RESSALVA Atendendo solicitação do autor, o texto completo desta dissertação será disponibilizado somente a partir de 31/08/2024. Câmpus de São José do Rio Preto Jair Ferrari Júnior Ethos e estereótipos no discurso dos povos originários sobre o fim do mundo: uma cosmopolítica decolonial São José do Rio Preto 2023 1 Jair Ferrari Júnior Ethos e estereótipos no discurso dos povos originários sobre o fim do mundo: uma cosmopolítica decolonial Dissertação de Mestrado apresentada como parte dos requisitos para obtenção do título de Mestre em Estudos Linguísticos, junto ao Programa de Pós-Graduação em Estudos Linguísticos, do Instituto de Biociências, Letras e Ciências Exatas da Universidade Estadual Paulista “Júlio de Mesquita Filho”, Câmpus de São José do Rio Preto. Orientador: Profª. Drª. Anna Flora Brunelli São José do Rio Preto 2023 F375e Ferrari Júnior, Jair Ethos e estereótipos no discurso dos povos originários sobre o fim do mundo : uma cosmopolítica decolonial / Jair Ferrari Júnior. -- São José do Rio Preto, 2023 175 p. : il. Dissertação (mestrado) - Universidade Estadual Paulista (Unesp), Instituto de Biociências Letras e Ciências Exatas, São José do Rio Preto Orientadora: Anna Flora Brunelli 1. Ethos. 2. Discurso Indígena. 3. Paratopia. 4. Cosmopolítica Decolonial. 5. Estereótipos. I. Título. Sistema de geração automática de fichas catalográficas da Unesp. Biblioteca do Instituto de Biociências Letras e Ciências Exatas, São José do Rio Preto. Dados fornecidos pelo autor(a). Essa ficha não pode ser modificada. Jair Ferrari Júnior Ethos e estereótipos no discurso dos povos originários sobre o fim do mundo: uma cosmopolítica decolonial Dissertação apresentada como parte dos requisitos para obtenção do título de Mestre em Estudos Linguísticos, junto ao Programa de Pós- Graduação em Estudos Linguísticos, do Instituto de Biociências, Letras e Ciências Exatas da Universidade Estadual Paulista “Júlio de Mesquita Filho”, Câmpus de São José do Rio Preto. Comissão Examinadora Profª. Drª. Anna Flora Brunelli UNESP – Câmpus de São José do Rio Preto Orientador Profª. Drª. Érika de Moraes UNESP - Câmpus de Bauru Profª. Drª. Júlia Maria Costa de Almeida UFES – Câmpus de Vitória São José do Rio Preto 2023 3 AGRADECIMENTOS À minha “prof.” e orientadora Anna Flora Brunelli, um dos melhores seres humanos que eu tive a oportunidade de cruzar o caminho nesta vida e principal responsável por eu conseguir chegar até esse ponto e realizar este sonho. Ao leitor que tiver alguma dúvida sobre uma orientadora que além de brilhante pesquisadora é a pessoa mais paciente, generosa e compreensiva, sua pesquisa acabou com o nome acima. Às professoras Júlia Maria Costa de Almeida e Erika de Moraes, pelas caras sugestões e comentários apresentados durante a Qualificação e a Defesa deste trabalho. Sem dúvidas há um trabalho antes e depois de vocês. Agradeço também aos professores Eduardo Penhavel e Márcio Antônio Gatti pela disposição e gentileza em figurarem como parte da banca como suplentes. À minha tia Maria, sustentáculo e exemplo maior de generosidade e abnegação, sem a qual eu certamente não teria realizado nada do pouco que fiz. À minha irmã Anna, parceira de discussões acadêmicas e realizadora de perguntas inquietantes. E à memória de minha mãe, Fátima. Aos meus amigos, em especial a Ana, o Breno, o João Vitor, o Murilo e a Sumaila, pelas tantas horas de companhia atenta às admoestações aos olhos brilhando de um pós-graduando ao falar do seu tema de pesquisa. À minha patroa Alyne e aos meus demais colegas de trabalho pelo apoio e incentivo em todo esse processo desafiador que é fazer um mestrado e trabalhar ao mesmo tempo. Ao Floki, meu filho peludo, pequeno e silencioso porto seguro a que eu sempre pude retornar para lidar com os dias mais difíceis e solitários de uma pesquisa feita em casa. Aos servidores do IBILCE, em especial aos da Biblioteca e da Pós-graduação que, bem como nós, precisaram se desdobrar para atender às demandas dos alunos em um contexto tão difícil como a pandemia, mas o fizeram com um profissionalismo que excede as melhores expectativas. Por fim, agradeço à própria UNESP e ao PPGEL/IBILCE, dos quais tenho um imenso orgulho de fazer parte, por dar a possibilidade de produzir um trabalho como este. 4 “Cada história é acompanhada por um número indeterminado de anti-histórias, cada uma das quais é complementar a outros” Claude Lévi-Strauss (1990, p. 190). 5 RESUMO Considerando não só a complexidade, como também a relevância social da questão indígena, neste trabalho, pretendemos contribuir com os estudos discursivos sobre o discurso dos povos originários. Para tanto, com base no aparato teórico-metodológico da Análise do Discurso de linha francesa, analisamos o discurso dos próprios indígenas a respeito de um dos temas que lhes é bastante caro, isto é, a preservação da natureza, procurando evidenciar algumas das regularidades que o caracterizam. Além disso, procuramos nos alinhar aos estudos decoloniais, o que significa reconhecer a necessidade de superarmos as heranças da colonização, que contribuiu e ainda contribui para que os povos originários fossem e sejam relegados à condição de subalternizados. Nossa análise está centrada na identificação do ethos do sujeito enunciador (cf. Maingueneau, 2020), ou seja, na imagem que o enunciador projeta de si, considerando o modo como enuncia. Também analisamos o papel de certos estereótipos (dos indígenas e dos “homens brancos”) no funcionamento do discurso indígena. Para compor um corpus que seja suficientemente representativo desse discurso, elegemos livros recentes de autores que se autodenominam “indígenas” e que são publicamente reconhecidos como porta-vozes dos povos originários brasileiros: Ailton Krenak e Davi Kopenawa Yanomami. A análise revela que o sujeito enunciador indígena projeta de si várias imagens interligadas em seu discurso: a imagem do indígena como grande conhecedor da natureza (o que lhe permite fazer previsões sobre o futuro da humanidade), e a imagem do xamã. De acordo com nossa análise, essas imagens estão ligadas a uma condição paratópica complexa que o sujeito enunciador indígena