SUMÁRIO SILVIA IBIRACI DE SOUZA LEITE OS ITALIANOS NO PODER, CIDADÃOS CATANDUVENSES DE VIRTUDE E FORTUNA: 1918- 1964 Araraquara - SP 2007 SILVIA IBIRACI DE SOUZA LEITE OS ITALIANOS NO PODER, CIDADÃOS CATANDUVENSES DE VIRTUDE E FORTUNA: 1918- 1964 Tese apresentada ao Programa de Pós-Graduação em Sociologia da Faculdade de Filosofia Ciências e Letras de Araraquara da Universidade Paulista Julio de Mesquita Filho – UNESP – para obtenção do título de Doutoramento em Sociologia. Orientadora: Dra Maria Teresa Micelli Kerbauy Araraquara - SP 2007 SUMÁRIO SILVIA IBIRACI DE SOUZA LEITE OS ITALIANOS NO PODER, CIDADÃOS CATANDUVENSES DE VIRTUDE E FORTUNA: 1918- 1964 Tese submetida à Comissão Examinadora designada pelo colegiado do curso de Pós Graduação em Sociologia como requisito parcial para obtenção do grau de Doutor em Sociologia pela Universidade Paulista Julio de Mesquita Filho – UNESP. Aprovada em ___________________________________ Prof. Dra. Maria Teresa Micelli Kerbauy (Unesp Araraquara) ____________________________________ Prof. Dr. José Antonio Segatto (Unesp Araraquara) ____________________________________ Prof. Dr. Oswaldo Truzzi (Universidade Federal de São Carlos) ____________________________________ Prof. Dr. José Renato Araújo de Campos (Universidade de São Paulo) ____________________________________ Prof. Dr. Alysson Leandro Barbatte Mascaro (Universidade Mackenzie) Nenhum aprendizado conclui-se na solidão. Da mesma forma, nenhum trabalho. De modo especial dedico este, produto de meu aprendizado, a todos que apoiaram incondicionalmente, em todos os momentos, do início ao final, enquanto construía o conhecimento e agora, quando este se concretiza. AGRADECIMENTOS Este trabalho foi realizado com a colaboração e apoio de inúmeras pessoas. Todos, direta ou indiretamente, contribuíram enormemente, e seria injustiça com alguns não relacioná-los neste momento. Aos tabeliães e funcionários dos Cartórios de Registro de Imóveis de Araraquara, Jaboticabal, Santa Adélia, São José do Rio Preto e Catanduva, em especial ao João e Afonso. Aos amigos que acreditaram na realização deste trabalho e às amigas e eternas alunas Stefânia e Andréia pelos empréstimos de livros. A todos os professores dos cursos durante a obtenção dos créditos, agradeço o privilégio compartilhar de seu saber. Aos professores, Laiz Sampaio Pereira Tognella, eterna mestra; Dra. Maria do Rosário R. Salles, pela oportunidade e Sérgio Luiz de Paiva Bollinelli, pela colaboração inestimável nas pesquisas. Aos professores Dr. Oswaldo Truzzi e Dr. José Antonio Segatto, pelas observações e sugestões ao texto apresentado à Qualificação, foram preciosas. À Dra Maria Teresa Micelli Kerbauy, minha eterna gratidão pela acolhida em momento tão difícil, pela orientação conduzida com inteligência e segurança, pela amizade e compreensão. Às minhas filhas Flávia e Marília e aos meus pais, Aparecido e Maria, pelos momentos que lhes roubei, minhas desculpas. Ao Amaury, meu cúmplice de todas as horas e marido nas horas possíveis, sem você nada teria acontecido. E a todos, inclusive aos não relacionados, muito obrigada. EPÍFRAFE “Aquele que esteja convencido de que não se abaterá mesmo que o mundo, julgado de seu ponto de vista, se revele demasiado estúpido ou demasiado mesquinho para merecer o que ele pretende oferecer-lhe, aquele que permaneça capaz de dizer ‘a despeito de tudo!’ aquele e só aquele tem a ‘vocação da política.” Max Weber RESUMO O propósito deste trabalho é analisar a atuação do grupo de italianos e/ou seus descendentes que compuseram o que se convencionou chamar de elite política da cidade paulista de Catanduva, região de predomínio agrícola, durante o período de 1918 até 1964. A participação dos imigrantes na política brasileira é questão pouco esclarecida, principalmente no que se refere à forma de recrutamento dos seus membros, que só chegaram a integrá-la graças ao processo de mobilidade social — processo que depende fundamentalmente de fatores estruturais como a urbanização, a industrialização e a ampliação da oferta educacional. Para realizar a análise sob a ótica da questão catanduvense fez-se necessário investigar as razões que propiciaram aos italianos a ascensão ao grupo da elite governante, uma vez que o ingresso de imigrantes e/ou seus descendentes na arena política pressupunha um alto grau de inserção na sociedade. Todos os autores pesquisados para o estudo ora apresentado concordam com a existência, na sociedade capitalista, de um grupo de indivíduos que, estando acima das massas, decidem por esta e pela sua possibilidade de ascensão — isto é, apesar da desigualdade entre as classes, as sociedades democráticas ofereceriam reais condições para a ascensão social. Tal fato tornaria facultativo ao indivíduo circular entre as classes sociais e, por meio desta mobilidade, provocar a renovação da elite. No Brasil a ascensão política se mostrava uma possibilidade remota para os imigrantes, uma vez que o campo da administração e do Estado eram dominados por brasileiros. No período da República Oligárquica, do coronelismo, do clientelismo, do controle eleitoral, aos imigrantes faltavam praticamente todos os requisitos necessários a um político: instrução, domínio do idioma e direitos políticos. Mas o principal fator que os impedia de ascender politicamente era não ser proprietário de terra. Era ao redor dos interesses dos proprietários de terra que o campo político se organizava e a classe governante se unia. Para os imigrantes, portanto, tornar-se proprietário, além da vantagem da naturalização, propiciaria a possibilidade de ingressar em um campo dominado pelos nacionais, o da política. No presente trabalho, procurou-se relacionar a mobilidade social e inserção dos italianos e/ou seus descendentes entre os membros da elite governante no município de Catanduva à estrutura econômica e sistema político locais. ABSTRACT This research aims at analyzing the action of the Italian group and/or their decendants, who composed what was conventionally called the political elite in the city of Catanduva-SP, a region which was predominantly agricultural from 1918 through 1964. The participation of immigration within the Brazilian politcs is not an issue fully clarified, mainly for the form of recruting of their members, who, thanks to the process of social mobility, were able to integrate it – process which basically depends on several factors such as the urbanization, the industrialization and the increase of educational opportunities. In order to carry out the analyses from the perspective of Catanduva, it was necessary to investigate the reasons that propitiated the Italians to ascend to the governing elite group, once the access of immigrants and/or their decendants to the political arena presumed an important degree of insertion in the society. All searching authors of the research presented here, agree that within the capitalist society, there is a group of individuals, which is above the popular masses, that decide for these and for the possibility of ascension – that is, in spite of the inequalities among classes, the democrate societies offers real conditions to social ascension. This fact would then be facultative to anyone to move throughtout the social classes and, through this mobility, causes a renewal of the elite. The possibility of political ascension in Brazil was remote for the immigrants, in view of the fact that the fields such as general management and state ruling were dominate by Brazilians. During the period of Oligarchic Replubic, “coronelismo, and clientelismo” (two subsystem of political relation similar to that of the Suzerain and Vassl in the Feudal system), and of electoral maneuvering, the immigrants lacked practically all requirements necessary for a politician; schooling, mastering of the language, and political rights. The main factor that prevented them from political ascension was that they were not land owners. The organization of the rulling class was based upon the land owner’s interests and in the same way the governing classes joined themselves. For the immigrants, therefore, to become a land owner, beyond the advantage of naturalization, it would propitiate the possibility to join a field dominated by the national people: the politic field. The current research amis at relating the social mobility that allowed Italians and their descendants to insert among the members of the political elite in Catanduva, as well as to the economic structure and to the political system. Keywords: immigrants, Italians, political elite, Catanduva, social mobility, insertion. Lista de Tabelas Tabela 1 – Exportação brasileira de café em arrobas ........................................................ 38 Tabela 2 – Exportação brasileira de café e açúcar em arrobas 1862/1866......................... 54 Tabela 3 – Produção Agrícola no Oeste Pioneiro 1931/1939 (% em relação ao estado)... 69 Tabela 4 – Agricultura na DIRA de São José do Rio Preto 1936/39 a 1969/71..................70 Tabela 5 – Produção agrícola em São Paulo em hectares 1894/1915.................................70 Tabela 6 – Produção agrícola em São Paulo – 1931/1933..................................................71 Tabela 7 – Número de cafeeiros em Catanduva - 1908/1943...........................................72 Tabela 8 – Produção agrícola em Catanduva – 1940 a 1970............................................. 73 Tabela 9 – Agricultura em São Paulo 1936/38 a 1969/71................................................ ..73 Tabela 10 – Exportação brasileira de açúcar 1960 a 1973 ...............................................83 Tabela 11 – Primeiros vereadores e suplentes em Catanduva- 1918..................................93 Tabela 12 – Composição Ocupacional de Presid. e Vice do Legislativo 1918 a 1930..... 97 Tabela 13 – Distribuição de propriedades por zonas paulistas .......................................101 Tabela 14 – Distribuição de propriedades no município de Catanduva............................101 Tabela 15 – Os 10 maiores produtores de café de Catanduva.......................................... 103 Tabela 16 – Vereadores em Catanduva 1918 a 1924 ...................................................... 115 Tabela 17 – Prefeitos nomeados em Catanduva 1930 a 1936...........................................125 Tabela 18 – Vereadores em Catanduva 1936-37............................................................. 129 Tabela 19 – Prefeitos em Catanduva - 1936-194............................................................. 132 Tabela 20 – Eleições presidenciais 1945.......................................................................... 137 Tabela 21– Vereadores 1948 a 1951 em Catanduva.......................................................141 Tabela 22 – Composição da Câmara em Catanduva 1952 a 1955................................... 149 Tabela 23 – Vereadores em Catanduva 1956 a 1959........................................................ 154 Tabela 24 – Composição da Câmara Municipal de Catanduva 1960 a 1964 ...................164 Tabela 25 – Prefeitos em Catanduva 1918 a 1947........................................................... 171 Tabela 26 – Vereadores de origem italiana 1918 a 1937................................................. 172 Tabela 27 – Prefeitos em Catanduva 1948 a 1964............................................................173 Tabela 28 – Vereadores de origem italiana 1948 a 1964 .................................................175 Tabela 29 – Profissões exercidas por vereadores de origem não italiana 1918-1964 ..... 