UNIVERSIDADE ESTADUAL PAULISTA “JÚLIO DE MESQUITA FILHO” FACULDADE DE HISTÓRIA, DIREITO E SERVIÇO SOCIAL CAMPUS DE FRANCA Maria Cristina Piana ANÁLISE DA ATUAÇÃO DO CONSELHO TUTELAR FRENTE À EVASÃO ESCOLAR DE ADOLESCENTES NO MUNICÍPIO DE BARRETOS/SP Franca 2003 ERRATA Folha Linha Onde se lê Leia-se 9 4 o adolescente do adolescente 9 15 mecanismo mecanismos 19 18 definido definidos 20 16 90% 80% 20 16 32 28 21 20 o servos os servos 27 9 sem a caminho a caminho 30 22 socais sociais 38 7 respeita-los respeitá-los 39 3 6 6O 39 22 analise analisa 41 14 estudo estudos 41 20 baixa baixo 47 8 mgda magna 48 23 era eram 54 1 ... conselhos... ... Direitos e Tutelares... 56 11 sócias sociais 58 15 seus seu 61 29 ... evasão escolar... ... de adolescentes 67 16 2001 2002 67 17 2001 2002 74 4 preconceituoso preconceituosa 76 4 ser adolescente ser mecânico 76 5 adolescentes 34 adolescentes 78 9 termos temos 84 30 professores do ensino médio Diretores do Ensino Fundamental 86 4 escola escolar 86 16 secretaria secretária 86 16 a há RELACIONAMENTO FAMILIAR 77% 23% Péssimo / Desarmonia Bom / Diálogo Gráfico 3 – Relacionamento Familiar – pág. 77 Maria Cristina Piana Análise da atuação do Conselho Tutelar frente à evasão escolar de adolescentes no município de Barretos/SP Dissertação apresentada à Faculdade de História, Direito e Servi ço Social – UNESP – Campus de Franca – Curso de Pós-Graduação em Serviço Social, área de concentração: Serviço Social, Trabalho e Sociedade, sob a orientação do Prof. Dr. Pe. Mário José Filho para obtenção do título de Mestre em Serviço Social . Franca 2003 Piana, Maria Cristina Análise da atuação do Conselho Tutelar frente à evasão escolar de adolescentes no município de Barretos / Maria Cristina Piana – Franca, 2003 Dissertação – Mestrado – Serviço Social – Faculdade de História, Direito e Serviço Social – UNESP – Franca 1. Serviço Social – Evasão escolar – Adolescentes. 2.Conselho Tutelar – Barretos (SP). 3. Cidadania – Inclusão social. CDD – 371.28 Maria Cristina Piana Análise da atuação do Conselho Tutelar frente à evasão escolar de adolescentes no município de Barretos/SP Banca Examinadora Presidente e Orientador:................................................................... Segundo Examinador:........................................................................ Terceiro Examinador:........................................................................ Franca,............/................/2003. Dedicatórias Dedico este trabalho às crianças e adolescentes, protagonistas da construção da própria história, enquanto cidadãos de direitos. E ainda, a companheira de jornada, amiga “Lúcia”, incentivadora e articuladora do I Fórum Pró-Criança e Adolescente de Barretos para a criação do Conselho Tutelar nesta cidade. Agradecimentos Ao Autor da Vida que infinitas oportunidades e graças tem oferecido-me. Aos pais, familiares e amigos que enriquecem minha trajetória de vida nesta terra através dos grandes valores recebidos. Ao Professor Dr. Pe. Mário José Filho pela capacidade imensa de partilhar seus dons recebidos: inteligência, dedicação, objetividade, disponibilidade, durante todo esse tempo de orientação. “Somos culpados de muitos erros e de muitas falhas, mas nosso maior crime é abandonar as crianças, desprezando a fonte da vida. Muitas das coisas que precisamos podem esperar. A criança não pode. É exatamente agora que seus ossos estão se formando, seu sangue é produzido, seus sentidos estão se desenvolvendo. Para ela não podemos responder “amanhã”. Seu nome é “HOJE”. (Gabriela Mistral) RESUMO Na presente dissertação de mestrado em Serviço Social, apresentamos conhecimentos necessários do órgão municipal – Conselho Tutelar para a atuação no sério problema da evasão escolar que são vítimas tantas crianças e adolescentes de nossa sociedade. Buscamos entender o Conselho Tutelar nas suas atribuições, segundo o artigo 136 da Lei Federal 8.069/90 – Estatuto da Criança e do Adolescente e a sua atuação na gestão 1999 – 2002, quando fomos conselheira tutelar. Os sujeitos de nossa pesquisa foram adolescentes evadidos das escolas estaduais do município de Barretos e atendidos pelo Conselho Tutelar. Pudemos constatar como procede o Conselho Tutelar para o retorno de muitos adolescentes à