assume ao enunciar, na qual estão combinados tanto valores da própria cosmovisão indígena, quanto diferenças entre as práticas indígenas e práticas características da cultura do “homem branco”. Com isso, propomos a noção de Cosmopolítica Decolonial, que aborda as relações entre diferentes formas de vida, incluindo seres humanos e não humanos, e propõe uma crítica à dominação e exploração colonial, bem como à lógica capitalista global que desencadeia a destruição ambiental. Além disso, verificamos que, no discurso em análise, os estereótipos tradicionais de indígenas são ressignificados, assumindo valores positivos e servindo de contraponto a estereótipos negativos do homem branco, entendido nos termos de um predador da natureza que é insensível e indiferente aos seus avisos. Dessas questões emerge, na análise, a revelação de um ethos de alerta, que diz respeito não apenas a um habitante da floresta que visa defendê-la a partir de seu espaço mais restrito, mas a alguém por quem ela fala e pede ajuda. Palavras-chave: Ethos. Discurso Indígena. Paratopia. Cosmopolítica Decolonial. Estereótipos. 6 ABSTRACT Considering not only the complexity, but also the social relevance of the indigenous topic, in this work we aim to contribute to the discourse studies about the discourse of original peoples. For this purpose, using the theoretical-methodological repertoire of the French line of Discourse Analysis as our basis, we analyze the discourse of the indigenous people themselves about a topic very important to them, that is, the preservation of nature, looking to put in evidence some of the regularities that categorize this discourse. Besides that, we also look to align ourselves to the decolonial studies, which means to recognize the need of overcoming the heritage of colonization that has contributed and still contributes to make the original peoples being relegated to a position of subordination. Our analysis is centered in the identification of the ethos of the enunciator subject (cf. Maingueneau, 2020), in other words, the image the enunciator projects about himself, considering the way that he or she enunciates. We also analyze the role that certain stereotypes (of the indigenous and of the “white men”) in the functioning of the indigenous discourse. In order to build a corpus that is sufficiently representative of this discourse, we have chosen recent books of writers who label themselves “indigenous” and that are publicly recognized as spokesmen of Brazilians indigenous peoples: Ailton Krenak and Davi Kopenawa Yanomami. The analysis reveals that the indigenous enunciator subject projects many interconnect images about his self in his discourse: the image of the indigenous as a great connoisseur of the nature (something that allows him to make previsions about humanity’s future), and the image of the shaman. According to our analysis, these images are linked to a complex paratopic condition that the indigenous enunciator subject assumes when enunciating, in which both values of the own indigenous cosmovision and differences between the indigenous practices and characteristics of the “white man” culture are combined. With this, we propose the idea of Decolonial Cosmopolitics, which deals with the relations between different life forms, both human and non-human, and that proposes a critic to the colonial domination and exploration, as well as to the global capitalist logic that unleashes environmental destruction. Besides that, we verify that, in the discourse under analysis, the traditional stereotypes of indigenous are resignified, assuming positive values and serving as a counterbalance to negative stereotypes of the white man, who is understood in terms of a predator of nature who is unsensible and indifferent to its warnings. From these questions emerges, in the analysis, the revelation of an ethos of awareness that concerns not only to a resident of the forest that wants to protect it from his more restrict space, but also to someone for whom the forest speaks and asks for help. Keywords: Ethos. Indigenous Discourse. Paratopia. Decolonial Cosmopolitics. Stereotypes. 7 LISTA DE ILUSTRAÇÕES Figura 1 – Capas dos livros de Ailton Krenak. 51 Figura 2 – Caminhos Pré-Colombianos Figura 3 - Troncos linguísticos indígenas antes de 1500 70 76 Figura 4 - População Indígena no Brasil pelo Censo de 2010 81 Figura 5 - Situação dos Indígenas no Brasil 81 Figura 6 – Capa d’Aqueda do Céu 116 Figura 7 - Dança de apresentação dos espíritos xamânicos xapiri 122 Figura 8 - Krenak na Constituinte 124 Figura 9 - “O homem branco” (1) 158 Figura 10 - “O homem branco” (2) 159 8 SUMÁRIO 1 INTRODUÇÃO ....................................................................................................... 10 2 APARATO TEÓRICO-METODOLÓGICO ............................................................. 19 2.1 A Gênese dos Discursos por Dominique Maingueneau ............................. 20 2.2 Ethos: O Sujeito e sua imagem no discurso ............................................... 25 2.2.1 Da retórica aristotélica à AD francesa: o que é “ethos”? ........................... 25 2.2.2 Da cena de enunciação ............................................................................. 28 2.2.3 Dos estereótipos ....................................................................................... 32 3 SOBRE AS PELES DE PAPEL: O CORPUS DA ANÁLISE ................................. 37 3.1 Da composição do corpus ............................................................................ 37 3.1.1 Preliminarmente: Descobrindo o Brasil Indígena ...................................... 37 3.1.2 Exposição dos Motivos: os desafios para a constituição do corpus .......... 41 3.2 Do corpus de análise e da classificação da pesquisa ................................ 46 3.2.1 Ailton Krenak e suas ideias para uma vida útil no fim do mundo .............. 50 3.2.2 Kopenawa: Para quando o céu cair .......................................................... 54 4 O NÃO TÃO NOVO MUNDO: OS INDÍGENAS NO BRASIL ................................ 66 4.1 Do Éden aos Andes: Uma odisseia humana na Terra ................................ 