UNIVERSIDADE ESTADUAL PAULISTA “Júlio de Mesquita Filho” Câmpus Experimental de Ourinhos Robson Azevedo dos Santos Neoliberalismo no Brasil: um debate sobre as políticas dos governos federais petistas de 2003 a 2015 Ourinhos – SP 2020 UNIVERSIDADE ESTADUAL PAULISTA “Júlio de Mesquita Filho” Câmpus Experimental de Ourinhos Robson Azevedo dos Santos Neoliberalismo no Brasil: um debate sobre as políticas dos governos federais petistas de 2003 a 2015 Trabalho de Conclusão de Curso apresentado à banca examinadora para obtenção do título de Bacharel em Geografia pela Unesp – Campus Experimental de Ourinhos. Orientador: Prof° Dr° Paulo Fernando Cirino Mourão Ourinhos – SP 2020 Banca examinadora Prof. Dr. Paulo Fernando Cirino Mourão (Orientador) Prof. Dr. Clerisnaldo Rodrigues de Carvalho Prof. Dr. Marcelo Dornelis Carvalhal Ourinhos, 13 de agosto de 2020 Agradecimentos Meus agradecimentos vão ser primeiramente a minha família, que acreditou e embarcou comigo nesse sonho de me tornar professor e geógrafo, sempre estando presentes na minha vida mesmo à distância. Dando os mais variados tipos de apoios e conforto. É meu porto seguro, minha base, minha raiz. Seu João, Dona Maria, Vera e Solange, vocês são tudo na minha vida. Gostaria de agradecer aos meus amigos de longa data (desde o colegial) que mesmo distantes, também foram muito presentes na minha vida e que me ajudaram a não baixar a bola em momentos de maior tormenta. Agradeço a todo o corpo técnico administrativo, pessoal da biblioteca, da limpeza, e todos os demais setores do Câmpus Unesp-Ourinhos que sempre que lhes solicitei agiram com muito respeito, cuidado e responsabilidade. Agradeço também a todos os professores do câmpus que me ajudaram na minha formação enquanto ser pensante e profissional da área de geografia, em especial ao professor Paulo que me orientou nesse trabalho de conclusão de curso e também a professora Marcia, Carla e Amir que também foram de suma importância para mim enquanto orientadores do projeto PIBID do qual participei e tenho profundo carinho e respeito pelo programa que me ajudou a ter a mínima noção de como se portar em sala de aula. E por fim a todas as amizades que fiz no Câmpus e fora dele que me ajudaram a alterar minhas perspectivas, diminuir o provincianismo inerente ao ser humano e que colaboraram comigo de alguma forma na minha formação enquanto indivíduo, na criação de vínculos afetivos dos quais muitos quero levar para o resto da vida. Resumo Este trabalho tem como intuito discutir a relação entre o Estado brasileiro e os agentes dos setores financeiro e produtivo, tanto nacional quanto internacionalmente. A partir de uma análise sobre a consolidação do neoliberalismo nas instituições burocráticas nacionais e também na sociedade como um todo. O foco principal são os 13 anos de governo petista (2003-2016) e sua relação com políticas neoliberais, considerando que o Partido dos Trabalhadores (PT) nasceu no berço de ideologias de esquerda, historicamente opostas ao neoliberalismo. Por fim, uma análise das motivações do processo de impeachment da presidente Dilma Rousseff em 2016. PT, neoliberalismo, impeachment, governos petistas. ABSTRACT This research aims to discuss the relationship between the Brazilian State and the agents of the financial and productive sectors, both nationally and internationally. From an analysis of the consolidation of neoliberalism in bureaucratic institutions and also in society as a whole. The main focus is the 13 years of PT government (2003-2016) and its relationship with neoliberal policies, considering that the Workers Party (PT) has emerged from left-wing ideologies, historically opposed to neoliberalism. Finally, an analysis of the reasons for the impeachment process of President Dilma Rousseff in 2016. PT, neoliberalism, impeachment, PT governments Sumário 1. Introdução .............................................................................................................. 8 2. Objetivos ........................................................................................................... 11 3.Um breve histórico sobre o neoliberalismo e suas raízes. ............................... 12 3.1. Raízes do neoliberalismo no Brasil ................................................................. 17 4. A natureza do rentismo....................................................................................... 22 5. Neoliberalismo e petismo: rompimento do governo com as práticas ortodoxas ou seguimentos nas ideias de FHC? ................................................... 34 6. O impeachment de Dilma Rousseff e a interferência do neoliberalismo no seu processo de queda........................................................................................... 45 6.1. As classes dirigentes e suas relações com o Estado ........ Erro! Indicador não definido. 6.2. O comportamento das frações de classe diante da crise política .............. Erro! Indicador não definido. 7.Considerações finais............................................................................................71 8.Referências bibliográficas ................................................................................... 72 8 1. Introdução O Estado, como instituição que deveria atender as demandas da sociedade de acordo com as necessidades de cada indivíduo, não parece guardar uma relação de equidistância entre o seu aparato burocrático e o neoliberalismo assim como guarda entre essa instituição e seu povo. Embora isso tenha recorrência em diversas nações, vamos nos reportar ao caso brasileiro e a sua relação com as classes dirigentes composta basicamente pelo setor rentista e produtivista, e o rentismo internacional por intermédio de políticas neoliberais. Fazendo um recorte de análise da história recente do país, que permeia mais precisamente desde a década de 80, até os dias atuais, vamos analisar o curso das políticas que foram adotadas desde a redemocratização do Brasil, porém dando ênfase aos 13 anos de governo petista até a queda da presidente Dilma Rousseff no ano de 2016 e tentar entender o que ocorreu durante todo esse processo e quais os motivos levaram a queda da presidente. Muito embora não houvesse ruptura total com o pensamento neoliberal de governos anteriores, os 13 anos de governo do PT se utilizou de algumas políticas neodesenvolvimentistas, como assim fora chamada, mais precisamente no primeiro mandato do governo Dilma, que destoava em muitos aspectos do governo Lula. Enquanto o foco do governo Lula foi dar sequência ao que era dado no governo FHC, como obtenção de superávit primário, metas de inflação e câmbio flutuante, Dilma alterou um pouco a relação do país com a política do tripé macroeconômico, tentando trabalhar com juros baixos, por exemplo, numa tentativa de reativar a indústria nacional e gerar emprego e desenvolvimento. Logo de saída é importante ressaltar que Lula, principalmente em seu segundo mandato, foi quem deu o pontapé inicial nas políticas novo-desenvolvimentistas, porém o governo Dilma foi quem aprofundou esse projeto. Em 1989, após o Consenso de Washington, o Brasil foi posto numa encruzilhada política, econômica e social pelo centro do capitalismo que arrebataria o país de modo acachapante. A “modernização” das práticas econômicas do país, através de medidas de austeridade fiscal, das práticas políticas e das práticas sociais, através da modernização das leis trabalhistas, entre outras medidas, fizeram o Brasil ainda mais refém do grande capital internacional. 9 Após tentativas, em boa parte, inócuas de alçar a economia do país ao andar de cima através de modernização econômica, política e social com base nos dogmas neoliberais, o país abriu espaço para um governo com pensamento de espectro um pouco mais à esquerda. Com reivindicações de melhorias nos indicadores sociais, econômicos e com um clamor no sentido de se extinguir a corrupção do país, um estigma da sociedade brasileira desde os primórdios, o presidente Luís Inácio Lula da Silva, no dia 1° de Janeiro de 2003, subiu a rampa do palácio do planalto com a missão de atender a todos esses anseios da sociedade de modo satisfatório. Nós então assistiríamos a um dos maiores avanços econômicos e sociais (Com inúmeras ressalvas que serão melhor estudadas ao longo desse trabalho) que o país já teve, avanços esses refletidos principalmente no aumento da capacidade do poder de compra das classes sociais menos favorecidas (que pouco tempo depois foi alcunhada de “nova classe média”). Aproveitando o cenário de bonança mundial, o país passou a ser um grande exportador de diversos tipos de commoddities como a soja, carne, cana- de- açúcar e assumiu um protagonismo internacional, principalmente por conta dos imensos superávits primários, inclusive ganhando destaque em uma épica capa de revista em novembro de 2009, revista essa das mais importantes de análise econômica do mundo, a britânica “the economist” com o seguinte título: “O Brasil decola” e onde vemos o Cristo Redentor (imagem do Brasil mundialmente conhecida) com uma chama em seus pés fazendo alusão a um foguete, ou seja, o país ganhava importância e respeito no cenário internacional, formou grupos econômicos como o BRICS (União dos 5 maiores países emergentes à época, composto por Brasil, Rússia, Índia, China e África do Sul) e fortalecendo antigos grupos como os do MERCOSUL, que têm como integrantes básicos Brasil, Argentina, Paraguai e Uruguai e logo esse bloco seria estendido a outros países da América do Sul. Porém, toda essa política adotada durante o governo Lula com um abrupto aumento do consumo e um aquecimento do setor produtivo do país veio a causar implicações que trataremos ao longo desse trabalho com maior detalhamento. Após dois mandatos com grande sucesso, (Lula da Silva sai com 84% de aprovação popular, no final de seu governo), embora não sem tumulto por conta de denúncias de corrupção no conhecido caso do “mensalão”, o então presidente Lula cacifou a sua ministra chefe da Casa Civil à época, Dilma Rousseff, para candidatura à presidência no ano de 2010. Sem a mesma retórica, traquejo político e o mesmo 10 carisma de seu antecessor, a presidente conseguiu se eleger com margem apertada em relação ao seu opositor, o ex-governador de São Paulo, José Serra. Nosso trabalho em questão tem como metodologia a revisão bibliográfica de autores que trabalharam esses temas os quais discutiram aspectos relevantes para a estruturação do nosso estudo. Ciente das diversas formas de interpretação e análise dos fatos ocorridos nesse período, relacionados aos mais variados atores que constituíram esse momento da história do país, resolvemos adotar uma linha específica para que possamos fazer argumentações de forma coesa e com uma visão que acreditamos ser a mais plausível, mesmo que saibamos que as outras formas de análise possam ser, inclusive, frontalmente opostas a nossa linha argumentativa. O trabalho se encontra dividido em mais quatro capítulos dos quais iremos discutir no capítulo 3 as raízes do pensamento liberal tanto em âmbito global como em escala nacional. Traçar um histórico do seu surgimento que tem raiz no liberalismo clássico com ideais iluministas, até seu processo de transformação e repaginação no chamado neoliberalismo. No capítulo 4 discutiremos a natureza do capital rentista, como que ele acabou se acoplando ao Estado nacional. No capítulo 5 discorremos sobre os primeiros governos Lula e a sua relação com o neoliberalismo. É tido, por alguns analistas e pelo senso comum, que o governo PT representou uma época de ligação muito estreita aos “ideais comunistas”, onde o partido, enquanto esteve no governo, adotava políticas alinhadas as políticas de “países soviéticos”, por exemplo. Vamos, através da literatura pesquisada buscar os fatos sobre essa questão. E no capítulo 6 vamos tentar amarrar diversos pontos dos capítulos estudados ao longo desse trabalho que vai ter como desfecho a queda da presidente Dilma no ano de 2016. 