). Marx elaborou essa teoria sobretudo em oposição ao ponto de vista de Hegel, para quem é a consciência que determina o ser social do homem; para Marx, pelo contrário, é o ser social do homem que determina a sua consciência.. [...] O M. histórico chamou a atenção dos historiadores para um cânon interpretativo ao qual muitas vezes é indispensável recorrer para explicar acontecimentos e instituições histórico-sociais. [...] Hoje a tendência é interpretar o M. histórico como uma possibilidade explicativa, à qual se recorre em circunstâncias apropriadas, e não como um princípio dogmático (sobretudo na forma proposta por Engels). Em outras palavras, afirmar que acontecimentos ou situações histórico-sociais sempre devem ser explicados pelo determinismo dos fatores econômicos é tese tão dogmática quanto qualquer outra que quisesse excluir absolutamente e em todos os casos o determinismo de tais fatores. O historiador, diante de uma situação, deve verificar o peso relativo dos fatores determinantes, estabelecendo-o caso a caso. considerando as situações particulares, e não decidindo de antemão e em definitivo. Isento dessa postura dogmática, o M. histórico representa, para a técnica de explicação historiográfica, uma das possibilidades mais fecundas e um novo grau de liberdade à escolha historiográfica (v. HISTORIOGRAFIA).‖ 20 O movimento dos Annales, de origem francesa, busca a renovação metodológica da história. Dentro de tal perspectiva, teve inicio por volta de 1940 e, possui sua última fase nos fins do século XX, por volta de 1980. Então, pode-se dizer que esse movimento possuiu três fases: primeiramente a fase propriamente denominada Annales, caracterizada pela densa crítica ao positivismo; em uma segunda geração tem-se a história estrutural e como marco o nome de Braudel; e por fim, a chamada História Nova, marcada pela grande influência da psicologia na história. Há quem diga que exista uma quarta fase dos Annales, denominada História Cultural, no entanto nos deteremos mais especificamente a essas três primeiras fases, que serão exploradas no próximo capítulo da dissertação. 31 A seleção de um tema, de um gênero, de um estilo de escrita, de uma linha ideológica, são etapas do trabalho de todo escritor, o que leva os teóricos, a partir do século XX, ao questionamento da veracidade do discurso histórico. A verdade passa, então, a ser plural, a ser vista como discurso, e, deste modo, as fronteiras entre literatura e história novamente aproximam-se, muitas vezes confundindo-se, e, até mesmo, anulando-se, como defendem alguns teóricos pós-modernos. A nosso ver, são claras as diferenças entre a literatura e a história: a história parte do objeto da realidade para a escrita de seu discurso científico; já a literatura cria realidades, próximas ou não da ciência histórica, para compor sua arte a partir da escrita. Todavia, ambas apropriam-se, em suas manifestações, da escrita específica da narrativa, caracterizada como a linha de força que aproxima as suas naturezas. Na história literária, um exemplo de miscigenação entre as fronteiras da literatura e da história é o romance histórico. Tipicamente romântico, surge diante da necessidade de afirmação da história como ciência, no século XIX, sua metodologia parte da verdade histórica para compor seu universo criativo. O primeiro a teorizar acerca desse gênero, sendo ponto de partida essencial, até hoje, para fomentar debates e reflexões, foi György Lukács, fornecedor das bases do que seria conhecido como período clássico do romance histórico em sua obra O Romance Histórico, publicado originalmente entre 1936-1937. No entanto, muito contestada desde seu surgimento, essa obra foi pouco a pouco complementada por outros escritores, principalmente os que presenciaram, nos fins do século XX e início do século XXI, o ressurgimento, com outra roupagem, de romances contemporâneos que se utilizam da história em suas composições. É o caso das reflexões desenvolvidas pela teórica canadense Linda Hutcheon, investigadora das singularidades do romance histórico por meio do aparato epistemológico pós-modernista, portanto pelo viés da completa dissolução das fronteiras estre esses discursos. Neste capítulo procuraremos inserir-nos no desenvolvimento do debate estabelecido acerca da teoria do romance histórico, para, então, depreender como Mamma, son tanto felice (2005) e O mundo inimigo (2005), os dois romances de Luiz Ruffato analisados em nossa dissertação, apropriam-se da história brasileira, de meados do século XX até os dias atuais, para compor romances que compreendem o processo de modernização brasileira. 