69 4.2 Do choque entre culturas: um “descobrimento” ........................................ 75 4.3 Dos sobreviventes: uma nova terra ancestral ............................................ 78 5 DECOLONIZAR SABERES: UMA NOVA PERSPECTIVA ................................... 83 5.1 Da colonialidade: a invasão do descobrimento .......................................... 86 5.2 Da Antropologia Ameríndia: um lugar de embates ..................................... 90 5.3 Do perspectivismo: O lobo é o homem do lobo ......................................... 98 5.4 Do Xamanismo: A ciência e o cientista indígena ...................................... 102 6 ANÁLISE DO ETHOS .......................................................................................... 107 6.1 Polifonia ancestral: o ethos do multisciente ............................................. 108 6.2 O ethos do indígena e o alerta para o fim do mundo ............................... 126 6.2.1 “Traduzir” a língua da Terra .................................................................... 127 9 6.2.2 O fim do mundo e o ethos ancestral ........................................................ 135 6.2.3 Indígena vs. homem branco .................................................................... 140 7 ESTEREÓTIPOS NO DISCURSO INDÍGENA ..................................................... 144 7.1 Estereótipos e a questão do silêncio ......................................................... 144 7.2 Estereótipos no discurso relatado do “homem branco” ......................... 154 CONCLUSÕES: ASSIM É! ..................................................................................... 162 CONSIDERAÇÕES FINAIS .................................................................................... 168 REFERÊNCIAS ....................................................................................................... 171 10 1 INTRODUÇÃO “Não há nenhuma diferença entre a importância, o valor e o significado da ciência dos brancos e das ciências indígenas”. Gersem Baniwa Com base no quadro teórico-metodológico da Análise do Discurso Francesa (doravante denominada “AD”), desenvolvemos a presente pesquisa com o intuito de contribuir com os debates acadêmicos situados no âmbito das humanidades sobre um discurso que ganha cada vez mais espaço na contemporaneidade: o discurso dos povos originários. Embora o tema indígena não seja nada novo nas pesquisas acadêmicas, buscamos nos inserir em tendências mais recentes da produção intelectual e científica que versa sobre o tema, o que nos aproxima dos assim chamados estudos decoloniais, dentre os quais se destacam as análises de Aníbal Quijano sobre a noção da colonialidade do poder, embasado no processo de colonização ocorrido na América Latina por parte de países do continente europeu. A decolonialidade, por sua vez, se situa em um plano que intenta rever as influências desse processo de colonização, que parte do pressuposto de que a Europa é o centro e a medida base para todas as outras sociedades. Nesse caso, a Europa é entendida não apenas como um lugar geográfico - o ponto de partida para colonizar os outros continentes, mas como um plano histórico e discursivo que realiza, mesmo na atualidade, a divisão da sociedade cuja base é o etnocentrismo. Assim, alinhados aos estudos decoloniais, procuramos analisar o discurso indígena de uma perspectiva que não reproduza valores relativos a esse discurso que contribui(u) para que os povos originários sejam (fossem) relegados à condição de subalternidade. A Cosmopolítica Decolonial aborda as relações entre diferentes formas de vida, incluindo seres humanos e não humanos, e propõe uma crítica à dominação e exploração colonial, bem como à lógica capitalista global que desencadeia a destruição ambiental. Essa abordagem reconhece a importância dos saberes indígenas, como o xamanismo, na compreensão e reconfiguração das relações entre humanos e natureza. 11 Nesse sentido, Edward Said ([1978] 2007), trabalhando com a ideia de um Orientalismo, identifica em sua análise a maneira como a própria noção de um Ocidente nasce a partir da definição do que é Oriente, ou seja, afirmando-se a partir da negação dos aspectos e características do seu outro. No mesmo panorama, desta vez em uma das premissas obtidas pela análise desenvolvida por Stuart Hall tendo como foco as Américas “pré-descobrimento”, o ocidente é tido como um conceito histórico (mais do que propriamente geográfico), associado como um tipo de sociedade urbanizada, capitalista e industrial. Ainda pelo mesmo autor, o conceito de Ocidente pode ser caracterizado como um conjunto de imagens que “funciona como parte da linguagem, um ‘sistema de representação’” (Hall, 2016, p. 316). O conceito ainda nos fornece um padrão de avaliação que classifica as demais sociedades em relação à sua proximidade com o Ocidente. Baseado na ideia de que o Ocidente é a materialização do que é moderno e desenvolvido, o conceito trata as demais sociedades como estando em um processo de “ocidentalização”. Observamos que o Japão, apesar de ser culturalmente a representação máxima do extremo oriente geográfico, é posto em igualdade ao ideal ocidental depois de um processo que o tornou desenvolvido tecnologicamente (Hall, 2016, p. 315). Por extensão, consideramos que as mesmas “ferramentas”, ou “dispositivos” (cf. Lisbôa, 2019) que foram utilizadas para construir o outro do Ocidente em relação ao Oriente também ajudaram a construir os estereótipos que deram sentido aos discursos que resultaram na exploração da América e dos povos que aqui viviam antes do “Descobrimento”. Remetemos à ideia de “descobrir” ao seu significado precípuo de se tornar conhecido. Por óbvio, foi isso que ocorreu quando os europeus souberam que havia terras e povos do outro lado do Atlântico, mas a insistência em se referir a esse período da história nacional nos termos de uma “descoberta” coloca sempre a cultura indígena para fora, num movimento centrífugo que nunca lhe permite assumir o controle sobre seus próprios discursos. As pesquisas de Said e de Hall tratam justamente dessas formas de opressão