11 2. Objetivos 2.1 Objetivo geral O objetivo geral desse trabalho é entender a natureza do capital rentista, entender como ele começou a exercer influência sobre as decisões políticas no Brasil através do neoliberalismo econômico com foco no período dos 13 anos de governo do PT. E para isso precisamos também estudar a origem desse sistema neoliberal bem como estudar as origens do PT, suas transformações até a chegada ao poder no ano de 2003 e seus desdobramentos futuros no comando do país, primeiro na figura do presidente Luís Inácio Lula da Silva e posteriormente sob o regimento da presidente Dilma Rousseff. 2.2 Objetivo específico Temos como objetivo específico buscar ilustrar os fatores que levaram a ascensão e a queda do Partidos dos trabalhadores (PT) sacramentada com o impeachment da presidente Dilma Rousseff no ano de 2016. 12 3. Um breve histórico sobre o neoliberalismo e suas raízes Para entendermos as raízes do neoliberalismo, é necessário, antes de tudo, entender por que o termo “neo” fora aplicado. O termo “neo” vem do latim e indica novo, ou seja, o termo neoliberalismo nada mais é que novo liberalismo. Então o que vem a ser o liberalismo? Para entender esse conceito temos que citar as intensas lutas políticas na Europa com a derrubada de monarquias absolutistas. Esse processo de derrubada do regime monárquico e a ascensão do regime liberal consolidado no ano de 1848, colocaria a burguesia como classe dominante desse sistema. Segundo Melo: O chamado liberalismo foi uma vertente da teoria política que buscava realizar duríssimas críticas às sociedades medievais e legitimar e dar fundamento à nascente sociedade burguesa, que ainda engatinhava: criticas econômicas (relação dos impostos à nobreza e ao clero, exploração do trabalho de comerciantes e servos, barreiras para trocas); críticas políticas (poder concentrado nas mãos de reis e Igreja; falta de qualquer processo democrático; violência política contra quem criticasse). (MELO, 2017, p .25) A despeito desses ideais iluministas, tínhamos vários pensadores que encabeçavam esse movimento, entre eles John Locke (1632-1704) Jean Jacques Rousseau (1712-1778), além de Adam Smith (1723-1790) tido por muitos como o pai do liberalismo econômico que escreveu a obra “A riqueza das nações” e que sustenta boa parte do pensamento liberal econômico que temos nos dias atuais. No que diz respeito às diferenças entre esses pensadores no campo das ideias liberais, Melo pontua: A despeito da profunda diferença desses pensadores, inclusive em colocar um autor preocupado com a desigualdade social e defensor de formas democráticas de sociedade como Rousseau no mesmo campo que Locke e Adam Smith, em como possuem a crítica radical à forma societária do antigo regime. A crítica à intervenção estatal nos assuntos privados dos cidadãos - algo plausível, tendo em conta que estamos falando do Estado absolutista - foi comum nesse processo bem como a defesa da iniciativa econômica individual. (MELO, 2017, p .25) Esse sistema viria a se tornar hegemônico nas principais economias do mundo até a crise de superprodução que resultou na quebra da bolsa de valores de nova Iorque. Feito essa brevíssima introdução, podemos partir para uma análise da gênese dessa ressignificação do pensamento de base liberal e contextualizar em qual momento histórico surgiram esses ideais até que ela se consolidasse e fosse 13 dominante principalmente no mundo ocidental a partir dos anos 1980. Para isso precisamos entender o que se passava no mundo à época e entender um pouco sobre soluções e propostas para um modelo de economia em plena crise estrutural de reprodução do capital. Após as duas grandes guerras e uma crise profunda do capitalismo nos anos 1930, os economistas buscavam uma resposta para que o sistema capitalista não entrasse de vez em colapso. As duas grandes guerras devastaram principalmente o continente europeu, assim como a crise da bolsa de valores havia desestabilizado o sistema financeiro global. Foi diante de tal cenário que então surgiu o nome de um economista britânico, John Maynard Keynes que indicava que o Estado deveria tomar as rédeas da economia, fazendo uma regulação da mesma, já que a crise de superprodução que levara a quebra da bolsa de valores de Nova Iorque, fora causada pelo mercado completamente desregulado. Keynes achava o sistema capitalista um sistema excelente, porém era um sistema que necessitava de uma regulação que existia fora de sua própria lógica para estabelecer um nível de emprego. Segundo Paulani (2011, p. 35) Keynes “considerava o capitalismo um excelente sistema, mas que não podia andar sozinho, sob o risco de se autodestruir. Por isso, ele devia ser regulado, acompanhado por uma instituição externa à sua própria lógica, o Estado” Posto isso, a grande questão é como um mundo que acabara de sair de acontecimentos com tremendo impacto político, econômico, histórico e social, conseguira logo após, esses eventos tremendos avanços? Segundo Paulani: [...] Isso pode ser atribuído a uma série de fatores, dentre os quais a regulamentação, uma espécie de domesticação dos termos capitalistas. O capitalismo se move pela lógica do lucro, mas sua sobrevivência como sistema depende de ele apresentar serviços tais como: promover o desenvolvimento; reduzir as desigualdades; criar direitos sociais (PAULANI, 2010, p. 36) Ou seja, a intervenção do Estado na promoção do estado de bem estar social foi essencial para que o capitalismo não entrasse em ruinas. Foi através de políticas como “new deal” nos Estados Unidos e o plano Marshall para Europa ocidental foram mecanismos de forte intervenção estatal na recuperação das economias de países centrais fortemente afetados com as crises que foram causadas pelos eventos citados anteriormente. Theotonio dos Santos (1999) ressalta a importância do pensamento liberal em diversos campos da sociedade como restauração de uma “democracia 14 política”, mas na área econômica mostra que o liberalismo havia perdido espaço e que eram necessárias outras medidas econômicas: Logo após a II Guerra Mundial estendeu-se uma onda política liberal no mundo. O nacionalismo, o protecionismo, o militarismo, o racismo haviam conduzido o mundo a duas brutais guerras mundiais. Tratava-se de resgatar a democracia política, o livre comércio, as doutrinas liberais de respeito às minorias. Contudo, no plano econômico, reconhecia-se os limites da economia liberal. A intervenção estatal revelava-se necessária para garantir os mercados e estimular o crescimento e particularmente o emprego. (SANTOS, 1999, p. 126) Porém, durante essa mesma época, surgia um pensamento de cunho liberal para resolução desses problemas econômicos, onde um grupo de estudiosos “(...) Sob a inspiração de Von Mises, de Hayek e de outros líderes desta corrente, reuniu-se em abril de 1947, no Hotel Mont Pèlerin, no sul da Suíça, com 37 participantes” (SANTOS, 1999, p. 127) onde entre eles estavam presentes “os economistas Milton Fredman e Von Mises e o filósofo austríaco Karl Popper, entre outros” (PAULANI, 2010, p. 35) tendo como finalidade “(...) estruturar um pensamento capaz de criar o contraponto para impedir que a economia capitalista fosse regulada pelo Estado.” Segundo esses estudiosos, as medidas políticas a serem adotadas deveriam ter o mínimo de presença do estado e que qualquer interferência estatal deveria ser mínima para não tolher a liberdade individual do cidadão. De acordo com Paulani: A ideia era que qualquer intervenção do Estado, fosse direta ou por intermédio de empresas estatais, tiraria a liberdade dos indivíduos. Era preciso preservar o capitalismo como economia de mercado, com o Estado assumindo um papel mínimo. Qualquer outra forma faria com que as pessoas entrassem em rota de servidão a uma autoridade (PAULANI, 2010, p. 36) Porém, ainda segundo a autora, em função da ausência de uma base teórica, esse encontro sofreu crítica de Hayek, o coordenador dessa reunião na Suíça, acabou se tornando uma “profissão de fé” (Paulani, 2010) onde tentou-se seguir com essas ideias “sem fundamentos teóricos de qualquer natureza, assentada apenas em sua profissão de fé quanto às virtudes intrínsecas do mercado” (PAULANI, 2010, p. 36). Por isso, é considerado pela autora e outros pensadores como uma “doutrina neoliberal” e não necessariamente um pensamento com embasamento científico. Ainda sobre o entendimento do conceito de neoliberalismo Von Mises se opunha a esse entendimento. Segundo ele: emprego o termo liberal com o sentido a ele atribuído no século XIX, e ainda hoje, em países da Europa Continental. Esse uso é imperativo, porque simplesmente não existe nenhum outro termo disponível para significar o 15 grande movimento político e intelectual que substituiu os métodos pré- capitalistas de produção pela livre empresa e economia de mercado; os absolutismos de reis ou oligárquicos pelo governo representativo constitucionall; a escravatura, a servidão e outras formas de cativeiro pela liberdade de todos os indivíduos. (Mises, 1990, apud SANTOS, 1999, p. 130) Assim se estruturava o neoliberalismo nos anos 1940, sem uma adesão alta dos governos à época, mas que se fortaleceria após os “anos dourados” do capitalismo de base keynesiana. Paulani ainda diz que: Durante os 30 anos de ouro, os neoliberais ficaram falando sozinhos, e por muito tempo. Brinco dizendo que eles eram uma seita de extraterrestres que vivia pregando no deserto, enquanto o mundo caminhava em outra direção. Mas a história mudou. (PAULANI, 2010, p. 37) Isso ilustra como essa doutrina era desprezada pelas economias ao redor do mundo, justamente por ser inconcebível naquela época aplicar essas medidas neoliberais sem fundamento teórico. Porém, nos anos 70 o sistema keynesiano começou a sofrer com a mudança de natureza reprodutiva do sistema capitalista. Em função da diminuição da produção já que a demanda por investimentos estava suprida, o capital precisava circular e em função do acordo de Bretton Woods, “Esse sistema hierárquico coordenado e regulado pelos Estados nacionais, com sistema de câmbio administrado e com controle rígido dos fluxos de capitais” Paulani (2010, p. 37) o capital encontrava obstrução a sua livre circulação. Segundo Melo: Os anos 1970 marcaram a crise desse movimento que durou perto de trinta anos. Primeiro porque essa forma de operar do sistema capitalista trazia limitações ao movimento do capital, uma vez que havia claras barreiras à movimentação para importação e exportação de produtos (como pensar capitalismo sem circulação mundial de mercadorias?) e também circulação financeira de capitais (bolsa de valores, títulos financeiros e empréstimos de bancos estrangeiros à países e empresas na periferia do sistema capitalista) (MELO, 2017, p. 26) Sobre esse assunto, que dada suas implicações veio a levar posteriormente o sistema neoliberal a hegemonizar no mundo após a crise de 1970, Paulani (2010) complementa: Um dos fatores mais importantes que permitiram a ascensão dos neoliberais foi a desaceleração cíclica, acontecimento normal depois de duas décadas de forte crescimento econômico, que vem acompanhado de grande volume de investimentos. Em determinada hora, a demanda por investimentos fica suprida, e há uma desaceleração, o que é natural. O investimento não acaba, mas cresce a taxas menores, e essa variável reduz o crescimento econômico. (PAULANI, 2010, p. 37) 16 Em função dessa desaceleração, muitas empresas norte-americanas passaram a retirar o dinheiro da base produtiva, já que essa não mais dava retorno financeiro, e passaram a aplicar numa espécie de mercado financeiro da época Paulani (2010). Esse processo de financeirização da economia, fez Richard Nixon romper com o padrão ouro, ou seja, rompia assim com o acordo de Bretton Woods, onde o dólar era lastreado em ouro. De acordo com Paulani: A economia americana estava numa encruzilhada, precisava desvalorizar o dólar, e não havia meios para isso. A alta do dólar para os Estados Unidos levava a uma brutal concorrência com outras economias, como a japonesa, produzindo grandes