176 Tabela 30 – Profissões exercidas por vereadores de origem italiana de 1918 a 1964......177 Tabela 31 – Composição da Câmara de Catanduva 1969 a 1972......................................185 SUMÁRIO INTRODUÇÃO 11 CAPÍTULO I. EXPANSÃO CAFEEIRA E OS PROBLEMAS RELACIONADOS À MÃO- DE- OBRA 23 1 OS BRAÇOS PARA A LAVOURA 28 2 AS CONDIÇÕES DA IMIGRAÇÃO: INTERNAS E EXTERNAS 35 3 A PROPRIEDADE DA TERRA E A EXPANSÃO CAFEEIRA 37 4 OS TRABALHADORES NACIONAIS E O MITO DO PREGUIÇOSO 42 5 DA REALIDADE AO SONHO: DE COLONO A PROPRIETÁRIO DE TERRAS 44 6 A ASCENSÃO SOCIAL DE IMIGRANTES E A POSSE DA TERRA, O DEBATE HISTORIOGRÁFICO 48 CAPÍTULO II EVOLUÇÃO, DESENVOLVIMENTO ECONÔMICO E A PARTICIPAÇÃO DE ITALIANOS EM CATANDUVA-SP 52 1 O DESENVOLVIMENTO DA ATIVIDADE AGRÍCOLA EM SÃO PAULO 52 2 O NASCIMENTO DE POVOADOS, VILAS E MUNICÍPIOS NO OESTE DISTANTE 56 2.1 O SURGIMENTO DO NÚCLEO URBANO, VILA ADOLFO E CATANDUVA 58 3 ESTRANGEIROS EM VILA ADOLFO 63 4 O DESENVOLVIMENTO ECONÔMICO ESTADUAL, REFLEXOS EM CATANDUVA 67 5 OS ITALIANOS E SEU PAPEL NO DESENVOLVIMENTO CATANDUVENSE 74 CAPÍTULO III A POLÍTICA EM CATANDUVA DE 1918 A 1930 85 1 O PODER LOCAL NA I REPÚBLICA: O CORONELISMO, FENÔMENO DE UMA ÉPOCA 85 2 OS CHEFES POLÍTICOS EM CATANDUVA E SUAS RIVALIDADES: DE 1918 A 1930 90 3 OS ITALIANOS EM CATANDUVA, FAZENDEIROS E POLÍTICOS: APROPRIAÇÃO E DOMINAÇÃO 97 3.1. ITALIANOS COMO FAZENDEIROS: APROPRIAÇÃO 3.2. A ASCENSÃO E INSERÇÃO DE ITALIANOS E AS POSSÍVEIS VIAS DE DOMINAÇÃO 99 104 4 A SOCIEDADE ITALIANA DE MUTUO SOCORSO GABRIELLE D’ANUNZZIO E SUAS VINCULAÇÕES POLÍTICAS 4.1 O INTEGRALISMO E A PARTCIPAÇÃO DOS ITALIANOS E/OU SEUS DESCENDENTES EM CATANDUVA 5 A INSERÇÃO E A PARTICIPAÇÃO EFETIVA DE ITALIANOS COMO MEMBROS DA ELITE NA VIDA POLÍTICA DE CATANDUVA – 1918 A 1930 107 109 114 CAPÍTULO IV TRANSFORMAÇÕES POLÍTICAS EM CATANDUVA, GETÚLIO NO PODER 121 1 A NOVA ESTRUTURA REGIONAL DE PODER PÓS 1930 121 1.1 O GOVERNO PROVISÓRIO DE 1930 A 1936, REFLEXOS EM CATANDUVA 124 2 AS ELEIÇÕES DE 1936 128 3 O GOLPE DE 1937 E A CONSTITUIÇÃO DA ELITE POLÍTICA EM CATANDUVA 130 CAPÍTULO V O CENÁRIO POLÍTICO LOCAL NO PERÍODO DA REDEMOCRATIZAÇÃO 135 1 NOVOS MOMENTOS E DIFERENTES CONTORNOS DA ELITE POLÍTICA DE 1945 A 1954 136 2 AS NOVAS CORRENTES PARTIDÁRIAS E A ELITE POLÍTICA CATANDUVENSE 143 3 O CLIMA POLÍTICO E AS ELEIÇÕES DE 1959 155 4 O FINAL DA II REPÚBLICA, AS ÚLTIMAS ELEIÇÕES DEMOCRÁTICAS E O GOLPE DE 1964 157 4.1 CATANDUVA 1963 – AS ELEIÇÕES LOCAIS 4.2 AS REPERCUSSÕES DO GOLPE DE 1964 NA CIDADE 5 VEREADORES CATANDUVENSES DE 1959 A 1964 161 162 164 CAPÍTULO VI IMIGRANTES NA VIDA POLÍTICA LOCAL 1 ESPANHÓIS E LIBANESES, PARTICIPAÇÃO POLÍTICA DE 1918 A 1964 2 ITALIANOS COMO MEMBROS DA ELITE POLÍTICA EM CATANDUVA DE 1918 A 1964 2.1 O PAPEL DOS ITALIANOS NO TEMPO DOS CORONÉIS E DA DITADURA GETULISTA 3 OS ITALIANOS REPRESENTANTES POLÍTICOS DE 1948 A 1964 CONSIDERAÇÕES FINAIS REFERÊNCIAS APÊNDICES 166 167 170 170 172 181 188 200 INTRODUÇÃO O presente estudo tem como objetivo analisar os imigrantes italianos e/ou seus descendentes, moradores em Catanduva, município do interior do Estado de São Paulo, e, a partir deste momento, denominados apenas italianos. A pesquisa terá como foco um grupo de italianos que teve grande atuação política, ocupando cargos de vereadores, prefeitos, deputados estaduais, federais, senadores, presidentes de partidos, compondo o que se convencionou chamar de elite política. A análise compreende o período que se inicia em 1918, data da primeira eleição municipal, e se estende até 1964, ano da posse dos eleitos no último escrutínio democrático anterior ao golpe militar de 31 de março do referido ano. Justifica-se a escolha do município de Catanduva (vide mapa em Apêndice), em virtude das peculiaridades de sua posição: uma região de fronteira espacial, quando avançavam os cafezais em direção ao norte do Estado de São Paulo, o que transformou Catanduva em destacada região cafeicultora. Tal status foi mantido até mesmo quando municípios mais antigos, como Rio Claro, São Carlos e Araraquara perderam esta condição. Pode-se destacar especificamente o caso de São Carlos que se tornou, após a crise do café, um município com economia mais voltada para a produção industrial, enquanto Catanduva manteve-se como região de predomínio agrícola, basicamente canavieiro e importante pólo sucro-alcooleiro. O início do século XX, período caracterizado por intensas transformações, notadamente de ordem econômica, como o avanço da cafeicultura em direção ao Oeste paulista, marca a chegada e inserção dos imigrantes italianos. Assim, entre os estrangeiros que a Catanduva aportou, tais como espanhóis, libaneses, japoneses, portugueses, destacam-se os italianos e/ou seus descendentes. Descontentes com as condições de vida no país de origem buscavam novos horizontes, especialmente em relação ao trabalho. Com o passar do tempo, esses imigrantes reuniram algum pecúlio e compraram terras na região, de preferência as de baixo preço. Eram terras exauridas pela antiga produção de café, localizadas próximas das regiões mais urbanizadas e desenvolvidas do estado; ou então terras férteis da região do Oeste paulista, mas distantes da chamada “civilização” e que tinham como elo de ligação apenas a ferrovia. O vilarejo de São Domingos do Cerradinho, mais tarde chamado Vila Adolfo, hoje Catanduva, recebeu os primeiros imigrantes na mesma época em que a organização 12 política do núcleo urbano dava os primeiros passos. Primeiramente agricultores e posteriormente grandes proprietários de terras (como os Lunardelli, os Zancaner, os Trazzi, os Stocco e os Mastrocolla), os imigrantes italianos também foram pioneiros na formação do perfil urbano local. Atuando no setor de serviços, produção, comércio e agricultura, participaram da fundação de clubes de serviços, associações esportivas e filantrópicas e da política, que era comandada pela elite. A participação dos italianos e seus descendentes na política brasileira é uma questão pouco esclarecida na literatura sobre imigração no Brasil. Para Kerbauy (1979) o estudo das especificidades locais e regionais é de importância fundamental para uma melhor compreensão do sistema político nacional. Fausto (1995, p.24) destaca a insuficiência de trabalhos sobre o tema. A leitura da bibliografia pertinente e estudos como os de Kerbauy (1979), Bilac (1995) e Costa (2000), após pesquisas realizadas em São Carlos e Rio Claro, dão como certa a inserção de imigrantes, principalmente italianos, na política nacional a partir de 1930, com atuação mais intensa após 1946. Teria ocorrido o mesmo em Catanduva? No município, haveria apenas brasileiros atuando politicamente ou os italianos já o faziam antes desta data? A escolha do tema e o foco da análise justificam-se dada a importante atuação dos imigrantes italianos no campo político e no âmbito social, sobretudo em razão da forma de recrutamento dos membros da elite política como conseqüência ou resultado do processo de mobilidade social. Um estudo de Pastore (1979) aponta que, no Brasil, a organização da sociedade urbano-industrial brasileira ocorrida no século XX esteve acompanhada de intenso processo de mobilidade social ascendente — seja em relação às gerações passadas ou às primeiras posições ocupadas pelos indivíduos ao se inserir no mercado de trabalho. Mas Pastore (1979) evidencia a natureza restrita da mobilidade ocorrida no país, pois na sociedade brasileira muitos ascenderam pouco e poucos ascenderam muito na pirâmide social. O autor também deixa claro que o processo de mobilidade social dependeu muito de fatores estruturais como a urbanização, a industrialização e a ampliação da oferta educacional. Scalon (1999, p. 14) observa que a preocupação com a aquisição de posições dentro de sociedades estratificadas já estava presente em Platão. Para a autora, embora Marx não discuta de forma explícita o tema da mobilidade, também reconhece a movimentação ascendente às classes privilegiadas como mecanismo de manutenção do 13 capitalismo, espécie de “válvula de escape, cuja função no sistema capitalista seria a de controlar tensões e pressões por mudanças sociais” (1999, p. 13-14). Sorokin apud Scalon (1999, p. 14) identifica canais de mobilidade ascendente ou descendente e os caracteriza como “canais de circulação vertical”, os quais poderiam ser as forças armadas, a Igreja, a escola, as organizações profissionais, o casamento, as organizações políticas. Mills (1975, p. 72) observa que, nos Estados Unidos e na América Latina, o poder político organizou-se em razão da prevalência e hegemonia do fator econômico sobre a religião, a tradição ou outros princípios. As pessoas, as famílias e os grupos se classificam socialmente em função desse viés, justificando as afirmações do autor de que “em toda cidade média ou pequena da América um grupo superior de famílias paira acima [...] das demais” constituindo a elite. Nessas localidades, para decidir questões ou coordenar o apoio dos grupos mais importantes, e fazer a ligação entre estes e o governo do Estado, tornava-se fundamental escolher um representante que fosse membro desse grupo. Para Mills, os integrantes do grupo de elite, em sua maioria, possuem consciência de classe, estão em pequeno número e se reconhecem por ser ou ter sido abastados que, ao se associarem, fecham um círculo e se tornam conhecidos como as principais famílias de suas cidades. Os fatores econômicos também prevalecem para Bottomore (1978, p. 60). De acordo com o autor, nas sociedades industriais, as elites políticas são recrutadas em grande escala na classe alta, unida por objetivos econômicos e culturais comuns. Em Weber (2002, p. 65-66), cujas afirmações são ponto de partida para qualquer discussão sobre a teoria das elites, principalmente no que se refere à mobilidade social, um dos critérios utilizados para selecionar os integrantes da camada dirigente é o plutocrático, pois seus membros nem sempre solicitam pagamento por serviços prestados ao Estado, diferentemente do indivíduo sem fortuna. A atividade política desenvolvida por cidadãos economicamente independentes ou pelos políticos não- profissionais diferenciaria os praticantes, honrando-os. Entre tais homens estaria o fazendeiro, beneficiado pelo caráter sazonal da agricultura. Em Catanduva, quantos dos italianos ocupantes de cargos políticos seriam fazendeiros envolvidos em outras atividades? Seria o caráter plutocrático que distinguiria estes italianos como membros da elite política? Parte do arcabouço da teoria das elites é formulada por Pareto (1976). Com o objetivo de facilitar pesquisas empíricas, ao elaborá-la destaca a existência de dois 14 extratos na sociedade: um inferior (não-elite, integrado por elementos da massa, sem atributos especiais para destacá-los) e um superior (elite, grupo minoritário, detentor de dons ou qualidades superiores). O grupo da elite (também entendido pelo autor como aristocrático, formado pelos mais ricos) foi classificado em dois subgrupos cujo critério de divisão é o exercício do governo e, embasado neste, o primeiro grupo que governa no momento constitui a elite governante e o segundo grupo, a elite não-governante, que governará posteriormente. Embora essa teoria reconheça a existência de desigualdades sociais, principalmente devido ao conceito de minoria governante, ela torna-se válida com base em outra proposição de Pareto, segundo a qual, nas democracias modernas, as posições de poder encontram-se abertas e seus ocupantes podem ser recrutados em diferentes extratos sociais com fundamento no mérito pessoal, individual (1976, p. 73- 76). Outro autor a ilustrar a teoria das elites é Mosca (1968). Para ele, em todas as sociedades, modernas ou não, existem duas classes: a dirigente e a dirigida. A primeira, minoritária, ocupa cargos políticos, possui poder e privilégios graças a qualidades pessoais e aptidão para dirigir e organizar-se. Nas proposições de Mosca, a elite, além de ter poder e força, se impõe, também, por representar os interesses do grupo mais