que se originam na Europa e que são perpetuadas pelo protagonismo assumido pelos Estados Unidos no mundo posterior à Segunda Guerra Mundial. Desse modo, podemos dizer que o desenvolvimento econômico e tecnológico ocorrido nos Estados Unidos tornou a nação norte-americana um tipo de extensão da 12 ideia de um ocidente mesmo não estando geograficamente no continente europeu. O “centro do mundo” deslocou-se um pouco mais para o ocidente, respeitando ainda a maneira de se interpretar o mundo partindo de uma perspectiva etnocêntrica. O Brasil, por sua vez, tem a tradição de associar-se à cultura, à moda, ao comportamento e à produção acadêmica europeia e estadunidense, associando-os à elite e colocando as heranças indígenas ou africanas em estratos inferiores. Com isso, nossa cultura se desenvolveu a partir dos mesmos valores etnocentristas, embora jamais tenha sido incluída como “ocidental” propriamente dita; ou, pelo menos, não foi validada por aqueles considerados ocidentais em sentido estrito. De qualquer forma, o etnocentrismo pode ser considerado como a força motriz para o processo de escravização dos indígenas e das pessoas obtidas na diáspora africana. Assim, as heranças coloniais no Brasil fizeram com que os mais diversos tipos de discurso abordassem, de um jeito ou de outro, questões relativas aos povos originários e estão, em sua grande maioria, atravessadas pelo mesmo discurso colonial com os valores discriminatórios que o caracterizam, o que não deixa de ser o caso, inclusive, de boa parte da produção discursiva acadêmica sobre os assuntos que se referem ao processo de formação da “nação brasileira”. Nesse sentido, durante o desenvolvimento desta pesquisa, procuramos nos apoiar em trabalhos (em especial os discursivos, mas não somente) sobre os povos indígenas que tivessem como ponto de partida pessoas autodeterminadas como pertencentes a alguma etnia de povos originários brasileiros. Destacamos, dentre esses trabalhos, o realizado por Eni Orlandi ([1980] 2008). Em sua análise, a autora empreende a noção de “silenciamento”, que é justamente a forma pela qual o discurso colonial efetivamente lidou com os sentidos indígenas: silenciando-os. Seja pela religião, seja pela implementação de políticas públicas (até mesmo as que buscavam a proteção dos indígenas), todas essas atividades passaram pelos critérios do “homem branco”, ou seja, de pessoas externas a essas comunidades que decidiam por elas, representando-as de modo a estabelecer um processo contínuo de dominação. Isto posto, com o intuito de contribuir com os estudos que versam sobre a temática indígena e que abrem espaço para se ir além das heranças coloniais, decidimos analisar o discurso dos próprios indígenas, como uma forma de dar destaque para a voz desse grupo. Com essa opção, procuramos nos distanciar também das metodologias etnográficas “tradicionais” - aquelas preocupadas 13 predominantemente com a busca de “estruturas” ou “padrões”, focadas em questões como o matrimônio, a religião, a hierarquia social, o luto, etc. - e cuja produção (em geral bibliográfica) é obtida a partir do contato entre pesquisadores e povos indígenas, por meio de uma metodologia etnocêntrica, ou seja, de uma perspectiva de superioridade entre quem realiza a pesquisa e o grupo que passa pelo crivo de uma análise de extrato qualitativo daquela sociedade. Sem dúvida, a relevância dessas pesquisas para as ciências humanas é indiscutível, até mesmo para que fosse possível perceber a existência de mundos e de sujeitos que se diferenciam do microcosmo etnocêntrico ocidental. Ainda assim, podemos dizer que esses trabalhos estão atravessados pelos discursos dos pesquisadores sobre os indígenas, o que, do nosso ponto de vista, não pode ser confundido com o discurso indígena em si. Em nosso corpus, conforme nos aprofundaremos mais adiante, a figura do antropólogo não é de todo ignorada, embora seu deslocamento constitua uma alteração dos sentidos. Uma vez tomada a decisão de não trabalhar com textos sobre os povos originários, mas com textos oriundos de sujeitos que se identificam com algum grupo étnico indígena ou, mais precisamente, com a sua ancestralidade (que é a identificação desse povo com as suas raízes, suas práticas, suas religiosidades e seus territórios) tratamos de selecionar um corpus que fosse representativo desse discurso, o que nos coloca diante de uma grande dificuldade, dada a heterogeneidade que o caracteriza e da própria dificuldade de acessá-lo. Para resolvermos esse impasse e garantir a exequibilidade da pesquisa, optamos por trabalhar com produções já existentes, relativas a sujeitos que são reconhecidamente considerados pelos próprios povos originários como seus representantes. Entre esses sujeitos, dois nomes se destacam: o de Ailton Krenak e o de Davi Kopenawa Yanomami. Os Krenak e os Yanomami - grupos que dão nome aos seus autores - sofrem com as incursões de mineradoras e de garimpeiros em seus territórios, de modo que nossas expectativas iniciais eram de que o tema principal desse discurso seriam as reivindicações dos povos originários ao seu livre exercício sobre essas terras. Entretanto, durante as etapas iniciais da pesquisa, mais exatamente quando dos estudos realizados para a montagem do corpus, percebemos que, apesar de esse ser um tema realmente bastante característico do discurso indígena, há uma questão mais ampla à qual atribui um caráter de urgência: o da 14 proteção da Terra, ou seja, do mundo como um todo, incluindo toda a natureza e todos os seres humanos. Percebemos, então, que esse discurso dos povos originários diz respeito a um debate que vai além das reivindicações próprias a seus grupos, no qual a questão da proteção da natureza não é tomada como uma demanda indígena particular, mas como algo de interesse de toda a humanidade. Assim, o discurso que analisamos neste trabalho se alinha, de um certo modo, aos discursos científicos que tratam das mudanças climáticas no planeta Terra. Conforme entende um certo posicionamento científico, as mudanças climáticas vêm gradativamente aumentando o número de catástrofes naturais que, com o igual aumento da população