2.1. Diálogos sobre o romance histórico György Lukács, teórico húngaro, propõe uma releitura de Marx sob a perspectiva de Hegel, tomando a dialética como princípio filosófico, sendo esse, de acordo com Lukács (2011), o método correto, ortodoxo, para compreender a história da humanidade. Essa 32 dialética, cujo princípio foi herdado por Marx de Hegel, impulsiona-nos a olhar para a sociedade como totalidade, procurando nela conexões, todavia não suprime os elementos individuais de um acontecimento, e, sim, tende a retirá-los de seu isolamento, considerando-os como dinâmicos, não os visualizando como autônomos e estáticos. A dialética consiste, dessa forma, no constante embate de duas forças (tese e antítese), que acabam por suplantarem-se produzindo algo novo (síntese), fruto da superação do conflito inicial, que, no processo de pensamento, pode ser contradito por uma nova tese. Sendo assim, a história é lida dentro de um processo em constante movimento e superação, como que coordenada por uma linha ascendente, uma força evolutiva que caminha ao progresso, no qual o passado e o presente formam um continuum em constante aderência. Nas palavras do próprio Lukács: ―as revoluções são as grandes épocas da humanidade, porque nelas e por meio delas ocorrem os movimentos de ascensão das capacidades humanas‖ (LUKÁCS, 2011, p. 72). Assim, é nas revoluções que ocorrem visivelmente as rupturas drásticas com os elos do passado, fazendo-nos agentes de nossas realidades. Como teórico estético do realismo marxista, Lukács acredita que a arte reflete essa totalidade da vida humana em seu movimento dialético, portanto a história em sua evolução. De acordo com Arlenice Almeida da Silva, doutora em filosofia e professora da Universidade Federal de São Paulo, no prefácio ao O romance histórico (2011), ―o real ‗é a totalidade concreta em devir‗, Lukács procura a correspondência entre a criação artística e a consciência social não no plano dos conteúdos, mas nos das categorias que se estruturam reciprocamente‖ (2011, p. 11). No mais, é necessário entender essa correspondência entre a arte e a realidade, não de forma redutiva, mas, ao contrário, por meio da perspectiva do movimento dialético, visualizando a totalidade entre as ―forças artísticas e as realizações de produção‖. (ARLENICE, 2011, p. 11). ‗ Em O romance histórico (2011) o crítico húngaro estabelece as regras gerais ontológicas que coordenam o romance histórico, ou seja, procura, nessa expressão literária, características que a regulamentam internamente, estabelecendo as diferenças substanciais entre essa forma e o romance em geral, para tanto, divide a produção desse gênero literário em três fases determinantes e significativas. A primeira, denominada como clássica, do início do século XIX (1816-1848), da qual Walter Scott foi percursor, haja vista que é o autor que, segundo Lukács, melhor soube construir relações entre passado e presente, promovendo uma relação de processo em que as histórias passadas são vistas como a pré-história do tempo presente. No pós-1848, Lukács denomina de fase decadente, caracterizada pelo realismo e, consequentemente, o naturalismo do século XIX. Nesse período, o romance histórico toma o 33 passado de forma isolada, como exótico, não concebe mais a história como um processo, como acontecia na fase clássica marcada pela ficção de Scott. A terceira, e última, é correspondente a uma nova emergência do gênero concomitante ao tempo em que Lukács produz seu ensaio, nela, há novamente a proposta de ruptura com o isolamento entre presente e passado. Para Lukács (2011), apesar de anteriormente (desde o século XVII) já existirem romances com temáticas históricas, o gênero romance histórico surge a partir de uma nova concepção de história. Segundo o filósofo, antes das revoluções burguesas na Europa (entre elas a Revolução Francesa) pairava sobre o pensamento filosófico uma noção de história estagnada, sem conceber o passado como uma pré-condição para o presente. Para o autor ―o que falta ao pretenso romance histórico anterior ao de Walter Scott é o elemento especificamente histórico: o fato de a particularidade dos homens ativos derivar da especificidade histórica de seu tempo‖ (LUKÁCS, 2011, p. 33). Como esses grandes eventos foram os estopins de grandes transformações na sociedade europeia, marcaram também uma revolução no modo de se conceber a história. A ação popular nessas guerras permitiu aos mais diversos grupos sentirem-se peças fundamentais na construção da história, fortalecendo ―o sentimento de que existe uma história, de que essa história é um processo de ininterrupto de mudanças e, por fim, de que ela interfere diretamente na vida de cada indivíduo‖. (LUKÁCS, 2011, p. 38) Envolto por essa teoria da história e do romance histórico, ao entender Walter Scott como modelo de produção da ficção romanesca histórica, Georg Lukács concebe as principais características desse gênero: