O Corpo como Texto: Clara Nunes e a Performance da Fé Imagem da Capa: Edição Fotográfica de Afrane Ferreira Távora, artista visual macapaense, construída especialmente para esta tese, em 2019. Instagram: @tudonotodo UNESP - UNIVERSIDADE ESTADUAL PAULISTA “JÚLIO DE MESQUITA FILHO” Faculdade de Ciências e Letras Campus de Araraquara - SP EMERSON DE PAULA SILVA O CORPO COMO TEXTO: CLARA NUNES E A PERFORMANCE DA FÉ ARARAQUARA – S.P. ABRIL 2021 EMERSON DE PAULA SILVA O CORPO COMO TEXTO: CLARA NUNES E A PERFORMANCE DA FÉ Tese de Doutorado apresentada ao Programa de Pós- Graduação em Estudos Literários da Universidade Estadual Paulista ―Júlio de Mesquita Filho‖ (UNESP) – Faculdade de Ciências e Letras de Araraquara (FCL-Ar) como requisito para obtenção do título de Doutor em Estudos Literários. Linha pesquisa: Teorias e Crítica do Drama Orientadora: Profa. Dra. Elizabete Sanches Rocha Bolsa: CAPES ARARAQUARA - S.P. ABRIL 2021 Silva, Emerson de Paula S586c O Corpo como texto: Clara Nunes e a performance da fé / Emerson de Paula Silva. -- Araraquara, 2021 250 p. : il., fotos Tese (doutorado) – Universidade Estadual Paulista (Unesp), Faculdade de Ciências e Letras, Araraquara Orientadora: Elizabete Sanches Rocha 1. Clara Nunes. 2. Performance Cultural. 3. Religiões Afro-Brasileiras. 4. Corpo. 5. Texto. I. Título. Sistema de geração automática de fichas catalográficas da Unesp. Biblioteca da Faculdade de Ciências e Letras, Araraquara. Dados fornecidos pelo autor(a). Essa ficha não pode ser modificada. EMERSON DE PAULA SILVA O CORPO COMO TEXTO: CLARA NUNES E A PERFOMANCE DA FÉ Tese de doutorado, apresentada ao Programa de Pós - Graduação em Estudos Literários da Faculdade de Ciências e Letras – UNESP/Araraquara, como requisito para obtenção do título de Doutor em Estudos Literários. Linha de pesquisa: Teorias e Crítica do Drama Orientadora: Profa. Dra. Elizabete Sanches Rocha Bolsa: CAPES Data da Defesa: 16/04/2021. MEMBROS COMPONENTES DA BANCA EXAMINADORA: Presidente e Orientadora: Profa. Dra. Elizabete Sanches Rocha FCHS – Faculdade de Ciências Humanas e Sociais – UNESP – Franca Membro Titular: Profa. Dra. Alexandra Gouvêa Dumas Escola de Teatro – UFBA – Universidade Federal da Bahia Membro Titular: Prof. Dr. Marcos Antônio Alexandre Faculdade de Letras/FALE – UFMG – Universidade Federal de Minas Gerais Membro Titular: Prof. Dr. e Babalorixá Sidnei Barreto Nogueira Professor Visitante do Programa de Ciências Sociais na Educação – Faculdade de Educação – FE - UNICAMP – Universidade Estadual de Campinas Membro Titular: Profa. Dra. Silvia Maria Jardim Brügger COHIS/Colegiado do Curso de História – UFSJ - Universidade Federal de São João del-Rey Local: Universidade Estadual Paulista Faculdade de Ciências e Letras UNESP – Campus de Araraquara Laroyê Exu Dedico este trabalho a duas pessoas: Ao meu pai, José Silva, cantor, que deixou em mim seu legado afro-sonoro-visual resgatado nas encruzilhadas do meu viver. A Dra. Leilane Assunção da Silva, primeira professora universitária transexual do País, cuja tese sobre Clara Nunes não pôde ser lançada por ocasião de seu falecimento aos 35 anos. Sua contribuição ecoa nesta encruzilhada aqui desvelada. “ABRAÇAR E AGRADECER” “Ao ventre que me gerou. Ao Orixá que me tomou.” Laroyê Exu! Orayeyeô Oxum! Kaô Kabecile Xangô! Eis a entrega do meu ebó epistemológico que não foi feito sozinho. Por isso, abraço e agradeço: Ao Centro Espírita Caboclo Mata Virgem em especial a Vó Fizica, a matriarca de todo o grupo e um dos maiores nomes da representação da religiosidade de matriz africana em Ponte Nova – MG – minha terra natal. A este espaço e a esta minha Mãe de Santo, por todo acolhimento e pelo meu encontro com a Umbanda, eu saúdo e bato minha cabeça. À minha Ancestralidade nas pessoas do meu pai José Silva (in memoriam) que é o maior cantor popular que já conheci e à minha mãe, Clitia de Paula (in memoriam), a maior performer que já existiu. Vai ter o primeiro Doutor na família! Vai ter mais um Doutor negro na Universidade! Cheguei aonde vocês tanto almejavam, mas eu julgava quase impossível estar. De meu corpo só jorram lágrimas de felicidade e de saudade dos seus abraços que agora eu queria que me envolvessem. Ao meu tio Guim, Mestre de Bateria e criador do Bloco Nasceu Mais Um, no Bairro Triângulo em Ponte Nova – MG – minha terra natal. O Samba já tomava conta de nosso corpo e agora ele se amplia na feitura deste ebó. À Universidade Federal do Amapá (UNIFAP) e à Universidade Estadual Paulista ―Júlio de Mesquita Filho‖ (UNESP) pela formalização deste Doutorado Interinstitucional (DINTER), oportunizando e qualificando a Região Norte para que a mesma exista, resista e não fique apagada na história da educação e da pesquisa neste país. Agradecimento especial à coordenadora operacional do DINTER na UNIFAP, a Profa. Dra. Natali Fabiana da Costa e Silva (Letras/UNIFAP) pela garra não só em coordenar este importante projeto, mas idealizá-lo e não medir esforços para realizá-lo. A você, meu obrigado eterno! O presente trabalho foi realizado com apoio da Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior - Brasil (CAPES) - Código de Financiamento 001. À Profa. Dra. Elizabete Sanches Rocha, minha Orientadora nesta encruzilhada epistemológica, por toda delicadeza, firmeza, cumplicidade, escuta, descoberta. Obrigado por ter aceitado percorrer comigo esta trilha que aqui não se acaba. Obrigado por aprendermos juntos. A roda do mundo girou e parou comigo onde eu deveria estar. O texto do seu corpo já se inscreve na trajetória da minha pele. Axé! Às/Aos docentes que compõem a minha banca de avaliação eu agradeço o aceite em compor este momento único em minha vida. A quem está comigo desde a primeira encruzilhada e que abriu novas, inserindo-as naquelas antes já propostas por mim: Profa. Dra. Silvia Maria Jardim Brügger (UFSJ) e Prof. Dr. Marcos Antônio Alexandre (UFMG) e à/ao docente que se junta a esta travessia para novas encruzilhadas propor: Prof. Dr. e Babalorixá Sidnei Barreto Nogueira (UNICAMP) e Profa. Dra. Alexandra Gouvêa Dumas (UFBA). Ao Prof. Dr. Eduardo de Assis Duarte (UFMG), meu professor durante o Curso de Especialização em Estudos Africanos e Afro-brasileiros na PUC-MINAS (2005/2006), que me apresentou a Literatura Afro-Brasileira, a obra Ponciá Vicêncio, da escritora Conceição Evaristo, e que me fez, naquela época, pensar em trilhar caminhos nos Estudos Literários. Aqui estou eu entregando este ebó iniciado no ritual que você me convidou a participar. Ao Prof. Dr. e Babalorixá Sidnei Barreto Nogueira pelos conteúdos ministrados na disciplina Giro epistemológico para uma educação anti-racista, ministrada junto à Faculdade de Educação da UNICAMP, que muito contribuiu para ampliar e promover cruzamentos nos tópicos de pesquisa aqui elencados. Ao Memorial Clara Nunes (Caetanópolis – MG), por todo acolhimento e assistência para a confecção deste ebó e por existir e resistir. A toda sua equipe, em especial ao Marlon Silva e as suas idealizadoras, em especial a Profa. Dra. Silvia Maria Jardim Brügger e a dindinha Mariquita, irmã de Clara Nunes, que iniciou todo este processo de arquivamento do repertório de uma das maiores cantoras da música popular brasileira. O Brasil lhes será eternamente grato! Aos artistas visuais Afrane Távora e Luciana Bittencourt, pelo apoio incondicional técnico e artístico durante a preparação visual e organizacional deste ebó. Ao Prof. Dr. Erico José (Artes Cênicas/UnB) e à Profa. Dra. Gracia Navarro (Arte Cênicas/UNICAMP), por serem as primeiras pessoas que acreditaram nesta investigação. A gente ainda se encontra na roda do mundo, mas vocês me mostraram que ―eu não estava errado em minha tese‖ (TODYNHO, Jojô, 2020). Ao ex-aluno Du Rocha (Artes Cênicas/UFOP) e ao Prof. Dr Berilo Nosella (Artes da Cena/UFSJ) pelas contribuições informativas quanto à performer Clara Nunes e seu Memorial, que foram cruciais para o direcionamento/embasamento deste ebó. Ao Colegiado de Teatro da UNIFAP, meu local de trabalho, pelo incentivo e apoio para que este momento acontecesse e pudesse ser realizado. Às alunas e alunos deste Curso por entenderem, respeitarem e incentivarem este processo. As/Aos Colegas de DINTER por todas as encruzilhadas que este encontro nos proporcionou. Aprendamos. Sigamos. E não deixemos o Amapá apagado na história deste país. A Macapá, que hoje se faz morada, pelo acolhimento, encruzilhadas, oportunidades, aprendizagens, ressignificações e beleza. Já sou Tucuju, afinal ―quem nunca viu o Amazonas nunca irá entender a vida de um povo de alma e cor brasileiras‖. A Abdias Nascimento, pela criação do Teatro Experimental do Negro (TEN) e por ter seu eco em meu corpo, me levando a diversas e importantes encruzilhadas, desde o momento em que eu o encontrei. E a Clara Nunes, por ser mineira, por ter existido, por ter se permitido em vida girar junto ao que já estava inscrito na roda do seu mundo. Por escrever com seu corpo a força que o Axé dos Orixás promove enquanto beleza e saúde na vida de toda e qualquer pessoa. Continuemos aqui a usar nosso corpo para dançar/cantar a nossa fé, afinal somos todos templos de celebração. Salve a Macumba! UBUNTU! AXÉ! RESUMO Esta pesquisa pretende identificar os processos e procedimentos da religiosidade afro-brasileira na performance cultural da cantora mineira Clara Nunes, a partir da perspectiva de construção da sua identidade artística em conjunto com sua formação identitária religiosa, apresentando a contribuição desta performer para os Estudos da Performance Cultural. Neste sentido, aprofundamos nos estudos sobre as matrizes estéticas presentes nos rituais da Umbanda e do Candomblé e a assimilação dessas matrizes pela performer Clara Nunes, entendendo seu processo de aproximação com a religiosidade afro-brasileira como produtor de uma escrita dialógica entre Arte e Vida, estabelecendo Clara como um acontecimento performático. É então, na análise das encruzilhadas epistemológicas propostas/provocadas pela própria performer, que esta tese se concentrará, utilizando do conceito de encruzilhada proposto por Leda Martins (1997) e do estudo da pedagogia das encruzilhadas proposto por Luiz Rufino (2019). Em tal perspectiva, é esta escrita que dialoga som, corpo, música e movimento, que pretende ser costurada neste grande emaranhado de diálogos que produzem fios de conexão, a partir de cosimentos, bordados e entrelaçamentos de uma costura aberta feita com a junção de vários tecidos. As organizações conceituais elencadas subsidiam a análise da performance da fé junto aos adeptos de religiões de matriz africana, encontrando em Clara Nunes o estabelecimento do Corpo como Texto. Palavras – chave: Clara Nunes. Performance Cultural. Religiões afro-brasileiras. Corpo. Texto. ABSTRACT This research intends to identify the processes and procedures of Afro-Brazilian religiosity in the cultural performance of the Minas Gerais singer Clara Nunes, from the perspective of building her artistic identity together with her religious identity formation, presenting this performer's contribution to Performance Studies Cultural. In this sense, we have deepened the studies on the aesthetic matrixes present in the Umbanda and Candomblé rituals and the assimilation of these matrixes by the performer Clara Nunes, understanding her process of approaching Afro-Brazilian religiosity as a producer of a dialogical writing between Art and Life Clara as a performance event. It is then in the analysis of the epistemological crossroads proposed / brought about by the performer herself that this thesis will focus, using the concept of crossroads proposed by Leda Martins (1997) and the study of crossroads pedagogy proposed by Luiz Rufino (2019). In this perspective, it is this writing that dialogues sound, body, music and movement, which intends to be sewed in this great tangle of dialogues that produce connecting threads, from sewing, embroidery and interlacing of an open seam made with the joining of several fabrics. The conceptual organizations listed subsidize the analysis of the performance of the faith with the followers of religions of African origin, finding in Clara Nunes the establishment of the Body as a Text. Keywords: Clara Nunes. Cultural Performance. Afro-Brazilian religions. Body. Text. LISTA DE ILUSTRAÇÕES Foto 01 – José Silva ................................................................................................ 