déficits comerciais que, em última instância, deviam ser pagos em ouro. O presidente da França, Charles de Gaulle, piorava o quadro, pois cobrava o tempo todo dos americanos o ouro francês lá depositado. (PAULANI, 2010, p. 38) A emissão de dólar com o intuito de resolver problemas como, por exemplo, a guerra no Vietnã causou uma imensa liquidez da moeda no sistema global e assim os EUA causava uma espécie de exportação da sua inflação para o mundo acarretando na instabilidade da economia mundial. Esse excesso de dólar no mercado propiciou uma desvalorização da moeda. Com o dólar se desvalorizando e os preços das commodities também sofreram depreciação nos seus valores e com isso “os anos de 1970 marcaram também a crise do petróleo, em que países produtores decidiram aumentar o preço do produto, causando problemas em diversos países.” (Melo, 2017, p. 26). Porém, como essa crise foi despertada inicialmente pelos Estados Unidos com o seu calote global, Paulani faz uma importante observação. [...] O choque do petróleo, em 1973, não foi uma ideia maluca de cinco árabes que resolveram encher a paciência do mundo. Ele foi uma resposta a uma situação econômica em que a desvalorização do dólar desacertara o preço do petróleo nessa moeda. Na esteira do dólar, uma série de outros bens teve seus preços alterados (PAULANI, 2010, p. 38) Ou seja, foi algo que ocorreu em função de uma quebra dos EUA com o acordo estabelecido em New Hampshire em 1944 que levou a depreciação do valor do barril de petróleo. Entretanto, em 1979 houve o segundo choque do petróleo, esse sim, causado pelos países árabes, e com isso veio a recessão mundial. A produção havia estagnado de vez e a riqueza financeira, acumulada durante esse período, não tinha como circular em função do alto controle de fluxo de capitais promovida pelos Estados nacionais. A partir daí os detentores de riqueza e desses capitais passaram a fazer pressão para que o Estado fosse menos presente e que deixasse a riqueza produzida entrar em circulação. Estava dada a senha para que o processo de financeirização 17 fosse estabelecido e a entrada apoteótica do neoliberalismo no mundo, a partir de então, se consolidando. Ronald Reagan (EUA) e Margareth Thatcher (Grã-Bretanha) foram os expoentes do movimento neoliberal nos anos 1980 resgatando-o da sociedade Mont Pèlerin. Adotaram medidas de cortes em direitos sociais e em áreas como a saúde pública, privatizando o setor. Essas ideias difundidas pelos governos da Inglaterra e dos EUA chegaram na América Latina através do Consenso de Washington que tinha, como ideia de Estado para os países latinos, um aparelho estatal que obtivesse superávit primário e para isso seria necessário, entre outros mandos e desmandos da cartilha neoliberal, atingir metas de inflação, ter um Estado mínimo que era refletido através do processo de privatização, disciplina fiscal, corte de gastos públicos com setores essenciais à população, se assim fosse necessário, tudo para remunerar o capital internacional em função dos endividamentos dos países latino-americanos com o capital internacional, ou seja, para o setor rentista global, o Estado teria que, no fim das contas, gerar lucros e não suprir as necessidades mais básicas de sua população. A partir desse ponto vamos tratar do caso específico do Brasil, de como esse neoliberalismo se instalou no coração da máquina pública, como se deu e como se dá essa relação do aparelho estatal com os agentes econômicos defensores das políticas neoliberais. 3.1. Raízes do neoliberalismo no Brasil Essa ideologia de Estado mínimo chega no Brasil com uma ideia de inovação, eficiência, enxugamento da máquina pública e de corte de gastos para investimento em setores essenciais para o funcionamento da sociedade. Um discurso asseado que tinha um certo apelo social. É por intermédio do presidente Fernando Collor de Melo que o país é apresentado aos dogmas neoliberais. Disferindo ataques ao Estado, é através de uma espécie de novo populismo, tema que será abordado mais adiante nesse trabalho, que antes mesmo de tomar posse em seu discurso de campanha é proferido ataques aos funcionários públicos de alto escalão ou com salários mais significativos dentro da máquina pública, como uma forma de jogar a população contra a fatia desse setor de trabalhadores. Além disso a responsabilidade fiscal e uma ausência de controle de fluxos circundava o pensamento de Collor. Como pontua Paulani: 18 Quem trouxe, politicamente, a agenda neoliberal para o país foi o ex- presidente Fernando Collor de Mello. Naquela disputa entre Collor e Lula, em 1989, o programa de governo do primeiro era a caça aos marajás, porque havia a noção de que o Estado só servia para pagar altos salários a quem nada fazia. Isso estava embolado com a ideia de que era necessário reduzir o tamanho do Estado, privatizar, ter um controle estrito dos gastos, uma política monetária rígida, abrir a economia e liberar o fluxo de capitais – tudo no mesmo pacote. Collor, como sabemos, não chegou a implementar essa agenda, mas fez privatizações importantes. (PAULANI, 2010, p. 40) Através dessa tática podemos notar que o ataque não mais era ao imperialismo dos países dominantes sob a periferia dominada pelo capital, como outrora tinha em mente como Getúlio Vargas, por exemplo, e sim a parte da classe trabalhadora, desviando, portanto o foco real do problema que decorre da estrutura do sistema capitalista. Em outras palavras, ataca-se uma parcela da população que ocupam cargos dentro da máquina pública, e que por sua vez há sim, por parte da sociedade, motivos para se revoltar em função do clientelismo do Estado brasileiro porém, disferir esses ataques estão longe de atingir o cerne do problema estrutural da desigualdade social no país. Antes de continuarmos o raciocínio da instauração do neoliberalismo no Brasil, é importante também tratarmos de algumas das características da ideologia neoliberal no país. Quais são seus efeitos quando comparamos com a teoria econômica que foi dominante no país ao longo do século XX: o desenvolvimentismo. Boito (2018) trata dessas questões que tornam o neoliberalismo com características muito peculiares: Esse modelo, que tem sido chamado neoliberal, pode ser definido por contraste com o modelo que o antecedeu o desenvolvimentismo tanto na sua fase nacional reformista (1930-1964), quanto na pró-monopolista da ditadura militar (1964-1985). Muitos elementos evidenciam esse contraste entre modelo desenvolvimentista e modelo neoliberal: o ritmo do crescimento econômico cai, o papel do Estado como empresário e provedor de serviços declina, a prioridade ao crescimento e ao desenvolvimento industrial desaparece, a desnacionalização da economia nacional amplia-se, os direitos sociais e trabalhistas sofrem um processo de redução ainda maior do que aquele que sofreram durante a fase ditatorial-militar do modelo desenvolvimentista. (BOITO, 2018, p. 26) É importante sempre frisarmos também que esse tipo de dogma era dirigido aos países em desenvolvimento ou subdesenvolvidos, pois nenhum país aplicara esse conjunto de ideias em um momento que não lhes fosse oportuno, nem em seu período liberal assim como também não aplicara com sua nova roupagem, o neoliberalismo. Ha-Joon Chang (2004) sustenta essa ideia onde ele relata uma crise no período liberal por qual passou a Grã-Bretanha, o berço do liberalismo econômico: Convém ressaltar ainda que a “adesão da Grã-Bretanha ao livre-comércio foi lenta e penosa: Além disso, o regime de livre-comércio não durou muito. Na 19 década de 1880, alguns fabricantes britânicos em dificuldade puseram-se a reivindicar proteção. No começo do século XX, a retomada do protecionismo foi um dos temas mais polêmicos da política britânica, quando as manufaturas do país começaram a perder vantagem rapidamente para as norte- americanas e as alemãs: a prova disso está na influência exercida pela Tariff Reform League [Liga pela Reforma Tarifária], criada em 1903 sob a carismática liderança do político Joseph Chamberlain. A era do livre-comércio chegou ao fim quando a Grã-Bretanha finalmente reconheceu que tinha perdido a primazia manufatureira e reinstituiu tarifas em larga escala em 1932. (CHANG, 2004, p. 48) Outra nação que Chang relata e, também, mostrou-se adepta dessa doutrina em momentos convenientes foram os EUA, isso já no período do pós-guerra. Eles adotaram esse tipo de política quando percebia que abrir o mercado já não era uma ameaça tão grande a economia do país Só depois da Segunda Guerra Mundial, os Estados Unidos com a sua incontestável supremacia industrial - finalmente liberaram o comércio e passaram a pregar o livre-comércio. Entretanto, cabe observar que nunca praticaram o livre-comércio no mesmo grau que a Grã-Bretanha em seu período livre-cambista (de 1860 a 1932). Nunca tiveram um regime de tarifa zero, como o Reino Unido, e eram muito mais agressivos no uso de medidas de protecionismo “oculto”. (CHANG, 2004, p. 58) Portanto, fica claro que essas ideias, embora muito alardeadas como inovação e como melhora do Estado através de políticas de enxugamento e eficiência da máquina pública, foram aplicadas em momentos específicos de conveniência pelos países centrais do capitalismo. Feito essa pausa pertinente, voltemos ao caso brasileiro. O governo Collor foi quem iniciou as ideias neoliberais no país, mas quem de fato implantou com eficiência essa agenda no Brasil foi o governo FHC, através de reformas da previdência, da privatização de estatais e diminuição do Estado. Nas palavras de Paulani: FHC aprofundou muito a abertura comercial e as privatizações. Joias da coroa como a Telebrás, a Vale do Rio Doce, a Telesp e quase todos os bancos e empresas foram vendidos na totalidade, a preços muito baixos. A Petrobras foi esquartejada, quando venderam suas ramificações de química fina e petroquímica, além de um volume muito grande de ações com direito a voto. Como se não bastasse pôs fim ao monopólio do petróleo. O capital veio correndo para comprar essas empresas, que não foram somente vendidas, mas desnacionalizadas. (PAULANI, 2010, p. 40) À época, uma das poucas medidas neoliberais que o governo FHC não adotara fora o câmbio flutuante, tão caros aos neoliberais e ao seu tripé macroeconômico. O governo trabalhara com câmbio fixo, administrado pelo Estado, em um “populismo 20 cambial” Paulani (2010) mantendo a moeda valorizada e dando espaço a importação de produtos estrangeiros. Em relação a isso Luiz Carlos Bresser‑Pereira (2012) chama a atenção para um fenômeno que fez o país entrar em um processo de reprimarização da pauta econômica causando o que conhecemos como doença holandesa, onde a exportação de produtos de baixo valor agregado acabam ganhando maior espaço da pauta exportadora destruindo assim todo o nosso setor industrial. Tudo isso ocorre em função do país entrar em uma abertura comercial muito intensa, possuindo manufaturados sem competividade internacional e uma moeda com câmbio apreciado culminando em uma inundação de produtos importados no país. Com isso o Brasil interrompe um processo de industrialização e volta a ser um grande exportador de ‘commodities’ após experienciar um período de desenvolvimento do parque industrial que ocorria desde a Era Vargas na década de 30. Segundo Bresser-Pereira: Assim, em vez de o país buscar a estabilidade financeira garantida por uma taxa de câmbio competitiva, decidiu consumir no curto prazo e apresentar déficits crônicos em conta corrente; e em vez de visar o aumento da produtividade pela industrialização, ou, mais genericamente, pela transferência de mão de obra de setores com baixo valor adicionado per capita para setores com alto valor adicionado per capita, que são tecnologicamente mais sofisticados e pagam maiores salários, o Brasil, desde 1994, aceita reduzir o aumento da produtividade da economia através da transferência inversa e a transformação da economia brasileira na “fazenda do mundo”. (BRESSER-PEREIRA, 2012, p. 8) Bresser-Pereira segue tratando, dentro desse contexto de