escola. A investigação do problema da evasão escolar foi também realizada através das entrevistas com profissionais que trabalham direta ou indiretamente com esta questão. Pudemos constatar que o adolescente é vítima de um sistema escolar excludente, elitista e obsoleto. Ao adolescente é necessário oferecer oportunidades e criar formas de participação na construção da sua própria história, sendo sujeitos de direitos e deveres na sociedade à qual se insere. Palavras-chave: Conselho Tutelar; Evasão Escolar; Cidadania e Inclusão Social. ABSTRACT In the present master’s degree dissertation in Social Service, we presented necessary knowledge of the municipal organ – Guardian Council for the performance in the serious problem of the school escape that are slays so children and adolescents of our society. We looked for to understand the Guardian Council in your attributions, according to the article 136 of the Federal law 8069/90 – Statute of the Child and of the Adolescent and your performance in the administration 1999-2002, when we went guardian counselor. The people of our research were adolescents avoided of the state schools of the municipal district of Barretos and assisted by the Guardian Council. We could verify how it proceeds the Guardian Council for the many adolescents’ return to the school. The investigation of the problem of the school escape was also accomplished through the interviews with professionals that work direct or indirectly with this subject. We could verify that the adolescent is you/he/she slays of an excluding, elitist and obsolete school system. To the adolescent it is necessary to offer opportunities and to create participation forms in the construction of your own history, being subject of rights and duties in the society to which interferes. Key Words: Guardian Council; Avoided Schools; Citizenship; Inclusion. SUMÁRIO INTRODUÇÃO..................................................................................................... 10 CAPÍTULO I 1. ANÁLISE DE ALGUNS EIXOS TEMÁTICOS NO DESENVOLVIMENTO PLENO O ADOLESCENTE................................................................................ 14 1.1 O papel da família na sociedade.............................................................................. 15 1.2 A família na construção da cidadania...................................................................... 21 1.3 Principais abordagens teóricas da escola atual no Brasil......................................... 26 1.4 O acesso e a permanência do adolescente na escola como direitos fundamentais.. 32 1.5 O adolescente frente à evasão escolar................................................................... 36 CAPÍTULO II 2. O CONSELHO TUTELAR......................................................................................... 43 2.1 A construção histórica da Lei Federal 8.069/90 – Estatuto da Criança e do Adolescente.............................................................................................................. 44 2.2 A política de atendimento........................................................................................ 49 2.3 A formação dos Conselhos de Direitos e Tutelares como mecanismo de exigibilidade de direitos........................................................................................... 54 2.4 Conceito, criação e funcionamento do Conselho Tutelar........................................ 56 2.5 Atribuições do Conselho Tutelar............................................................................. 60 2.6 O Conselho Tutelar frente a evasão escolar de adolescentes .................................. 61 CAPÍTULO III 3. A PESQUISA............................................................................................................... 64 3.1 Caracterização do universo de pesquisa ................................................................. 65 3.2 Procedimentos metodológicos ............................................................................... 67 3.3 Análise dos principais dados da pesquisa............................................................... 71 CAPÍTULO IV 4. A ÓTICA DE QUEM TRABALHA COM A QUESTÃO DA EVASÃO ESCOLAR................................................................................................................... . 