importante da sociedade, o grupo denominado classe política. A existência de um grupo intermediário entre a classe política e a massa, integrado por funcionários públicos, intelectuais e profissionais liberais, propicia recrutamento dos novos membros da classe política (1968, p. 315-318). Para Mills (1975), Weber (2002), Pareto (1976) e Mosca (1968) integrar o grupo da elite dirigente e governante é privilégio de uma minoria detentora de qualidades superiores, pautada na riqueza, o que destaca a existência de uma desigualdade social. Essas proposições, como apresentadas até então, são elaboradas em oposição à teoria marxista, todavia, discuti-las não é a intenção deste trabalho. Todos os autores concordam com a existência, na sociedade capitalista, de um grupo de indivíduos que, estando acima das massas decidem por esta. Mesmo assim, nessas propostas evidencia- se a possibilidade de ascensão, por se tratarem de sociedades democráticas, as quais, apesar da desigualdade entre as classes, ofereceriam possibilidades de mudança social, ou seja, aos indivíduos seria facultativo circular entre as classes sociais e, graças a essa mobilidade, ocorreria a renovação da elite. Bottomore (1965) refina as teorias acima trabalhando com os conceitos de classe social e de elite como complementares. Em seus pressupostos, contemporaneamente, o 15 termo elite aplica-se a grupos funcionais, sobretudo ocupacionais, que por razões indefinidas, possuem status elevado no interior da sociedade. Por outro lado, o termo classe política refere-se a grupos detentores de poder ou de influência política, e entre estes disputa-se a liderança política; por sua vez, esta renova-se a cada embate e, aos vencedores, aqueles que realmente conseguem exercê-la, Bottomore adota o termo elite política, na qual estariam os “membros do governo e da alta administração [...] e, em alguns casos famílias politicamente influentes [...] dirigentes de poderosos empreendimentos econômicos”. Aos grupos vencidos, porém, envolvidos nas novas disputas, denomina-os contra-elites (BOTTOMORE, 1965, p. 11-16). Bottomore (1965, p. 34), concordando com Pareto (1966), Mosca (1966) e Mills (1975), afirma que “ [...] se olharmos para as sociedades modernas sem ilusões, veremos que, por mais democráticas que sejam suas constituições, são de fato dominadas por uma elite, [...] uma elite governante [...] ”. Entre as preocupações de Bottomore, está a maneira como circulam as elites. Pareto (1966) considera a renovação das elites baseada em movimentos cíclicos, permitindo a substituição dos membros ou do grupo todo (uma nova elite), oriundos das classes inferiores. Mosca (1966), por seu turno, aponta a formação de novos grupos sociais como conseqüência de mudanças econômicas, tornando-os mais influentes à medida que as atividades praticadas pelos seus membros vão-se intensificando, até tornarem-se vitais. Para Bottomore (1965, p. 42) as mudanças econômicas provocam alteração no nível de poder dos diferentes grupos, permitindo a alguns ascenderem a grupos da elite ao assumir o controle e concretizar as mudanças responsáveis pela alteração do status quo. Para o autor, como o poder de uma classe dominante advém da posse dos meios de produção e, em algumas classes, estes são transmitidos de geração a geração, o arranjo, de certa maneira, permite a perpetuação de certas classes no poder. Entretanto, a entrada de novas famílias, de novos membros, ocorre se uma mudança rápida e significativa alterar o sistema de produção ou a posse dos meios produtivos. Portanto, identificar a maneira como se dá a mobilidade ou a ascensão de indivíduos ao grupo que governa a elite política, é fundamental. É nessa questão que se detém a presente pesquisa. O objetivo é investigar as razões da ascensão do grupo de italianos catanduvenses à categoria de elite governante, uma vez que o ingresso de imigrantes e seus descendentes na arena política representava um alto grau de inserção na sociedade. A hipótese é de que esta ocorreu através da posse da terra, uma via de 16 acesso que permitiu à maioria dos italianos atuarem como membros da elite política catanduvense no período que compreende 1918 a 1964. A bibliografia existente sobre a imigração, principalmente italiana, não questiona o desejo de ascensão social da população imigrante. E deixa claro que a ascensão política era possibilidade ainda mais remota, uma vez que os campos específicos da administração e do Estado eram dominados por brasileiros. Fausto (1995, p. 9) ressalta esse domínio, destacando as ações da elite nacional, mesmo simbólicas, no sentido de impedir a entrada dos imigrantes na política. No período da República Oligárquica, do coronelismo, do clientelismo, do controle eleitoral, aos imigrantes faltavam praticamente todos os requisitos necessários a um político: instrução, domínio do idioma e direitos políticos. Faltava principalmente um bem que lhes abrisse as portas da arena política: a posse da terra. Era em seu entorno que o campo político organizava- se, a classe governante unia-se e seus proprietários reconheciam-se pelo interesse comum. Como ressalta Barbosa Lima Sobrinho A base do poder vem, senão da propriedade, pelo menos da riqueza. Se o potentado local não possui recursos suficientes, não tem como acudir às necessidades de seus amigos e muito menos às despesas eleitorais [...] . Eleições sempre se fizeram com dinheiro (LEAL, 1975, p. IV-XV). Fausto (1995) aponta a existência de poucos trabalhos sobre a ascensão política dos imigrantes, entre os quais os de Truzzi a respeito da cidade de São Carlos, e os de Abreu sobre Presidente Prudente. Vale ainda destacar as pesquisas de Bilac (1995) em Rio Claro.1 A respeito da ascensão social dos imigrantes, alguns autores como Holloway (1984) e Font (1982; 1983; 1989) defendem a tese de que a dos italianos ocorreu por meio da propriedade da terra, enquanto Hall (1969), Dean (1977), Love (1982), Monbeig (1984), Stolcke (1986), Alvim (1986), Trento ([s.d]) e Martins (1988), entre outros, não reconhecem ter sido por tal meio. As pesquisas realizadas por esses autores apontam ter havido ascensão social via posse de terra por parte de alguns, de outros pela via do comércio e outros, ainda, por meio do casamento. Entretanto, os autores concordam que o número de proprietários era pequeno. Em suas pesquisas, Alvim (1986, p. 152-155) aponta que em 1905 existiam 56.931 propriedades rurais em São Paulo, das quais 9,1% (5.197) pertenciam a italianos. 1 Alguns autores que trabalham com mobilidade social no Brasil como PASTORE (1979 e 1986), VALE e SILVA (1981), HASENBELG e VALE SILVA (1988), CAILAUX (1994), ANDRADE (1995 e 2000), SCALON (1999), JANNUZZI (2000) no entanto, não estudam imigrantes 17 Em 1920, esse número cresceu: do total de 80.921 propriedades, 14,6%, ou 11.825, eram de italianos. A autora lembra que, em 1905, dos italianos residentes no Estado, cerca de 32 mil, ou 7% do total, eram pequenos proprietários; em 1920, o número saltou para 71 mil italianos, ou 17,8% do total de 398.797 italianos no Estado. Ademais, entre os dois censos agrícolas oficiais pesquisados o número total de propriedades no Estado cresceu 42% e as de italianos, 127%. Segundo Alvim, esses dados sustentariam qualquer tese de ascensão social; entretanto, apesar de relevantes, os números apresentados foram confrontados com aqueles divulgados pelo Consulado Italiano na época. Para esse órgão, a população italiana correspondia a 9% do total do Estado de São Paulo e possuía 15% das propriedades existentes. Porém, o percentual de 15% equivalia a apenas 6,5% da área total ocupada e a média das propriedades era de 76 hectares ou 31,67 alqueires. Quando comparados o valor e a superfície das propriedades em mãos de diferentes nacionalidades, os italianos ocupavam apenas o 19º lugar em valor e o 21º lugar em superfície, correspondendo a apenas 6,5% do total da área do Estado. Holloway (1984, p. 37-49 e p. 213-216), por sua vez, defende a tese de que a ascensão italiana deu-se em razão das características daqueles que imigraram para São Paulo. Em primeiro lugar, sua origem pobre: a maioria dos imigrados eram braccianti ou proletários rurais; em segundo lugar, sua reputação de trabalhadores árduos e de baixos níveis de consumo, pois o objetivo deles era poupar; em terceiro lugar, destaca o grande número de familiares envolvidos no trabalho, o que representava mais possibilidades de ganho e de aumento da poupança; em quarto lugar, a conquista dos colonos nos contratos de trabalho, o que lhes garantiu a cultura intercalar de subsistência e as pastagens para criação de animais, aumentando as possibilidades de rendimentos. Para Holloway (1984), alguns obtiveram maior sucesso e tornaram-se proprietários de grandes fazendas; outros um sucesso menor; outros ainda foram “casos excepcionais” como Geremia Lunardelli e Francisco Schmidt, os “reis do café”, exemplos usados por praticamente todos os estudiosos do tema.2 Font (1985, p. 224-226) argumenta que, enquanto para alguns autores, como Martins (1977), as 8.392 propriedades pertencentes a estrangeiros em 1905 não significavam praticamente nada, o fato de aproximadamente 40 mil imigrantes 2 A palavra fazenda, tal como é como usada atualmente, refere-se à certa quantidade de terras; propriedade fundiária, porém, significa de fato, conjunto de bens, a riqueza acumulada, bens produzidos pelo trabalho. Mais informações em MARTINS, 1998, p. 23-24. 18 tornarem-se independentes é significativo. Para os imigrantes, possuir terras representava ser membro do grupo dos fazendeiros, significava ter liberdade, ser respeitado e tornar-se cidadão. A legislação da época confirma a condição de cidadania. A Constituição de 1891 outorgava cidadania brasileira aos estrangeiros possuidores de bens imóveis no país (artigo 69, parágrafo 5º); aos que fossem casados com brasileiros ou tivessem filhos brasileiros, contanto que por aqui residissem; e aos que comprovassem residência nos municípios há mais de um ano. Cumpridas as condições, o imigrante recebia o título de eleitor, comprovante da naturalização (FAUSTO, 1995, p. 13). Assim, além de se tornarem eleitores, poderiam candidatar-se a cargos políticos tanto do Legislativo quanto do Executivo. Para os imigrantes, tornar-se proprietário trazia benefícios. Um deles era poder abrir as portas para um mundo dominado pelos nacionais, o da política. Neste trabalho, procura-se relacionar a mobilidade social, que permitiu a inserção dos italianos e seus descendentes entre os membros da elite política no município de Catanduva, com a estrutura econômica e com o sistema político. A análise neste estudo, no entanto, não se faz apenas no sentido mecanicista. Assim sendo, as observações de Kerbauy vêm ao encontro do nosso objetivo, pois, para a autora o consenso dos estudos realizados caminha para a afirmação de que a mudança político-institucional atua independente das variações na economia. Pode ser que isso ocorra, mas no nível em que os estudos sobre poder político local se encontram, esta generalização é extremamente precária e subjetiva (1979, p. 13). Para Soares (1973, p. 135), no Brasil, “mudanças na infra-estrutrura socioeconômica são fundamentais para compreender mudanças políticas”. No entanto, o autor concorda com a assertiva de que outros processos também são importantes e atuam modificando as estruturas, tais como a fragmentação da propriedade agrícola, a urbanização e a industrialização, a mobilização e a conscientização política, entre outros. Soares (1973, p. 132-134) aponta a perda do poder e decadência da oligarquia rural em Araraquara em detrimento da ascensão política das classes médias urbanas, considerando estas uma conseqüência de transformações das “estruturas socioeconômicas”. Em suas pesquisas sobre Araraquara, o autor demonstra