mundial em algumas zonas, resultam em verdadeiras tragédias, levando centenas de milhares de pessoas à morte, seja por uma grande quantidade de chuvas, seja pela seca prolongada, seja pela poluição e contaminação dos alimentos, da água e do ar. Com isso, chefes de Estado do mundo todo procuram, muitas vezes sem muito sucesso, reduzir os efeitos dessas mudanças para que seja possível ao menos um prolongamento da existência humana na Terra. Nesse ínterim, acentua-se o debate sobre a preservação da natureza e, como os povos originários se apresentam como aqueles que, em suas tradições ancestrais, vivem harmoniosamente com a natureza, estão sendo chamados para participar desses debates. A esse respeito, observamos que a ligação entre os povos indígenas e a natureza é um efeito de sentido comum e frequente em diversos discursos que, de um modo ou de outro, tematizam os povos originários, inclusive naqueles discursos que estereotipam os indígenas de um modo negativo, associando-os, por exemplo, a práticas de “selvageria” ou a práticas ditas “atrasadas”. Esse “primitivismo” atribuído aos povos originários é uma maneira de interpretar seus costumes e sua vivência a partir de uma perspectiva que associa o desenvolvimento tecnológico e urbanístico ao desenvolvimento de uma sociedade. Ocorre que, no contexto atual, já ficou claro para muitos grupos sociais que é justamente a tecnologia e o modo urbano de viver que estão trazendo à natureza problemas que estão reverberando na vida de todos os seres humanos, sejam eles habitantes dos centros urbanos ou não. Com isso, o discurso indígena, objeto de nossa investigação, se insere nessa nova “ordem” global de debates, assumindo um protagonismo que não está apenas 15 ligado aos seus hábitos, mas também à sua ancestralidade, conforme pontuamos em nossa análise mais adiante. Isto posto, neste trabalho, temos como objetivo mais geral investigar o discurso indígena que versa sobre a preservação da natureza e que tem em seu conteúdo uma mensagem de alerta para um possível e provável “fim do mundo”, o que entendemos como uma forma de valorizar a sua voz. Para tanto, vamos analisar o ethos desse discurso, com o intuito de verificar em que medida combate (ou não) estereótipos negativos dos grupos que apoiam discursos eurocêntricos. Em termos mais precisos, temos os seguintes objetivos específicos: i) analisar o discurso indígena, levando em conta as condições de produção que permitiram que fosse tomado como válido no contexto das discussões mundiais a respeito da preservação da natureza; ii) analisar o(s) ethos do discurso indígena, procurando revelar a(s) imagem(ns) que o sujeito indígena projeta de si; iii) analisar os estereótipos presentes no discurso dos povos originários, principalmente os que versam sobre o próprio grupo, a fim de verificar como dialogam com as imagens cristalizadas no discurso colonial. O primeiro objetivo diz respeito à identificação de um processo: como o discurso, formatado nos recortes que fizemos, pode ser considerado como o “discurso indígena” no contexto dos discursos que circulam e que têm relevância social na atualidade. O segundo objetivo, por sua vez, corresponde ao resultado de uma delimitação empreendida no primeiro, do qual vamos privilegiar a análise do ethos, considerando que existe uma forte coerência entre a imagem que o indígena projeta de si e o que diz sobre a sua relação com a natureza. Essa coerência diz respeito, justamente, à identidade enunciativa que tratamos de caracterizar neste trabalho. Por fim, no terceiro objetivo específico, analisando estereótipos presentes no discurso indígena, verificamos como a construção da imagem do sujeito indígena se vale de signos cristalizados que o caracterizam como pertencente a essa comunidade, e que são ressignificados em seu discurso. Para cumprir essas 3 metas, organizamos o trabalho em 7 capítulos, incluindo esta introdução. Na primeira parte do capítulo 2, que sucede este exórdio, apresentamos as teses e os conceitos de AD que empregamos para a análise do corpus, considerando os objetivos específicos deste trabalho, com destaque para a 16 tese da interdiscursividade constitutiva e para o conceito de ethos discursivo, orientados pelos trabalhos de Maingueneau sobre o tema. Além disso, ainda seguindo os postulados de Maingueneau, apresentamos outros conceitos relacionados ao ethos discursivo que são aplicados na análise, como o de cena de enunciação e o de estereótipos. Para a apresentação do conceito de estereótipo, apoiamo-nos, também, em Amossy e Pierrot (2022) e em alguns trabalhos de Psicologia Social. No capítulo 3, tratamos das condições de produção mais amplas do corpus de análise. Ressaltamos que o “corpus de análise” se diferencia do “corpus de pesquisa", que é mais abrangente e que, apesar de não ser diretamente referenciado na análise, fez parte do processo de percepção desse discurso indígena de que tratamos. Posteriormente tratamos de descrever com maior profundidade o processo que levou ao recorte desse corpus analítico, juntamente com a perspectiva adotada por nós para empreender a “leitura” desses textos. Nesse ínterim, considerando que nosso corpus analítico é constituído por um certo tipo de produção verbal, isto é, livros. Abordamos detalhes intra e extratextuais dessas produções (como o período e o contexto em que foram elaborados, o processo de organização do texto para a editoração, recursos gráficos empregados etc.) e averiguamos mediações que o discurso indígena sofreu para que se adequasse ao formato em questão. Esses aspectos, conforme vamos apresentar no decorrer da análise, são fundamentais para a compreensão do discurso indígena, à guisa do recorte deste trabalho. Já no capítulo 4, abordamos sucintamente alguns elementos que, oriundos de pesquisas inscritas na História, podem nos oferecer um panorama da origem do discurso dos povos indígenas. Os estudos concernidos nas teses da História sobre as temáticas indígenas se situam em um campo fértil de debates acadêmicos sobre o que chamamos de “processo colonizatório” e sobre o seu legado, além de justificar um conceito-chave desse discurso que é a