80 4.1 Entrevistas com profissionais ................................................................................ 81 CONSIDERAÇÕES FINAIS............................................................................ 88 REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS..................................................... 95 ANEXOS................................................................................................................ 104 11 INTRODUÇÃO A escolha do tema: Conselho Tutelar e o adolescente evadido da escola, justifica-se pela nossa história pessoal e a nossa experiência, acreditando que todos são sujeitos de sua história e podem conquistar a sua real cidadania. Como sempre acreditamos na juventude e no seu potencial a ser desenvolvido, necessitado de oportunidades para isso, não podíamos conceber que grande número de jovens evadidos da escola, não pudessem pensar em si mesmos e ficassem expostos e vulneráveis aos riscos da sociedade tais como: drogas, violência, prostituição e outros. Com a promulgação da Lei 8.069/90 – Estatuto da Criança e do Adolescente, fica determinada a obrigatoriedade da criação deste órgão permanente, o Conselho Tutelar, em todos os municípios brasileiros, segundo o art. 132, desta lei. Sua importância passa pelo cumprimento legal em “zelar pela efetivação dos direitos da criança e do adolescente” (art. 131). Diante desta realidade analisamos, qual a contribuição que o Conselho Tutelar pôde dar mediante o problema da evasão escolar e como enfrentou tal situação. Buscamos estudar a atuação do Conselho Tutelar frente à evasão escolar de adolescentes no município de Barretos, ou seja, como esse problema foi enfrentado pelo mesmo procurando conhecer os reais motivos que levam os adolescentes a evadirem-se da escola. Nossa experiência neste órgão municipal, colocou-nos frente ao sério questionamento da educação, como diz Demo (2.000), deparamo-nos com um povo que não sabe pensar, escrever nem tão pouco ler a realidade politicamente, impedindo de tornar-se sujeito da história. 12 A escolha da evasão escolar justifica-se pelos muitos atendimentos realizados dentro de nossa gestão no Conselho Tutelar e quando os adolescentes afirmavam que “poderiam trabalhar para ajudar em casa, ficando mais livres de ocupações”. Contudo deparando-se com a realidade do desemprego, a falta de qualificação no trabalho e as discriminações de raça, classes sociais e outras, faziam o adolescente permanecer desocupado. Apontamos, no primeiro capítulo alguns eixos temáticos: família e escola, como fundamentais para o pleno desenvolvimento do adolescente. Discutindo alguns aspectos sobre a importância da família na sociedade, como construtora de cidadania. Abordamos ainda questões teóricas da escola brasileira e o relacionamento do adolescente frente a essa estrutura que o coloca como vítima da exclusão escolar. No segundo capítulo tratamos da construção histórica da Lei 8.069/90 – Estatuto da Criança e do Adolescente, que vê a criança e o adolescente como “sujeitos de sua história”, cidadãos de direitos e deveres fundamentais. Relatamos a criação dos Conselhos Tutelares como instrumentos efetivos na garantia dos direitos das crianças e dos adolescentes que legalmente constituídos são para os mesmos eficaz desenvolvimento de suas atribuições. No terceiro capítulo discorremos o percurso metodológico, apresentando o universo da pesquisa realizada com os adolescentes atendidos no Conselho Tutelar durante o ano de 2002, na cidade de Barretos e a análise de dados. Foram 35 adolescentes que responderam ao formulário e 7 deles que foram entrevistados para a abordagem qualitativa. Em nosso quarto capítulo refletimos sobre a ótica dos diversos profissionais que trabalham direta e indiretamente com a questão da evasão escolar: Promotor da Vara da Infância e Juventude, Secretária Municipal de Educação, Dirigente Regional de Ensino, três Conselheiros Tutelares, Presidente do Conselho Municipal dos Direitos da Criança e do Adolescente, nove Diretores de Escolas de 5ª a 8ª série do Ensino Fundamental, totalizando 16 profissionais que se ligam diretamente com as questões de nossa pesquisa. 