primeiramente, o romance histórico refere-se ao tempo anterior ao tempo da escrita da obra; o passado serve sempre para explicar as condições de desenvolvimento humano explícitas na obra romanesca; é de essencial importância a determinação de um herói mediano, que vem do povo e que se coloca como agente dos eventos principais colocados no romance; sobre esse plano principal estabelece-se um pano de fundo histórico por onde perambula uma grande personagem da história com a intenção de melhor demarcar o período representado historicamente. De acordo com Lukács: A riqueza de cores e variação do mundo histórico de Walter Scott é consequência da multiplicidade dessas interações entre os homens e a unidade do ser social, que, em toda essa riqueza, é o princípio dominante. Com isso, grandes personagens históricas, os líderes das classes e dos partidos em luta são, do ponto de vista da trama, apenas figuras coadjuvantes. Walter Scott não estiliza essas personagens, não as coloca em um pedestal romântico, mas retrata-as como pessoas dotadas de virtudes e fraquezas, de boas e más qualidades. No entanto elas nunca dão a impressão 34 de mesquinhez. Com todas as suas fraquezas, agem de modo historicamente grandioso, o que se deve é claro, à profundidade do entendimento de Scott acerca da peculiaridade dos diferentes períodos históricos. Mas o fato de que ele consegue expressar seus sentimentos a respeito dos homens históricos de modo ao mesmo tempo grandioso e humanamente verdadeiro deve-se à sua maneira de compor (LUKÁCS, 2011, p. 63-64). Contudo, o fato de o contexto histórico ocupar o segundo plano na narrativa, deixando à ficção o primeiro, não quer dizer que tenha importância secundária. Segundo Antônio R. Esteves, em sua tese de doutorado Lope Aguirre: da história para a literatura (1995), a ―preocupação maior do romance histórico romântico era conseguir a síntese entre fantasia e a realidade, onde os jogos inventivos do escritor aplicados a dados históricos produzissem composições que dessem aos ávidos leitores, ao mesmo tempo, ilusão de realismo e oportunidade de escapar de uma realidade que não satisfazia‖( ESTEVES, 1995, p. 24). Deve-se compreender que todas essas características são importantes, no entanto, o que realmente caracterizava um romance como histórico, de acordo com Lukács, é a dialética entre o contexto histórico e a ficção, procurando estabelecer relações na estrutura do próprio romance, mostrando um processo no qual o presente na narrativa é explicado pelo passado, sendo esse, como frisa constantemente o teórico húngaro, a pré-história do presente. Na contemporaneidade, muitas formas de romances surgiram e a ciência histórica, como matéria prima da ficção, também tomou novos cursos nos quais a teoria lukácsiana não pode chegar devido às novas condições de desenvolvimento social, econômico e epistemológico, não obstante, qualquer estudo a respeito do romance histórico que não recorra a Georg Lukács em sua fundamentação, se tornará raso, superficial por não ser capaz de mostrar a gênese desse gênero. Linda Hutcheon, professora doutora da Universidade de Toronto, é particularmente conhecida por sua teoria pós-modernista, pois busca compreender a contemporaneidade dentro dessa concepção teórica, porém observando os preceitos pós-modernos no paradigma estético, prioritariamente o da literatura. Para isso, dá forma ao que denomina como o romance histórico contemporâneo ao criar o conceito metaficção historiográfica em sua obra Poética do pós-modernismo: história, teoria e ficção (1991). Para Hutcheon (1991) o romance histórico contemporâneo já não pode ser analisado de acordo com os padrões estabelecidos por Lukács, pois foram pensados diante das condições da literatura dos séculos XIX/XX e, diante das condições do mundo contemporâneo, tornaram-se necessárias teorias que abarquem as novas formas de literatura. De acordo com Hutcheon (1991): 35 Esse "mundo" tem um vínculo direto com o mundo da realidade empírica, mas não é, em si, essa realidade empírica. É um truísmo crítico contemporâneo dizer que o realismo é um conjunto de convenções, que a representação do real não é idêntica ao próprio real. O que a metafícção historiográfica contesta é qualquer conceito realista ingênuo de representação, mas também quaisquer afirmações textualistas ou formalistas ingênuas sobre a total separação entre a arte e o mundo. O pós-moderno é, autoconscientemente, uma arte "dentro do arquivo" (Foucault 1977, 92), e esse arquivo é tanto histórico como literário (HUTCHEON, 1991, p. 165). Assim, são denominadas metaficções historiográficas obras que se utilizam do discurso da história para depois contestá-lo, ou seja, escritos literários que se propõem a reler criticamente a já estabelecida história das