020 Foto 02 – Equipamentos de costura ........................................................................ 020 Foto 03 – Iniciação Religiosa .................................................................................. 020 Foto 04 – Clara e as Pastorinhas ............................................................................ 029 Foto 05 – Painel do Memorial Clara Nunes ............................................................. 046 Foto 06 – Clara em seu Teatro ................................................................................ 051 Foto 07 – Apresentação Clara Nunes ..................................................................... 052 Foto 08 – Foto divulgação Clara Nunes .................................................................. 061 Foto 09 – Ensaio para divulgação do LP ―Brasil Mestiço ........................................ 064 Foto 10 – Capa DVD Clara Nunes .......................................................................... 077 Foto 11 – Dona Nicinha ........................................................................................... 079 Foto 12 – Dona Zelita .............................................................................................. 079 Foto 13 – Dona Ivone Lara e Clara Nunes .............................................................. 080 Foto 14 – Clara Nunes e Alcione ............................................................................. 081 Foto 15 – Clara Nunes e Beth Carvalho .................................................................. 081 Foto 16 – Jovelina Pérola Negra ............................................................................. 082 Foto 17 – Leci Brandão ........................................................................................... 083 Foto 18 – Mart‘nália ................................................................................................ 083 Foto 19 – Teresa Cristina para a Revista Vogue ..................................................... 084 Foto 20 – Geovanna ................................................................................................ 085 Foto 21 – Elza Soares, Martinho da Vila e Clara Nunes ......................................... 086 Foto 22 – Zezé Motta .............................................................................................. 087 Foto 23 – Roberta Sá .............................................................................................. 088 Foto 24 – Clara Nunes e Maria Bethânia ................................................................ 088 Foto 25 – Rita Benneditto ........................................................................................ 089 Foto 26 – Logomarca do Bloco e Cantora Aline Calixto .......................................... 090 Foto 27 – Capa CD Carla Visi ................................................................................. 090 Foto 28 – Capa CD/DVD Fabiana Cozza ................................................................ 091 Foto 29 – Carmen Miranda...................................................................................... 093 Foto 30 – Capa do livro publicado por Ligiéro ......................................................... 095 Foto 31 – Clementina de Jesus ............................................................................... 096 Foto 32 – Clara Nunes e Clementina de Jesus ....................................................... 099 Foto 33 – Margareth Menezes ................................................................................ 100 Foto 34 – Capa do álbum 'Autêntica', de Margareth Menezes ................................ 102 Foto 35 – Ensaio fotográfico divulgação do LP ―Brasil Mestiço‖.............................. 102 Foto 36 – Divulgação DVD Canibália ...................................................................... 104 Foto 37 – Daniela Mercury ...................................................................................... 106 Foto 38 – Mariene de Castro ................................................................................... 107 Foto 39 – Divulgação CD/DVD ―Ser de Luz‖ ........................................................... 108 Foto 40 – Divulgação disco ―As forças da natureza" ............................................... 110 Foto 41 – LP‘s de Clara Nunes ............................................................................... 112 Foto 42 – Mão de Clara Nunes ............................................................................... 114 Foto 43 – Objetos pessoais de Clara Nunes ........................................................... 123 Foto 44 – LP Brasil Mestiço..................................................................................... 125 Foto 45 – Capa álbum Clara Clarice Nunes ............................................................ 126 Foto 46 – Contracapa álbum Clara Clarice Nunes .................................................. 126 Foto 47 – Capa do Disco ―Esperança‖ .................................................................... 127 Foto 48 – Contracapa do Disco ―Esperança‖ .......................................................... 127 Foto 49 – Encarte do Disco ―Esperança‖ ................................................................ 128 Foto 50 – Memorial Clara Nunes ............................................................................. 130 Foto 51 – Clara e suas bonecas .............................................................................. 134 Foto 52 – Encruzilhada epistemológica ................................................................... 141 Foto 53 – Sinapse Neural ........................................................................................ 141 Foto 54 – Memorial Clara Nunes ............................................................................. 145 Foto 55 – Memorial Clara Nunes ............................................................................. 145 Foto 56 – Memorial Clara Nunes ............................................................................. 145 Foto 57 – Clara na casa de Dona Mariquita ............................................................ 147 Foto 58 – Clara e sua irmã Branca .......................................................................... 147 Foto 59 – Reverenciando os Orixás ........................................................................ 147 Foto 60 – Guias de Clara Nunes ............................................................................. 148 Foto 61 – Encruzilhada epistemológica 1 ................................................................ 150 Foto 62 – Show ―Clara Mestiça‖ no Teatro Clara Nunes ......................................... 157 Foto 63 – Show ―Clara Mestiça‖ no Teatro Clara Nunes ......................................... 157 Foto 64 – Clara Nunes no show O Poeta, a Moça e o Violão ................................. 157 Foto 65 – Entrevista de Clara à jornalista Marília Gabriela ..................................... 158 Foto 66 – Entrevista de Clara à jornalista Marília Gabriela ..................................... 158 Foto 67 – Entrevista de Clara à jornalista Leda Nagle ............................................ 158 Foto 68 – Entrevista de Clara à jornalista Leda Nagle ............................................ 159 Foto 69 – Clara Nunes visita Paraopeba ................................................................. 159 Foto 70 – Encruzilhada epistemológica 2 ................................................................ 163 Foto 71 – Clara se apresentando ............................................................................ 164 Foto 72 – Programa Clara Nunes ............................................................................ 164 Foto 73 – Clara e Ataulfo Alves ............................................................................... 165 Foto 74 – Clara vestida como filha-de-santo ........................................................... 169 Foto 75 – Mãe Celina e Clara .................................................................................. 169 Foto 76 – Memorial Clara Nunes ............................................................................. 171 Foto 77 – Capa do Disco Guerreira (1978) ............................................................. 174 Foto 78 – Encartes internos do Disco Guerreira (1978) .......................................... 174 Foto 79 – Contracapa do Disco Guerreira (1978) ................................................... 174 Foto 80 – Clara Nunes ............................................................................................ 175 Foto 81 – Orixá Ogum dançando ............................................................................ 181 Foto 82 – Orixá Iansã dançando ............................................................................. 182 Foto 83 – Clara Nunes no vídeo clipe da música ―Conto de Areia‖ ......................... 182 Foto 84 – Clara Nunes no vídeo clipe da música ―O Mar Serenou‖ ........................ 183 Foto 85 – Orixá Ogum dançando ............................................................................ 183 Foto 86 – Orixá Ogum dançando ............................................................................ 184 Foto 87 – Clara Nunes no vídeo clipe da música ―Guerreira‖.................................. 184 Foto 88 – Clara Nunes no vídeo clipe da música ―Banho de Manjericão‖ ............... 185 Foto 89 – Clara Nunes no vídeo clipe da música ―Banho de Manjericão‖ ............... 185 Foto 90 – Clara Nunes no vídeo clipe da música ―Banho de Manjericão‖ ............... 186 Foto 91 – Clara Nunes no vídeo clipe da música ―Conto de Areia‖ ......................... 186 Foto 92 – Clara Nunes no vídeo clipe da música ―Conto de Areia‖ ......................... 187 Foto 93 – Orixá Iansã dançando ............................................................................. 187 Foto 94 – Orixá Iansã dançando ............................................................................. 188 Foto 95 – Orixá Iansã dançando ............................................................................. 188 Foto 96 – Orixá Iansã dançando ............................................................................. 189 Foto 97 – Orixá Iansã dançando ............................................................................. 189 Foto 98 – Clara Nunes no vídeo clipe da música ―Guerreira‖.................................. 190 Foto 99 – Clara Nunes no vídeo clipe da música ―Guerreira‖.................................. 190 Foto 100 – Clara Nunes no vídeo clipe da música ―Guerreira‖ ............................... 191 Foto 101 – Clara Nunes no vídeo clipe da música ―Guerreira‖ ............................... 191 Foto 102 – Clara Nunes no vídeo clipe da música ―Morena de Angola‖ ................. 192 Foto 103 – Clara Nunes no vídeo clipe da música ―Morena de Angola‖ ................. 192 Foto 104 – Clara Nunes no vídeo clipe da música ―Morena de Angola‖ ................. 193 Foto 105 – Clara Nunes no vídeo clipe da música ―Morena de Angola‖ ................. 193 Foto 106 – Clara Nunes no vídeo clipe da música ―Morena de Angola‖ ................. 194 Foto 107 – Clara Nunes no vídeo clipe da música ―Morena de Angola‖ ................. 194 Foto 108 – Clara Nunes no vídeo clipe da música ―Morena de Angola‖ ................. 197 Foto 109 – Encruzilhada epistemológica 3: Corpo X Texto ..................................... 