13 A reflexão que fizeram diante do tema: evasão escolar e Conselho Tutelar, demonstrou que os mesmos percebem o adolescente como vítima de um sistema individualista, competitivo, discriminatório, elitista e excludente. Por fim, concluímos o trabalho considerando a importância do órgão municipal, Conselho Tutelar, na garantia da cidadania de nossos adolescentes, “sujeitos de sua história” e possíveis construtores de uma sociedade justa e humana. Salientamos ainda que nossas reflexões partem da tentativa de uma leitura prática da realidade na qual estamos inseridos enquanto trabalhadores sociais. Todos assuntos apresentados são passíveis de críticas, discussões e sugestões, exigindo constantes indagações, para assim justificarem a vivacidade e o dinamismo que existem no ser humano e em sua realidade. CAPÍTULO I ANÁLISE DE ALGUNS EIXOS TEMÁTICOS NO DESENVOLVIMENTO PLENO DO ADOLESCENTE “Mesmo vivendo em uma época de mudanças aceleradas em todos os campos – tecnológico, moral e político -, os jovens estão à procura de elementos e experiências que os ajudem a encontrar o sentido da própria existência e a construir um projeto de vida”. (Tarcísio Scaramussa e Terezinha Scaramussa) 15 1.1 O Papel da Família na Sociedade O Brasil cada vez mais urbano, vem sendo marcado por profundas transformações sociais, econômicas, culturais, ética e mesmo ao nível do comportamento humano. Contudo, permanece um consenso em torno da família como espaço privilegiado para a prática de valores comunitários e o aprofundamento de relações de solidariedade. Reitera-se também a permanência de suas funções, consideradas insubstituíveis quanto à assistência, promoção de valores, educação, proteção a seus membros e, sobretudo, lugar de encontro de gêneros e gerações. A atenção à família, através de políticas públicas adequadas, constitui-se, sem dúvida, em um dos fatores condicionantes das transformações as quais a sociedade brasileira aspira e um dos eixos fundamentais da política para a criança e o adolescente. No sentido etimológico da palavra, família, vem a ser “pessoas aparentadas que vivem em geral na mesma casa, particularmente o pai, a mãe e os filhos” (Dicionário da Língua Portuguesa – Aurélio). Mas muito além de uma simples definição, a família tem uma importância fundamental não apenas no âmbito da reprodução biológica, mas principalmente, enquanto mediadora de seus membros com a sociedade. Ela proporciona a construção de nossa primeira identidade e nos insere nas relações sociais, tanto em nível emocional, cultural, como sócio-econômico. A família é o primeiro referencial e permeia toda a nossa existência. Segundo Ariès (1978), a família nuclear conjugal moderna, ou seja, pai, mãe e filhos, não foi sempre assim. Foi a conseqüência de mudanças na forma de atuação de outras instituições, como o Estado e a Igreja, que, há cerca de três séculos, começaram a valorizar o “sentimento de família”. Isto significa que os laços familiares começaram a ser reconhecidos socialmente e a educação e criação de crianças nascidas da união de um casal passa a ser, cada vez mais da responsabilidade da família. 16 Foi por volta do século XVIII que a família começou a delimitar uma área maior de vida particular e os costumes contemporâneos foram fortemente influenciados por esse sentimento de família que se desenvolveu na Europa a partir do século XVI, especialmente nas classes mais abastadas. Entre esses costumes está o de cada família morar na sua casa e ser responsável pela educação de seus filhos. Mais tarde (séc. XIX e início do séc. XX), as famílias das classes trabalhadoras também acabaram adotando o modelo da família nuclear burguesa, quando foram forçadas a deixar o campo e ingressar no trabalho em indústrias nas cidades (POSTER, 1979). A família, a partir desse modelo, organizou-se em torno da figura do pai, fechada em sua intimidade e com um determinado padrão de educação para seus filhos. Se com essa mudança a família fortaleceu-se como instituição social, para as mulheres e crianças, especialmente as que viviam em comunidades no campo, a situação afetou em muito a sua autonomia, no sentido de diminuí-la. Esse modelo foi trazido para o novo mundo, cujos habitantes já tinham uma organização social diferente e, mais tarde, à população de origem negra, sendo alguns grupos originários de sociedades com tradição matriarcal. Mas foi o modelo europeu dos colonizadores que se impôs como modelo social de família. Em nosso país, assim como em outras colônias que receberam escravos, o modelo matrifocal tornou-se o mais comum. Refere-se àquele que se organiza em torno da mulher quando não há um companheiro, mas assume uma forma patriarcal quando há. Tanto a herança matriarcal de alguns grupos , como a proibição de formação de famílias durante a escravidão, contribuíram para a marginalização da figura do homem em algumas camadas da nossa sociedade (DECHESNAY, 1986). 