civilizações. Por essa natureza contestadora, a paródia intertextual é a principal característica desse gênero, ao recontar de forma irônica 21 , logo crítica, antigas obras, geralmente clássicas, da literatura, no entanto, por outras abordagens. O termo paródia, utilizado por Linda Hutcheon para edificar o conceito de metaficção historiográfica, relaciona-se com a apropriação do passado pelo presente, desse modo formas, temas e conteúdos do passado surgem dentro uma nova roupagem, em tentativas de reelaborar a história e dar a ela um novo significado, para além do que foi registrado pelo discurso histórico oficial. De acordo com Linda Hutcheon: Para esses autores, a paródia é mais do que uma simples estratégia essencial pela qual a "duplicidade" se revela (Gilbert e Gubar 1979a, 80); é uma das principais maneiras pelas quais as mulheres e outros ex-cêntricos usam e abusam, estabelecem e depois desafiam as tradições masculinas na arte. Em A Cor Púrpura, Alice Walker recorre a versões irônicas de conhecidos contos de fadas: Branca de Neve, O Patinho Feio, a Bela Adormecida, etc. Mas a importância das paródias só fica evidente quando o leitor percebe a inversão de sexo e raça efetuada por sua ironia: o mundo em que depois ela vive feliz para sempre é feminino e negro (HUTCHEON, 1991, p. 175). Paródia refere-se não ―à imitação ridicularizadora das teorias e das definições padronizadas que se originaram das teorias de humor do século XVIII‖, mas ―como uma coletiva repetição da prática com distância paródica crítica sugere que uma permite a indicação irônica da diferença no próprio âmago da semelhança‖ (HUTCHEON, 1991, p. 47, 45). A paródia realiza-se tanto em forma de mudança como de continuidade cultural e, desse 21 Ao termos em mente o significado mais comum de ironia (dizer de forma contrária o que se diz) nos referimos à metaficção historiográfica devido a sua intenção de reescritura da história oficial. A capacidade de reestruturar um o discurso já reconhecido da história transformando-o em seu registro marginal, ou seja, a ironia de dizer de outra forma o que já foi dito. De acordo com o dicionário de filosofia Nicola Abbagnano (2007): ―(gr. eipcoveíot; Iat. Ironia; in.Lrony; fr. Ironie; ai. Ironie; it. Lronia). Em geral, a atitude de quem dá importância muito menor que a devida (ou que se julga devida) a si mesmo, à sua própria condição ou a situações, coisas ou pessoas com que tenha estreitas relações. A história da filosofia conhece duas formas fundamentais de I.: I a socrática; 2 a romântica.‖ (ABBAGNANO, 2007, p. 584-585) 36 modo, formula novas perspectivas aos discursos histórico e literário 22 , perspectivas, essas, que dão voz aos grupos marginalizados 23 : o ―‗ex-cêntrico‗- tanto como off-centro quanto como descentralizado - passa a receber atenção. Aquilo que é ‗diferente‗ é valorizado em oposição à ‗não-identidade‗ elitista e alienada e também ao impulso uniformizador da cultura de massa‖ (HUTCHEON, 1991, p. 175). Já intertextualidade, na metaficção historiográfica, diz respeito à impossibilidade de originalidade de qualquer produção intelectual, posto que, de acordo com a teoria pós- moderna, a singularidade de uma obra é sempre duvidosa devido à crença em sua constante tecedura discursiva por meio de releituras, ou melhor, entende-se como intertextualidade a incapacidade da singularidade da produção intelectual, visto que tudo o que se produz é influenciado por outros textos, o que forma relações de constantes diálogos. Além disso, a intertextualidade está relacionada com a leitura do mundo, que, de acordo com a teoria pós- moderna, só pode ser lido a partir de discursos. O que sabemos sobre o mundo e sobre a realidade, são, na verdade, discursos que partem de princípios determinados ideologicamente, desse modo há um grande abismo entre o mundo e o que conhecemos dele: Em outras palavras: sim, a ficção pós-moderna manifesta certa introversão, um deslocamento autoconsciente na direção da forma do próprio ato de escrever; porém, é também muito mais do que isso. Ela não chega ao ponto de "estabelecer uma relação explícita com esse mundo real que está além dela", conforme afirmaram alguns (Kiremidjian 1969, 238). Sua relação com o "mundano" ainda se situa no nível do discurso, mas afirmar isso já é afirmar muito. Afinal, só podemos "conhecer" (em oposição a "vivenciar") o mundo por meio de nossas narrativas (passadas e presentes) a seu respeito, ou é isso que afirma o pós-modernismo. Assim como o passado, o presente é irremediavelmente sempre já textualizado para nós (Belsey 1980, 46), e a intertextualidade declarada da metaficção historiográfica funciona como um dos sinais textuais dessa compreensão pós-moderna (HUTCHEON, 1991, p. 168). Dentro dessa concepção, tanto a história como a literatura são vistas como constructos discursivos, ou seja, narrativas desenvolvidas pela capacidade intelectual dos indivíduos e definidas ideologicamente, portanto duvidosas quanto às capacidades de descrever a ―verdade‖. O que ocorre, dessa forma, é que não há mais a verdade, há verdades em confronto 22 Nesse ponto da discussão, é preciso ressaltar que Fredric Jameson considera a metaficção historiográfica como um pastiche, ou seja, uma cópia ou reprodução indevida de algo. Jameson acredita que a metaficção historiográfica dá sustentação superficial a obras ao trazer à contemporaneidade a história de modo descontextualizado. 