205 Foto 110 – Amigos e fás nos acessos à Clínica São Vicente ................................. 206 Foto 111 – Saída do corpo de Clara Nunes da Quadra da Portela ......................... 208 Foto 112 – Estação de Madureira ........................................................................... 209 Foto 113 – Na passarela da Avenida Presidente Vargas ........................................ 209 Foto 114 – Frames do Documentário ―A Tal Guerreira‖ .......................................... 210 Foto 115 – Frames do Documentário ―A Tal Guerreira‖ .......................................... 213 Foto 116 – Frames do Documentário ―A Tal Guerreira‖ .......................................... 214 Foto 117 – Frames do Desfile exibido pela TV Globo ............................................. 218 Foto 118 – Frames do Desfile exibido pela TV Globo ............................................. 219 Foto 119 – Frames do Desfile exibido pela TV Globo ............................................. 220 Foto 120 – Livro de memórias sobre Clara Nunes ................................................. 222 Foto 121 – Clara em show na Quadra da Portela ................................................... 223 Foto 122 – Clara Nunes .......................................................................................... 225 Foto 123 – Conjunto Montanhez ............................................................................. 229 Foto 124 – Exposição José Silva ............................................................................ 229 Foto 125 – Dançando com Oxum ............................................................................ 230 Foto 126 – Centro Espírita Caboclo Mata Virgem ................................................... 230 LISTA DE QUADROS Quadro 1 – Correspondências enviadas a Clara Nunes e familiares ...................... 199 SUMÁRIO Introdução - Trajetórias da Pele ........................................................................... 020 Capítulo 1 – E vou voltar lá pro meu congado pra pedir pro Santo .................. 030 1.1 A performance da definição de um conceito ..................................................... 032 1.2 A Performance de Clara Nunes ......................................................................... 042 Capítulo 2 – Dorival Caymmi falou pra Oxum ..................................................... 065 2.1 Ritos Religiosos: Entre Negociações e Identidades .......................................... 066 2.2 A Afro-brasilidade na Música Popular Brasileira ............................................... 077 2.3 Carmen Miranda ................................................................................................ 092 2.4 Clementina de Jesus ......................................................................................... 096 2.5 Margareth Menezes .......................................................................................... 099 2.6 Daniela Mercury ............................................................................................... 103 2.7 Mariene de Castro ............................................................................................. 106 2.8 Clara Nunes ...................................................................................................... 110 2.9 Clara Nunes: A Identidade que pauta a negociação ......................................... 123 Capítulo 3 – Dentro do Samba eu nasci, me criei, me converti ......................... 135 3.1 Encruzilhada Epistemológica 1: Corpo X Espaço ............................................. 142 3.2 Encruzilhada Epistemológica 2: O traje que cria o corpo X O corpo que cria o traje ......................................................................................................................... 155 3.3 Encruzilhada Epistemológica 3: Corpo-Texto X Texto-Corpo ........................... 197 Considerações Finais – Dei um aperto de saudade no meu tamborim. E cantei minha vida na avenida ......................................................................................... 226 Referências ........................................................................................................... 233 Obras Consultadas ............................................................................................... 243 Sites Consultados ................................................................................................. 245 Outros Materiais Consultados ............................................................................. 248 ANEXO A ................................................................................................................ 249 “Um dia Um ser de luz nasceu Numa cidade do interior E o menino Deus lhe abençoou De manto branco ao se batizar Se transformou num sabiá” (Letra de Um Ser de Luz © Edições Musicais Tapajós Ltda, Edições Musicais Cordilheiras Ltda, Universal Mus. Publishing Mgb Brasil Ltd. Compositores: Paulo Cesar Pinheiro / João Baptista Nogueira Junior João Nogueira / Mauro Duarte De Oliveira). (Letra de Guerreira © Warner/Chappell Edições Musicais Ltda, Edições Musicais Tapajós Ltda, Wb Music Corp. O/b/o Warner/ Chappell Edições Musicais Ltda. Compositores: Paulo Cesar Francisco Pinheiro / João Junior). Desenhos de Zeca Ligiéro. “Eu sambo pela noite inteira, até amanhã de manhã Sou a mineira guerreira, filha de Ogum com Iansã” 20 Trajetórias da Pele 20 21 Agó Venho de uma família de pessoas ligadas ao Teatro, à Dança, ao Carnaval e principalmente à Música. A linguagem musical sempre me fascinou e esperava que a mesma fosse minha área de trabalho. Porém, quando conheci o Teatro através de ações na escola de educação básica, percebi que as Artes Cênicas, por seu caráter de diálogo com a questão visual, textual, corporal e vocal, me encantavam. Portanto, o Teatro passou a ser um elemento essencial na minha trajetória pessoal, principalmente na adolescência. Mas todo esse envolvimento com o fazer artístico tem um tempo, um espaço, um estímulo: meu pai. Seresteiro reconhecido em Ponte Nova – MG, nossa terra natal, zona da mata mineira, José Silva foi um cantor reconhecido por sua voz grave, mas principalmente por ser um homem negro, periférico, que conseguiu adentrar os espaços destinados a poucos pelo seu talento musical. De engraxate a cantor, José Silva, meu pai, foi também contador e alfaiate reconhecido em sua cidade. Entre texturas de pano e texturas vocais, meu pai me embalou com uma visualidade imagética corporal e vocal que ampliou meu olhar para o mundo, imprimindo tessituras únicas no corpo em que habito. Lembro os seus pedidos para que eu escutasse as músicas dos LPs e anotasse as letras das canções para compor a sua pasta de repertórios para os shows da noite. Entre Boleros, Serestas, Músicas românticas e Sambas, habita em mim um repertório sonoro que embala as várias etapas do meu viver. Do ofício de alfaiate só tenho as lembranças via oralidade e fotos, mas hoje, percorrendo esta trajetória aqui registrada, me lembro de como meu pai deixava ecoar no seu corpo o gingar de sua ancestralidade, se preocupando com o tipo de roupa e tecido que iria vestir, principalmente quando ia se apresentar. Naquela época ele buscava imprimir que o negro pode transitar e vestir o que quiser, como pode cantar Samba e outros estilos musicais, como pode jogar futebol (meu pai foi jogador profissional e árbitro de futebol nos times locais), como pode ser artista não designado a apenas um tipo específico de música. Neste sentido, José Silva performou entre cantor de Samba enredo no bloco carnavalesco do bairro a cantor de casamentos e principalmente como crooner em grupos de serestas, estilo musical que o consagrou em Ponte 22 Nova e região, levando-o a receber uma homenagem póstuma, contendo seu nome no primeiro espaço público de cultura da cidade de Ponte Nova, criado pela Câmara Municipal local em 2014. É preciso ressaltar que minha mãe foi proprietária de boutique (designação antiga para loja de roupas) após ser balconista/vendedora em uma loja de tecidos e posteriormente em uma loja de roupas, ambas do município, fato este que a tornou uma pessoa conhecida em sua cidade interiorana por sua exemplar capacidade criativa de vender e negociar. Na trama da vida, o fio do destino costurou com linha forte estes dois performers da vida cotidiana. A Arte pulsante em meu pai fez com que minha mãe se envolvesse também no Carnaval, junto ao Bloco organizado pelo meu tio, Mestre de Bateria, sendo ela destaque em carros alegóricos ou coordenadora de alas em desfiles carnavalescos anuais. Muitos anos mais tarde, já profissional das Artes Cênicas e em visita à única livraria existente em Ponte Nova à época, fui arrebatado por um livro que se destacou em meu olhar frente aquele mundo imagético que eu tanto admirava e onde apreciava estar, sempre que possível. Sempre gostei de ler biografias, principalmente de artistas, mas fui arrebatado pela biografia da cantora Clara Nunes. O livro em questão possui muitas fotos e, tendo em minha mente apenas as lembranças sonoras e visuais da cantora, adquiri o mesmo. A leitura do texto completo em si se deu muitos anos após essa aquisição. O que aconteceu inicialmente foi um vasculhar das imagens e um encantamento visual com aquela artista. Eis que, ao pensar em cursar um Doutorado, numa ―sentada só‖ como se diz nas Minas Gerais, escolho como tema falar de Clara Nunes, mas na perspectiva de seu diálogo com as Artes da Cena. A discussão sobre o conceito de memória, presente em vários trabalhos durante a Graduação, as Especializações e o Mestrado, foi ao encontro da encruzilhada religiosa e cultural em que pessoalmente encontrava-me, promovendo uma aproximação/identificação com as religiões de matriz africana (em específico a Umbanda); religiões estas que potencializam o caráter sinestésico e memorial humano. A questão musical presente nestas manifestações religiosas foi um ponto que também gerou em mim um caminhar de aproximação devido à percepção de que, nas religiões de matriz afro, a música é louvor a cultuar deuses que dançam. Minha devoção passou a tomar meu corpo promovendo, em todos os momentos em que professava minha fé, ecos ancestrais em meu coração-tambor. O encontro com 23 a minha própria negritude pautou também este processo pessoal e religioso. Esta iniciação religiosa/cultural configura-se nessa trajetória como um elemento paralelo, mas dialógico, abrindo uma encruzilhada pessoal para entender diálogos e distanciamentos entre Arte e Religiosidade. E por perceber a importância destas áreas no meu caminhar acadêmico é que, nas linhas deste ebó1, essa performance2 visual-sinestésica apresenta-se. Neste momento é esse caminhar vindo das próprias encruzilhadas que será desvelado. Buscar na memória meu percurso de formação cultural, mesmo que de forma sucinta, fez-me perceber os ciclos pelos quais passei e as experiências performáticas que tive em família. É perceber em qual momento estou e a importância do mesmo. É perceber que há princípios que se retornam e que há coisas que se inscreveram em mim. Nesta nova encruzilhada trilhada, se faz importante para o pesquisador trazer uma parte da memória do seu percurso pessoal que possui relação direta com sua formação identitária, explicitando como os questionamentos aqui apresentados já estavam inscritos na trajetória de sua pele antes de e durante este curso, ao qual se destina esta tese/ebó. Minha trajetória/formação é no Teatro. Este Doutorado em Estudos Literários concentra-se na linha Teoria e Crítica do Drama. Na raiz da palavra Drama, temos que seu significado é ―Eu faço. Eu luto‖. Neste sentido, é este processo visceral (de movimento e luta) presente na carreira da performer Clara Nunes, que este ebó se concentra. Na perspectiva do Drama enquanto Texto, enquanto construção dramatúrgica, procuramos analisar outras formas de escritas dramáticas, entendendo a escrita na/da cena e a escrita da/na vida diária. Portanto é a percepção/recepção do corpo, como um canal discursivo que escreve e inscreve significados na vida humana, que pretendemos aprofundar, estabelecendo o diálogo entre os Estudos Literários e as Artes da Cena. Constituem as Artes da Cena a Performance, o Teatro, a Dança e o Circo. Aqui focamos no campo da performance, em especial no terreno das performances 1 De acordo com Vagner Gonçalves da Silva na obra Candomblé e Umbanda: caminhos da devoção brasileira, ebó é o mesmo que despacho, ou seja, oferenda alimentar ou sacrifício animal feito em homenagem às divindades para obter ajuda e proteção na solução de problemas. Esta Tese, se configura para o autor da mesma, como uma oferenda ao Orixá Exu. 2 Na produção de textos escritos em língua portuguesa, recomenda-se que sejam grafadas em itálico as palavras estrangeiras que ainda não tenham sido incorporadas ao idioma na forma traduzida. 