17 O que se nota, vendo-se a família urbana de nível sócio-econômico baixo numa perspectiva matrifocal, é uma mudança de parceiros da mulher, de forma que ela mantém em torno de si o núcleo familiar (ela e os filhos) que não se desfaz com a saída do homem. É a família a principal responsável pela alimentação e pela proteção da criança, da infância à adolescência. A iniciação das crianças e adolescentes na cultura, nos valores e nas normas de sua sociedade começa na família. Para um desenvolvimento completo e harmonioso de sua personalidade, a criança deve crescer num ambiente familiar pleno, numa atmosfera de felicidade, amor, compreensão e respeito. Assim, todos os esforços e empenhos das instituições da sociedade, devem ser feitos para evitar que a criança seja separada de sua família, conforme afirma o art. 19 do Estatuto da Criança e do Adolescente. Art. 19. Toda criança ou adolescente tem direito a ser criado e educado no seio de sua família e, excepcionalmente, em família substituta, assegurada a convivência familiar e comunitária, em ambiente livre da presença de pessoas dependentes de substâncias entorpecentes. Entretanto, quando esse afastamento ocorrer trata-se de uma medida extrema. A observância dos artigos 23 e 24 do Estatuto da Criança e do Adolescente é uma garantia a mais da criança à convivência familiar. Mas, anteriores ao direito a esse convívio, estão aqueles valores humanos que dizem respeitos à sobrevivência e à dignidade pessoal. Uma criança ou adolescente retirados da convivência familiar, sem dúvida, ficarão privados de experiências de relacionamentos em que poderão receber e expressar amor e que são essenciais para a formação de uma imagem de si como tendo valor. Contudo, é mais danoso para ambos, permanecerem numa família em que sua integridade é ameaçada. Uma instituição não substitui uma família mas, com atendimento adequado, pode dar condições para a criança e o adolescente desenvolverem uma vida saudável no futuro. Eles podem vir a criar laços afetivos entre colegas, membros da instituição e da comunidade, que podem ajudá- 18 los mais no seu desenvolvimento pessoal do que a convivência com uma família que ameaça sua integridade. A retirada de uma criança ou adolescente de sua família é uma decisão que deve considerar o desejo de assumir o filho ou não. Esse desejo pode modificar-se via assistência material, orientação ou, mesmo, pelo desejo da própria criança ou adolescente que, em alguns casos, depois de um tempo de vida na rua, por exemplo, não aceitam mais voltar para a casa. A colocação em família substituta, respeitados os artigos 28 a 32 do Estatuto da Criança e do Adolescente, que procuram garantir as condições de um ambiente saudável para a criança e adolescente é uma solução alternativa para ambos sem condições de irem para suas famílias de origem, mas que, só por ser “família”, não se transforma, automaticamente, na segunda melhor opção, depois da família natural. O mesmo raciocínio vale para instituições, conforme o artigo 101, inciso VII, parágrafo único, do Estatuto da Criança e do Adolescente, que, só por serem instituições, são consideradas alternativas indesejáveis. Art. 101. – VII - Abrigo em entidade. Parágrafo Único: O abrigo é medida provisória e excepcional, utilizável como forma de transição para a colocação em família substituta, não implicando privação de liberdade. Contudo, elas não serão indesejáveis, na medida em que for sendo feito um trabalho integrado com a comunidade. A criança e o adolescente poderão ter supridas algumas deficiências que a falta da família acarreta. Por exemplo, eles poderão estabelecer vínculos com figuras de identificação adultas, poderão criar laços de amizade. Essas relações não substituem laços paternos, maternos ou fraternos, mas proporcionam experiências de relacionamento que dão base a um desenvolvimento mental sadio (ROSA, 1984). O papel da comunidade é importante e esta deve ser incluída em programas de orientação e acompanhamento de famílias e, especialmente, em programas preventivos. 