ancestralidade. Na sequência, no Capítulo 5, recuperamos mais alguns conceitos-chave, desta vez da Antropologia, que julgamos essenciais para o desenvolvimento do presente trabalho. Mais exatamente, procuramos ampliar nossa compreensão a respeito das condições de produção do discurso dos povos originários de que tratamos. Para isso, realizamos, na primeira parte deste capítulo, uma breve apresentação dos estudos sociológicos sobre decolonialidade. O objetivo desta seção é apresentar brevemente como os discursos oriundos da tradição ocidental influenciaram e se estabeleceram 17 nos planos religiosos, linguísticos e políticos das sociedades ameríndias. Assim, para fazer jus a esses objetivos, consideramos algumas noções que contribuem para esse deslocamento, em especial o estudo do antropólogo brasileiro Eduardo Viveiros de Castro (2020) sobre o perspectivismo ameríndio. Ao final desse mesmo capítulo, versamos sobre uma figura-chave do discurso indígena: o xamã. Conforme vamos verificar no decorrer da análise, aplicando a ideia de uma cosmopolítica decolonial, buscaremos compreender como o discurso dos povos originários se sustenta. Já no capítulo 6, analisamos os principais ethé que caracterizam o discurso indígena. Para tanto, consideramos não só o discurso indígena em si, mas também uma série de aspectos relativos às suas condições de produção mais imediatas. Essa análise revela que o discurso indígena está ligado a uma condição paratópica complexa, que abrange tanto valores da própria cosmovisão indígena, quanto as diferenças entre as práticas dos indígenas e as práticas características da cultura do “homem branco”. No capítulo 7, tratamos de analisar estereótipos presentes no discurso indígena, com ênfase naqueles que exercem um papel importante no funcionamento desse discurso. Verificamos, por meio dessa análise, que o sujeito enunciador, ao assumir a sua identidade indígena, ressignifica elementos de sua cultura que são frequentemente associados a estereótipos negativos que circulam sobre os indígenas. Para tanto, valoriza elementos culturais, tomando-os como índices sintetizadores das diferenças entre o mundo do indígena e o mundo do homem branco. Nas conclusões, apresentamos os resultados obtidos em cada uma das etapas de nossa análise. Nelas, procuramos oferecer um panorama sobre o funcionamento do discurso que analisamos. Em seguida, finalizamos com as considerações finais, que se constituem de um convite à reflexão e ao questionamento das estruturas e relações presentes nos discursos analisados, fornecendo subsídios para futuras investigações no campo da análise do discurso. Antes de passarmos para o trabalho propriamente dito, fazemos uma ressalva. Em nosso corpus de análise, trabalhamos com apenas três obras: “A queda do Céu” (2015) de Davi Kopenawa [Yanomami] e Bruce Albert, “Ideias para adiar o fim do mundo” (2019) e “A vida não é útil” (2020), ambas de Ailton Krenak. Ao mesmo tempo que podemos considerar as referidas obras como representativas do discurso indígena, também reconhecemos que o “discurso indígena” é, na verdade, uma 18 infinidade de perspectivas, de culturas, de religiões e de modos de viver e de pensar o mundo. Com isto podemos dizer, com certa segurança, que o empreendimento finalizado com esta pesquisa não é, dada a perspectiva que adotamos, “mais do mesmo”; por outro lado, também temos consciência de que é sempre possível fazer muito mais com o mesmo, para tanto, bastaria que nossas questões de pesquisa fossem outras, mesmo que fossem apenas um pouco diferentes. 162 CONCLUSÕES: Assim é! Neste trabalho, analisamos os ethé do discurso dos povos originários presente em um corpus analítico composto por excertos de três livros de autoria de indígenas: A queda do Céu: palavras de um xamã yanomami (2015), do líder indígena e xamã Davi Kopenawa Yanomami em coautoria com o antropólogo francês Bruce Albert; Ideias para Adiar o fim do Mundo (2019) e A vida não é útil (2020), ambos de Ailton Krenak. Nessa análise, além de tratar de diferentes aspectos da textualidade (como o léxico, a sintaxe e a utilização das aspas) do discurso dos povos originários que se revelaram pertinentes para identificar a imagem que o sujeito enunciador indígena projeta de si, buscamos a compreensão de outros elementos próprios dessa discursividade. O primeiro empreendimento da pesquisa se deu na análise de como as condições de produção das obras, que passaram por um processo de retextualização (cf. Marcuschi, 2005), revelam o ethos do indivíduo multisciente que consegue - e precisa - transitar entre os saberes que lhe são próprios e aqueles com os quais polemiza (cultura indígena versus cultura do homem branco). A esse respeito, destacamos a obra de Davi Kopenawa que, embora mantenha vínculos com a metodologia da antropologia tradicional, a etnografia, não deixa de ser um texto mais próximo às práticas indígenas, considerando o modo como o texto se apresenta, a saber: neste livro, o indígena é colocado como autor principal e enuncia em primeira pessoa do singular. As obras de Krenak, por sua vez, são o produto de retextualização de palestras que o autor proferiu em universidades e lives organizadas por grupos acadêmicos e políticos durante a pandemia. Notamos que o sujeito indígena, ao se inserir no campo das palavras escritas, faz emergir um ethos de um sujeito multisciente, que emerge a partir de um ethos de xamã. Esse ethos está relacionado, portanto, às condições que permitem ao discurso indígena alertar o homem branco sobre o risco que ameaça a humanidade em razão do modo como o homem branco, ou o modo de vida da cultura ocidental, se relaciona com a natureza. Assim, conforme apresentado, o sujeito indígena (ethos do sujeito indígena), por conhecer (ethos do multisciente) e respeitar a voz dos espíritos da floresta (ethos do xamã), rompe com o paradigma da estrita oralidade, evocando as 163 múltiplas vozes oriundas de sua ancestralidade para que seu discurso de alerta possa ser ouvido pelo homem branco. Considerando, então, (i) o fato de que as línguas indígenas brasileiras não circulavam na modalidade escrita antes da colonização e (ii) o fato de