como tais mudanças afetaram a composição do Legislativo local. Em 1947, foram eleitos 19 vereadores no município cinco fazendeiros que integravam o maior grupo ocupacional daquela legislatura; em 1951 e 1955, foram eleitos apenas dois; em 1959, somente um e, em 1963, nenhum fazendeiro foi eleito para a Câmara de Araraquara. Soares relaciona a ausência, ou a redução no número de fazendeiros, com a perda de importância da cafeicultura e com o destaque do setor industrial e comercial, dando início à “república poliárquica”. No entanto, afirma que, apesar da perda da importância da cafeicultura na economia da cidade, a política local ainda apresentava “uma base econômica”. Para análise dos dados e comprovação da hipótese de que em Catanduva, no período de 1918 a 1964, a via de acesso para a maioria dos italianos que integrou a elite política foi a posse da terra, dividiu-se a pesquisa de campo em etapas utilizando técnicas documentais e bibliográficas pertinentes. A primeira etapa foi dedicada ao levantamento da bibliografia. Em seguida, realizou-se uma revisão referente ao processo de desenvolvimento econômico e político ocorrido no período escolhido, na região específica sobre o qual versa este trabalho, visando à compreensão do tema sob novo enfoque. Para o cumprimento e a eficiência dessa etapa, foram utilizadas as seguintes fontes secundárias: livros, teses, dissertações, monografias, revistas, jornais, boletins, estatísticas, mapas e outras publicações. Na segunda etapa realizou-se a pesquisa documental, quando foi utilizada para a coleta de dados as seguintes fontes primárias: • arquivos do Museu Padre Albino, da Fundação Padre Albino de Catanduva • arquivos da Sociedade Italiana de Mutuo Socorso Gabrielle D’Annunzzio, atualmente Sociedade Ítalo- brasileira Gabrielle D’Annunzzio • arquivos da imprensa local e estadual • Secretaria Estadual de Agricultura • arquivos do 1º e 2º Cartório do Registro Civil • arquivos do 1º e 2º Cartório do Registro de Imóveis de Catanduva, Araraquara, Jaboticabal, Santa Adélia e São José do Rio Preto • arquivos particulares de moradores Nestas fontes, os dados levantados foram: • documentos diversos • jornais e revistas publicados na imprensa oficial local e estadual • fotografias • boletins estatísticos 20 • legislação pertinente • escritura de imóveis • atestados de óbitos • atas e relatórios Nessas fontes, os dados levantados foram: documentos diversos; jornais e revistas publicados na imprensa oficial local e estadual; fotografias; boletins estatísticos; legislação pertinente; escritura de imóveis; atestados de óbito; atas e relatórios. Entre os arquivos de moradores locais, localizou-se um em especial. Trata-se de uma série de fichas manuscritas originais, contendo dados pessoais e profissionais de vários prefeitos e vereadores da cidade pesquisados pela profa. Ana Maria Homem Marino, durante o ano de 1984, a pedido do prof. José Albertino Rodrigues, da Universidade Federal de São Carlos. No início da pesquisa empírica, durante o levantamento preliminar de dados eleitorais, verificou-se a impossibilidade de obter dados relativos ao período delimitado neste trabalho, 1918–1964, na Câmara Municipal de Vereadores, Prefeitura Municipal e Cartório Eleitoral de Catanduva, em razão da ocorrência de enchentes que destruíram os arquivos devido à precariedade de conservação destes. Em face desse obstáculo, considerou-se válido recorrer à imprensa local como fonte primária de dados relativos ao número de eleitores, vereadores e prefeitos eleitos. Para efeito de análise, seria necessário obter informação sobre os partidos políticos organizados localmente. No entanto, não foi encontrada nenhuma documentação sobre estes, recorrendo-se novamente à imprensa local como fonte sobre o assunto; considerou-se o volume de informações encontradas satisfatório. O grupo sobre o qual versa esta pesquisa, o dos italianos ocupantes de cargos políticos, moradores da cidade de Catanduva, eleitos ou nomeados entre 1918 e 1964, compôs-se de 61 italianos; destes, sete foram eleitos para prefeitos; dois, para vice; e 52 para vereadores. Entre os prefeitos, foram considerados os que exerceram o cargo e no caso de reeleição, os políticos foram contados separadamente para cada exercício. Nos períodos de nomeação de prefeitos, foram relevados apenas aqueles cujos mandatos atingiram, no mínimo, seis meses. No grupo de vereadores, consideraram-se os eleitos a partir de um mandato e para cada legislatura foram contados separadamente. 21 Como o objeto de pesquisa é composto pelos italianos que ocuparam cargos políticos, entendeu-se como necessária a realização de entrevistas com familiares ou outros indivíduos, personagens da cidade, selecionados pelo seu conhecimento sobre a vida política municipal. Nas entrevistas, buscou-se algumas informações (origem da família, época de chegada e primeiro destino, atividade econômica praticada pela família, grau de instrução do político, profissão) e características pessoais (disponibilidade, prazer e participação em festejos, associações, conversas, benemerência, relacionamento com familiares). O foco de análise, como foi dito, são imigrantes italianos, todavia, consideramos necessário destacar, mesmo com menor intensidade e caráter mais informal, os imigrantes de outras nacionalidades e sua participação na política local. Para obter informações sobre outras colônias, além dos arquivos apontados acima, também realizou-se entrevistas com membros da comunidade de espanhóis e libaneses. Após a sistematização total dos dados pesquisados, formulou-se o trabalho em seis capítulos. O primeiro apresenta uma revisão bibliográfica sobre o tema da imigração, instituição do trabalho livre no país e o debate estabelecido a respeito da ascensão social e inserção de imigrantes italianos e/ou seus descendentes. Nesse capítulo, o objetivo geral foi destacar o contexto no qual se inseriu o imigrante italiano como opção de mão-de-obra no Brasil. No Capítulo II, a análise centra-se no surgimento e desenvolvimento do município de Catanduva, dentro do contexto da expansão agrícola paulista e da chegada dos primeiros imigrantes na região, observando-se as transformações econômicas no Estado e no município no período delimitado. O terceiro capítulo busca averiguar a emergência das novas bases econômicas e políticas instituídas a partir da revolução de 1930, como transformadoras da política oligárquica, do coronelismo e do clientelismo. Entre as reflexões realizadas no capítulo, busca-se verificar a concretização de novas bases de poder, mudança social e os reflexos deste contexto em Catanduva. No Capítulo IV, a análise tem como foco principal as mudanças ocorridas nas estruturas econômica e política local após o fim do Estado Novo (1937-1945), as eleições em Catanduva e a atuação política dos descendentes de italianos até 1945. O objetivo específico nesse capítulo é verificar a sua participação na elite política catanduvense e as atividades ocupacionais às quais se dedicavam. 22 No quinto capítulo, o objetivo é demonstrar as mudanças políticas em Catanduva inerentes às novas condições democráticas pós-Estado Novo, prosseguindo até as últimas eleições (1948 a 1964) e a posse dos eleitos anteriores ao golpe de 1964. No VI e último capítulo, observa-se a participação de imigrantes espanhóis e libaneses na arena política local e analisa-se a efetiva participação dos italianos como membros da elite política catanduvense durante todo o período estudado (1918-1964). Finalmente, são apresentadas as conclusões e considerações permitidas após a análise dos dados pesquisados. CAPÍTULO I EXPANSÃO CAFEEIRA E PROBLEMAS RELACIONADOS À MÃO-DE-OBRA Neste capítulo, dividido em sete seções, o objetivo é verificar algumas transformações sociais e econômicas ocorridas durante grande parte do século XIX em conseqüência da adoção de novas relações de trabalho estabelecidas devido à iminente abolição do trabalho escravo. O novo cenário levou a sociedade e o Estado a recorrerem à importação de mão-de-obra estrangeira, principalmente italiana, para que a cafeicultura — que nesta época se firmava como centro dinâmico da economia brasileira — não fosse prejudicada. Na primeira seção, o enfoque envolve as experiências iniciais com trabalhadores livres e os problemas delas decorrentes; na segunda seção, o olhar recai sobre as condições verificadas na Europa, especificamente na Itália, que serviram de estímulo à imigração de trabalhadores daquele país para o Brasil; na terceira seção, a análise destaca a legislação brasileira sobre a propriedade da terra e a expansão cafeeira; na quarta seção, destaca-se o papel do trabalhador nacional; na quinta seção, é analisada a chegada dos imigrantes italianos como solução para os problemas nacionais; na sexta seção, o enfoque recai sobre a possibilidade de aquisição de propriedades de terra pelos imigrantes; na sétima e última seção, destaca-se o debate historiográfico sobre a ascensão do imigrante italiano por meio da posse da terra. No Brasil, o século XIX representou uma época de transformações. Logo no início da segunda década, em 1822, ocorreu a Independência do país e, próximo ao final, em 1889, a proclamação da República. Entre essas datas, além da mudança do regime político, duas outras transformações foram igualmente importantes: a do eixo econômico –— antes centrado no Nordeste e transferido para o Sul em razão da perda de importância da produção canavieira para a cafeeira — e a substituição do trabalho escravo pelo trabalho livre e assalariado. O início do século XIX, de acordo com observações de Pinto (1995), Furtado (1997) e Prado (1983), entre outros, foi marcado pela decadência da agricultura tradicional face à nova conjuntura econômica internacional. Pinto destacou que, na primeira metade do século XIX, produtos tradicionais como o açúcar, o algodão e o couro sofreram a concorrência de outros países, apresentando conseqüente queda de preços: o açúcar extraído da cana passou a enfrentar a competição dos novos produtores 24 cubanos e dos europeus, com o açúcar extraído da beterraba; o algodão brasileiro competia com o dos Estados Unidos, que era produzido em larga escala e contava com mão-de-obra abundante; e o couro enfrentava a concorrência dos países da bacia do Prata (1995, p. 132-133). Nas primeiras décadas do século XIX, entre 1830 e 1840, durante o período regencial, a essas dificuldades somaram-se as revoltas e a guerra civil.3 Acrescente-se ainda a pressão da Inglaterra que pretendia impor ao Brasil o fim do tráfico de escravos e que acabou dando origem a um tratado assinado em 13 de março de 1827, estabelecendo um prazo de três anos, 1830, para o fim do tráfico (BEIGUELMAN, 1968, p. 18-21). O acordo não foi cumprido. Em conseqüência, a Inglaterra, principalmente após abolir o tráfico em suas colônias, aumentou a pressão com o intuito de levar os demais países do mundo a adotarem a mesma medida. Para atingir tal objetivo, utilizou todos os recursos de que dispunha, como a influência política e militar. Em sua obra, Prado Jr. comenta, com certa ironia, essa postura da Inglaterra, que passou de grande traficante de escravos a “paladino internacional da luta contra tal atividade” (1983, p. 145). Para Furtado, a Inglaterra, uma potência no comércio do açúcar, ao imbuir-se de valores morais, na verdade disfarçava seus verdadeiros interesses econômicos, pressionada por um de seus maiores parceiros, os antilhanos, grandes produtores e fornecedores para o mercado internacional. O cenário de então favorecia apenas os brasileiros que, ao utilizar mão-de-obra escrava, diminuíam seus custos de produção e provocavam baixas nos preços do açúcar, o que significava redução dos lucros tanto de ingleses como antilhanos (1997, p. 95). A pressão inglesa resultou, anos mais tarde, em 1850, no fim do tráfico de escravos no Brasil. Foi em meio às pressões enfrentadas pelo Brasil, durante as primeiras décadas do século XIX, que um novo produto despontou como importante fonte de riqueza: o café. Cultivado desde o início do século XVIII, em 1831, o café transformou-se no principal produto de exportação do país, responsável por 43,8% do total da pauta, seguido pelo açúcar com 24%, o algodão com 10,8% e couros e peles com 7,9% (PINTO, 1995, p. 135). O Vale do Paraíba delineou-se como o “primeiro grande cenário” da cafeicultura brasileira, uma vez que em suas terras a cultura do produto avançou, fixando um novo 3 Discussões mais abrangentes em PRADO JR. [s. d.]