câmbio apreciado, reprimarização da economia e importação de manufaturas, de um fenômeno paradoxal que é o pleno emprego e o baixo crescimento: Por outro lado, como o setor primário (agricultura, pecuária e mineração) não tem capacidade de absorver o desemprego industrial (ou a falta do aumento de postos ofertados), quem absorve a mão de obra é o setor de serviços, inclusive o setor comercial que é alimentado pelas importações. E temos assim a situação aparentemente paradoxal de baixo crescimento e pleno emprego. (BRESSER-PEREIRA, 2012, p. 8) Encontramos então um fenômeno que se tornaria anômalo mais adiante: um setor industrial falido e um setor de serviços saturado de mão-de- obra em função do aquecimento desse segmento causado pela importação de manufaturados. Estava dado, novamente, a heteronomia do crescimento econômico do país, pautado pelas importações e imperativos do capital internacional, onde inexiste força de reação por parte da economia do próprio país, muito embora essa heteronomia nunca tenha sido superada por completo em nenhum momento da nossa história, mas que existiu, como 21 dito acima, de maneira residual ou mais presente em um bom período do século passado. Porém, essa intensa internacionalização da economia brasileira causou um desequilíbrio nas contas externas do país que foi “provocado pelo pagamento da dívida, pela crescente remessa de lucros oriunda do avanço da internacionalização da economia e pela própria abertura comercial” (Boito, p.39) e com isso poderia haver um comprometimento da capacidade do Estado brasileiro de quitar suas dívidas, [...] no limite, se se chegasse a um nível muito baixo de reservas internacionais, poderia, inclusive, inviabilizar, por escassez de reservas, a liberdade básica do capital financeiro internacional de entrar e sair livremente do país. À economia brasileira aproximou-se dessa situação crítica com a crise cambial de 1999 no momento de transição do primeiro para o segundo mandato de FHC. (BOITO, 2018, p. 39) FHC então, percebendo esse cenário, declina de permanecer com câmbio fixo e passa a adotar o câmbio flutuante, deixando então a variação do valor da moeda nas mãos do mercado, intensificando o processo de neoliberalização da economia brasileira, além da adoção do regime de metas de inflação, com isso mais um passo foi dado em direção as garras do rentismo. É diante desse curso iniciado no governo de Fernando Henrique, de abertura total do país ao capital estrangeiro, que Lula inicia seu mandato. Sua relação com o mercado, durante a campanha eleitoral de 2002, foi apaziguada através da “Carta aos brasileiros”, que na verdade foi um aceno para o mercado onde ele se comprometia, caso eleito, não romper com nenhum acordo já estabelecido entre o Estado e o mercado, e assim o fez. Não só não rompeu como estreitou os laços com esse setor. Conforme demonstra Paulani: Havia um grande medo de que Luiz Inácio Lula da Silva entrasse e mudasse a política econômica. Para acalmar o mercado, Lula teve de assinar aquela “Carta aos brasileiros”, que no fundo era uma espécie de termo de compromisso de que não iria mudar a política econômica – e de fato não mudou. Pelo contrário, Lula aprofundou essa política nos primeiros meses, produziu um superávit maior que o pedido pelo FMI; aumentou ainda mais as taxas de juros e cortou o compulsório dos bancos de maneira brutal. Consequência: o PIB ficou em 1%. (PAULANI, 2010, p. 41) Essas medidas surpreenderam boa parte da base de apoio do partido que via no governo Lula uma forma de alterar o modo como se faz política nas palavras de Paulani (2010, p.41) “A continuidade da agenda neoliberal surpreendeu muita gente, porque se lutara contra isso antes, e quando Lula entrou, ele fez igual. Combatiam-se a política macroeconômica e essas reformas, mas elas acabaram sendo feitas”. 22 O governo Lula mudou um pouco o seu curso a partir do segundo mandato. Embora não tenha rompido com o setor rentista, Lula elaborou projetos como o programa de aceleração do crescimento (PAC), por exemplo, que foi uma demonstração de intervenção do Estado na economia, porém nada que tirasse o sono do setor financeiro, muito embora segundo Bastos, Lula cometera o que ele chama de “heresias” contra o capital rentista. Segundo o autor as tais heresias do presidente foram 3: Primeiro, vetou novas privatizações e, ao contrário, buscou restaurar a capacidade de investimento das empresas estatais, particularmente no setor de petróleo, gás e energia elétrica.[...] Na segunda heresia, também contra a prática da frente neoliberal durante o governo FHC, o governo Lula restaurou o papel ativo dos bancos públicos para execução de políticas de desenvolvimento produtivo e expansão do mercado interno.[...] Terceiro, o crescimento do mercado interno de massas foi apoiado pela política salarial, trabalhista e social que, respectivamente: i) elevou o salário mínimo real em 70% entre 2004 e 2014, com impacto no mercado de trabalho e nas pensões e aposentadorias do sistema de seguridade; ii) fortaleceu sindicatos e exigiu a formalização do emprego, com salários e direitos melhores, incluído o seguro desemprego; iii) ampliou o conjunto de transferências sociais, notadamente o Bolsa Família, o Benefício de Prestação Continuada e o bônus salarial, e recuperou o gasto na oferta de serviços públicos (BASTOS, 2017, p.12-13) Essas medidas, embora causassem um certo desconforto no setor rentista, não afetou a relação que o executivo tinha criado e estreitado ao longo de seu governo com essa fração de classe. Essas políticas que o governo adotou tinha como objetivo fazer acenos a outras frações da elite e da população na tentativa de criar a conciliação de classes que foi uma política muito usual do governo Lula. A essa altura através dos fatos citados, já podemos ter alguma noção de como o neoliberalismo e suas ideologias foram se infiltrando no aparelho estatal, no seio das políticas do governo federal e posteriormente, como veremos adiante nesse trabalho, na sociedade de modo geral ao ponto de, com seus tentáculos cada vez mais robustos que fora alimentado pelo próprio Estado ao longo de diversos governos, ser um dos articuladores, e talvez o principal, da queda de uma presidente da república. 4. A natureza do rentismo Esse capítulo será dedicado a estudarmos a natureza do capital rentista, em como ele opera na sociedade capitalista e qual é o movimento que ele exerce dentro do sistema dado a conjuntura ou a estrutura da sociedade naquele instante. Vamos 23 abordar o comportamento do rentismo nacional e do rentismo internacional e qual a interferência dele na economia e na política do país. Esse estudo vai ser essencial para que possamos entender o que ocorreu nos treze anos de governo petista que culminou na queda da presidente Dilma Rousseff no ano de 2016. Queremos dizer com isso que o rentismo teve papel essencial na deposição da presidente do mais alto cargo do executivo nacional, e por isso precisamos nos debruçar um pouco mais sobre essa fração de classe. Entender a sua natureza é importante para que possamos ter uma clareza maior no desenrolar dos acontecimentos no país. Desses processos de expansão material e financeirização, vamos nos ater mais ao último grande período que os financistas foram e são hegemônicos, que é o sistema neoliberal. Importante ressaltar que temos ciência que outras fatias das classes dirigentes como a produtivista, por exemplo, exerceram grande influência nesse processo de derrubada da presidente, muito embora essas frações burguesas tivessem alguns conflitos de interesses como veremos mais adiante, o nosso foco nesse capítulo será estudar com mais afinco o rentismo. No mundo ficou muito claro, após a quebra do acordo de Bretton Woods pelo presidente Richard Nixon dos Estados Unidos em 1971, que o processo de produção estava começando a dar espaço para o processo de financeirização da economia. A quebra desse acordo, inclusive, ocorrera por conta de graves problemas na economia dos EUA e por conta da pressão dos agentes financeiros para que houvesse uma desregulamentação do mercado que era rigidamente controlado pelos Estados nacionais. Esse excesso de controle que ocorria em cima do fluxo de capitais foi fortemente criticado pelos financistas, já que esses não tinham como dar vazão a todo esse acúmulo de finanças obtidos no período anterior de expansão e fazê-lo reproduzir nessa nova etapa do capitalismo. Para entender todos esses acontecimentos relativos ao Brasil e a sua inserção em uma economia mundializada alguns autores vão ser importantes para compreender essas fases históricas pela qual o país passou desde o processo de colonização até a financeirização da economia nos anos 1980. Esse entendimento da inserção da nossa economia no mundo vai nos esclarecer como o país se tornou uma economia voltada para a exportação de commodities de baixo valor agregado, sem conseguir superar essa posição crônica subalterna. Leda Paulani (2013), por exemplo, vai separar essas fases históricas do país em cinco momentos: Acumulação primitiva, consolidação do modo de produção capitalista, indícios de crise de sobreacumulação no centro, afirmação da crise de 24 sobreacumulação e amadurecimento da financeirização. Vamos, adiante, nos debruçar sobre essas definições da autora. Na primeira etapa, que data do período da escravidão, o país torna-se apenas um local de extração de riqueza onde a espoliação promovida pela sua metrópole era sua posição essencial no processo de acumulação do capital e no desenvolvimento do processo capitalista. De acordo com Paulani Nessa etapa, o Brasil se coloca como reserva patrimonial, base de operação de força de trabalho compulsória e fonte de fornecimento de metais preciosos e matérias-primas. Em outras palavras, nesse primeiro momento, o país constitui-se em puro e simples objeto de espoliação, expediente típico da fase de acumulação primitiva então em curso. Inicialmente, nosso país se coloca, portanto, como parte subordinada de um movimento que tem seu motor principal na Europa e que constitui a etapa primeira da afirmação do modo de produção capitalista em nível mundial. (PAULANI, 2013, p. 239) A segunda fase desse processo se dá a partir da produção de artigos de baixa densidade tecnológica e valor agregado. Essa característica se tornaria um estigma estrutural da economia brasileira desde o século XVI período até os dias atuais. Evidente que o processo de industrialização no país chegara posteriormente, mas sua condição de mero exportador de commodities ainda permanece. O modo como as metrópoles tratavam suas colônias nesse processo de espoliação diz muito sobre como os países colonizados se perpetuaram, muitos deles, nessa condição subalterna até os dias atuais. Ha Joon Chang (2004) faz menção a esse comportamento das metrópoles em relação a suas colônias. Em função do temor de as terras colonizadas iniciarem um processo de industrialização, os colonizadores utilizavam-se de mecanismos para poder tolher o desenvolvimento de estruturas de produção de manufaturas. O autor cita o caso em específico da Grã-Bretanha, mas que nos ajuda a ilustrar o comportamento dos colonizadores de modo geral: A Grã-Bretanha instituiu um vigoroso conjunto de política destinadas a impedir o desenvolvimento de manufaturas nas colônias, principalmente na América do Norte. List (1885, p. 95) relata que, em 1770, William Pitt, o Velho (então conde de Chatham), “preocupado com as primeiras tentativas de implantar a manufatura na Nova Inglaterra, declarou que não se devia permitir que as colônias fabricassem mais do que um cravo de ferradura”. A caracterização de Brisco (1907, p.165) da política colonial do governo Walpole descreve a essência dessa estratégia: Mediante regulamentações comerciais e industriais, tentou-se limitar as colônias ao fornecimento de produtos primários à Inglaterra e, assim, desestimular a implantação de qualquer manufatura que viesse a concorrer com a metrópole e reservar seus mercados para os comerciantes e fabricantes