24 culturais. Procuramos analisar o contato da performer Clara Nunes durante a sua carreira com as religiões de matriz afro-brasileira e como seu trânsito religioso impulsionou/direcionou/modificou a sua carreira/vida, a partir do entendimento de que este trânsito não é apenas uma ação estética ou mercadológica. É uma ação identitária e que se torna filosofia de vida. Entendendo o conceito amplo de performance cultural que abarca os comportamentos restaurados vivenciados por participantes/praticantes de manifestações culturais como algo para além do desempenho ou da ação artística, focamos nesta pesquisa o diálogo entre Arte e Vida, entendendo este diálogo como uma encruzilhada que cria, nos caminhos de quem por ela percorrer ou é escolhido a percorrê-la, uma ação de busca por autoconhecimento. Dos processos percorridos nas encruzilhadas do meu viver, que me levaram a analisar as encruzilhadas do viver de Clara Nunes, apresento este material/ebó que se configura não só como um resultado de uma investigação original, mas uma oferenda ao dono das encruzilhadas, ao Orixá do caos e da comunicação: Exu. A ele, ofereço este ebó epistemológico. É nas encruzilhadas epistemológicas presentes na carreira/vida da performer Clara Nunes que, parafraseando Márcia Virgínia Bezerra de Araújo, procuramos entender que ―o corpo é um templo e a dança uma oração‖. Na perspectiva de culto a deuses que dançam, como vemos na Umbanda e no Candomblé, e como esta forma sinestésica de oração potencializa uma corporeidade que sai do espaço do terreiro (espaço devocional) para povoar a vida de seu/sua praticante (espaço público e social), que este ebó se concentra, buscando mostrar que na trajetória da vida e obra da performer Clara Nunes, a performance da fé nos apresenta o corpo, como texto. Clara Nunes já se configura como uma artista que incitou pesquisas3 em nível de Mestrado e Doutorado em alguns programas de pós-graduação pelo Brasil, mas tendo como foco destas a questão da sua musicalidade (análise das composições com uma abordagem das letras e dos arranjos) e da temática da mestiçagem em 3 Trabalhos sobre Clara Nunes encontrados no Catálogo de Teses e Dissertações da CAPES, vide Anexo A. 25 sua obra musical. Entretanto, a presente pesquisa/ebó pretende promover uma análise da sua performance cultural a partir das confluências entre Arte e Vida, entendendo Clara Nunes como um acontecimento performático. Este ebó não se concentra em um estudo biográfico ou na análise das letras das canções gravadas por Clara a partir das relações entre música e literatura. Este ebó evoca a escrita cultural/social/sensorial da/pela própria performer, evidenciando que: O campo dos Estudos da Performance, nesse sentido, é compreendido como propício nas Artes Cênicas tendo em vista a premissa da articulação de caminho(s) que atenda(m) a natureza da investigação pretendida, em relação tanto ao próprio fenômeno quanto ao olhar pretendido sobre ele. A performance como lente metodológica traz para a investigação a possibilidade de confrontação do vivido, da experiência em si e não apenas análises de registros e materiais decorrentes do fenômeno, mas também não exclui essas possibilidades a medida que se façam necessárias. (SILVA, 2020, P.36). A estrutura metodológica-ritual de construção deste ebó apresenta a seguinte feitura: - Introdução - Capítulo 1 - E vou voltar lá pro meu congado pra pedir pro Santo Aqui, é abordada a fundamentação teórica da evolução do conceito de Performance, a definição metodológica desta temática a ser utilizada neste ebó e o processo desta enquanto uma linguagem construída no diálogo entre Arte e Vida, a diferença da produção da Performance-Art, apresentando Clara Nunes, corpus desta pesquisa, a partir do entendimento do trânsito religioso desta como uma performance cultural e a constituição da performatividade dos/presente nos rituais religiosos de matriz afro-brasileira, como o Candomblé e a Umbanda. - Capítulo 2 - Dorival Caymmi falou pra Oxum Neste capítulo é abordada a figura da performer Clara Nunes, sua trajetória artística, conceituando ainda os elementos de estruturação de uma performance proposta pela indústria cultural, enquanto produção artística, a partir da cultura afro- brasileira, enfocando as negociações oriundas entre os ritos religiosos e os ritos mercadológicos. Registra-se também o destaque de Clara no cenário musical, 26 apresentando cantoras antecessoras, contemporâneas e sucessoras que tiveram na temática afro-brasileira sua projeção artística, retomando Clara e a sua singularidade, ao abordar a temática afro-brasileira com recorte especial à religiosidade e sua presença enquanto constituinte das Artes Performativas na relação Arte e Vida, Religioso e Artístico. - Capítulo 3 – Dentro do Samba eu nasci, me criei, me converti Neste capítulo é abordado o conceito de Performances Culturais em diálogo com os Estudos Literários, analisando a performance de Clara Nunes, a Clara Nunes performer e o giro epistemológico da sua performance cultural, a partir das seguintes encruzilhadas epistemológicas: 1. Corpo X Espaço – busca abordar a existência e constituição do Memorial Clara Nunes em sua terra natal, que existe a partir da reunião dos objetos pessoais da performer, fato significativo que gerou a construção do Memorial enquanto espaço físico, dialogando com a perspectiva do Arquivo e do Repertório, a partir dos estudos de Diana Taylor. 2. O traje que cria o corpo X O corpo que cria o traje – busca abordar a relação de Clara com a costura em sua vida, entendendo como o figurino artístico passa a compor seu traje pessoal, a partir do seu contato com a religião de matriz africana. 3. Corpo-Texto X Texto-Corpo – busca abordar a comoção e os atos de fé que a possibilidade de falecimento de Clara Nunes, durante todo o seu período de internação no CTI e a sua consequente morte, instaurou no país, ultrapassando sua relação apenas ao campo artístico e nos mostrando, com este fato, o transbordamento de sua performance. As demonstrações e mobilizações dos diferentes segmentos religiosos da população brasileira a partir da iminência da morte da performer corroboram a presença da escrita de sua performance cultural no imaginário brasileiro, demonstrando o acontecimento performático que Clara Nunes se tornou e escreveu no Brasil. - Considerações Finais - Referências Bibliográficas Foram realizadas ainda as seguintes etapas metodológicas: 27 1) Pesquisa documental, sonora e visual (vídeo e fotografia) acerca da trajetória pessoal e artística da cantora Clara Nunes; 2) Revisão bibliográfica acerca da temática Performance Cultural e Linguagem e sua presença no panorama dos Estudos da Performance e dos Estudos Literários; 3) Análise do Acervo do Memorial Clara Nunes para estudo e comprovação do objeto de pesquisa, a partir da articulação com teóricos da área; 4) Análise dos dados obtidos através da pesquisa qualitativa dos procedimentos anteriores, buscando relacioná-los entre si, no sentido de formar um argumentativo coerente que fundamente a conceituação obtida pelo pesquisador. Encruzilhar foi meu próprio percurso neste trajeto, seja durante a tessitura da colcha de retalhos que as/os téoricas/téoricos de diversas áreas têm me apresentado, seja na minha formação pregressa com a formação que está sendo adquirida na atualidade, seja na trajetória da minha pele em contato com a trajetória de uma outra pele que habita um imaginário, mas que povoa não só minha história, mas a de todas e todos nós que nos encontramos aqui, trilhando esta encruzilhada. Costurar é um ato físico, é uma ação de trabalho, mas é também um ato de entrega de quem costura a materialização de uma ideia que vai ser comunicada, para que uma outra pessoa absorva essa informação. Quem costura, o faz com o corpo, junta tecidos, parte por parte com linhas que criam conexões, produzindo formas. A tecelagem, algo historicamente ligado ao feminino, tem uma importância milenar, pois a criação das roupas tem ligação com o fato de proteção do corpo. Na evolução da ação de vestir, entre se cobrir e se desnudar, o material de proteção passa também a ser de comunicação, pois o que vestimos diz também sobre quem somos. E esta imagem externa vai ao encontro da nossa imagem interna, perpassando por escolhas, crenças, afetividades, subjetividades, personalidade, identidade e comunicação corporal, indo também ao encontro da performance diária que executamos junto aos diferentes espaços que transitamos. Nas Artes Performativas, a/o performer imprime em sua imagem visual os elementos da Arte que produz, pois seu corpo é um texto que escreve e se inscreve 28 no imaginário social em que este/esta artista transita. Em tal perspectiva, é esta escrita memorial que dialoga som, corpo, música e movimento, produzida pela performer Clara Nunes, que pretende ser costurada neste grande emaranhado de diálogos que produzem fios de conexão, a partir de cosimentos, bordados e entrelaçamentos de uma costura aberta, feita com a junção de vários tecidos. É também analisar o impacto desta performatividade na trajetória da pele, não só minha ou na do meu pai, mas na pele de todas/todos nós. “Eu tentei compreender a costura da vida Me enrolei pois a linha era muito comprida E como é que eu vou fazer para desenrolar, para desenrolar Se na linha do céu sou estrela Na linha da terra sou rei Mas nas linhas das águas sou triste Pelo fogo que um dia apaguei Na linha do céu sou estrela Na linha da terra sou rei Mas na linha do fogo sou triste Pelos mares que eu não naveguei Como é que eu vou fazer para desenrolar, para desenrolar Eu tentei compreender a costura da vida Me…” (Música Costura da Vida – Composição e Intérprete Sergio Pererê) https://www.google.com/search?sxsrf=ALeKk01nNR4L3ZuYOBphavZWDHHigTSxCg:1589546331524&q=Sergio+Perer%C3%AA&stick=H4sIAAAAAAAAAONgVuLVT9c3NEwyjy8xMygzW8TKF5xalJ6ZrxCQWpRadHgVAC8vq0AiAAAA&sa=X&ved=2ahUKEwih1sbD8bXpAhXiGbkGHW8MB6MQMTAAegQIDBAF&sxsrf=ALeKk01nNR4L3ZuYOBphavZWDHHigTSxCg:1589546331524 29 29 30 E vou voltar lá pro meu congado pra pedir pro Santo 30 31 Os Estudos da Performance na esfera acadêmica encontram nos Estados Unidos e em alguns países da Europa importantes trabalhos que se difundiram pelo mundo, ancorando diversas pesquisas inclusive no Brasil. Sua relação com as Artes Visuais é expandida para os estudos nas Artes da Cena, encontrando diálogo também com os Estudos Literários. Nomes importantes em nível mundial se tornam referências de pesquisa como Richard Schechner, Victor Turner e Diana Taylor. No Brasil, no que tange a seu diálogo com as Artes da Cena, temos programas de pós- graduação como o da Universidade Estadual de Campinas (UNICAMP) que concentra, nesta grande área de estudo, as linguagens artísticas do Teatro, da Dança, do Circo e da Performance. Temos ainda junto à Universidade Federal de Goiás (UFG) um programa interdisciplinar de Pós-Graduação em Performances Culturais, liderado pelo Prof. Dr. Robson Corrêa de Camargo. Junto a diferentes instituições de Ensino Superior temos ainda registro de pesquisadores como os professores Dr. Zeca Ligiéro (UNIRIO), Dr. Marcos Alexandre (UFMG), Dra. Regina Polo Müller (UNICAMP) e Dr. Renato Cohen (UNICAMP). No que tange ao olhar sobre a performance na área dos Estudos Literários, podemos citar nomes como o crítico literário Paul Zumthor e a Dra. Marlene Soares dos Santos, com seus estudos entre Performance e Teatro a partir de estudos shakespearianos. Os exemplos aqui citados não restringem as várias e os vários pesquisadores em nível nacional e internacional, cabendo apenas situar um breve contexto desta inesgotável e intensa produção investigativa sobre os Estudos da Performance que perpassam esta pesquisa. No amplo território que esses estudos abarcam, Cohen (2013), ao buscar conceituar a arte da Performance, nos esclarece que: Apesar de sua característica anárquica e de, na sua própria razão de ser, procurar escapar de rótulos e definições, a performance é antes de tudo uma expressão cênica: um quadro sendo exibido para uma platéia não caracteriza uma performance; alguém pintando esse quadro, ao vivo, já poderia caracterizá-la. (p. 28). Cohen (2013) ainda reflete: Poderíamos dizer, numa classificação topológica, que a performance se colocaria no limite das artes plásticas e das artes cênicas, sendo 32 uma linguagem híbrida que guarda características da primeira enquanto origem e da segunda enquanto finalidade. (p. 30). Nesta definição o autor nos propõe uma reflexão sobre a Performance-Art enquanto movimento estético e processo de criação. Entretanto, a este estudo, se faz necessário agregar o aprofundamento do conceito entendendo que ―além das performances artísticas, existem os esportes e os entretenimentos populares, que variam do circo ao rock, e, claro, os papéis da vida diária‖ (SCHECHNER, 2012, p. 49). É neste olhar sobre o comportamento humano e o fluxo da vida cotidiana que nos deteremos neste processo. 1.1 – A performance da definição de um conceito O instante, a presença, as manifestações culturais e religiosas e os ritos da vida cotidiana. Pensar em Performance é dialogar com todas estas instâncias do viver e de um conceito que se encontra em movimento. Na pluralidade de possibilidades de entendimento de um ato performativo, que transita entre o ritual e o jogo, se faz necessário entendermos que: Performances – sejam elas performances artísticas, esportivas ou a vida diária – consistem na ritualização de sons e gestos. Mesmo quando pensamos que estamos sendo espontâneos e originais, a maior parte do que fazemos e falamos já foi feita e dita antes – ―até mesmo por nós‖. As performances artísticas moldam e marcam suas apresentações, sublinhando o fato de que o comportamento artístico é ―não pela primeira vez‖, mas feito por pessoas treinadas que levam tempo para se preparar e ensaiar. (...) De fato, uma definição de performance pode ser: comportamento ritualizado condicionado/permeado pelo jogo. Rituais são uma forma de as pessoas lembrarem. Rituais são memórias em ação, codificadas em ações. (SCHECHNER, 2012, p. 49). Neste caminhar entre ritual e jogo precisamos considerar que a performance possui várias finalidades, mas que, neste estudo, não utilizaremos a sua potencialidade enquanto entretenimento ou desempenho, focalizando a mesma enquanto ação pessoal cultural, indo ao encontro de forma interdisciplinar e multidisciplinar, à diversidade expressiva humana e das performances do cotidiano. Adentrando a um recorte conceitual em Performances Culturais, entendemos que: 33 A designação Performances Culturais foi estabelecida pela primeira vez em 1955 pelo antropólogo, filósofo e psicólogo polonês, naturalizado norte-americano, Milton Borah Singer (1912-1994) em estreito diálogo com as construções teóricas de seu companheiro de trabalho da Universidade de Chicago, o sociólogo, comunicador e etnolinguista Robert Redfield (1897-1958). Há que se entender o particular significado deste conceito plural e a abordagem metodológica distinta que este propõe, para que se evite um entendimento parcial ou apenas formal deste, para que as Performances Culturais não sejam entendidas apenas como o estudo de uma determinada performance ou uma forma específica de estudo de um fenômeno ou como etapa evolutiva de um determinado ramo ou área de saber. Performances Culturais é um conceito que, primeiramente, está inserido numa proposta metodológica interdisciplinar e que pretende o estudo comparativo das civilizações em suas múltiplas determinações concretas; visa também o estabelecimento do processo de desenvolvimento destas e de suas possíveis contaminações; assim como do entendimento das culturas através de seus produtos ―culturais‖ em sua profusa diversidade, ou seja, como o homem as elabora, as experimenta, as percebe e se percebe, sua gênese, sua estrutura, suas contradições e seu vir-a- ser. Neste movimento as performances são sempre plurais, pois pretendem o estudo comparativo, seja a partir de uma perspectiva macro (os grandes elementos da cultura, as Grandes Tradições, assim chamadas por Singer e Redfield) em contraste com as micro experiências (as variadas formas não oficializadas e diversas a que temos acesso) ou mesmo entre as pequenas tradições ou vice-versa. (CAMARGO, 2012, p.1). Pensaremos as Performances Culturais como uma área de fronteira entre a linguagem e a experiência, entendendo a construção de processos identitários a partir do contato com manifestações culturais e os traços sociais e subjetivos que estes processos estabelecem na performance cotidiana/artística dos indivíduos, tendo no corpo seu canal de realização, acontecimento, estabelecimento e partilha, indo ao encontro de sua relação entre Arte e Vida. O corpo é este espaço físico que escreve e inscreve um discurso a partir também do seu contato com diferentes formas de comunicação e do próprio ato do viver. Uma pessoa que possui uma imersão em um tipo de manifestação cultural agrega a si gestos e ações do enredo cultural em que vive. No campo religioso por exemplo, esse agregar é ainda mais potencializado, uma vez que esta experiência perpassa canais ligados a formas de viver em sociedade, com a natureza, com a ancestralidade, para que se encontre uma harmonização integral enquanto ser humano. Professar uma religião é professar um 34 estilo de vida que estabelece no corpo de forma integral a confirmação daquilo que acreditamos, exaltamos, louvamos e que se torna rotineiro, estabelecendo uma performance diária do viver, a partir de um fundamento filosófico escolhido e referendado. Portanto, pretendemos pensar neste estudo sobre a performance criada por agentes da cultura e pela/com a indústria cultural, mas focalizando em como estes agentes, através do envolvimento com diferentes saberes culturais, criam outros fluxos performáticos em que seu cotidiano passa a reverberar seu trânsito entre Arte e Vida, através da imersão em contextos religiosos afro-brasileiros, uma vez que, ainda na compreensão das Performances Culturais, temos que estas: Colocam em foco determinada produção cultural humana e, comparativamente, a partir delas, em contraste, procuram entender- se com as outras culturas com a qual dialogam, afirmativamente ou negativamente. As performances culturais a serem examinadas devem ser também entendidas como uma concretização da auto percepção e da auto projeção dos agentes desta cultura, do entendimento que estes fazem ou constroem de si mesmo, determinando e sendo por eles determinados. (CAMARGO, 2012, p. 2). Neste sentido pensaremos no comportamento performático oriundo de um indivíduo para/com/frente a/à sociedade através da expressão de suas atividades pelo viés da pertença a um segmento religioso e o estabelecimento de modos de ser e viver a partir desta experiência pessoal, transitando na encruzilhada entre as relações culturais e sociais que esta experiência acrescenta à percepção de vida. Não se pretende abordar todo e qualquer acontecimento diário como performance, mas, sim, os acontecimentos diários potencializados a partir de uma imersão cultural religiosa. Nessa perspectiva, o conceito de Performances Culturais se apresenta mais apropriado por englobar algo plural, não focalizando somente no termo singular e único de Performance, por não restringirmos a apenas um evento isolado, concluindo que: Performances Culturais se constituem pela identificação, registro e análise de determinado fenômeno em sua múltipla configuração, em seu processo contraditório de formação, de constituição e de movimento, de estrutura e de gênese, de ser e de vir a ser, na percepção deste fenômeno em diálogo com estruturas gerais das tradições e pelas transformações estabelecidas a partir de formas 35 culturais contemporâneas. Performances Culturais, mais uma vez sempre no plural, são a busca da determinação do que foi, do que é e do que se pode tornar, não apenas um levantamento particular do ―essencial‖ de determinada cultura, mas como uma forma em processo de diálogo. (CAMARGO, 2012, p. 19). Na trilha de definição deste conceito, passamos a perceber as relações do vivido e de comportamentos vivenciados em diálogos com o espaço e o contexto histórico em que o corpo, em performance, está inserido. Mais do que pensar o processo de construção de uma performance cultural, buscamos pensar na expressividade do ato performático inserido no cotidiano e como este se torna uma filosofia de vida em um processo de diálogo da tradição com a contemporaneidade, relacionando as práticas performativas a algo ―criado e desenvolvido pela tradição, mas transformado, transgredido, recriado pelo brincante ou pelo devoto‖ (LIGIÉRO, 2011, p. 16). Performar a fé na vida cotidiana é imprimir na coletividade o que foi vivido e se vive e o que foi interpretado e se está interpretando, a partir de um fundamento religioso, tendo no corpo um canal discursivo. Representamos diariamente vários papéis que nos proporcionam passagens existenciais e, no caso da vivência junto à representação religiosa, construímos ações de experimentações que nos transportam a realidades outras que são vivenciadas como ações no tempo presente, nos encontrando num ―corpo da história‖, uma vez que: Como pessoas comuns, nós mesmos desempenhamos mutuamente vários papéis: o de narrador, o de personagem e o de espectador, num jogo multifacetado em que o vivido, o imaginado e o interpretado se completam num corpo único, que chamo aqui ―corpo da história‖. (LIGIÉRO, 2011, p. 89). Podemos então pensar na grafia inscrita no corpo e escrita por este no cotidiano a partir de performances estruturadas no espiritismo afro-ameríndio por parte daquelas e daqueles que professam este universo religioso, que busca nos corpos ancestrais as reverberações filosóficas de um viver. Sobre o ato de grafar que se inscreve no corpo a partir da performatividade, a Dra. e Rainha do Congado Leda Maria Martins (2003) nos apresenta a seguinte reflexão: Na performance dos ritos procuro interferir o papel do corpo e da voz como portais de inscrição de saberes de vária ordem, dentre elas a 36 filosófica. Minha hipótese é que o corpo, na performance ritual, é local de inscrição de um conhecimento que se grafa no gesto, no movimento, na coreografia, na superfície da pele, assim como nos ritmos e timbres da vocalidade. O que no corpo e na voz se repete é uma episteme. Nas performances da oralidade, o gesto não é apenas uma representação mimética de um aparato simbólico, veiculado pela performance, mas institui e instaura a própria performance. Ou ainda, o gesto não é apenas narrativo ou descritivo, mas fundamentalmente, performativo. (p. 70). Este viver o ritual reconstitui nossos corpos de histórias para que performemos em diferentes espaços como um ―corpo da história‖. Corpo este que reinventa significados em novos contextos, transitando nas relações entre o vivido, o imaginado, o interpretado, apresentando a performance de uma memória que nos constitui, porque é recuperada e corporificada. Estas relações apresentam narrativas que nos são anteriores, mas que nos presentificam instituindo em nós uma