. 25 eixo econômico próximo à capital federal (PRADO, 1983, p. 160-161). No Vale, a concentração de capitais e de interesses na monocultura cafeeira, aliado ao sucesso alcançado pelo café brasileiro no mercado mundial, possibilitaram a prosperidade local forjando uma nova e influente elite social e política no Brasil. Diferentemente da elite açucareira, a vanguarda da cafeicultura focou seus interesses na produção, aliada ao comércio — uma nova postura de produtores no cenário econômico do país. Por outro lado, paralelamente à prosperidade e à riqueza, a nova elite enfrentou um conjunto de desafios tais como “ [...] a aquisição de terras, recrutamento da mão-de-obra, organização e direção da produção, transporte interno, comercialização nos portos, contatos oficiais, interferência na política financeira e econômica”. A percepção da complexidade da situação levou a elite cafeeira a considerar a “enorme importância que podia ter o governo como instrumento de ação econômica” (FURTADO, 1997, p. 115-116). O recrutamento da mão-de-obra representava um dos maiores desafios para os fazendeiros de café, uma vez que era iminente a extinção do trabalho escravo. Enquanto os cafezais multiplicavam-se, cresciam também as discussões sobre o fim do tráfico e a abolição da escravidão. O governo brasileiro, continuamente pressionado pelos ingleses, como já citado, ficou sem saída e acabou por abolir o tráfico em 1850 e a escravidão em 1888. Tais medidas governamentais, como serão vistas, redundaram em uma série de mudanças, principalmente, nas relações de trabalho adotadas no país (MARTINS, 1998, p. 119-120). O longo processo que culminou com o fim do tráfico de escravos e a abolição, como observou-se anteriormente, foi conseqüência de pressões externas e internas. Externamente, várias foram as propostas e os acordos neste sentido estabelecidos entre países escravistas. Em 30/05/1814, o fim do tráfico havia sido decretado no Tratado de Paris, nos Congressos de Viena (1815), Aix-La-Chapelle (1818) e de Verona (1822). Acordos comerciais com a Espanha em 1815 e Portugal em 1810 e 1815 também previam a extinção do tráfico. No Brasil, porém, o comércio humano continuava (CENNI, 1959, p. 158) e só anos mais tarde teve seu fim decretado. A classe política brasileira, porém, não aceitou passivamente essa decisão do governo e a ela seguiu-se uma série de debates e discussões, tornando-se necessária a adoção de medidas imediatas para promover a substituição do escravo pelo trabalhador livre. O tema foi amplamente tratado por diversos autores como Azevedo (1987); Beiguelman (1968); Franco (1997); Furtado (1989) e Viotti da Costa (1977), entre outros. 26 A extinção do tráfico impedia a aquisição de novos escravos e apresentava um novo desafio ao produtor: o de considerar a substituição do escravo pelo trabalhador livre. E coube aos fazendeiros a iniciativa de buscá-lo, uma vez que o governo havia fracassado em tentativas anteriores de trazer do exterior mão-de-obra alternativa, promovendo o assentamento de colônias de imigrantes (as primeiras, de alemães, em São Paulo, datam de 1827). Essa nova realidade gerou embates políticos entre os fazendeiros escravocratas — o partido dos Conservadores, que não apoiava a idéia da abolição, e o partido dos Liberais, desejoso da instauração de uma nova ordem de trabalho. Linhares e Silva (1981, p. 31-35) destacaram os conflitos verificados entre representantes desses dois partidos durante o período de Regência, até meados do II Império. O cerne da questão era a crise do escravismo aliada à crise econômica, em razão da decadência das exportações do açúcar causada pela queda do preço. Despontava a cafeicultura, o que se evidencia claramente no final da década de 1840, quando o valor das exportações de café atingiu 22:488$000 contos de réis contra os 15:136$000 contos de réis do açúcar. A importância do café, como produto de exportação, pode ser observada pelo salto nas transações verificadas entre 1830 e 1850, quando o volume saltou de 9,7 milhões de sacas de 60 quilos para 17,1 milhões, chegando a 26,2 milhões em 1850. Os diferentes interesses que marcaram os embates políticos de então tiveram como resultado a adoção de uma política imigrantista por parte do governo. No Congresso, estadistas paulistas aliados a cafeicultores defensores do novo regime resolveram iniciar a importação de trabalhadores diretamente da Europa. Vale dizer, portanto, que, quando o café passou a ocupar definitivamente o lugar de destaque que anteriormente cabia ao açúcar, também passaram a predominar os interesses dos cafeicultores, o que levou São Paulo a assumir a liderança econômica e política do país. Até 1880, porém, não havia ainda se concretizado o ideal de imigração em massa. Poucos foram os estrangeiros importados — nessa época, contaram-se apenas 18.761 deles, trazidos por esforços de particulares, como o do Senador Vergueiro, ou combinados a iniciativas do governo, tais como a Lei Provincial de 1871, base do sistema de imigração que subsidiava a vinda de imigrantes (CENNI, 1975, p. 163). Do início da segunda metade do século XIX até alguns anos mais tarde, 1888, a posição assumida entre os parlamentares paulistas foi a de luta constante contra a escravidão e a favor da imigração. Era consenso, entre estes, a necessidade de importar 27 trabalhadores brancos, europeus, principalmente os italianos, cuja vinda para o Brasil por fim se concretizou. Segundo Ianni (1963, p. 15-17), a imigração italiana para o Brasil não pode ser considerada um movimento coletivo normal e espontâneo em virtude da proporção em que ocorreu, provocando um grande êxodo no país de origem. Para os italianos foi uma solução extrema, adotada em momento de crise tanto estrutural como conjuntural, quando o país enfrentava distúrbios de ordem política, econômica e social, alguns destes causados pelo processo de unificação política do país na segunda metade do século XIX. A fome e o desemprego assolavam a população italiana, e a saída de um grande contingente populacional aliviou a parcela de responsabilidade do governo, que a usou como parte da política econômica e lhe permitiu o adiamento de reformas essenciais, como a agrária. Vale ressaltar, porém, que a emigração não constituiu uma solução para o problema italiano amenizando apenas a fome dos que ficavam. Além de Ianni, também Alvim (1986, p. 21-25) aponta a imigração como conseqüência do problema do desemprego vivido pelos italianos. Segundo a autora, a explicação para esse movimento “expulsor” encontra-se no processo de transformações provocado pela introdução ou penetração do capitalismo na agricultura e pela “decolagem” industrial iniciada pelo Norte daquele país. Um dos reflexos deste processo foi, de um lado, a concentração de terras pelos grandes proprietários e, de outro, a transformação do pequeno proprietário em mão-de-obra para as fábricas que surgiam. Sem condição de produzir nos mesmos moldes capitalistas utilizados pelos grandes, os pequenos agricultores usavam sua pequena renda para honrar compromissos, como o do pagamento de empréstimos e de hipotecas, e com a redução contínua de sua renda, viram-se obrigados a vender suas propriedades. Com o passar do tempo, as diferenças entre o Norte italiano, mais industrializado, e o Sul, mais agrícola, foram se acentuando, criando um excedente de mão-de-obra que não era absorvido pelo mercado regional. Diante do desequilíbrio econômico, a emigração parecia ser a única solução para aqueles que não encontravam trabalho. O número de imigrantes, de acordo com Alvim, impressionam: entre 1861 e 1940, estavam em torno de “vinte milhões de indivíduos”; desses, “dezessete milhões” saíram entre 1861 e 1920.4 A falta de trabalho refletia-se nas condições de pobreza em que viviam parte dos italianos em seu país, o que os colocava na condição de potenciais imigrantes. Tal 4 A autora observou que estes números não são os mais próximos das saídas definitivas. ALVIM, 1986, p. 24. 28 situação é destacada por Ianni (1963, p. 15-31), ao se referir a um leilão de necessitados por oportunidades no exterior. Por estar impedidos ou impossibilitados do direito ao trabalho, apesar de este ser garantido pela Constituição italiana (artigo 4º), esses italianos buscavam viver dignamente numa terra que não era a sua. De acordo com o autor, a indignação era manifestada até em versos: “ [...] por que se vai para fora do reino? Por infortúnio se vai!”; ou ainda: “[...] qual madre è mai, que gli uni sazia, ed altri, a tanti, ai piu, non pensa?” — em português: “ [...] qual é a mãe que a uns filhos sacia e em outros, em tantos, nos mais, não pensa?”. Nas praças locais, havia sempre uma lápide lembrando os mortos em guerra, porém nada para lembrar os que partiram, os que emigraram (IANNI, 1963, p. 15-31).5 Na aparência, era uma luta entre italianos: de um lado os desejáveis e de outro, os indesejáveis que se viam obrigados a se aventurar fora do país, na tentativa de Fare l’América ... . 1 Os braços para a lavoura ... No Brasil, a introdução do trabalho livre, em particular, relacionado à imigração, integrou o processo que visava a garantir, naquele momento, a continuidade do modelo de economia agrária, monocultora, voltada à exportação.6 Segundo Martins (1998, p. 16- 19), a abolição no Brasil representou mais que transformação na condição jurídica do trabalhador, vindo a transformar o próprio trabalhador. Essa nova condição, porém, não definiu um regime de trabalho assalariado. E as relações de trabalho entre fazendeiro e camponês não foram exatamente relações capitalistas de produção, expressas em salário monetário (única forma de remuneração da força de trabalho no processo capitalista). Ao adotar o trabalho imigrante e livre, foi criado um regime de trabalho específico, estabelecido em contratos como o colonato, que combinou três características, a saber: “ [...] pagamento fixo pelo trato do cafezal, um pagamento proporcional pela quantidade de café colhido e produção direta dos alimentos como meios de vida e como excedentes comercializáveis pelo trabalhador”. Nesse caso, prossegue o autor, como o trabalhador produzia por si parte dos meios indispensáveis à sobrevivência, caía por terra o caráter salarial, quando este entregava 5 Sobre as condições de imigração vale consultar: SAYAD, A. O retorno, elemento constitutivo da condição do imigrante. Travesssia Revista do Imigrante. Numero Especial, ano XIII, jan. 2000. 6 De acordo com autores como ALVIM (1986), CANO (1985), DEAN (1977), HALL (1969), DIEGUES (1964), MARTINS (1998) e outros, os imigrantes garantiram essa reprodução e fizeram mais ainda, pois também se dedicaram ao comércio e a atividades culturais. 