que o discurso analisado é posto a circular de um modo específico (texto escrito impresso na língua do “homem branco”) que busca garantir que tenha mais chances de ser efetivamente considerado pelo enunciatário a que se dirige, concluímos que é nesse processo de retextualização que o ethos do multisciente emerge. Em outras palavras: constatamos que o indígena só sai de sua tradição oral, que evoca o sagrado para si, porque a mensagem a ser transmitida via texto escrito é tida como urgente. Ao mesmo tempo, verificamos que esse discurso não é novo; pelo contrário, trata-se de um discurso ancorado na ancestralidade indígena, que tinha sido silenciada (cf. Orlandi, 2008) com o processo de colonização, e agora encontra condições favoráveis para voltar a circular em função do movimento decolonial. Isso se dá porque os indígenas não só conhecem o discurso da natureza como também são sensíveis a ela e às suas particularidades. Como os indígenas são habitantes da floresta, as “novas palavras” dos brancos sobre a ecologia e a necessidade de proteger a natureza são, para os povos originários, um discurso já conhecido, e vinculado ao seu modo de vida, que segue os preceitos de sua cosmovisão. No caso da cosmovisão Yanomami, por exemplo, os espíritos xapiri são representações imagéticas e de poder de elementos da natureza, associados aos hábitos desse grupo. No que diz respeito aos temas desse discurso, durante o processo de análise empreendido, identificamos que um dos temas mais revisitados pelos povos originários é sobre o direito dos povos originários à posse e à usufruição dos territórios remanescentes que estão vinculados às suas culturas. De fato, as demandas pelos territórios indígenas estão presentes na discursividade apresentada, mas ao observarmos o tratamento do tema, notamos que daí emerge um outro mais específico, que é a questão da preservação da natureza. Assim, notamos que esse discurso se volta para a relação que o sujeito indígena, o enunciador do discurso, tem com a natureza, o que o leva a expor a sua preocupação com uma iminente catástrofe ambiental que pode atingir o mundo caso medidas de proteção efetivas não sejam tomadas. 164 Do nosso ponto de vista, ao tomar a natureza como o verdadeiro foco de suas reivindicações, o discurso indígena assume uma vantagem em relação ao discurso científico no que diz respeito às questões relacionadas à preservação do planeta (as mudanças climáticas, a poluição e a extinção gradativa dos seres vivos). Afinal, seja ao resgatar a sua memória ancestral, seja ao ouvir o que a natureza mesma lhes diz, direta ou indiretamente (sonhos, xapiri), os indígenas se apresentam, em seu discurso, como aqueles que estão aptos a transmitir aos homens brancos o recado da natureza, que estaria, desse modo, inacessível ao homem branco (dadas às práticas, o seu modo de viver, os seus valores, à sua “religião” etc.). Assim, podemos dizer que o ethos de aviso não diz respeito a um pedido de ajuda à causa indígena em si, mas diz respeito a um chamado do próprio planeta (a “Terra”), em toda a sua complexidade. Desse modo, notamos que o discurso indígena ocupa um lugar paradoxal que lhe permite manter-se íntegro e, ao mesmo tempo, estabelecer uma conexão com o mundo do homem branco, sendo este corrompido pelo comportamento destrutivo. Conforme apresentamos, Maingueneau (2001) trabalha essa problemática relativa à complexidade de ocupar um lugar paradoxal por meio da noção de paratopia. Na análise que fizemos, entendemos que se trata de uma condição paratópica relacionada não só a um processo de transposição cultural, como também vinculada à própria cosmovisão indígena, o que lhe reforça o caráter paratópico. Quanto a esse último aspecto, devemos lembrar que essa cosmovisão não reproduz as mesmas divisões da cultura do homem branco nem se limita a elas, com destaque para o fato de que, no âmbito da cultura do homem branco, os discursos são tomados a partir das funções específicas que cumprem, apesar dos mais diversos tipos de relações que possam estabelecer eventualmente. Por outro lado, o discurso indígena abrange, simultaneamente, diversos valores que são tradicionalmente associados ao que Maingueneau chama de discursos constituintes, que são justamente os discursos que se valem de uma condição paratópica. Assim, por exemplo, podemos considerar a natureza religiosa do discurso em análise, dada a sua origem (palavras de Omama), mas, ao mesmo tempo, é um discurso associado ao conhecimento sobre as coisas do mundo, o que corresponderia, mutatis mutandis, ao discurso científico, que é a voz do Conhecimento, isto é, daquilo que é tomado como verdade universal. 165 Nesse ponto, notamos que presença da ancestralidade indígena, entendida não apenas como o conhecimento transmitido de seus antepassados, mas também como as várias vozes (uma polifonia) da natureza que se fazem presente em seu discurso que, nesses termos, pode ser tomado como um discurso que traduz o que a natureza diz. Daí emerge o já mencionado ethos do multisciente, por meio do qual o discurso indígena, revestido de um tom de urgência, comunica ao homem branco que o mundo está em risco em virtude de seu comportamento predatório. Além disso, durante a análise, verificamos que o discurso indígena, embora tenha um caráter informativo, relativo à necessidade de alertar o homem branco sobre os perigos de desrespeitar a natureza, explora a visão de mundo indígena, com suas particularidades, como é o caso da relação que há entre o conhecimento e a verdade, por um lado, e os espíritos da natureza e as narrativas mitológicas, por outro. Assim, notamos que o sujeito enunciador indígena ocupa um lugar especial ao enunciar, resgatando valores próprios à sua cosmovisão, do que emerge um ethos xamânico, no qual o xamã atua como uma ponte entre o mundo e os espíritos da floresta. Desse modo, notamos que, para os indígenas, ser autor de um livro como os analisados é um exercício espiritual em que se transmite a voz dos espíritos da floresta e seu conhecimento para o homem branco. Ainda quanto a esse aspecto, notamos que as palavras escritas dos indígenas representam o reconhecimento