performance que passa a não carecer de espaços específicos para se realizar, uma vez que essa ―narrativa não é apenas um texto, mas um elemento propiciador da performance oral, em que a história narrada não só exemplifica a relação do sujeito com o tema, mas o posiciona como criador de imagens vivas‖ (LIGIÉRO, 2011, p.94). Importante ressaltarmos que nos Estudos da Performance não é só a oralidade que nos apresenta a reverberação da memória ancestral nos comportamentos cotidianos. Voz é corpo. E se instaura e se transmuta no e com o corpo. Ela existe porque integra todo um sistema complexo de linguagem, sendo um canal que promove leituras e recepções. O corpo comunica por sons e gestos como uma tela imprimindo imagens que registram nossas intenções e convicções, perpetuando em imagens momentâneas ou arquivadas na memória o registro das ações de comunicação. Antes da fala organizada enquanto código linguístico, temos as sonoridades. Antes das sonoridades temos a corporeidade: temos mãos, pés, olhares que comunicam desejos e necessidades. Esta corporeidade em contato com crenças, filosofias e fundamentos religiosos, por exemplo, imprimem neste corpo-tela imagens que ampliam a presença e existência, podendo transformar a vida em um acontecimento performático, pois: O corpo em performance é, não apenas, expressão ou representação de uma ação, que nos remete simbolicamente a um 37 sentido, mas principalmente local de inscrição de conhecimento, conhecimento este que se grafa no gesto, no movimento, na coreografia; nos solfejos da vocalidade, assim como nos adereços que performativamente o recobrem. Neste sentido, o que no corpo se repete não se repete apenas como hábito, mas como técnica e procedimento de inscrição, recriação, transmissão e revisão da memória do conhecimento, seja este estético, filosófico, metafísico, científico, tecnológico, etc. (MARTINS, 2003, p.66). O corpo-tela4, um conceito defendido por Leda Martins em 2020 e ainda em construção, entende que o corpo ao performar a afro-brasilidade se torna um espaço de potência de pluralidades e um discurso construtor de sentidos, uma vez que a performatividade afro-brasileira se constitui de corporificações de afetos. O mundo como palco nos faz transitar entre atores sociais e seres performáticos, tendo este trânsito impacto na construção de nossa identidade, refletindo diretamente em nossa vida social, levando à compreensão de modos de representação que performamos na vida cotidiana. Entender o ser humano em performance é entender a compreensão da vida humana em contextos múltiplos, inclusive nos espaços em que a representação se dá como mola propulsora de criação, como nas Artes da Cena ou na Literatura. Neste sentido, um conceito tão potente e que se movimenta por várias áreas de conhecimento amplia o entendimento do corpo para além de uma visão médica, biológica, fisiológica. Corpo em performance é um corpo que é visto, vivido, narrado, apreciado, portanto, seu entendimento enquanto noção e conceito possuem importância investigativa em diversos campos do saber porque: O potencial do conceito de performance e o aspecto performativo da instituição de identidade não são desconhecidos no Brasil; já há algum tempo, têm sido moeda corrente nos campos da linguística aplicada, da antropologia, da psicanálise e, com menos assertividade, da sociologia. Nos estudos literários, todavia, parece não ter sido suficientemente explorado, pois, salvo alguns trabalhos ligados às literaturas de minorias, a performatividade de identidades da literatura (...) tem, em grande medida passado despercebida. (LOPES; DURÃO; ROCHA, 2007, p. 10). 4 Sobre este conceito em desenvolvimento, uma das primeiras publicizações do mesmo foi feita pela Profa. Dra. Leda Martins na abertura do curso on line Estudos em Teatro Negro, promovido pela UFBA no dia 12/05/2020, no canal do curso. O conteúdo encontra-se disponível para acesso em: https://www.youtube.com/watch?v=cmiemy5gJkI&t=2430s 38 É no diálogo também com os Estudos Literários que abordaremos aqui o conceito de performance, por entendermos a escrita da vida cotidiana como um discurso em movimento, que grafa no corpo tessituras de sentimentos e memórias, que provocam leituras quando em contato com o outro. Tendo o corpo como canal de estabelecimento de performances na vida cotidiana e tendo o mesmo a possibilidade de dialogar em diferentes áreas de estudo, trazemos uma definição de Zumthor (2007), que dialoga com as áreas aqui citadas, para a compreensão de que, em todas elas, o corpo é texto: O que entender aqui pela palavra ―corpo‖? Despojado como ele está em minha frase, parece escapar, por demasiado puro e abstrato, ideal, como o ego transcendental de Husserrl! No entanto, é ele que eu sinto reagir, ao contato saboroso dos textos que amo; ele que vibra em mim, uma presença que chega à opressão. O corpo é o peso sentido na experiência que faço dos textos. Meu corpo é a materialização daquilo que me é próprio, realidade vivida e que determina minha relação com o mundo. Dotado de uma significação incomparável, ele existe à imagem de meu ser: é ele que eu vivo, possuo e sou, para o melhor e para o pior. Conjunto de tecidos e de órgãos, suporte da vida psíquica, sofrendo também pressões do social, do institucional, do jurídico, os quais, sem dúvida, pervertem nele seu impulso primeiro. (p. 23 – 24). Podemos perceber que o corpo é um texto capaz de escrever outros textos através de percepções sensoriais: o corpo sente, escreve o que sente e inscreve em quem o lê outras sensações, uma vez que em todas as direções e possibilidades de ser/fazer/receber a leitura corporal, lidamos com um corpo que emana reverberações, seja em vida, seja na memória que este imprime após vida. Pensar o corpo como texto é dialogar com o conceito de que o sujeito é um ser corpóreo, tese esta defendida por Thomas Csordas (2008), em sua obra Corpo/Significado/Cura, quando o pesquisador reflete que: Reconhecer que nosso ser é corpóreo não é menos um produto da cultura que da biologia tem o potencial de transformar nossa compreensão tanto de corpo quanto de cultura. Por um lado, se o corpo pode ser mostrado como base existencial da cultura e do sujeito em vez de o simples substrato biológico de ambos, o caminho estaria livre para a compreensão do corpo como não apenas essencialmente biológico, mas igualmente religioso, linguístico, histórico, cognitivo, emocional e artístico. Por outro lado, se até a linguagem pode ser apresentada como o surgimento da corporeidade e não apenas da função representativa do cogito cartesiano, o 39 caminho estaria aberto para definir cultura não só em termos de símbolos, esquemas, trações, regras, costumes, textos ou comunicação, mas igualmente, em termos de sentido, movimento, intersubjetividade, espacialidade, paixão, desejo, hábito, evocação, intuição. (p. 19). Nessa perspectiva, vamos entender a potencialidade existente no estudo sobre a corporeidade humana principalmente quando relacionamos a análise desta em processos de fé. Lugar marcado pela simbologia, as manifestações religiosas se caracterizam em si em um espaço de performatividade de uma crença espiritual que imprime em seus adeptos modos de ser e estar em sociedade. Toda a ritualidade presente no ato de manifestar a fé religiosa tem na corporeidade seu local de ação/profusão/reverberação/exaltação. O corpo como local prático de manifestação de algo sensorial é um canal de manutenção de uma cultura em que a experiência humana, única e intransferível, de crença em seres espirituais, cria laços de manutenção/fundamentação da própria existência enquanto ser/viver/estar no mundo. A corporeidade presente nos atos religiosos reforça a ideia de que ―o corpo não é um objeto a ser estudado em relação à cultura, mas é o sujeito da cultura; em outras palavras, a base existencial da cultura‖ (CSORDAS, 2008, p. 102). No campo religioso, a fé e a devoção são movimentadas pelo e no corpo. A base filosófica de cada manifestação religiosa necessita de pessoas que acreditem na filosofia proposta e que incorporem esta filosofia na vivência/experiência cotidiana. Assim, na performance cultural da fé, seja em que filosofia religiosa for, encontramos uma estrutura organizacional de comportamentos que, seja no espaço religioso ou no espaço social, são vividos e revividos em todos os momentos em que seus adeptos a professam. Existe toda uma corporeidade composta por códigos internos/externos ao corpo que, conforme reflexão da pesquisadora Denise Pimenta (2013), inclui a ideia de que ―corpos de devotos e fiéis também passam por treinamentos corporais e práticas corporais religiosas‖. Isso revela que: Um corpo de alguém que crê é um corpo treinado e que precisa aprender a crer. Assim, a crença no tocante à devoção material passa pelo aprendizado do corpo. O corpo de alguém que crê é, pois, um corpo que crê, e este passa por todo um aprendizado de técnicas corporais específicas para esta ocasião, assim como o corpo que aprende a correr, nadar ou comer. (p. 118). 40 Assim, o corpo de alguém que crê é um corpo físico, mas cultural. Enquanto ajoelha, canta, dança ou gira, o adepto, em sua ação corporal, segue os preceitos comportamentais da manifestação a que tem devoção, mas tendo nesta partitura corporal um elemento de significação pessoal. Cada movimento possui um contexto e proporciona uma experiência no ato de realizá-lo. A profusão da/de fé é um ato de Escrevivência, assim como proposto pela escritora Conceição Evaristo (2007). Escrever as próprias vivências presentes em seu corpo ou vivenciar aquilo que em seu corpo se inscreve é ter a consciência de que escrever é ―um lugar de auto- afirmação de minhas particularidades‖ marcado ―por um comportamento de traços e corpo‖. Escreviver, então, não se resume só a escrever o que o corpo lê, mas ler o que o corpo escreve, percebendo que: Se o ato de ler oferece a apreensão do mundo, o de escrever ultrapassa os limites de uma percepção de vida. Escrever pressupõe um dinamismo próprio do sujeito da escrita, proporcionando-lhe a sua auto inscrição no interior do mundo. (p. 20). Escreviver é uma ação constante no ato devocional a nos mostrar que os preceitos religiosos criam travessias existenciais entre nossas relações com o espaço sagrado x o espaço público. Performar a fé é escrever com o/no corpo ―narrativas mitopoéticas‖ através de ―cantares, gestos, danças‖ nas mais diferentes ―derivações litúrgicas do cerimonial‖ a que se está celebrando. No caso das religiões afro-ameríndias, além das divindades, encontramos o culto aos nossos antepassados nos mostrando um entrelaçamento de saberes oriundos do: Resultado de uma filosofia telúrica que reconhece na natureza uma certa medida do humano, não de forma animística, mas como expressão de uma complementaridade cósmica necessária, que não elide o sopro divino e a matéria, em todas as formas e elementos da physis cósmica. O corpo em performance que reinstala esses saberes expande-se, pois, como corpus cultural. (MARTINS, 2003, p. 77). Retomando o foco de análise sobre a performance cultural da fé vivenciada por agentes da cultura, é que passamos a refletir sobre a performance cultural da cantora Clara Nunes, a partir do seu encontro com a religiosidade afro-brasileira, entendendo como o diálogo Arte e Vida se apresenta junto/com/na performer em sua vivência cotidiana, para além de sua presença cênica, compreendendo como a 41 encruzilhada entre dois campos distintos, a saber, Artístico e Religioso, possuem cruzamentos e transbordamentos oriundos de imersões culturais que promovem encontros identitários por dentro/por fora. Nesse sentido, os estudos do Prof. Zeca Ligiéro (2011) se apresentam como campo fértil de aprofundamento, pois o pesquisador propõe que, para se discutir as Performances brasileiras contemporâneas sob a ótica das Performances Culturais, é preciso: Um estudo da história específica de cada tradição, verificando suas principais características, filosofia, religião, e