19 Os desafios são muitos, o Estatuto da Criança e do Adolescente constitui-se num avanço, especialmente no trabalho com as famílias. Assim comprovamos no trabalho realizado em nossa gestão 1999 – 2.002, no Conselho Tutelar, através de visitas domiciliares, atendimento psico-social, oportunidades de trabalho aos pais e programas de complementação de renda familiar. Assim sendo, muitas famílias que receberam melhores condições materiais de vida e um atendimento direto dos conselheiros tutelares, deixaram de criar condições para o deterioramento de suas relações interpessoais com os filhos e contribuíram no retorno dos adolescentes à escola, evitando a sua permanência na rua. Com isso, ao conceber, como faz, a criança e o adolescente como “sujeitos de direitos” o Estatuto da Criança e do Adolescente assume o seu valor como seres humanos. Esta é uma condição essencial para um desenvolvimento pleno: ser considerado e tratado como um ser de valor, de igual valor em relação aos outros. A família pode (e deve) favorecer essa condição. Na pesquisa realizada com os adolescentes evadidos, deparamos com a realidade de que 25 adolescentes vivem somente com a mãe, chefe de família e os irmãos, tendo que conciliar vida de trabalho versus vida pessoal e familiar. Sofrem a ausência da figura paterna por abandono ou separação do casal. A família do final do século XX mudou significativamente. Não podemos mais falar em modelo hegemônico: uma família nuclear, heterossexual, com papéis e funções claramente definido. Hoje, o universo encontra-se bastante diversificado com famílias ampliadas, que reúnem crianças de vários casamentos, famílias chefiadas por mulheres, famílias de homossexuais, entre outros (SÊDA, 1998). 20 1A pesquisa, publicada pela Folha de São Paulo, de 20/09/1998, envolveu um universo de 2038 pessoas de ambos os sexos de 94 municípios brasileiros. Com tudo isso, as mulheres aumentaram a sua importância na vida familiar. De donas- de-casa tornaram-se literalmente ‘donas-da-casa’. Pesquisa realizada pelo Data Folha, em 19981, mostra que a mãe é a personagem mais importante da família atual. Além de cumprir os papéis tradicionais, representa uma das principais fontes de renda, ganhou autoridade, tornando-se uma espécie de ‘reserva moral’ da família. É muito mais cobrada por suas atitudes do que os demais parentes. Gestos que são vistos como graves para o comportamento dos pais, como ‘beber todo o dia’ e manter relações extraconjugais’, torna-se inadmissíveis para as mães. Essa realidade da ausência dessas chefes de família, é confirmada também na pesquisa que realizamos com os adolescentes atendidos no Conselho Tutelar em nossa gestão, pois ficam a maior parte do dia longe delas e fora de casa desocupados. Muitos deles evadiram-se da escola motivados pelo trabalho e pela ajuda no orçamento familiar que poderiam oferecer, porém isso não ocorreu, pois 80% dos adolescentes, conforme Gráfico 5, que abandonaram os estudos motivados pelo trabalho, não estão trabalhando. Diante dessa realidade familiar dos adolescentes evadidos da escola e atendidos no Conselho Tutelar, pudemos observar que a família continua sendo um espaço indispensável para a garantia da sobrevivência, de desenvolvimento e de proteção integral dos filhos e de mais membros, independentemente do arranjo familiar ou da forma como vêm se estruturando. Haja vista, a realidade desses adolescentes, pois 90% (aproximadamente 32 adolescentes) deles retornaram à escola, depois da intervenção do Conselho Tutelar, respaldada sobretudo pelas instituições: família, escola, justiça e a sociedade civil. Isso porque é a família que propicia os aportes afetivos e, sobretudo, materiais necessários ao desenvolvimento e bem-estar dos seus componentes. Ela desempenha um 21 papel decisivo na educação formal e informal, é em seu espaço que são absorvidos os valores éticos e humanitários, e onde se aprofunda os laços de