29 ao capitalista parte do excedente de seu trabalho. Enfim, o trabalhador era livre, porém, as relações de trabalho não eram estabelecidas em moldes capitalistas. Nessas novas relações, o fazendeiro estabeleceu mecanismos de coerção com o intuito de legitimar a exploração do trabalhador e de sujeitá-lo à sua dependência. O novo ator desejável deveria reconhecer o trabalho e a submissão como uma virtude. No entanto, era difícil mantê-los dependentes mesmo com o esforço dos fazendeiros empregadores que tentavam efetivar essa sujeição criando alguns mecanismos inerentes aos contratos de trabalho, como os débitos relativos a adiantamentos para viagens, manutenção da família até os primeiros pagamentos e que os mantinham presos à fazenda até saldarem a dívida totalmente. A preocupação maior era a de impedir o abandono das tarefas em qualquer circunstância, pois os trabalhadores, quando insatisfeitos, mudavam-se inúmeras vezes, indo de uma fazenda à outra, em busca de melhores condições de vida e de trabalho (MARTINS, 1988, p. 123-125). Os primeiros contratos entre proprietários e trabalhadores livres no Estado de São Paulo foram elaborados, ao menos em aparência, de forma idêntica aos de meação já utilizados na Europa. Todavia, esse tipo de acordo, denominado parceria, mostrou-se desvantajoso tanto para os trabalhadores contratados quanto para os fazendeiros contratantes. O documento previa adiantamento para as despesas de viagem, para alimentação no primeiro ano de trabalho e ferramentas necessárias. Também estabelecia juros de 6% ao ano para pagamento da dívida contraída com os adiantamentos. Além do trabalho realizado nos cafezais, os trabalhadores cultivariam gêneros em lotes pré- destinados para esse fim, e o lucro da venda de ambos seria dividido entre proprietários e trabalhadores parceiros, cabendo a cada um, respectivamente, 60% e 40% (TRENTO,[s.d], p. 20-23).7 As primeiras experiências com a adoção desse tipo de contrato foram inúmeras e conflituosas. O sistema de parceria introduzido penalizava o parceiro.8 A natureza do documento estabelecido entre os fazendeiros e os referidos imigrantes, não se coadunava com os desejos de aqui encontrarem uma vida digna, um tratamento profissional adequado, uma alimentação e habitação decentes, as assistências religiosa, médica e jurídica, além de escola para os filhos, tudo o que não fora possível 7 Stolcke aponta juros de até 12% anuais, com a dívida vinculada à família caso ocorresse a morte do chefe. Em alguns casos, estas poderiam ser pagas em média após 4 anos, caso houvesse empenho nas tarefas, de acordo com alguns estudos. STOLCKE, 1986, p. 20-1. 8 Nessa época, uma provável causa seria a falta de experiência dos trabalhadores contratados para a lida no campo. 30 realizar na Itália. Esse sonho não foi compreendido nem aceito pelos fazendeiros. Ao contrário, os imigrantes depararam-se com condições miseráveis de tratamento e alojamento, semelhante aos destinados a escravos — o que se devia, principalmente, a um costume herdado da cultura escravista, como revelam as propagandas divulgadas no início da década de 1870, que descreviam o perfil dos italianos como o de um “... trabalhador frugal, dócil, pobre, econômico, católico, manejado com facilidade, sem perigo de insurreições ...” (PETRONE, 1990, p. 319-327). Os acordos resultantes do sistema e do tratamento dispensado aos imigrantes provocaram a insatisfação desses estrangeiros com o fazendeiro e acabaram por despertar entre os trabalhadores, como já citado, o desejo de mudar constantemente para outras propriedades em busca de melhores condições de trabalho. De acordo com Beiguelman (1968, p. 51), essa atitude obrigou os empregadores, caso desejassem garantir o abastecimento de braços para o trabalho, a “[...] respeitar sua mobilidade, seja entre as fazendas, seja na direção de núcleos urbanos”. Para os fazendeiros tal mobilidade representava prejuízo, uma vez que a necessidade da introdução contínua de mais e mais trabalhadores tornava as contratações mais onerosas. A resistência e as atitudes equivocadas dos fazendeiros, embasadas pelas razões descritas acima, provocaram, entre outras conseqüências, vários movimentos de insurreição. O exemplo mais significativo, conforme relatos de Davatz (1972) foi o ocorrido em Ibicaba, na fazenda do Senador Vergueiro, o primeiro dos fazendeiros a importar italianos e a adotar o sistema de parceria. O Estado tentou amenizar a situação criando um programa de assentamento em colônias, por meio do trabalho em pequenos lotes para promover a cultura de gêneros alimentares, então escassos. Essa atitude não agradou aos fazendeiros, fiéis defensores da transformação desses imigrantes em braços para a lavoura e não em proprietários de terra. Aliás, é consenso entre os estudiosos do tema que os imigrantes italianos deveriam ser, para os donos da terra, apenas trabalhadores braçais, operários do campo ou colonos. Na visão de Gnacarinni (1980), os cafeicultores enfrentavam dois problemas naquele período. O primeiro referia-se à própria decadência do sistema escravista, à insuficiência de trabalhadores, de certa forma atenuada pela mobilidade interprovincial, e algum abastecimento de mão-de-obra com nacionais. Esses últimos eram considerados braços para a derrubada das florestas e realização de queimadas, sendo aproveitados nas novas plantações ou apenas como trabalhadores provisórios. Beiguelman (1968, p. 102) 31 também destacou estudos da época que mencionavam os nacionais como mais habilidosos e aptos para as tarefas citadas, porém inaptos para o trabalho sistemático devido à sua preguiça. O segundo problema citado por Gnacarinni (1980) era o sistema de parceria e o de jornal (por jornada, geralmente por dias de serviço prestado) que vigoraram até 1880, ambas as práticas consideradas precárias, pois conforme o exposto, criavam tensões entre patrões e empregados assim como a constante mobilidade dos trabalhadores. Tais problemas agravaram-se à medida que os cafezais avançavam, desta feita, rumo ao Oeste, que exigia um contingente de mão-de-obra mais eficaz, até então insuficiente, e mais “sedentarizado” para manter estável a produção nas novas fazendas cafeeiras. O crescimento da cafeicultura poderia então, esbarrar na falta de braços para tal lavoura. A situação tornou-se preocupante. Segundo Beiguelman “[...] como mobilizar força de trabalho humana suficiente para, com seu emprego, valorizar as vultosas quantias de capital-dinheiro acumuladas nas mãos de fazendeiros capitalistas?” (1968, p. 58-59). Como se vê, a questão da mão-de-obra exigia soluções, uma vez que era condição essencial para garantir o avanço da economia cafeicultora. Nos meses iniciais de 1871, antes da assinatura da Lei do Ventre Livre, os fazendeiros paulistas, com apoio oficial do presidente da Província e do Império, deram início a uma série de ações voltadas para a solução desta questão. Uma dessas foi a criação da Associação Auxiliadora da Colonização e Imigração, outra foi a elaboração de leis, entre os meses de março e abril daquele ano de 1871, aprovando o crédito financiado de 900:000$000 (novecentos contos de réis) para importação de trabalhadores, proporcionando a chegada de 10.455 imigrantes à província de São Paulo (HOLLOWAY, 1984, p. 62). Para Gnaccarini (1980, p. 53), as entradas subsidiadas pelo Governo imperial ou provincial eram uma iniciativa de mudança, ou um “movimento liberador de germes de novas relações de produção, mas, ainda, um movimento novo [...] ”, quando ainda convivia-se com a escravidão e os imigrantes trabalhavam ao lado dos escravos. Uma outra ação que visou solucionar o problema foi desenvolvida em 1883. Conforme destaca Holloway (1984, p. 65), naquele ano realizou-se a aquisição de um prédio no bairro do Bom Retiro para acomodar os recém-chegados. Era, porém, um local acanhado, situado a uma certa distância da estação ferroviária. Em 1885, a Assembléia Provincial aprovou verba para a construção de um novo prédio onde foi 32 instalada a Hospedaria dos Imigrantes, com capacidade para abrigar cerca de 4 mil pessoas e concluída em 1888. Tanto o projeto como a construção do novo prédio e os financiamentos faziam parte de uma iniciativa conjunta do governo e dos fazendeiros, mais do que nunca interessados em solucionar o problema da mão-de-obra em face do crescente movimento abolicionista. O final da escravidão, pela abolição, era iminente e inevitável. O autor destaca, ainda, as ações da Sociedade Auxiliadora, considerada eficiente no seu trabalho de recrutamento, transporte e distribuição da mão-de-obra imigrante. Parte do sucesso deveu-se ao seu diretor Martinho Prado Júnior, representante da região servida pela Estrada de Ferro Mogiana e considerado um dos maiores responsáveis pela transição bem-sucedida do regime do trabalho escravo para o do trabalho assalariado (HOLLOWAY, 1984, p. 65). Tais fatores mudaram de forma significativa a questão da importação de trabalhadores imigrantes. Aliviada a carga das despesas com viagens, por meio dos subsídios concedidos pelo Estado e através da Sociedade Auxiliadora, restava, então, resolver a questão dos contratos de trabalho. De tal necessidade surgiu um sistema misto, uma combinação de trabalho assalariado e parceria, o colonato, responsável por criar um mercado de trabalho no interior da propriedade cafeeira, formado por grande quantidade de trabalhadores de todas as idades e com todas as habilidades exigidas na fazenda. Esse tipo de contrato de trabalho foi descrito por alguns autores, entre os quais, Trento [s.d.]. A cada família eram atribuídos certo número de pés de café contra um salário fixo. Além deste, pagava-se, uma vez ao ano, uma quantia proporcional pelo café colhido e limpo. Os colonos também teriam direito a um pequeno pasto e ao cultivo de gêneros entre os cafeeiros ou áreas reservadas para tal prática ([s.d], p. 23). Os excedentes poderiam ser comercializados no mercado.9 Observações de Stolcke (1986, p. 47) apontam que, desde o início, as novas relações de trabalho provocaram tensões, embora, em alguns momentos, houvesse uma aparente submissão por parte dos colonos. A causa da tensão entre trabalhadores e fazendeiros residia na divisão do lucro após a colheita do cafezal. Os colonos, em face do comportamento explorador dos patrões, adotavam uma forma de resistência e dedicavam-se mais intensamente ao cultivo dos alimentos para a produção de 9 Em Brava Gente!, ALVIM descreve o “contrato colônico” em detalhes, e também os termos dos contratos de “camaradas”. ALVIM, 1986, p. 81-82. 33 excedentes comercializáveis — prática prevista e permitida nos contratos de colonato. A autora considera a adoção do sistema misto de remuneração por tarefa e produção, como um “processo de exploração cada vez mais sistemática do trabalho, auxiliado pela importação maciça de imigrantes após meados da década de 1880”. Como resultado, prossegue a autora, criou-se o mercado de trabalho em moldes capitalistas, porém, atrelado a este, negando o caráter de liberdade do trabalhador, tentou-se impedir sua luta contra o sistema constituído. O trabalhador que assim o fizesse, sofreria sanções disciplinares rígidas e redução ao mínimo do direito de plantio, o que impossibilitava a formação de um pecúlio. Tal procedimento permitia a exploração e sujeição no plano individual, no entanto não impedia uma reação coletiva — como greves dos trabalhadores. Outra conseqüência, reflexo do colonato, foi a intensificação da mobilidade espacial entre os colonos em busca de melhores oportunidades fosse em fazendas, cidades ou até mesmo em outros países como a Argentina (1986, p. 48). Como apontado anteriormente, Martins (1998, p.19) não considerou este tipo de contrato como um instrumento efetivo de mudança das relações de trabalho pré- capitalistas para as capitalistas. O autor argumenta que, primeiro, não existia venda de força de trabalho individual e, sim, de toda a família; segundo, para efetivar-se o caráter capitalista, o salário deveria ser todo monetário de forma a permitir a aquisição no mercado dos meios necessários à produção e reprodução da força de trabalho, o que não ocorria; haja vista que parte dos meios necessários à sobrevivência era obtido, pelo trabalhador, diretamente da terra sem intermediação do mercado.10 Com as mudanças ocorridas a partir de 1885, a imigração deixou de ser circunstancial, beneficiando grande parte dos italianos mais pobres, os braccianti, como os denominou Alvim (1986, p. 45-9), uma vez que poderiam emigrar sem arcar com as despesas de viagem. Esses trabalhadores representavam a mão-de-obra barata e farta, almejada até então pelos fazendeiros.11 A autora considera esta a segunda imigração 10 O cotidiano das famílias de colonos foi descrito por autores como Bassanezi, em seu trabalho sobre a Fazenda Santa Gertudes. BASSANEZI, 1973. 