como estas se desenvolvem nos corpos dos dançantes enquanto estes se movimentam. (...) ou seja, a pintura tem a ver com a coreografia, que por sua vez tem a ver com o figurino, que por sua vez tem a ver com a mitologia, que por sua vez tem a ver com a música; seja na forma de pensar o seu significado como extensão do religioso e do festivo ou como parte intrínseca de ambos. (p. 16). Assim, dois campos que se apresentam em encruzilhada precisam ser entendidos não como dicotômicos ou em conflito, mas como ―saberes que cruzam a esfera do tempo, praticando nas frestas a invenção de um mundo novo‖ tendo a noção de encruzilhada a perspectiva da disponibilidade de ―novos rumos, poética, campo de possibilidades, prática de invenção e afirmação da vida, perspectiva transgressiva à escassez, ao desencantamento e à monologização do mundo‖ (RUFINO, 2019, p. 13). Na encruzilhada Arte x Vida presente na vida/obra de Clara Nunes, a partir de seu encontro com a religiosidade afro-brasileira, temos, de um lado, as práticas performativas destes rituais e, do outro, as práticas artísticas fundamentadas nos elementos dessas culturas. Entretanto, o ponto de entrecruzmento desta travessia está no corpo que, em Clara, pode ser entendido como um corpo-encruzilhada cuja terminologia defendida pelo pesquisador Jarbas Siqueira Ramos (2018) consiste numa ―metáfora capaz de criar trânsitos entre esses dois campos de atuação: as práticas/processos rituais das culturas brasileiras e as artes da cena‖ (p. 39). Se, para o pesquisador Luiz Rufino (2019), a ―encruza emerge como a potência que nos possibilita estripulias‖ (p. 13), experimentemos agora caminhar pelas encruzas das escrevivências da cantora/performer Clara Nunes, saudando Exu, o Orixá Senhor de todas as direções do Espaço e do Tempo que, como Senhor das Encruzilhadas, é aqui invocado para promover ―um verdadeiro furdunço teórico- 42 metodológico‖ porém instaurando seu ―espírito exusíaco de reorganizar, a partir da desordem, para apontar novos caminhos‖ (p. 132). Laroyê 1.2 – A Performance de Clara Nunes Clara Nunes (1942-1983) foi uma cantora brasileira de grande projeção nacional, que revolucionou o cenário musical e artístico do país no fim dos anos de 1970 e início dos anos de 1980, ao lado de grandes nomes da MPB, como João Nogueira e Martinho da Vila, além de revelar consigo grandes artistas, como Romildo e Toninho Nascimento, Gisa Nogueira e o Clube do Samba. Sua obra é até hoje reverenciada no país, sendo ela a primeira mulher a vender discos no Brasil no que tange a números realmente expressivos e carreira consolidada. Celebrada até mesmo no exterior, Clara difundiu o Brasil cantando em português e contribuindo para que o Samba pudesse também estar no mais alto patamar de referência musical brasileira. Registra-se ainda o lugar da mulher em um ambiente até então marcado pela forte presença masculina. Sobre a singularidade de Clara no cenário artístico e musical do país, Giovanna Dealtry (2018) registra: Sabiá, Claridade. Guerreira, Clara Mestiça, Mineira, Ser de Luz, Clarinha. Os diversos epítetos e apelidos identificados a Clara Nunes, ao longo de sua carreira, evocam facetas da personalidade da cantora de emissão vocal impecável, mas também a complexa trajetória da construção de sua identidade musical e performance, únicas no cenário da música popular brasileira dos anos 1970. (p.11). A cantora transitou, durante o percurso de sua carreira, entre as baladas românticas e a Jovem Guarda, dialogando com os estilos musicais que cada época produzia, mas foi no encontro com a cultura afro-brasileira, o Samba e em especial a Umbanda e o Candomblé, que a mesma efetivou uma guinada em sua carreira. Assim, a mineira Clara Nunes dedicou-se a pesquisar as culturas afro-brasileiras trazendo à cena artística referências das religiões de matriz africana, seja cantando 43 pontos (nome específico dos cânticos às entidades) aos Guias e aos Orixás, seja apresentando composições que enalteciam nossa ancestralidade africana e indígena, o eco dessa ancestralidade no Brasil e o percurso do povo negro. Sobre este processo de pesquisa de Clara iniciado a partir da musicalidade afro-brasileira, Dealtry (2018) também afirma que: Foi o samba, sem dúvida, o gênero por meio do qual a mineira se consagrou. Mas ser uma cantora popular significava cantar um Brasil miscigenado, no qual a música figuraria como expressão plena do encontro das três raças originárias de nossa formação. Para isso, entre 1969 e 1970, a pesquisa musical torna-se uma necessidade para Clara Nunes. A princípio centrado na produção de sambistas cariocas, o repertório da cantora mineira na década de 1970 expande-se de forma programática, passando a incluir outros ritmos, como o afoxé, o ijexá, a cantiga, o forró, o baião, mesmo o samba- canção, entre tantas outras referências musicais. (p. 13). Este diálogo entre a ancestralidade africana e a realidade afro-brasileira perpassa a obra de Clara. Sua música traz marcas e possui ritos que confrontam com uma cultura de predominância judaico-cristã. Vagner Fernandes (2007), em sua biografia sobre a cantora, intitulada Clara Nunes: Guerreira da Utopia, nos informa, na contracapa da obra: Quando surgia nos bastidores, à frente das câmeras de TV ou sob os holofotes no palco, não havia quem não se impressionasse com ela. Era uma mulher incomum. (...) Clara era uma explosão. (...) Clara foi a primeira cantora a romper com o estigma de que mulher não vendia disco. (...) Acreditava no amor, nos amigos, no seu canto como instrumento de conciliação, na sua arte como veículo de transformação social, traços de personalidade de uma sonhadora. Mas sonhava com tudo o que poderia ser aplicado de forma concreta. (...) Brasileira, absolutamente sincrética, ―batia cabeça‖ e cantava ponto em terreiro de umbanda ou candomblé, tomava passe em centro kardecista e comungava em igreja católica. Clara era tudo, uma espiritualista por natureza. A voz tornou-se sua arma de batalha. Essa voz guerreira, fortalecida através da evocação da cultura afro-brasileira, promoveu uma guinada na carreira/vida de Clara Nunes e, consequentemente, a estabeleceu no cenário artístico musical a partir do Samba Você passa eu acho graça, composto por Athaulfo Alves (1909 – 1969) e gravado por ela, em 1968. 44 Sobre o Samba sabemos que o mesmo, de acordo com Elzelina Dóris do Santos (2003), Sambista e Mestra em Educação, na obra Contando a História do Samba: Já nasceu polêmico, atravessou o Atlântico nos navios negreiros (tumbeiros), incorporou os chocalhos e maracás dos povos indígenas, anexou a viola dos portugueses, e deu origem ao ritmo de maior popularidade no país e que hoje é referência do Brasil em qualquer parte do mundo. Cantar e contar a história do samba é fortalecer um movimento de resistência e de afirmação do povo negro, que a partir das batidas do tambor das rodas de candomblé e capoeira da Bahia, estendeu-se pelo Brasil. (p. 28). O Samba, estilo musical outrora marginalizado, passa a ter outro status com Clara, por seu movimento/envolvimento com o estilo, aproximando diferentes classes sociais e, ao mesmo tempo, buscando ―desmistificar a visão folclórica da classe média em relação aos sambistas‖ (DEALTRY, 2018, p.22), uma vez que consigo a cantora trouxe diversos representantes deste estilo musical, desde compositores, instrumentistas a cantores e cantoras. É preciso lembrar que, nos anos de 1970, já havia um movimento de valorização do Samba, tendo, por exemplo, a realização da Noitada de Samba, em 1971, no Teatro Opinião, em São Paulo, cujo objetivo era apresentar o que de melhor estava sendo produzido no universo do Samba na Música Popular Brasileira (MPB), se apresentando no palco artistas consagrados e novos talentos. Seus idealizadores, Jorge Coutinho e Leonides Bayer (2009), nos contam na obra Noitada do Samba – foco da resistência que, sobre a época de realização do projeto, percebiam que ―a grande parte dos produtores ainda‖ estava ―naquela de pagar aos apresentadores com cachaça. As pessoas pagam vinte contos para ouvir Maria Bethânia, mas não querem pagar o mesmo para ouvir Clementina de Jesus‖ (p. 65). Ainda no entendimento do Samba como gênero menor, incapaz de revelar todo o potencial vocal e interpretativo de uma/um cantora/cantor, Dealtry (2018) nos diz que: Esta é uma questão ainda nos dias de hoje, como o sambista não é visto como um cantor de música popular brasileira, enquanto, por exemplo, nomes como Chico Buarque de Holanda quando compunham ou interpretavam sambas não perdiam espaço dentro da sigla MPB. Pelo contrário, eram vistos como pessoas capazes de circular entre a canção e os gêneros populares. (p.33). 45 Clara traz para suas apresentações o Samba e seus nomes como o conjunto Nosso Samba5, formado pelos percussionistas Barbosa (reco-reco e voz), Genaro (agogô e voz), Gordinho (surdo e voz), Nô (cuíca, pandeiro e voz), Carlinhos (cavaquinho e voz) e Stenio (reco-reco e voz). Este conjunto acompanhou Clara durante toda a sua carreira, a partir de sua adesão ao referido estilo musical. Clara e seu encontro com o Samba são expandidos ao ponto máximo: o Carnaval, tendo a cantora se imortalizado como uma personalidade artística frequentadora e divulgadora da Escola de Samba Portela6 do Rio de Janeiro. Portanto, a mudança estilística na carreira musical de Clara, a partir do Samba, já possui importante significação, principalmente em um campo marcado pela forte presença de sambistas homens, evidenciando uma importante relação entre imagem e linguagem, no que tange à sua presença neste universo musical, ocupando o lugar de uma mulher que cantava de forma ativa, se pontuando e em primeira pessoa. Entender Clara como constituinte dos estudos das Performances Culturais brasileiras é ―oferecer uma rica e importante contribuição epistemológica sobre algumas práticas culturais performáticas, tradicionais e contemporâneas, em particular as afrodescendentes, todas elas abordadas sob a ótica dos Estudos da Performance.‖ (MARTINS, 2011, Orelha do Livro). Clara Nunes nos revela, através do corpo (o que é vivido e o que é vivenciado), a imagem (o que o corpo apresenta) de nossa própria cultura, buscando na performance, oriunda da vivência pessoal junto à religiosidade afro-brasileira, uma linguagem do ―corpo caligrafado pelo movimento da performance, na qual as coreografias do vivido encorpam a produção estética nos vários âmbitos e contextos culturais, em que se tecem como circunstância, estilo, permanência e efemeridade.‖ (MARTINS, 2011, Orelha do Livro). A trajetória artística e conceitual da performer Clara Nunes está construída em um enredo marcado pela não linearidade, nos apresentando vias diversas de interpretação, gerando encruzilhadas que nos apresentam corporeidades, memórias, linguagens e confluências. Sua performance é uma travessia e traz a vivência do sagrado como elemento de resistência da cultura afro-brasileira ecoada na 5 Para mais informações sobre o Conjunto Nosso Samba acessar: https://dicionariompb.com.br/conjunto-nosso-samba/dados-artisticos 6 Sobre o Grêmio Recreativo Escola de Samba Portela acessar: http://www.gresportela.org.br/ 46 visualidade que a mesma evoca/promove. São passagens como estas que fazem com que a encruzilhada se consolide como elemento integrante da performance cultural de Clara, pois, como aponta MARTINS (1997, p.28), podemos ver a performer como um ―locus tangencial‖: (...) [do] qual se processam vias diversas de elaborações discursivas, motivadas pelos próprios discursos que a coabitam, da esfera do rito e, portanto, da performance, é lugar radial de centramento e descentramento, interseções e desvios, texto e traduções, confluências e alterações, influências e divergências, fusões e rupturas, multiplicidade e convergência, unidade e pluralidade, origem e disseminação. Foto 05: Performances de Clara Nunes – Painel Foto Montagem presente na Entrada do Memorial Clara Nunes – Caetanópolis - Minas Gerais. Fonte: Arquivo do Autor A performance cultural de Clara Nunes dialoga com o conceito de ―corpo da história‖ que nos apresenta uma análise do corpo que ―se retroalimenta ao mesmo tempo em que vive do seu passado, em constante reação a tudo que percebe ao seu redor; o ―corpo da história‖ é um corpo que vive das relações e das interações‖ (LIGIÉRO, 2011, p. 90). Portanto o trânsito religioso pessoal de Clara e a presença do mesmo na sua performance cultural se inserem no campo das Artes Performativas: Nas quais o corpo centraliza a expressão, seja por meio de mimesis ou mesmo de elaboradas formas simbólicas, sem abrir mão, em ambos os casos, do ritmo e do movimento. Nas artes performativas, quase sempre os territórios do sagrado e do profano estão unidos ou ligados por contínuos processos de ritualização. (LIGIÉRO, 2011, p. 195). 