ingleses. (CHANG, 2004, p. 94-95) 25 Esse caso da relação da Grã- Bretanha com a “nova Inglaterra” pode ser estendido também para relação entre Brasil e Portugal, em que a colônia era proibida por sua metrópole de ter qualquer tipo de produção mínima, exceto alguns artigos mais rudimentares. O Brasil era de fato uma colônia para exportação de produtos primários para abastecimento do centro do capital. E essa divisão foi importante para o desenvolvimento do sistema capitalista, pois era o país que provia muito da produção de alimentos que supria as demandas mundiais. Segundo Paulani: Como bem lembra Marini, em seu clássico Dialética da dependência, se, ao longo de todo esse período, os países centrais fossem depender de si mesmos para a produção dos alimentos e matérias-primas requeridos pela expansão que ia se consolidando, eles não poderiam ter aproveitado todo o ganho de produtividade que a expansão da manufatura e depois a revolução industrial proporcionaram e que fez que esses países tomassem a dianteira na economia mundial. (PAULANI, 2013, p. 240) Ou seja, o Brasil teve uma significativa participação na consolidação do sistema capitalista para que hoje os países que são imperialistas galgassem tal posição. É aqui que notamos também um caráter importante da elite e da produção de riquezas no país que se perpetua até os dias atuais, que é baixa retenção de capital no país, onde boa parte é exportado e o país não obtém nenhum tipo de evolução em demais setores da economia. A burguesia internacional mais uma vez faz uso da periferia do capitalismo para acumular riqueza. Para Paulani: Nessa fase, a condição dependente de nossa economia, em qualquer dos cortes teóricos em que ela foi interpretada, aparece relacionada com essa condição de produtora de bens primários e incapaz, via relações de troca, de reter na economia doméstica os reduzidos ganhos de produtividade aqui obtidos, além de estar permanentemente sujeita ao poder monopólico dos países do centro em sua condição de ofertantes de bens (os produtos industriais) que as economias periféricas não tinham condições de produzir. (PAULANI, 2013, p. 240) Essa característica crônica do país parecia que iria se findar no início dos anos 1930 do século passado. Com a crise internacional provocada pela quebra da bolsa de valores de Nova Iorque, além do período entre- guerras da época, o governo Getúlio Vargas seguiu uma tendência mundial: Voltou os investimentos do país para a sua demanda doméstica tendo um Estado com um poder de intervenção muito maior na economia. A partir daí se deu o desenvolvimento das primeiras políticas nacionais desenvolvimentistas do país. Foi nesse período que foram desenvolvidas as indústrias de base em que o país passou por um intenso processo de industrialização e que nos fez acreditar em um movimento de ‘catching up’ da nossa economia. Porém, essa fase de crescimento da indústria nacional durou até a década de 1950. A partir de então 26 houve um ingresso muito grande do capital externo no setor industrial brasileiro, diminuindo a fatia desse grupo nacional, embora ele ainda fosse presente. Esse fenômeno ocorreu em função dos interesses do capital externo em expandir sua lucratividade, já que esta estava em diminuição nos países desenvolvidos em função do modelo econômico keynesiano ter atingido um patamar de estabilidade e de queda natural, em alguns casos, no crescimento da economia dos países centrais do capitalismo. Esses investidores buscaram então países como o Brasil para dar continuidade no aumento de seus lucros. Dado esse contexto, não iria ser dessa vez que o país iria abandonar a sua dependência crônica do centro da economia mundial e então tomar as rédeas do seu próprio desenvolvimento. Como pontua Paulani: Acossado já pelo problema da sobreacumulação, o capital do Centro do sistema parte em busca de novos espaços de valorização e vai encontrar na economia brasileira, em meados dos anos 1950, o mercado que começava a escassear no mundo desenvolvido, inaugurando assim a terceira fase de nossa dependência. Como o projeto nacional-popular não havia se consolidado de vez e tampouco as elites estavam muito firmes em seu propósito de lutar pela inserção soberana de nossa economia no capitalismo mundial, o país tornou-se rapidamente objeto do deslocamento espacial do capital do Centro, fazendo que o processo de acumulação “determinado desde dentro” fosse comandado, nos setores mais dinâmicos da economia, pelas necessidades e imperativos do capital de fora. (PAULANI, 2013, p. 240) O setor industrial que no Brasil vinha sendo desenvolvido desde a indústria de base até a automotiva, acabou sendo engolida pelos investimentos do capital externo com tecnologias mais avançadas no setor do que a indústria brasileira, fazendo o nacional desenvolvimentismo entrar em colapso, embora o desenvolvimento industrial não tenha deixado de ocorrer até os anos 1980, porém em bases de capital externo. Assim o país acabou continuando dependente dos investimentos do capital industrial estrangeiro mostrando a retomada do rentismo no país em detrimento do setor produtivista. Paulani pontua esse problema de dependência da poupança externa em decorrência do investimento estrangeiro. Essa questão se tornaria crônica e danosa às aspirações desenvolvimentistas do país. De acordo com Paulani: É dessa forma, portanto, que se inicia a história de nossa crônica dependência da poupança externa, pois a instalação aqui dos setores industriais mais avançados implicou aumento de nosso passivo externo, impondo o retorno à circulação internacional de uma parte do excedente acumulado por essa via comprometendo, assim, as possibilidades de expansão futura da economia doméstica. (PAULANI, 2013, p. 241) Portanto, temos uma elite nacional extremamente fragilizada na sua construção, que durante seu processo de formação não se consolidou perfeitamente 27 em função dessa intervenção do capital externo na economia nacional e assim criando essa dependência de crescimento do país muito por conta do que ocorria a despeito do cenário internacional. A quarta fase, Segundo Leda Paulani, se inicia “Com a crise do petróleo deflagrada ao final de 1973 e com a opção pelo endividamento externo que aí se gerou, o potencial inflacionário do arranjo brasileiro assentado nos mecanismos de indexação tornou-se ato”. (PAULANI, 2013, p. 241). Logo após ocorre o segundo choque do petróleo em 1979 e uma alta da inflação que só iria terminar no Brasil após a criação do Plano Real em 1994. Então ocorreu uma crise de sobreacumulação do centro do sistema capitalista nos anos 1980, onde se iniciou um intenso processo de financeirização e abertura econômica no mundo em que o capital externo encontrou nas economias latinas uma demanda por empréstimos que não existiam nos países centrais, e nesses países estabeleceu-se uma crise da dívida econômica gerada a partir dessas tomadas de capital externo por parte dos países latinos de modo geral. É assim, de modo a se endividar-se, que os países na periferia do sistema se inserem nessa nova etapa do capitalismo que é a financeirização econômica. Na quinta e última fase “o país passa de uma forma passiva a uma forma ativa (porém não menos subordinada) de inserção no capitalismo financeirizado.” (PAULANI, 2013, p. 242). A completa subordinação ao neoliberalismo foi a saída encontrada pelo governo para atender aos anseios dos credores da dívida que o Brasil havia se submetido nos anos 1980 e essa subordinação se traduziu, no governo Collor e FHC, através da livre fluxo internacional de capitais, diminuindo as barreiras para essa circulação e a abertura do mercado brasileiro de títulos públicos e privados ao capital internacional. Boito argumenta que o processo privatização ocorrido no período de abertura comercial favoreceu em larga escala não só o capital internacional, mas também o grande capital produtivo e rentista do país. As privatizações, foram restritas a um pequeno grupo da elite nacional e burguesia internacional. Como explica Boito: A privatização, nessa nova fase do capitalismo brasileiro, atende diretamente aos interesses dos grandes grupos econômicos privados, ou seja, do conjunto do grande capital - nacional ou estrangeiro, industrial ou financeiro. No entanto, a média burguesia permaneceu, devido às regras estabelecidas pelo Estado brasileiro para o processo de privatização, excluída do grande negócio que foram os leilões de empresas estatais. Menos de cem grandes grupos econômicos privados apoderaram-se da quase totalidade das 28 empresas estatais que foram a leilão. (BOITO, 2018, p. 29) Podemos notar nesses apontamentos que o neoliberalismo com seu argumento falacioso da livre concorrência fica fragilizado já que apenas um grupo específico de grandes capitalistas nacionais e internacionais estão sendo beneficiados com as privatizações onde a regra do jogo não inclui todos. Boito segue apontando algumas empresas desse grupo que foram beneficiadas nesse processo, empresas como: [...] o Grupo Votorantim, a Gerdau e a Vicunha: grandes bancos, como o Itaú, o Bradesco, o Unibanco e o Bozano Simonsen; grandes empresas estrangeiras, como as empresas portuguesa e espanhola na área de telefonia -- enfim, o grande capital nacional, industrial ou financeiro, e o grande capital estrangeiro, isto é, a cúspide do capitalismo brasileiro apropriou-se da siderurgia, da petroquímica, da indústria de fertilizantes, das empresas de telecomunicação, da administração de rodovias, dos bancos públicos, das ferrovias etc. (BOITO, 2018, p. 28) Paulani ainda ressalta que após o pagamento das dívidas em moratória e a criação do Plano Real, que trouxe uma estabilidade monetária da economia, outras medidas tomadas pelo Estado para atender as demandas do capital internacional foram atendidas: [...] como a concessão de isenções tributárias a ganhos financeiros de não residentes, alterações legais para dar mais garantias aos direitos dos credores do Estado, e uma reforma previdenciária para cortar gastos públicos e abrir o mercado previdenciário ao capital privado. Em paralelo, mas tudo contribuindo para o mesmo resultado, adotou-se uma política monetária de elevadíssimos juros reais e um controle fiscal bastante rígido (buscando gerar polpudos superávits primários) e deslanchou-se o processo de privatização. (PAULANI, 2013, p. 243) Com essas políticas adotadas, o país passa a entrar cada vez mais no circuito da financeirização mundial, ocupando posições subalternas na economia mundial, mas atraindo muitos capitais de poupança externa mesmo que isso custe a sua dependência ao capital internacional e uma falta de autonomia econômica. O próximo passo a ser dado rumo ao neoliberalismo foi após a crise cambial no segundo mandato do governo FHC, em 1999, em que o governo acabou tomando medidas como abandonar o câmbio fixo e passar a adotar o câmbio flutuante, além de metas de inflação e políticas monetárias e fiscais mais rígidas, ou seja, o tripé macroeconômico que os agentes econômico-financeiros neoliberais tanto prezam. Essas medidas abriram espaço para o reaparecimento da elite nacional que fora escanteada no processo de abertura econômica excetuando-se as grandes classes dirigentes. A rentista e como mencionado acima, muito embora, como veremos, o lucro ainda permanecia com pequenos grupos de algumas frações de classe da elite. 