11 Os braccianti eram trabalhadores itinerantes. Sua única opção de trabalho estava nas grandes fazendas. Muitos deles eram especializados em serviços de vaqueiro, tecelão, produtor de queijo e encarregado da plantação, trabalhos pelos quais conseguiam contratos anuais. Outros, menos especializados, se empregavam com ceifadores, carpidores, carroceiros, tosadores e recebiam por tarefa. ALVIM, 1986, p. 87-88. 34 italiana. Na primeira, vieram os italianos do Norte, os setentrionais, enquanto na segunda, os do Sul, os meridionais, representados por grupos de famílias mais pobres. Segundo Alvim, até a promulgação da Lei de 1894 — que estabelecia o reembolso das despesas das famílias italianas vindas para o Brasil, quer fossem para colônias, quer para as fazendas —, as primeiras levas de imigrantes eram compostas, em sua maioria, de pequenos proprietários, arrendatários e meeiros. Para os fazendeiros interessavam muito mais os desprovidos de recursos e sem condições de reunir pecúlio, ou seja, os que teriam menor possibilidade de abandonar o trabalho.12 Alguns anos depois, mesmo com a proclamação da República em 1889 e vitória do grupo político dos imigrantistas ou defensores da imigração, a situação piorou. Naquele momento, havia uma conjuntura de crise econômica provocada por quedas de preço do café no mercado internacional e excessivos compromissos a atender provocaram suspensão nos subsídios e não foi possível manter as mesmas facilidades para a imigração. Reflexos da crise econômica atingiram fazendeiros e até mesmo os colonos já instalados, pois, com a falta de recursos dos cafeicultores para a contratação de novos trabalhadores, estes penalizaram os mais antigos com redução de salários e multas acrescidas às existentes (ALVIM, 1986, p. 50). Foi ainda em 1889 que o governo italiano, por meio do Ministério Crispi, interrompeu o fluxo imigratório devido a uma epidemia de febre amarela disseminada no Brasil no ano anterior e que atingiu os estrangeiros abrigados na Hospedaria dos Imigrantes. Dois anos mais tarde, em 1901, a importação de mão-de-obra da Itália sofreu nova interferência, quando o governo daquele país, por meio do Ministério Affari Esteri, enviou um agente para averiguar as condições de trabalho dos compatriotas, em razão de denúncias de exploração e maus-tratos como as descritas por Davatz (1972). O resultado foi o Decreto Prinetti, nome que homenageou o então ministro do Exterior da Itália. Tal decreto era, na realidade, uma portaria do Comissariado de Imigração, datada de 26/02/1902 e assinada pelo comissário Luigi Bodio. O documento determinava restrições à arregimentação e posterior embarque de imigrantes italianos para o Brasil (CENNI, 1975, p. 185). Apesar das novas restrições, de acordo com Alvim, 408.643 italianos imigraram para o Brasil entre 1895 a 1902. Deste total 30,9%, ou 126.413, 12 Para atender a demanda por trabalhadores foi muito importante a atuação da Sociedade Auxiliadora na tarefa de arregimentação. Entre 1886 e 1895, dos 480.896 estrangeiros que entraram no país, 353.139 eram italianos e 220 mil deles trazidos por meio deste órgão. ALVIM, 1986, p. 49. 35 eram vênetos e lombardos e 47,4%, ou 193.697, meridionais da Campânia, Calábria, Basilicata entre outras cidades (1986, p. 53-54). Apesar dos desafios apresentados pela importação da mão-de-obra e do baixo preço do café no mercado internacional, a produção cafeeira continuava aumentando. De 200.000.000 milhões de cafeeiros cultivados em 1890-91, no início do século XX mais que triplicou, saltando para 688.845.420 milhões de pés entre 1904-05 (ALVIM, 1986, p. 50-51). Os cafezais avançavam em direção ao interior do estado de São Paulo. A natureza dessa expansão, exigia investimentos na força de trabalho e muitos imigrantes italianos foram contratados. Um grande número deles aventurou-se pelo sertão paulista, buscando, além de trabalho, uma oportunidade para se tornar proprietário de terras. Para alguns, o sonho realizou-se. No início de século XX, em 1908, foram plantados os primeiros 40.000 cafeeiros em Vila Adolfo, região do Oeste Pioneiro, que mais tarde, em 1918, tornar-se-ia o município de Catanduva. Nessa cidade, foram cultivados milhões de cafeeiros, inclusive por muitos italianos, alguns pequenos proprietários, outros de grandes fazendas, tais como: Geremia, Ricardo e João Lunardelli, Irmãos Zancaner, Ângelo Paulatti, Firmino Bellintani, Credo Malavazzi, Gaspare Longhini, Gaspare Trazzi, Ângelo Moretin, Pedro Celli, Pernolasco Bottura, Antonio Patriani, José Pinotti, Theodoro Rosa entre outros. Alguns destes vieram da região setentrional da Itália como Annone, Veneto, Magnacavallo, Mantova e Treviso. Outros imigraram da região meridional da Itália como Allano di Piave e de Belluno. 2 As condições da imigração: internas e externas De meados do século XIX ao início do século XX, a imigração configurou-se como solução para o problema da mão-de-obra. Para o Brasil, devido à falta de trabalhadores após a desagregação das relações de trabalho escravistas e, para a Itália, como solução para uma crise de desemprego. O movimento migratório italiano desse período ocorreu em condições internas específicas, de transformações econômicas e políticas, quando o capitalismo se inseria no campo, no momento da unificação. Na Itália, conforme observações de alguns autores como Alvim (1986), Cenni (1975), Trento [s.d], entre outros, existiam algumas condições que tornavam a imigração uma possibilidade para mudança de vida. Alguns autores, como Alvim, descreveram as 36 péssimas condições de moradia e de relações de trabalho, principalmente entre os braccianti e seus patrões, italianos da região Sul. Ao conhecê-las é possível entender melhor o desejo manifesto de muitos em deixar o país rumo à América, ou como diziam os próprios imigrantes, de fare l’América! Na Itália, a estrutura fundiária era praticamente única para todo o território, com a predominância da pequena e média propriedade, embora nas áreas mais férteis e propícias à prática da agricultura também houvesse grandes propriedades. No Sul da Itália, “mais do que em outras regiões” predominavam costumes feudais e práticas agrícolas primitivas. Os campos agricultáveis eram divididos pelo proprietário em áreas ínfimas, insuficientes para produzir gêneros para a sobrevivência de uma família e de prover rendimentos para o pagamento de tributos, que era feito parte em produtos, parte em moeda. Assim, o trabalhador ficava impossibilitado de cumprir seu contrato, tornando-se devedor. O resultado desse arranjo desigual, provocou a baixa produtividade da agricultura que, por sua vez, prejudicou o comércio (parte deste era abastecido por meio de trocas com o excedente produzido pelos trabalhadores). Em razão das dívidas, os trabalhadores eram dispensados e não conseguiam trabalho na indústria, cuja produção era ainda incipiente, empregando poucos operários. Não havia como absorver a mão-de-obra excedente da agricultura e nem mesmo a de iniciantes urbanos — um quadro que agravava ainda mais a situação dos trabalhadores, propiciando a exploração dos efetivamente empregados a ponto de alguns terem que suplicar e passar por humilhações para receberem seus salários (ALVIM, 1986, p. 55- 56). No Norte da Itália predominavam as culturas do trigo, do milho e das vinhas e, no Sul, cultivavam-se frutas, oliveiras e amêndoas. Em troca de trabalho, os homens do campo recebiam salários aviltantes e em razão da produção insuficiente, sua alimentação era precária. A essas condições de exploração e miséria somavam-se, ainda, habitações sem conforto e a quase total ausência de instalações sanitárias resultando em péssimas condições de higiene. Era “... miséria e imundície ...” (ALVIM, 1986, p. 62- 63). Foi em meio a este cenário que surgiram as propagandas e promessas realizadas pelos brasileiros arregimentadores de mão-de-obra. Nelas o italiano vislumbrava a solução para todos seus problemas. Afinal, pobres, famintos e desempregados, eles não tinham praticamente nada a perder e muitos, milhares, vieram para o Brasil. De acordo com Alvim (1986, p. 62-63), entre 1886 e 1920 foi registrada pelo Commissariato Generale dell’Imigrazione a saída de 1.243.633 italianos: 30%, ou 365.710, eram 37 vênetos; 13,3%, ou 166.080, eram da Campânia; 10,5%, ou 113.155, eram da Calábria; 8,5%, ou 105.973, da Lombardia; e os demais de várias outras regiões. Chegando ao Brasil, a origem geográfica dos imigrantes teve grande influência na escolha do trabalho ou profissão, quando foi possível escolher. A grande maioria seguiu para as fazendas de café porque vieram com as despesas pagas para realizar as tarefas nos cafezais. Muitos, porém, dedicaram-se a um grande número de outros ofícios, conforme apontam autores como Dean (1977), Truzzi (1993), Diegues (1964), Martins (1998), Carelli (1985) e outros estudiosos do tema. Entre os trabalhadores do campo, vale dizer, era unânime o desejo de tornar-se proprietário de terra, mas seria possível realizá-lo? 3 A propriedade da terra e a expansão cafeeira Para entender o processo que impossibilitou, em alguns casos, e possibilitou em outros, aos imigrantes, principalmente italianos, tornarem-se proprietários de terra no Brasil, é fundamental considerar a legislação sobre a propriedade e o contexto no qual foi elaborada. Em 1850, quando o café já se destacava na economia nacional, o Governo elaborou a Lei de Terras para regularizar a propriedade territorial. Para tanto, revalidou as sesmarias concedidas até 1822, ratificou as ocupações e legitimou as aquisições de terra por compra. A condição para a regulamentação era a utilização da área. As terras não ocupadas pelo governo para qualquer uso e as não declaradas como propriedade particular foram consideradas devolutas. Estas, por sua vez, apenas poderiam ser adquiridas por meio de compra (artigo 1º da Lei de 1850) pelo Governo Imperial (artigo 14 da Lei de 1850) e por preços mínimos, superiores aos das propriedades particulares. O ganho com as vendas seria utilizado para a medição de terras devolutas, para custear a importação de colonos (artigo 19) e a formação de colônias, e para o trabalho agrícola (artigo 18). O texto dessa lei de 1850 deixava clara a forma de utilização das terras devolutas, vedando seu acesso por outra forma que não fosse a compra, além de legitimar as terras já apropriadas. Assim, por meios legais, a terra tornava-se mercadoria. A nova lei beneficiava os proprietários de duas maneiras: primeiro, garantindo a propriedade da terra e, segundo, fornecendo o instrumento legal para a continuidade da exploração do trabalho, mesmo com a abolição da escravidão. A existência de terras 38 devolutas permitiu a expansão dos cafezais e tornou-se o “objeto de desejo” dos trabalhadores livres, utilizados como mão-de-obra, principalmente na produção cafeeira. De acordo com Martins (1998, p. 60-61), esta foi a fórmula encontrada para atrair imigrantes para os cafezais, uma vez que essas terras possuíam um grande atrativo, representando para eles a possibilidade de aquisição de uma propriedade. O trabalho livre deveria basear-se na vontade do trabalhador, em oposição ao que ocorreu