47 Zeca Ligiéro (2011) ainda nos diz que o estudo da performance procura a ―confrontação direta com o vivido, o comportamento vivenciado, concentra-se, portanto, na observação do fenômeno em si sem, contudo, abrir mão da pesquisa de campo e de todo o material do processo de produção do evento‖ (p 13). Todos estes elementos estão presentes na performance cultural de Clara Nunes. Mas os mesmos pontos que convergem promovem novas e instigantes encruzilhadas. É por elas que a performance cultural de Clara caminha. Sua travessia é ambígua, encontrando-se entre o que já estava inserido em sua trajetória e o que quer que tenha feito parte da mesma: querer e poder, passividade e transgressão, transparência e ocultamento. Enquanto realizava sua performance, ela narrava para si e para os outros um percurso individual, transformando suas aparições em verdadeiros acontecimentos à plateia. Sua presença possuía um significado que movimentava o instante no processo em que a mesma era coletivizada. No sentido amplo do conceito de performance, os pesquisadores Robson Corrêa de Camargo, Eduardo José Reinato e Heloisa Selma Fernandes Capel (2011) nos informam que a mesma é uma ―palavra inglesa que, com sentido geral de ação, ou processo de ação, remete-nos a um ato cênico, estético formal, da natureza do drama ritual e do espetáculo e, ainda, que se dá a ler a um público‖ (p.11). Portanto o ―corpo da história‖ que perpassa a performance de Clara Nunes está inserido em um recorte teórico específico que é a performance cultural, por esta se expressar e se apresentar ―por meio da forma, materialidades corporais e gestuais que envolvem relações em ato‖ (CAMARGO, REINATO, CAPEL, 2011, p.11). O ato performático de Clara Nunes, que é único e intransferível, transita entre os caminhos do artístico e do religioso, possuindo todo um sistema de códigos e repertório que dialoga com um passado mítico e que: Por sua natureza simbólica e experiencial estabelecem relações com a teatralidade. Círculos com o mesmo centro, mas com diferentes tamanhos. O círculo é a linha que define o espaço vazio que contém. Nas performances, desde sua origem etimológica, fica-nos, de forma combinada, a ideia de realização e movimento, ação e processo, ao mesmo tempo que a encontramos acoplada a algo que resulta, que se completa. (CAMARGO, REINATO, CAPEL, 2011, p.11). 48 Nesse sentido é que o corpo da performer Clara escreve simbologias e reflexões no ato em que acontece a performance em si e que se eterniza por estar associado à experiência vivida pela própria cantora, tornando-se a ―expressão de uma teorização sobre a vida e como ela deve ser vivida e simbolizada‖ (ESTEVES, 2007, p.23). Veículo de comunicação e socialização, a Performance Cultural discute o corpo e sua significação social nos mostrando que Clara Nunes nos apresenta um texto performado em que a performer se transforma em coautora a partir do momento em que sua proposta de criação, ou seja, o contato com as culturas afro- brasileiras, passa a fazer parte não só de sua produção artística, mas de sua vida nos apresentando um discurso pessoal que: Compõe-se num processo de sobreposição e diálogos em camadas sucessivas, camadas essas que podem dialogar em harmonia ou antagonismo, ou num misto oscilante, numa combinação híbrida entre esses dois. Esse texto-montagem de várias mãos, de formato palimpsético, com suas diferentes camadas de escritura, o cenário, o figurino, a luz e o som, etc. torna-se local de encontro dos textos coexistentes, onde a cena é o meio que permite o transporte e a exibição de seus vários e diferentes textos. (CAMARGO, 2011, p. 40). Camadas como o repertório gestual, corporal e vocal de Clara Nunes demonstram como suas aparições se davam como acontecimentos performáticos, do ―jogo entre aquele que cria de um lado e, por outro, aquele que assiste, consome e interage com a criação‖ (CAPEL, 2011, p. 137), uma vez que o corpo e a voz não são apenas recursos de teatralidade, são também canais comunicativos que possuem significados relacionados a questões pessoais de representação. Portanto, estudar a corporeidade na/da performance cultural de Clara Nunes como texto é ―estudar o corpo como objeto cênico, bem como o próprio corpo como um equilíbrio entre o que está dentro e fora de sua materialidade‖ (CAPEL, 2011, p. 139). Enquanto corporeidade, retomamos o conceito a partir de Csordas (2008), quando este nos diz que ―o corpo é um ponto de partida produtivo para analisar a cultura e o sujeito‖ (p. 145) e que nas encruzilhadas cognição e emoção/mente e corpo, é preciso reconhecer o corpo ―pelo que ele é em termos vivenciais, não como um objeto mas como sujeito‖ (p. 142). 49 A performance de Clara evocada a partir da cultura religiosa afro-brasileira se amplia quando a própria performer faz do elemento cultural seu projeto pessoal, fazendo com que sua vida reflita suas escolhas estéticas, mas também ideológicas, apresentando uma cena em que, em sua concepção, os: Elementos estético-simbólicos da liturgia afro-brasileira ou africana são transpostos para a cena contemporânea. Eles podem aparecer ou serem escamoteados de acordo com o tratamento dado aos elementos componentes da cena, aí se apresentam e são recriados mitos, gestos, ritmos; neste processo se verifica as diferentes escolhas no jogo entre a tradição e a recriação do universo litúrgico na dramaturgia adotada por cada criador. (FERRAZ, 2011, p. 173). Clara estudou a religiosidade afro-brasileira aprofundando-se não só em sua sonoridade, mas em sua relação com um corpo que dança a fé, percebendo o simbolismo do corpo e suas virtuosidades, transitando nas relações entre passado e presente e no modo como estas se manifestam no imaginário brasileiro a partir de uma performance cultural que ―associou o corpo num acontecimento social espetacular, na perspectiva de entender uma forma de ser corporalmente, de se comportar, de agir, de falar, de cantar e de se enfeitar‖ (ZENICOLA, 2005, p. 149). Este aprofundamento é fundamentado em sua viagem, em janeiro de 1971, ao continente africano, a convite do cantor Ivon Cury, para apresentação de ambos na final do concurso Miss Angola. As reverberações desta viagem em sua formação cultural e também em sua busca pessoal foram decisivas, como nos conta seu marido Paulo César Pinheiro, também compositor e seu produtor musical, em depoimento presente na biografia da cantora ao jornalista Vagner Fernandes (2007): Foi Clara que se inventou. Ninguém fez isso para ela. Tanto que, quando ela resolveu abraçar as músicas de teor afro-brasileiro, em uma época em que não se cantavam canções sobre orixás, procurou a Mercedes Batista, professora de dança afro. Queria mostrar dançando o que estava cantando, o significado das letras, dos orixás. Quando pisava no palco, não era uma coisa à-toa, era algo preconcebido. (p. 182 – 183). Ter aula com Mercedes Baptista (1921-2014) é, por si só, um processo de formação artística, mas também identitária, pois esta foi a primeira bailarina negra que dançou no Theatro Municipal do Rio de Janeiro, espaço este que se configura como uma instituição clássica, elitista e histórica de realização e fomento da Arte no 50 Brasil. Além de bailarina, coreógrafa e professora, Mercedes Baptista foi militante da cultura e da identidade do negro brasileiro, com reconhecimento enquanto personalidade negra pela Fundação Palmares, órgão federal brasileiro de promoção da afro-brasilidade. Mercedes era um corpo constituído por muitas histórias que ressoavam na Dança que produziu e ecoavam nos corpos de suas alunas e alunos em movimento durante suas aulas. E Clara vai, de corpo, ao encontro destes ecos históricos. Em diálogo com os Estudos Literários, podemos entender que o conceito de ―corpo da história‖ discute o lugar da escrita a partir do próprio corpo do sujeito do enunciado, percebendo a escrita como um ritual composto de múltiplos gestos. A performance cultural de Clara promoveu uma escrita no imaginário brasileiro no sentido de uma comunhão religiosa, como pode ser comprovado nas inúmeras cartas que a cantora recebeu no hospital, mesmo estando em coma no CTI, fato oriundo de um choque anafilático durante uma operação de varizes. Este material encontra-se catalogado junto ao acervo do Memorial Clara Nunes, em Caetanópolis/MG. A escrita oriunda da performance cultural de Clara pode ser vista como um lugar de afirmação de suas particularidades e especificidades, principalmente enquanto sujeito-mulher-religiosa. A performance construída para Clara Nunes é subvertida pela própria performer quando o material estético passa a ser/habitar sua escrita cênica e pessoal, pautando sua vivência, estabelecendo grafias de ―comprometer a vida com a escrita ou é o inverso? Comprometer a escrita com vida?‖ (EVARISTO, 2007, p. 17). Clara entende e se situa junto ao universo da indústria cultural. Temos como exemplo todo o cuidado da performer para com sua carreira, chegando a possuir um Teatro, com seu próprio nome, e uma produtora musical de nome Odara. 51 Foto 06: Clara em seu Teatro que leva o seu mesmo nome. Fonte: Adhemar Veneziano/Editora Abril. Foto publicada na biografia de Clara. Mas a subversão ora entendida e defendida neste ebó é também compreendida como a virada, o giro epistemológico que o contato com a musicalidade afro-brasileira proporciona não só à Arte de Clara, mas à sua Vida. A subversão está no pertencimento desta sonoridade ao seu viver, refletindo seu corpo como um texto de vivências. Da sonoridade afro-brasileira do Samba há um giro epistemológico para a sonoridade ritual religiosa afro-brasileira. Não é mais uma performance cênica, mas sim uma performance cultural. Seu corpo escreve e nele se inscreve em um processo de construção não só de sua identidade artística, mas de sua identidade pessoal. É este giro epistemológico entre o que se canta e o que se vive que promove em sua trajetória ―esse movimento, de colocação de si na posição de narrador da própria história‖ (MELO, GODOY, 2017, p. 1285). É seu corpo em Escrevivência, assim como nos propõe Conceição Evaristo (2005), que não dicotomiza, mas revolve sua existência a partir de sua experiência, apresentando, na encruzilhada Arte x Vida, a religiosidade como a interseção que repercute em Clara um escreviver que ―toma-se o lugar da escrita, como direito, assim como se toma o lugar da vida‖ (Evaristo, 2005, p. 202). E que lugar na vida seria esse para Clara? Seria um lugar que, como nos aponta Zumthor (2007), ―consegue vislumbrar, pela fissura no ―real‖, a alteridade e colocar-se em cena como sujeito, para que, então, possa narrar e narrar-se, recolar os estilhaços das constantes quebras de si?" (p. 41). Estas questões podem ser respondidas ao percebermos que todos os elementos presentes na performance cultural de Clara Nunes mostram que sua 52 presença estabelece uma liturgia, onde a vivência é o ofício, em uma escrita que é lida pelo espectador, pois: Os acontecimentos maiores que definem minha existência, meu nascimento e minha morte, não me pertencem. Porque, para que ganhem sentido de acontecimento, precisam ser situados em relação a um antes e a um depois. E não posso estar