23 Como grupos ex-cêntricos Linda Hutcheon (1991) entende os grupos que estão às margens sociais, tanto pela suas diferenças étnicas, de sexo e de classe. São grupos que foram excluídos da história oficial, e que por meio da metaficção historiográfica passam a ter voz discursiva tanto na história como na literatura. 37 permanente 24 . Logo, o conceito de metaficção historiográfica é marcado pela diluição das fronteiras entre história e literatura, uma vez que, metodologicamente, para às suas realizações, a historiografia e a literatura implicariam a subjetividade do escritor, com a seleção dos fatos e motivos a serem narrados: é essa mesma separação entre o literário e o histórico que hoje se contesta na teoria e na arte pós-modernas, e as recentes leituras críticas da história e da ficção têm se concentrado mais naquilo que as duas formas de escrita têm em comum do que em suas diferenças. Considera-se que as duas obtêm suas forças a partir da verossimilhança, mais do que a partir de qualquer verdade objetiva; as duas são identificadas como construtos lingüísticos, altamente convencionalizadas em suas formas narrativas, e nada transparentes em termos de linguagem ou de estrutura; e parecem ser igualmente intertextuais, desenvolvendo os textos do passado com sua própria textualidade complexa. Mas esses também são os ensinamentos implícitos da metaficção historiográfica. Assim como essas recentes teorias sobre a história e a ficção, esse tipo de romance nos pede que lembremos que a própria história e a própria ficção são termos históricos e suas definições e suas inter-relações são determinadas historicamente e variam ao longo do tempo (ver Seamon 1983, 212-216) (HUTCHEON, 1991, p. 141). Ao questionar a verdade histórica como ciência, Hutcheon (1991) coloca literatura e história lado a lado no comprometimento de questionar discursos tradicionais 25 . Para tanto, a metaficção historiográfica afrouxa o que é definido como verdade, amplia os raios da história e depreende novas determinações para a literatura, ao buscar na ―realidade plural‖ a voz das minorias ex-cêntricas (homossexuais, mulheres, negros, etc.) e incluí-las nas produções discursivas. Jameson (2007) e Anderson (2007), também trazem contribuições importantes para que entendamos o romance histórico contemporâneo como a reorganização formal, influenciada pelas condições da atual sociedade contemporânea globalizada, da forma clássica estabelecida por Lukács. Fredric Jameson (2007) busca a compreensão, em seu artigo O romance histórico ainda é possível?, acerca do romance histórico contemporâneo 26 , para 24 Deve-se deixar claro que a metaficção historiográfica nega a realidade como única e como a representação verossimilhante da realidade material, na verdade, a realidade não pode ser entendida como uma entidade além do discurso, ela só existe, sendo passível de transmissão, pelo discurso, logo, é a seleção intelectual por meio da escrita de facções de realidade da qual se pretende transmitir. 25 Como discurso tradicional da história, deve-se entender aqueles formulados pelo positivismo no século XIX, em que pensadores como Auguste Comte e Leopolde Von Hanke, procuraram estabelecer a história como ciência, para tanto, a entendiam como ciência comprometida com a verdade, única e imutáveis, estabelecida pelo fato histórico (grande evento) e comprovada pelos documentos oficiais, geralmente militares e do Estado. 26 Primeiramente, deve-se deixar claro, para que consigamos entender melhor sua produção intelectual, que, para Jameson a pós-modernidade é a terceira fase capitalista, ou seja, o capitalismo globalizado, que temporalmente pode ser delimitado, em seu surgimento, por volta da década de 1980. Para Jameson, há uma diferença clara entre pós-modernismo e pós-modernidade, sendo esta a estrutura da sociedade globalizada e de consumo, 38 tanto, desvela os aspectos que caracterizam um romance como histórico, visto que, em sua opinião, por sua vez embasada em Lukács, o que o define é a capacidade de articular ao plano histórico, ou público, um plano privado, ou existencial. Doravante, ao compreendermos