de que o homem branco é incapaz de compreender as mensagens dos espíritos da floresta. Parte de nossa análise visou tratar também dos aspectos da decolonialidade presentes no discurso indígena, uma vez que visam mais do que combater o discurso do homem branco. Na verdade, pretendem apresentar e validar uma nova forma de pensamento, uma episteme que coloque os saberes oriundos da ancestralidade como válidos e relevantes para a compreensão do mundo através de uma ciência que não seja submetida tão somente pelo viés etnocêntrico do ocidente. No que diz respeito à análise dos estereótipos, compreendemos que, ao ganharem mais visibilidade por meio do desenvolvimento das perspectivas decoloniais, os povos indígenas deram nova utilização às formas cristalizadas que lhes foram outorgadas pela colonialidade de maneira a ressignificá-las com novos valores, atribuindo-lhes agora uma interpretação positiva. Assim, o atraso, a ignorância ou até mesmo a selvageria que lhes eram atribuídas em razão do seu modo de vida mais atrelado à natureza e alheio às tecnologias foram ressignificados de modo a revelar que é justamente essa existência que é a única capaz de desacelerar 166 a catástrofe ambiental que é anunciada. Com isso, práticas que os brancos atribuem a si mesmos com sentidos positivos, como “o progresso” e “a civilização”, são recebidas pelo discurso indígena como causadoras dessa ordem que coloca a existência da vida na Terra em risco. Ainda quanto à questão dos estereótipos, notamos que o discurso indígena retrata o homem branco como desumanizado, principalmente quando relacionado à vida urbana e capitalista. Mais exatamente, o discurso indígena estabelece uma clara distinção entre o homem branco e os indígenas, destacando a conexão entre estes últimos e a terra, entendida nos termos de um organismo vivo. Isto posto, reforçamos a ideia de que, no discurso analisado, a ressignificação dos estereótipos relativos aos indígenas, que assumem valores positivos nesse discurso, vincula-se a um afastamento do que está associado (valores, práticas) à cultura do homem branco. Com isso, ao se valer da imagem cristalizada de um indígena que vive junto à natureza, o discurso analisado aproxima-se das discussões mais amplas que versam sobre a proteção da natureza. Proteger o meio ambiente torna-se uma extensão do sentido pretendido com a demarcação dos seus territórios que são símbolos de uma natureza preservada e da possibilidade de coexistência do ser humano com a vida na Terra. Desse modo, combinado esses resultados com os resultados da análise do ethos, notamos que há, no funcionamento do discurso em análise, um movimento pendular: por um lado, há a valorização da identidade do indígena, com a retomada de elementos de sua cultura, de sua ancestralidade, o que ressignifica os estereótipos tradicionalmente associados ao grupo; por outro lado, há elementos próprios ao mundo do homem branco Apontamos também que, no discurso indígena, o discurso do homem branco assume o ethos do homem materialista, frio e insensível, daquele que se considera superior aos outros, que está preocupado apenas com o acúmulo de riquezas, o que não deixa de ser uma forma de reforçar estereótipos negativos ligados ao homem dito “civilizado” que o associam costumeiramente a atitudes predatórias não só em relação ao meio ambiente, mas também em relação a outros seres humanos, especialmente aos que pertencem a outros grupos. Desse modo, notamos que esse ethos contrasta com o ethos de alerta do sujeito enunciador do discurso indígena, o que nos permite dizer que se trata do antiethos do discurso em análise, na medida em que está associado justamente aos valores que esse discurso combate: destruição da natureza, falta de harmonia (entre todos os seres, entre os seres humanos e a 167 natureza, entre os diversos grupos humanos) etc. Com esse resultado, podemos dizer que o discurso indígena de alerta sobre o fim do mundo não deixa de ser, em última análise, um discurso que visa corrigir a conduta do homem branco, entendida especialmente nos termos de uma carência de sensibilidade, daí a tentativa de fazer com que o homem branco possa “enxergar” e “respeitar” o que há à sua volta (a natureza, os outros humanos, os seres vivos, os elementos do relevo, os fenômenos climáticos etc.) para que a Terra possa ser salva. Assim, concluímos que a análise do discurso indígena revela a emergência de um ethos de alerta vinculado à necessidade de se preservar a natureza, considerando-se os ensinamentos da ancestralidade, o que se contrapõe ao comportamento predatório do homem branco. Os indígenas se posicionam como portadores de um conhecimento urgente que precisa ser compartilhado com todos, especialmente com aqueles influenciados por um discurso dominante que silenciou suas vozes. Além disso, ressignificando estereótipos negativos atribuídos a eles, os indígenas confrontam a visão etnocêntrica e colonialista do homem branco, enfatizando a importância de sua existência e a necessidade de proteção da vida no planeta e desafiando as representações negativas do grupo que foram impostas pelo homem branco. Essa resistência indígena busca valorizar e afirmar sua identidade, promovendo uma cosmopolítica decolonial que coloca em xeque o sistema de dominação e subordinação estabelecido pelo discurso ocidental. 171 REFERÊNCIAS AMOSSY, R. Da noção retórica de ethos análise do discurso. In: __. (org.). Imagens de si no discurso: a construção do ethos. São Paulo: Contexto, 2005. p. 9-23. AMOSSY, R.; PIERROT, A. H. Estereótipos e Clichês. Tradução: Alena Ciulla [et. al]. São Paulo: Contexto, 2022. ARISTÓTELES. Retórica. São Paulo: Edipro, 2017. AUTHIER-REVUZ, J. Entre a transparência e a opacidade – um estudo enunciativo do sentido. Trad. Alda Scher e Elsa Maria Nitsche Ortiz. Porto Alegre, EDIPUCRS, 2004. BAKHTIN, M. Marxismo e filosofia da linguagem: problemas fundamentais do método sociológico na ciência da linguagem. Tradução de Michel Lahud e Yara Frateschi Vieira. São Paulo: Hucitec, 1999. BORGES, A. E. Caminhos da cultura indígena: o peabiru e o neoindianismo. 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