solidariedade (BIAGGIO, 1991). Vimos na pesquisa que os adolescentes que vivem com apenas a mãe, são aqueles que sobrevivem com maior dificuldade, pois ela trabalha fora como doméstica, balconista, funcionária pública, trabalhadora rural e outros. Mas foram estas “chefes de família” que contribuíram no retorno desses adolescentes à escola, em parceria com escolas nas quais faziam parte os adolescentes evadidos, criando um ambiente que constitui-se num “espelho” e num “mundo” para os adolescentes, ajudando- os a caminhar para fora do ambiente familiar adverso e criando uma rede de relações fora das famílias de origem, possibilitando uma vida digna, com relações humanas estáveis e amorosas, como afirma Szymanski (2001). 1.2. A Família na Construção da Cidadania Antes de falarmos sobre o papel histórico da família na construção da cidadania, podemos dizer que esta mesma cidadania tem sido construída historicamente pelos excluídos por fazerem-se sujeitos de seus direitos, enquanto princípio fundamental. Há algum tempo o tema cidadania está exercendo sobre nós um grande apelo. Assim conceitua Covre (1991, p. 11): “... Penso que a cidadania é o próprio direito à vida no sentido pleno. Trata-se um direito que precisa ser construído coletivamente, não só em termos do atendimento às necessidades básicas, mas de acesso a todos os níveis de existência, incluindo o mais abrangente, o papel do (s) homem (s) no Universo”. Etimologicamente, cidadão é o habitante da cidade. O termo assumiu um sentido social e político, à medida que os habitantes da cidade se emanciparam do domínio feudal, 22 sob o qual continuavam a viver o servos da gleba, e constituíram verdadeiras cidades- Estado. O direito diz que cidadão é aquele que goza dos direitos civis e políticos em um Estado, do qual é considerado, no desempenho dos seus deveres, como um membro. O termo cidadania segundo Silva (1987, p. 125), tem as seguintes idéias: “segundo teoria, que se firma entre nós, a cidadania, palavra que deriva de cidade, não indica somente a qualidade que habita a cidade, mas mostrando a efetividade dessa residência, o direito político que lhe é conferido, para que possa participar da vida política do país em que reside. Neste sentido, então, a cidadania tanto se diz natural ou legal. Será natural quando decorre do nascimento, isto é, da circunstância de ser nacional por nascimento. Será legal quando, em virtude de residência fixada em certa parte do território, esta lhe é outorgada por uma declaração legal, a naturalização. A cidadania é expressão, assim, que identifica a qualidade da pessoa que estando na posse de plena capacidade civil, também se encontra investida no uso e gozo de seus direitos políticos que se indicam, pois, o gozo dessa cidadania. Em certos casos, porém, a lei impõe restrições àquele que a frui em caráter legal. A cidadania pode ser conferida tanto ao nacional como ao estrangeiro naturalizado.” Na plenitude de sua força, o termo conota a idéia de uma participação consciente e voluntária na totalidade dos deveres e direitos cívicos, o exercício, assim, da cidadania. A definição deste termo é, assim, bastante genérica, muito ampla, não considerando de forma clara o fato de nossa sociedade ser dividida em classes e, de que, muitas vezes, o acesso a certos direitos fica intimamente relacionado à posição do indivíduo na pirâmide social. Seria mais real dizer que, no Brasil, existem diversas classes de cidadãos. Assim, o problema da cidadania coloca-nos mais uma questão: o modo de inserção do individuo, que através dela recebe um status jurídico em sua comunidade, assim como a de sua relação com o poder político (GONÇALVES, 1994). Aristóteles propõe, no livro II de sua Política, a questão de que, para ser cidadão, cidadão autêntico, é preciso exercer uma função pública: que ele governe ou que tenha função no tribunal, ou que participe das assembléias do povo. A cidadania é, pois, a participação 23 ativa nos assuntos da cidade e o fato de não ser meramente governado, mas também governante. Nesse sentido, a liberdade não consiste em apenas em gozar de certos direitos; consiste essencialmente no fato de ser co-participante no governo. Para que essa participação na vida pública seja uma possibilidade e não uma obrigação, é preciso