29 No governo Lula essas políticas neoliberais se aprofundaram. Muito embora algumas críticas, principalmente de setores pertencentes ao rentismo, criticassem o intervencionismo do executivo no mercado, essa intervenção não prejudicava de modo estrutural os ganhos do capital. Boito faz menção a esse fato. Os investimentos do governo no setor produtivista aconteciam de modo a respeitar os interesses do capital financeiro, ou seja, sem mexer nas bases dessa fração de classe: [...] esse governo estimula a produção, mas no interior dos limites permitidos pelos interesses fundamentais do grande capital financeiro. Em primeiro lugar, ele estimula, prioritariamente, a produção voltada para a exportação. Do ponto de vista das finanças, não interessa priorizar a produção voltada para o mercado interno. O grande capital financeiro necessita reduzir o desequilíbrio das contas externas, sem o que sua livre circulação e sua elevada remuneração poderão ficar comprometidas. O objetivo principal do estímulo à produção deve ser, então, a exportação, isto é, a caça aos dólares e às demais moedas fortes. (BOITO,2018, p. 49) A partir de 2003 vamos notar algumas alterações e estreitamento de relação entre o rentismo e o governo federal que demonstram que essa fração de classe passou a tomar conta das políticas econômicas do país, mostrando assim que o capital rentista ganhava mais força dentro do bloco de poder executivo federal. A balança comercial, com a desvalorização do real e a demanda por commodities da China, fez com que o país entrasse em rota de crescimento econômico. Porém, a ausência de uma certa autonomia econômica, que era baseada em exportação de produtos de baixo valor agregado, com o intenso processo de reprimarização da pauta de exportação durante o governo Lula, além da adoção de metas de inflação e superávit primário encontrou, na crise mundial de 2008, uma retração nas transações correntes como aponta Paulani: No segundo mandato de Lula, porém, a contínua revalorização da moeda combinada com o relativo declínio dos preços das commodities após a crise de 2008 fez os déficits em transações correntes voltarem com força. Em outras palavras, no segundo mandato de Lula apareceram as consequências da forma de condução da política econômica no primeiro mandato. (PAULANI, 2013, p. 243) Porém, mesmo com a crise de 2008, o Brasil ainda atraia capital externo, em função da sua alta taxa de juro que permanecia, mesmo com uma breve desvalorização do real. Pereira aponta o problema desse movimento. Segundo ele, a natureza do investimento externo favorece principalmente o setor de importação, e isso acaba por destruir o setor produtivo do país: O objetivo de qualquer bom governo é aumentar o mercado interno, mas em uma economia razoavelmente aberta como é a brasileira não se logra esse objetivo estimulando-se o consumo de massa enquanto a taxa de câmbio se aprecia. Quando se faz isso, o mercado interno é tomado pelos importadores depois de aproximadamente três anos (o tempo que demora para que 30 importadores de bens industriais se organizem para importar), e a indústria nacional perde acesso tanto ao mercado externo quanto ao interno. Foi precisamente o que aconteceu no Brasil.(BRESSER-PEREIRA, 2012, p. 8) E assim, novamente, voltamos ao tema já discutido anteriormente, que é a doença holandesa. Temos a destruição do setor industrial e a reprimarização da pauta de exportação. Essa reprimarização é retratada por Paulani como uma espécie de retorno ao segundo estágio de inserção do Brasil na economia mundial, como retratado anteriormente. Assim, do ponto de vista produtivo, a economia brasileira vai inserindo-se cada vez mais como produtora de bens primários, recuperando uma posição análoga à da segunda fase e que se pensava ter sido deixada para trás. É evidente que se tem aqui os indícios claros daquilo que se costumou chamar na literatura de Dutch Disease (ou doença holandesa), de funestas consequências para as economias que a contraem. (PAULANI, 2013, p. 244) Boito insere nesse debate algo muito peculiar na relação do poder executivo federal com o capital rentista que ajuda a entendermos a interferência do capital financeiro nas relações dos poderes institucionais. Para o autor há uma espécie de “hiperpresidencialismo” onde as funções do legislativo são de certa forma cooptadas pelo poder executivo, com total interferência do capital financeiro, na tentativa de obter controle sobre as ações políticas tomadas. Ele aponta que esse poder distribuído de modo igualitário pode ameaçar os interesses financistas, já que a homogeneização do legislativo, na tentativa de prezar pelos interesses do capital é uma tarefa muito mais árdua do que fazer seus interesses serem atendidos pelo executivo federal: O hiperpresidencialismo brasileiro - que consiste, fundamentalmente, na apropriação da função legislativa pelo Executivo Federal – serve aos interesses-da fração hegemônica no interior do bloco no poder. Tudo que se relaciona a esse arranjo político e institucional remete, obrigatoriamente, à disputa de interesses entre as frações burguesas. Um eventual fortalecimento do Congresso Nacional e dos Executivos estaduais e municipais poderia representar uma ameaça à hegemonia do capital financeiro. (BOITO, 2018 p. 47) Boito segue tratando dessa distorção que o mercado criou entre a importância do poder executivo sobre o legislativo, sendo, na visão do mercado o primeiro de maior importância que o segundo. A tentativa de marginalização desse poder era constante, justamente para atrair esse poder para o executivo muito mais fácil de controlar do que o poder legislativo: Há toda uma ideologia política que legitima essa concentração, ideologia sistematizada e difundida pelos representantes, conscientes ou inconscientes, do grande capital financeiro. São elementos dessa ideologia: a ideia segundo a qual a política monetária teria um caráter técnico; a defesa 31 da medida provisória como consequência, também técnica, da necessidade de rapidez na ação de governar; a acusação unilateral do caráter fisiológico, paroquial e clientelista do Congresso Nacional, das emendas orçamentárias de deputados e senadores etc. Todas essas ideias legitimam a concentração do poder decisório no Executivo e a marginalização política do Legislativo. (BOITO, 2018, p.49-50) O autor acima ainda levanta outro ponto a se considerar nessa análise de interferência do rentismo nas forças políticas das instituições. Além do ponto já citado, de obtenção de maior controle sobre as políticas econômicas adotadas, essa postura também afeta outros setores da economia como pequenas e médias empresas, já que boa parte das emendas parlamentares tinha como intuito atender os anseios dessa fração social. Boito aponta : A detração do Congresso sugere uma suposta eficiência e grandeza política do Executivo; o discurso sobre o paroquialismo das emendas de deputados e senadores oculta que, na paróquia, estão as pequenas e médias empresas, justamente aquelas que a política econômica pretende marginalizar (BOITO, 2018, p. 50) Baseado nessa interpretação, temos uma clara demonstração de interferência do capital financeiro nas decisões pertinentes às praças dos três poderes, alterando assim a correlação de forças dessas instituições. Para finalizar, Boito demonstra que as políticas econômicas adotadas pelo governo, (...) define uma hierarquização das frações da classe capitalista privilegiando certas dimensões do capital em detrimento de outras: quanto à função do capital, privilegia a função financeira; quanto ao porte, privilegia o grande capital; quanto ao destino da produção, o mercado externo e a fatia de alta renda do mercado interno. À essas prioridades correspondem, uma a uma, as dimensões que são preteridas: quanto à função do capital, a produção, isto é, o capital ativo; quanto ao porte do capital, o pequeno e o médio; e quanto ao destino da produção, o mercado interno de bens de consumo populares. (BOITO, 2018, p. 51) Temos, a partir dessa análise os agentes econômicos tomando conta das ações do Estado nas suas mais variadas esferas. Esses grupos dominantes, dentro do capital financeiro, foram ficando cada vez restrito a uma pequena parcela. Boito discorre sobre o tema: Temos, acima de tudo, os grandes bancos comerciais - nacionais e estrangeiros — que possuem rede de agências no Brasil - Bradesco, Itaú, Unibanco, Santander, HSBC e outros. Dados do final da década de 1990 apontavam que, num universo de 200 bancos funcionando então no Brasil, 25 deles detinham, sozinhos, mais de 80% do ativo total. O balanço dos lucros dos bancos no primeiro trimestre de 2005 mostrava que os cinco maiores bancos do país respondiam por 69% de todo o lucro do sistema bancário; se considerados os dez maiores, essa parcela subia para 83% do total dos lucros. (BOITO, 2018, p.31) 32 Isso denuncia como o oligopólio do capital rentista foi crescendo no país, conforme o passar dos anos, onde os lucros dos grandes bancos foram crescendo e eliminando a concorrência tão caros, em teoria, aos neoliberais podendo, inclusive, dar espaço para formação de cartéis. Boito ainda aponta o modo de atuação do capital rentista no modo como ele se valoriza nos países dependentes. O que o autor chama de “capital usuário e predador” vai ser um capital que não agrega ganhos na produtividade do país, apenas se valorizando e trazendo divisas para o setor financeiro: No Brasil e em outros países dependentes, esse capital financeiro funciona, em grande medida, como capital usurário e predador - o capital dinheiro portador de juro que se valoriza, a taxas muito elevadas, sem financiar a produção capitalista (posse dos títulos da dívida pública, fornecimento de empréstimo ao consumidor a taxas que chegam a 8% ao mês, empréstimo consignado, a taxas ditas “populares”, dirigidos a assalariados e aposentados de baixa renda etc.). (BOITO, 2018, p.32) O autor segue demonstrando que para essa valorização rápida do capital algumas medidas relativas ao Estado devem ser tomadas, o que novamente demonstra a cooptação do executivo pelo capital rentista como citado acima: Para que o grande capital financeiro possa valorizar-se com rapidez e a taxas elevadas, alguns aspectos da política de Estado são, nas condições atuais e principalmente nos países dependentes, fundamentais: a) a integração do mercado financeiro nacional com os mercados internacionais[...]; b) câmbio relativamente estável e livre que permita a conversão e a reconversão das moedas sem sobressaltos ou prejuízo; c) pagamento da dívida pública externa e interna com taxa básica de juro real elevada para assegurar uma alta remuneração para os títulos públicos [...] d) liberdade para o capital financeiro cobrar o máximo possível pelo capital que cede emprestado a capitalistas e consumidores — spread liberado; e) ajuste fiscal que garanta o pagamento dos juros dos títulos da dívida pública (BOITO, 2018, p.32) Essas medidas foram tomadas durante os governos anteriores ao governo Lula, mas ele, quando assume a presidência não altera nenhuma dessas políticas, demonstrando que o governo não só fora tomado pelo rentismo como também tinha o consentimento e o reforço do executivo federal. Para finalizar esse tema, Boito aponta uma relação conflitiva existente entre o capital financeiro e o capital industrial, já que a total desregulamentação financeira e abertura comercial beneficiavam o setor rentista e prejudicavam o setor industrial, pois com juros elevados estabelecidos pelos financistas, a tomada de empréstimos pela elite produtivista tornou-se um entrave para o desenvolvimento do setor. Sem contar que com a abertura comercial a produção internacional tomou conta do mercado 33 nacional, diminuindo as chances de competitividade dos manufaturados brasileiros. A partir desses fatos Boito conclui que o setor financeiro nacional e internacional: [...] é a fração burguesa hegemônica no modelo neoliberal porque todos os aspectos da política neoliberal - o desmonte do direito do trabalho e social, a privatização, a abertura comercial e a desregulamentação financeira - atendem integralmente aos interesses dessa fração da burguesia. Com exceção do primeiro aspecto, todos os demais contrariam, em maior ou menor medida, interesses das. demais frações integrantes do bloco no poder - médio. capital, burguesia de Estado, grande capital industrial. (BOITO, 2018, p. 34) Para concluir, temos então uma fração da classe dirigente que toma o Estado nacional a partir do período de integração comercial e financeira ao mundo, e que desde então os mais variados governos vem servindo aos interesses e demandas do mercado, fazendo com que as mais diversas políticas econômicas tenha como principal objetivo atender ao capital financeiro. No próximo capítulo o foco vai ser os dois primeiros mandatos do governo petista. Vamos traçar um perfil do surgimento do partido, tratar de algumas questões históricas relacionadas a agremiação até a sua ascensão ao poder executivo, para, a partir daí, tentarmos elucidar se houve rompimento do governo Lula com o setor financeiro de modo radical, se de fato, como aponta o senso comum, os primeiros governos petistas tiveram um caráter socialista ou se apenas foi uma continuação de governos anteriores. Acreditamos que a partir do que foi tratado nesse capítulo já podemos ter uma breve noção de qual caminho trilhou o Partido dos Trabalhadores (PT). 