no trabalho escravo. A coerção, segundo Martins, era ideológica: valorizava-se o trabalho como livre escolha ao mesmo tempo em que se acenava com a possibilidade desse trabalhador transformar-se em proprietário. Viotti da Costa (1977, p. 133) também ressalta esse aspecto ideológico como trampolim para o trabalhador atingir o status de proprietário. Vangelista, por sua vez, aponta a imigração e o trabalho livre como elementos essenciais para o incremento da produção cafeeira, capazes de ampliar o território cultivado com trabalhadores vindos do exterior sem que fosse preciso modificar as relações de trabalho existentes (1991, p. 72). Vários dos problemas registrados decorreram da relação proprietário-trabalhador da terra, uma relação intermediada por contratos de trabalho inadequados que, aos poucos, foram sendo modificados e adaptados à realidade, como visto anteriormente. Assim que as relações de trabalho foram sendo definidas, a cafeicultura tornou- se cada vez mais lucrativa e o volume exportado expandiu-se ano a ano. A tabela abaixo permite visualizar esta evolução: Tabela 1 Exportação brasileira de café em arrobas Anos Café 1862-63 2.413.385 1863-64 1.611.729 1864-65 2.993.151 1865-66 2.242.254 1866-67 2.343.993 Fonte: ELLIS JR, Ellis. O café e a paulistânea, p. 301. Para Camargo, em 50 anos, entre 1836 e 1886, a produção cafeeira expandiu-se em mais de 2.000 %. Das 556.649 arrobas produzidas em 1836, houve um salto para 2.737.639 arrobas em 1854 e em 1886, para 4.795.850 arrobas (1981, v. I, p. 158- 162). Essa notável expansão está atrelada à incorporação de novas áreas de cultivo. De acordo com a Lei de Terras, os novos cafezais deveriam ocupar áreas consideradas devolutas e devidamente mapeadas pelo Estado. O governo, porém, não fez a sua parte. Tanto que, em 1878, as áreas devolutas não eram inspecionadas, permitindo, em larga 39 escala, a posse ilegal de terras públicas. De acordo com Monbeig e Holloway, subterfúgios de todos os tipos foram utilizados para a obtenção de títulos de posse em cartórios, pois a partir da nova Lei a terra tornava-se garantia, a principal forma do capital da fazenda e, de acordo com a sua produtividade, possuía maior ou menor valor (1984, p. 143-147 e 1984, p. 173-174). Como o Estado não tinha controle sobre as ocupações indevidas, principalmente no Oeste paulista, e o critério mais utilizado para a obtenção das escrituras era a ocupação de fato, muitos ocupantes de terras devolutas utilizadas para subsistência não tiveram conhecimento da lei e as perderam, pois essas áreas eram de grande interesse de outros, uma vez que se localizavam no caminho dos cafezais (1984, p. 175). Em 1891, a nova Constituição transferiu para os Estados da federação o domínio das áreas devolutas. Em São Paulo, a Lei n. 323, de 22/06/1895, dispunha sobre a legalização de todos os tipos de terra e exigia suas devidas demarcações. Outras leis seguiram-se a esta, uma vez que a intenção era normatizar e legalizar o processo de propriedade da terra (SALLUM, 1982, p. 17). Holloway (1984, p. 176-179), aponta as dificuldades para que este objetivo fosse atingido. Tanto que a questão fundiária foi tema de inúmeros debates até o ano de 1900, quando finalmente houve uma atualização da Lei de 1.850, estabelecendo que qualquer terra cujo título de posse fosse anterior a 1878 tornava-se legítimo. Caso o registro não fosse claro, o ocupante da terra (posseiro) poderia declarar-se proprietário de, pelo menos, o dobro do que possuía, das terras virgens vizinhas até o máximo de 4.000 hectares de áreas de pastagens e 2.000 hectares de áreas cultiváveis, mediante pagamento de uma pequena taxa. Esse princípio do direito de posse de fato, tornou-se o cerne da legislação fundiária paulista. Faltava apenas relacionar oficialmente as terras com dono e as terras sem dono, devolutas, supostamente pertencentes ao Estado.13 O prazo para legalização, por absoluta falta de registros e declarações, estendeu-se para além da data inicial prevista, 1901, pois ninguém se preocupava muito, confiando na deliberação do Estado, que daria posse mesmo ex post facto. Para efetivar o disposto na lei, de acordo com Silva, o regulamento entrou em vigor em 1900, após a criação dos Registros Públicos de terras instalados nas cidades- sedes das comarcas paulistas. Nos Cartórios, deveriam ser registradas todas as áreas, 13 De acordo com SILVA, em 1898, a Lei nº 545, de 02/08, estabelecia a legitimação automática, independentemente do processo em que se dera, das propriedades cuja posse antecedia o ano de 1878 e, dependentes do processo em que se deu, daquelas ocupadas até a promulgação da lei anterior, de 1895. 1996, p. 283. 40 devolutas ou não, incluindo-se as reservadas aos municípios e Estados, as já adquiridas e aquelas relativas à legitimação de posses e revalidação de sesmarias (1996, p. 283). Para Silva, o decreto foi “razoavelmente respeitado pelos posseiros paulistas e, obviamente, pelos grileiros, que agora poderiam falsificar títulos [...]. Justamente o medo da grilagem levou os posseiros paulistas a obedecerem à lei” (1996, p. 284). Mais uma vez o Estado, o não fez a sua parte. Desrespeitou o novo Regulamento e não registrou suas terras “[...] pela forte razão de que nem sabia onde ficavam suas terras [...]” e nem ao menos demonstrou interesse em sabê-lo. Esse desinteresse, anos mais tarde, tornou-se razão de vários litígios entre o Estado e invasores de terra (SILVA, 1996, p. 284). Essa condição permitiu que ocorresse, cada vez mais, o alargamento das fronteiras, levando o Estado finalmente a agir. Em 1916, iniciou-se o cadastramento das terras paulistas, centrado em Ribeirão Preto, Araraquara e Jaboticabal, além de Taquaritinga e Salesópolis (HOLLOWAY, 1984, p. 180-183). Em 27/12/1921, no governo de Washington Luís, foi promulgada a Lei nº 1.844, regulamentada em agosto de 1822, legalizando todas as posses de terra no período de 1895 até aquela data. Os prazos, posteriormente, foram prorrogados, estendendo-se até 1929 (SILVA, 1996, p. 289-290). Para a regularização, era absolutamente necessário o registro das terras em livros próprios, sob a responsabilidade dos tabeliães das respectivas comarcas. Das páginas desses livros constavam a data do registro, o nome da paróquia ou freguezia (sic) do imóvel, o número de ordem, a descrição do imóvel, incluindo seus limites e outros aspectos que permitissem a identificação, além do valor da transação, nome e endereço do transmitente e do adquirente. Tais dados eram fundamentais para a emissão da devida escritura de posse. Não deixaram de haver, porém, casos de registros de terras cuja descrição era muito vaga. Holloway (1984, p. 184), aponta vários. Pesquisas realizadas nos livros de registro dos cartórios de imóveis revelaram evidências nesse sentido, como as apontadas pelo autor e que serão relatadas a seguir. Para identificação dos proprietários de terra na região de Catanduva, foram pesquisados cartórios de cinco comarcas, a saber: Araraquara, Jaboticabal, Santa Adélia, São José do Rio Preto e Catanduva. O mais antigo registro de terra em nome das famílias que, possivelmente, fundaram o município de Catanduva, foi encontrado no I Cartório de Registro de Imóveis de Araraquara. José Lourenço Figueiredo efetuava a venda de “uma parte de terras”, o sítio São Joaquim da Boa Ventura, a Manoel J. de 41 Freitas, localizado na freguezia (sic) de Ibitinga em 14/03/1889, sob o n. 4.032, livro 3C, pelo valor de 6:000$000. O segundo registro mais antigo foi localizado no Cartório de Registro de Imóveis de Jaboticabal, criado em 1890, e está relacionado também com a família do provável fundador da cidade. Refere-se à venda, por Antonio Alves Moreira Barboza, em 09/03/1891, sob o nº 7.131, livro 3F, de “300 alqueires num lugar denominado Ribeirão São Domingos”, sendo o transmitente de Caconde–MG e o adquirente José Custódio de Oliveira, “desta comarca”. O valor da transação foi de 4:000$000 (quatro contos de reis). Pelos valores em mil réis da venda dessas duas primeiras propriedades, infere-se ser a primeira, também, uma grande propriedade, considerando-se que os preços da terra na região de Ibitinga eram praticamente os mesmos que vigoravam em Catanduva. Encontrou-se no Cartório de Jaboticabal, o registro de terra doada por outro provável fundador da cidade, Antonio Maximiano Rodrigues, para a construção da capela do padroeiro, que se tornou o Patrimônio (sic) de São Domingos. Consta do livro 3H, sob n. 9.452, de 27/02/1901, o registro de “uma gleba de terras contendo dez alqueires divididos judicialmente na Fazenda Barra Grande ou Moreiras, município de São José do Rio Preto”, sendo o adquirente São Domingos, o santo padroeiro do município de São José do Rio Preto, e o transmitente Antonio Maximiano Rodrigues e esposa. O valor da transação foi de 100$000 (cem mil réis). Este exemplo pode ilustrar a falta de dados concretos e coerentes para emissão das escrituras de posse e dos litígios a elas conseqüentes — como o ocorrido com esta escritura. Alguns anos após a sua oficialização, o patrimônio do santo, integrante do Bispado de São Carlos, foi requisitado pela Câmara de São José do Rio Preto, durando o litígio até 1922, quando a área foi devolvida à Câmara de Catanduva. A fragilidade dos dados no descritivo das propriedades envolvidas nas transações de compra e venda de imóveis, segundo Holloway, ocorreu do final do século XIX até meados do século XX e pôde ser comprovada nos registros da transcrição n. 37 do livro 3, do dia 19/02/1920, de venda, no valor de 1:500$000 (um conto e quinhentos mil réis), por parte de Francisca Salles de Jesus, “desta cidade” e adquirida por Dona Alta Bauab, “desta cidade”, de “um alqueire de terra separado do todo que a transmitente possue (sic) em sua meação, por falecimento de seu marido Antonio Maximiano Rodrigues”. O documento foi encontrado no 1º Cartório de Registro de Imóveis de Catanduva, criado em 14/02/1920. 42 Com documentos inteligíveis ou não, para o efetivo avanço dos cafezais nestas novas áreas incorporadas, legal ou ilegalmente, era necessário contratar trabalhadores que dessem início às novas plantações. Para realizar tal tarefa foram escolhidos os nacionais, cuja participação nesse processo será explicitada adiante. 4 Os trabalhadores nacionais e o mito do preguiçoso À medida que a fronteira do café avançava em direção ao interior, mais terras iam sendo incorporadas. Assim, era imprescindível um título de propriedade, mesmo porque parte das terras fronteiriças não havia pertencido legalmente a ninguém, apesar de ocupadas por posseiros ou camponeses. Caso contrário, sempre surgiria a possibilidade de serem declaradas propriedades particulares. Desse modo, restava ao declarante proprietário expulsar os eventuais ocupantes, pois a lei estaria a seu lado. De acordo com Dean (1977, p. 32-35), a expulsão representava uma vantagem a mais, pois ao ser forçados a abandonar a área, os caboclos (assim eram chamados os trabalhadores nacionais) adentravam mais para o interior e, dessa forma, acabavam mantendo os indígenas, habitantes nativos, afastados das propriedades. Para os caboclos nada restava a não ser trabalhar para o fazendeiro, transformando-se em camaradas, contratados para tarefas como limpeza do mato, construção de estradas, guia de carroças e outras atividades. Os camaradas eram de muita utilidade, aceitavam baixos salários e pouco se rebelavam, mesmo havendo coerção física. Eram, segundo Dean (1977, p. 35), “resignados a permanecer sem terras”, não tinham raízes nem segurança. Tinham liberdade de sair da propriedade quando desejassem e, devido a essa condição, os fazendeiros, para mantê-los como empregados cativos, impunham-lhes a pecha de vadios e preguiçosos. A favor dos fazendeiros estava a lei que, volta e meia, era aci