34 5. Neoliberalismo e petismo: rompimento do governo com as práticas ortodoxas ou seguimentos nas ideias do governo FHC? Para que possamos tirar alguma conclusão sobre como o Partido dos Trabalhadores chegou ao mais alto cargo do executivo nacional, dando ou não continuidade ao projeto neoliberal do governo FHC, precisamos entender a trajetória dessa agremiação, entender quais estratégias, símbolos e causas foram mantidas ou abandonadas ao longo desses anos. Para isso vamos traçar um contexto mais geral do surgimento do partido até chegarmos aos dias que o partido de fato governa o país. No que diz respeito aos governos petistas vamos nos focar mais nos primeiros dois governos com o presidente Lula, pois daremos foco ao governo Dilma e suas políticas econômicas e sociais no próximo capítulo, embora citemos algumas passagens a sucessora petista nessa parte do trabalho. Para falarmos do surgimento do PT precisamos necessariamente falar do sindicalismo dos grupos de trabalhadores organizados que se encontravam na região do ABC paulista, pois foi dali que surgiu uma das principais bases que engrossou o pedido de retorno ao regime democrático no país, as “diretas já!”. Esse sindicalismo teve como uma importante base de apoio nos trabalhadores metalúrgicos dessa região da grande São Paulo, onde havia um operariado com uma capacidade de organização em torno dos seus interesses que era significativa. Era um setor predominantemente controlado por um grupo mais qualificado dentro desse operariado. Eles possuíam duas concepções: Uma mais economicista, em que recusava a ação política dos trabalhadores e uma mais corporativista em que existia uma pequena cúpula desses trabalhadores organizados na área de organização e da luta sindical. (Boito, 2006). No que diz respeito às ações políticas, os sindicalistas evitavam tal articulação “A ação e os discursos dos dirigentes desse sindicalismo traduziam basicamente a aspiração elementar pela elevação do consumo individual no mercado, apostando, para tanto, na livre negociação salarial” (BOITO, 2006, p. 283) rejeitando qualquer tipo de envolvimento dos sindicalistas com o ambiente político. Um dos membros dos sindicatos dos metalúrgicos, o então dirigente sindical Lula, acreditava que a participação política nunca resolveu nada pois, nas palavras de Boito Lula: [...] não se cansava de repetir que os problemas dos trabalhadores seriam resolvidos com a livre negociação e rejeitava a participação do sindicalismo na luta contra a ditadura e pela Constituinte pois, como gostava de lembrar, o Brasil já tivera cinco ou seis constituições e nenhuma delas resolvera o problema dos trabalhadores. (BOITO, 2006, p. 283) 35 Porém, após a greve dos metalúrgicos em 1979 os sindicalistas se surpreenderam com a alta repressão da ditadura em relação as greves dos metalúrgicos e notaram um apoio de diversos setores populares de todo o país a favor das greves. Após esses eventos os sindicalistas resolveram se articular politicamente. Conforme pontua Boito: Os militantes do Partido Comunista Brasileiro, que haviam fundado o sindicato de São Bernardo na década de 1960, tinham perdido quase todo espaço devido às intervenções da ditadura militar no movimento sindical, mas outras correntes – como a trotskysta Convergência Socialista que atuava principalmente no sindicalismo metalúrgico de Santo André – insistiam na necessidade de os operários construírem um partido político e assumirem abertamente a luta contra a ditadura militar. Foram a repressão ditatorial, a solidariedade do movimento popular e a intervenção das correntes de esquerda que politizaram rapidamente o sindicalismo de São Bernardo e convenceram a direção sindica emergente da necessidade de criar uma ampla frente de trabalhadores assalariados e de intervir no processo político nacional. (BOITO, 2006, p. 284) Eis que então no dia 21 de agosto de 1980 surge o Partido dos Trabalhadores. O partido emerge em resposta a opressão do regime militar e se posicionava a favor do fim da ditadura. Essa agremiação política nasce com o apoio, basicamente, de três grandes grupos sociais, eram eles os trabalhadores urbanos organizados, os trabalhadores do campo e um setor minoritário da Igreja Católica, que inclusive sofreu perseguições por parte dos seus membros. Nas palavras de Melo: O PT surge apoiado, sobretudo, em três bases de contestação política. Primeiro, os setores dos trabalhadores urbanos através de seus sindicatos. Geralmente o emblema são os trabalhadores das multinacionais do ABC paulista, de onde Luiz Inácio Lula da Silva foi seu nome mais visível (...) O segundo ponto de apoio certamente foi representado pelo papel progressista de setores minoritários da Igreja Católica ao longo dos anos 1970,1980,1990. (...) Setores da Igreja Católica seguiram fielmente os ensinamentos de seu inspirador maior (Jesus Cristo) e entenderam não ser possível servir aos pobres sem denunciar a opressão, a violência de classe e a exploração no Brasil.(...) A terceira frente foi representada pela organização política dos trabalhadores do campo no Brasil. Temos claro que os direitos dos trabalhadores do campo foram reconhecidos tardiamente em relação aos seus colegas urbanos, mas mesmo isso não tem impedido violações das mais diversas. (MELO, 2017, p. 32) Ou seja, o partido nasce do apoio de setores mais progressistas da sociedade que ingressaram na luta contra a ditadura, na defesa de causas muito afins ao pensamento do partido dos trabalhadores. As massas de operários, na citada região do ABC paulista, onde se encontra o maior parque industrial do Brasil, já se organizavam em protestos contra a ditadura em 1984 com as “Diretas já!”. Após intensos protestos, em 15 de março de 1985 é 36 decretado o fim da ditadura e em 1987 é redigida uma nova constituição que passou a vigorar no ano de 1988. É nesse cenário que ocorre as eleições presidenciais de 1989. Na figura do líder sindical Luiz Inácio Lula da Silva e de outros expoentes da ala progressista no Brasil, como Leonel Brizola, o país vive um momento de avanço nas lutas por igualdade social, por melhorias em condições básicas de saúde, educação e outras áreas que fora deixado de lado pelos inúmeros governos. Empunhando bandeiras como a da auditoria da dívida externa, a ofensiva progressista parecia muito bem articulada e pronta para o enfrentamento com a direita representada principalmente na figura de Fernando Collor de Mello. Além da revisão das contas externas, na ala da esquerda havia outras reivindicações como ilustra Machado (2009): “O acirramento político-ideológico entre esquerda e direita evidencia-se a partir das propostas dessas candidaturas, ao tematizarem questões como a auditoria da dívida externa, a reforma agrária e o controle de preços oligopolizados.” (MACHADO, 2009, p. 24) Dada essa configuração do cenário de acirramento político e levando em consideração a massa de trabalhadores principalmente do setor automobilístico extremamente articulada àquela época com um senso de mobilização muito grande, fez com que determinadas fatias da sociedade, mais precisamente os militares, as elites e a classe média ficassem temerosas de uma ascensão ao poder de um grupo que certamente poria em risco seus privilégios, como expressa Machado: Nesta eleição, o então presidente da FIESP (Federação das Indústrias do Estado de São Paulo), Mário Amato, ameaçou retirar 800 mil empresários do país rumo a Miami, caso Lula fosse eleito. Os militares, por sua vez, insinuaram que se ele fosse eleito, não tomaria posse; se tomasse posse, não assumiria; e se assumisse, não governaria. Tanto os empresários como os militares demonstravam o seu “apego” à jovem democracia brasileira (MACHADO, 2009, p. 25) Com auxílio de todo o aparato financeiro e midiático, o candidato da direita vence o pleito daquele ano. Um fato curioso que vale a pena ressaltar foi o famoso caso onde as Organizações Globo fizeram uma edição de um debate entre o candidato Lula e Collor no segundo turno onde Fernando Collor de Mello teria sido favorecido pela edição do debate que fora veiculada no noticiário “Jornal Nacional”, demonstrando o tendencioso modo de cobertura do debate por parte da emissora carioca, que inclusive anos mais tarde veio a reconhecer que essa edição de fato favoreceu o candidato da direita. 37 Após essa derrota, onde havia no cenário político algumas condições para a ascensão de um governo de esquerda, o Partido dos Trabalhadores fizera uma revisão de suas estratégias políticas para os certames seguintes, onde Lula dizia que só concorreria a novos pleitos se fosse para vencer. Com isso, ao longo do tempo, o PT sofreu algumas alterações estruturais no modo de fazer política e de concorrer as eleições. Estava dada o início de sua guinada rumo ao distanciamento da sua base social. Nas palavras de Machado Lula advertiu publicamente que só concorreria em novos pleitos se fosse para ganhar. Estava dada a senha das mudanças de estratégia eleitoral das eleições seguintes os ‘marqueteiros’ passaram a ser os comandantes das campanhas, a ponto de o PT contratar, no pleito de 2002, o mesmo publicitário de Paulo Maluf; as propagandas de TV “substituíram” os comícios, marchas e passeatas; e os militantes “deixaram” as ruas e foram trocados por ‘cabos eleitorais’. (MACHADO, 2009, p. 25) Ou seja, o Partido dos Trabalhadores havia abandonado sua base eleitoral e partido rumo as práticas tradicionais da velha política. Abandonando suas bandeiras pouco a pouco e assumindo novas características. Ainda segundo Machado: Se nos anos 1980 o PT tinha um discurso mais classista, na década seguinte, a cidadania ocupa o seu lugar e as classes trabalhadoras são “desalojadas” dos discursos e das práticas partidárias. Não é à toa que na eleição para governador de São Paulo, em 1982, nos estertores da ditadura militar, o slogan do partido era “Trabalhador vota em trabalhador” e na campanha de Luiza Erundina à prefeitura de São Paulo, em 1988, era “São Paulo para os trabalhadores”. Por sua vez, nas eleições presidenciais de 1998, o slogan mudou e as classes trabalhadoras “desapareceram”: “O Brasil que o Brasil conhece”. E, em 2002, o tema não classista permaneceu: “Brasil para todos”. (MACHADO, 2009, p. 24) Sobre essas alterações de características do partido Melo aprofunda: Mas essa característica começa lentamente a ser alterada dentro do PT. A chance de vencer a eleição nacional exigiria ser como os outros e romper com uma série de práticas políticas que até então marcaram a história do partido. Como define com clareza Virgínia Fontes, seria preciso aprender a seguir o comportamento pragmático do adversário, diminuindo ou mesmo cancelando qualquer diferença entre visões de mundo e práticas políticas. Isso só seria viável com profundas alterações. Alianças eleitorais pragmáticas com qualquer partido (menos PSDB PFL/DEM); financiamento empresarial para campanhas; participação de governos estaduais e municipais com partidos de direita (PMDB, PTB, PP) em nome de cargos. Nesse caso, mais do que a participação no governo, a composição com antigos adversários históricos. Em cada lugar os filiados do PT tiveram que estranhar participar de coligações e governos de que haviam sido ferrenhos adversários num passado recente (MELO, 2017, p. 36) O PT então, ao longo da década de 1990 e dos anos 2000, mudou completamente seu discurso, sua ideologia e seu ‘modus operandi’. Uma das maiores 38 demonstrações dessa mudança radical do discurso do partido dos anos 1980 para os anos 2000, foi a Carta ao povo brasileiro que apesar do nome, acenava principalmente para a classe média e a classe dirigente, numa tentativa de diminuir o temor dessas classes em caso de uma eventual vitória no pleito. Nessa carta Lula afirma que respeitaria os acordos nacionais e internacionais caso vencesse as eleições, dizendo, inclusive, que a burguesia seria muito bem vinda para a construção de um projeto de país. Estava dada a política de conciliação de classe proposta pelo governo Lula naquele ano, a eleição é vencida e pela primeira vez o Partido dos Trabalhadores é alçado à presidência da república. Os primeiros passos de Lula são dados e o distanciamento da sua base, os trabalhadores organizados, e a aproximação com as elites fica cada vez mais evidente. Uma dessas amostras sintomáticas de mudança de política está na escolha do seu vice-presidente. Para acalmar o mercado financeiro e classe dirigente, Lula foi cirúrgico na escolha dos membros do governo, a começar pelo seu vice-presidente, o industrial do setor têxtil, José Alencar. Nas palavras de Melo Nas eleições de 2002, essa nova configuração foi representada por uma série de mudanças nas estratégias eleitorais utilizadas pelo PT. Como vice- presidente, foi escolhido o então senador José Alencar (PL/MG, atualmente PR), importante industrial do setor têxtil e vice-presidente da confederação Nacional das Indústrias (CNI), abrindo portas para uma aceitação do grande empresariado industrial brasileiro, hostil a Lula da Silva e ao PT. Mesmo que o partido de José Alencar tivesse poucos parlamentares e, naquele momento, poucas vitórias em executivos estaduais e municipais, a sua atuação como importante empresário já o habilitava a compor a chapa com Lula da Silva, segundo concepções de mundo em voga no PT (MELO, 2017, p. 37) E Melo segue apontando o alinhamento de Lula com a elite: O ponto mais aguardado pela burguesia financeira era, sem dúvida, a garantia de que haveria o respeito aos contratos e obrigações do país, para usar a expressões presentes na carta. A nomeação de Henrique Meireles para a Presidência do Banco Central, um ex-funcionário do Banco de Boston que havia sido eleito deputado federal pelo PSDB de Goiás, preferindo sequer tomar posse, foi emblemática. (MELO, 2017, p.38) O atendimento dos anseios da elite rentista nacional e internacional encontrava eco na elevação da taxa básica de juros promovida pelo governo, isso foi uma demonstração prática de que o governo estava a serviço do mercado. Segundo Melo: A partir de uma suposta ameaça de bancarrota financeira, o governo Lula da Silva e do PT teve seu início em 2003, mantendo e ampliando os elementos da política econômica e fiscal do governo FHC/PSDB. A surpreendente elevação da taxa básica de juros, que chegou a atingir 26,5% ao ano, o aumento voluntário do superávit primário de 3,75% para 4,25% do PIB e a reforma da previdência social dos servidores públicos deram mostras suficientes de que o processo de finança mundializada estaria garantido no governo Lula da Silva (MELO,2017, p 39) 39 Uma reclamação constante da elite industrial em relação ao governo FHC, era o fato de Fernando Henrique ter alijado essa parcela da sociedade de seu governo, onde houve um processo de privatização enorme e um neoliberalismo extremo. A indústria nacional, então começou a ruir em função da baixa competitividade no contato com o mercado internacional. Lula acabou por radicalizar um processo que havia começado no final do segundo mandato do governo FHC. Após a crise cambial de 1999, o governo de Fernando Henrique se propôs a desvalorizar o real, para que o produto nacional tivesse competitividade no mercado exterior “[...] em seguida, desvalorizou o real, abandonou a sua política de déficit na balança comercial e partiu para uma política de balança comercial superavitária.” (BOITO, 2005, p .8). Ainda segundo Boito: Na campanha eleitoral de 2002, já estava claro que essa correção de rumo deveria se manter. Fernando Henrique Cardoso talvez não fosse o timoneiro mais indicado para dirigir o barco nessa direção. Lula, o seu partido e a CUT, ao contrário, sempre estiveram politicamente próximos da Fiesp quando essa protestara, ao longo da década de 1990, contra os “exageros” da abertura comercial e contra os juros elevados. Uma vez no governo, Lula decidiu radicalizar na direção desse ajuste. Iniciou a sua política agressiva de exportação, centrada no agronegócio e nos produtos industriais de baixa densidade tecnológica, e implementou as medidas cambiais, creditícias e outras necessárias para manter essa política. (BOITO, 2005, p. 8) Assim a elite industrial encontrava um lugar de conforto que não havia encontrado no governo FHC, em função de ter sido excluída de todo esse processo, assim assumindo um local de hegemonia no novo governo, embora esse lugar fosse em segundo plano, já que com a política superavitária adotada pelo governo Lula, o principal foco dele tenha sido o capital financeiro. O governo então tinha trazido alento a uma das várias camadas da sociedade, e no seu projeto de conciliação, faltava agradar as massas, e assim o fez com um programa de distribuição de renda, o Bolsa Família, atendendo a uma parcela significativa da população brasileira abaixo da linha da miséria, dando acesso a bens e serviços àquela parcela da população excluída, embora isso fosse algo irrisório na mudança da estrutura social do país. Porém, o que parece ser algo como um grande feito do governo petista, não exigiu um esforço hercúleo para conseguir implementar esse programa, já que vários deles já existiam de modo separado desde o governo Sarney em forma de auxílio gás, 40 auxílio leite, entre outros tipos de auxílios. Lula apenas unificou o programa e lhe deu maior aporte financeiro, que também não exigiu uma grande engenharia financeira dos cofres públicos como aponta Boito. O Governo Lula unificou tudo isso numa bolsa família e aumentou um pouco a dotação orçamentária para esse fim. Não são direitos, são sobras de caixa que dependem do humor de Antonio Palocci, isto é, do humor do capital financeiro. (BOITO, 2005, p.10) Ou seja, se por um lado Lula não media esforços para conseguir trazer para o seu lado o capital financeiro e o setor industrial, por outro lado dava as camadas mais pobres o que sobrou para que mantivesse a população acalmada, desorganizada e desinformada pois “sabe que a organização do povo poderia criar uma situação que o obrigaria a substituir a oferta de bolsas pela consolidação de direitos.” (BOITO, 2005, p.10) Em relação a esse programa de transferência de renda, Melo é contundente e diz que: Com uma parcela mínima do PIB, os programas de renda mínima atingem aproximadamente 45 milhões de brasileiros que estavam na mais estreita miséria e indigência. Efetivamente, isso significa que o programa bolsa família representa em torno de 0,5% do PIB, atingindo um enorme contingente populacional, ao mesmo tempo em que o superávit primário e o pagamento de juros destinam perto de 9% do PIB para as frações rentistas, que investem em títulos da dívida pública brasileira. Se inegavelmente os setores mais empobrecidos estão em situação menos drástica, também é possível defender que isso não foi barreira para aumento da concentração de renda e da desigualdade. (MELO, 2017, p. 41) Sobre esse momento do país Machado define: O governo Lula provocou uma redefinição na composição do bloco no poder, dando maior alento ao neoliberalismo, salvando-o da crise em que se encontrava no final do último mandato do governo Cardoso. Além de trazer para a sua base de apoio as frações da burguesia interna e do agronegócio, “alijadas” na gestão de seu antecessor, atraiu os setores mais pobres da população – os “descamisados” – que outrora (nas eleições de 1989) votaram em Collor. (MACHADO, 2009, p. 29) Porém, em relação aos trabalhadores organizados, que deram sustentação ao partido desde a sua formação, foi dada como “presente” a reforma da previdência, arrocho salarial entre outras medidas, “política social meramente compensatória [...]. Os dados relativos a 2003 indicam uma nova queda no salário médio e uma piora na concentração da renda no país.” (BOITO, 2006, p. 273) mostrando assim que o governo deu as costas para sua base e que havia mudado radicalmente sua ideologia em relação às ideologias presentes nos anos 1980. Segundo Boito: Porém, para os trabalhadores organizados, o Governo Lula não fez concessão. Continua sonegando uma política salarial e mantém o arrocho dos salários com mão de ferro, é omisso diante do drama do desemprego, 41 retirou direitos previdenciários do setor público e, também, do setor privado, enfim, não trouxe nada de novo. Porém, o Governo Lula não ficou parado. Ele recuperou e ampliou o populismo conservador de Collor e de FHC. As reivindicações dos trabalhadores organizados são preteridas, pois o seu atendimento custaria muito caro ao capitalismo brasileiro e ao capital financeiro, mas, ao mesmo tempo, o governo passa a fazer demagogia social com os trabalhadores pauperizados, desorganizados e politicamente desinformados. (BOITO, 2005, p .8) A. U. de Oliveira (2008) aponta outras mudanças de rumo em relação as bandeiras defendidas pelo partido quando se refere a questão agrária, uma pauta historicamente defendida pelo Partido dos Trabalhadores e que foi um dos motivos de seu surgimento. Segundo ele, o II Plano Nacional de Reforma Agrária do Ministério do Desenvolvimento “tinha como meta um, implantar em cinco anos 550 mil novos assentamentos, e, como meta dois, regularizar 500 mil posses” porém, quando analisados com esses valores de modo mais específico, Umbelino de Oliveira destaca que os dados do governo englobam a relação de beneficiários e as chamadas RBs, não fazem referência apenas a novos assentamentos mas também em assentamentos em regularização fundiária, logo: Assim, mesmo com muitos limites, é possível começar a fazer o balanço do II PNRA. Mas, os dados das RBs divulgados pelo INCRA, em decorrência dos motivos apontados anteriormente, precisam ser desagregados. Feita esta desagregação, entre 2003 e 2007 o governo Lula assentou apenas 163 mil famílias referentes à meta um – novos assentamentos. Portanto, cumpriu somente 30% da meta de 550 mil famílias que ele tinha prometido assentar. Não cumpriu também a meta dois que referia à regularização fundiária de 500 mil posses, pois regularizou apenas a situação de 113 mil famílias, ou seja, atingiu apenas 23% da meta. Entre os dados restantes estão 171 mil famílias referentes à reordenação fundiária, ou seja, a situação de regularização em assentamentos antigos, e o que é mais absurdo a inclusão de cerca de duas mil famílias referentes à reassentamento de atingidos por barragens, que em absoluto trata-se de reforma agrária. (OLIVEIRA, 2008) Ou seja, para que parecesse que o governo atingiu as metas de novos assentados, resolveu-se colocar os assentamentos antigos como novos assentamentos regularizados, assim passando a sensação de ter atingido a meta proposta. Oliveira também faz menção ao fato de como o governo Lula tenta conciliar a reforma agrária com os interesses do agronegócio, onde essa regularização fundiária e novos assentamentos, não interferem no desenvolvimento dos grandes latifundiários: Assim, como tenho afirmado a política de reforma agrária do governo Lula está marcada por dois princípios: não fazê-la nas áreas de domínio do agronegócio e, fazê-la apenas nas áreas onde ela possa “ajudar” o agronegócio. Ou seja, a reforma agrária está definitivamente, acoplada à 42 expansão do agronegócio no Brasil. É como se estivesse diante de uma velha desculpa: o governo Lula finge que faz a reforma agrária, e divulga números maquiados na expectativa de que a sociedade possa também, fingir acreditar. (OLIVEIRA, 2008) Com isso Umbelino de Oliveira conclui d