termos presente que a igualdade dos cidadãos implica a igualdade dos indivíduos em relação ao saber e à formação. Essa educação não pode mais simplesmente consistir numa informação ou instrução que permita ao indivíduo, enquanto governado, ter conhecimento de seus direitos e deveres, para a eles conformar-se com escrúpulo e inteligência. Deve fornecer-lhe, além dessa informação, uma educação que corresponda à sua posição de governante potencial. Educar para a cidadania deve ser um princípio básico para a formação do indivíduo. É na família que se iniciou essa educação para um crescimento saudável, através da assimilação de valores. Ser cidadão significa ter direitos e deveres. E constitucionalmente é ser igual a todos perante a lei, sem discriminação de raça, credo ou cor. E ainda, a todos cabem o domínio sobre seu corpo e sua vida, o acesso a um salário condizente para promover a própria vida, o direito à educação, à saúde, à habitação, ao lazer. É direito de todos poder expressar-se livremente, militar em partidos políticos e sindicatos, fomentar movimentos sociais, lutar por seus valores. Enfim, o direito de ter uma vida digna de ser homem (SÊDA, 1994). Assim afirma um adolescente de 16 anos quando diz: “... minha mãe fala que eu tenho que ser um verdadeiro cidadão e homem de bem..” Ter direitos significa ter responsabilidades coletivas, cumprir normas e propostas elaboradas e decididas, constitui-se governo direta e indiretamente, construindo e reivindicando para o bem comum. 24 Neste sentido também a Lei Orgânica de Assistência Social - LOAS, substitui o paradigma do assistencialismo pelo da cidadania, revelando os caminhos que a assistência deveria percorrer para consolidar-se como política pública, dever do Estado e direito da população. A família é uma palavra de origem latina, que implica num grupo constituído de pais, filhos servos e escravos. Historicamente tem sofrido alterações, de acordo com as mudanças das relações de produção estabelecidas entre os homens. O papel da família diante das transformações se torna renovador, pois as atividades que vão surgindo e o objetivo de realizá-las é parte integrante na relação familiar. O esforço de mandar os filhos para a escola, assegurar-lhes condições higiênicas de vida, dar-lhes cuidados médicos, oferecer conforto e condições para uma ascenção social, são atividades essenciais para o desenvolvimento do ser humano. Nessa análise de como se dá a cidadania dentro do espaço familiar é fácil perceber que a educação para a cidadania se inicia na família, porém a questão da cultura é um outro fator indispensável nessa análise. O Brasil por ser um país explorado desde seu descobrimento teve um fator histórico importante durante seu processo de desenvolvimento, o princípio de uma “cultura deficitária” onde a construção para o exercício da cidadania não é um elemento muito relevante. A cultura constitui o contexto próprio para a educação, porque este é um elemento de mobilização, então podemos afirmar que a educação é um fator fundamental para a formação do cidadão desde seu nascimento, dentro da família e depois na escola, onde seus primeiros conceitos de sociedade serão formados. A política social no Brasil não tem logrado alterar o quadro da pobreza e exclusão de parcela significativa da população brasileira e de nossas famílias. Ao contrário, observa-se a 25 cada década a ampliação das taxas de desigualdade social, ao mesmo tempo em que a concentração de renda atinge índices insuportáveis (NISKIER, 2001). Essa realidade percebemos na fala dos adolescentes entrevistados: “...eu parei de estudar porque estou cansado de ver minha família passando necessidade. Minha mãe é doméstica, trabalha para pagar aluguel e dar arroz e feijão para nós. Quero trabalhar para comprar as coisas em casa” (adolescente de 16 anos). Com tudo isso, sabemos que o fundamental papel da família é a sua responsabilidade em criar verdadeiros cidadãos para a sociedade. É o espaço por excelência de transmissão de valores. Assim confirma uma adolescente durante uma entrevista quando disse que: “resolveu voltar a estudar porque vê o exemplo da mãe em dar duro para sustentar os filhos. E sempre diz palavras sábias quando afirma que sem estudo não somos nada” (adolescente de 16 anos). O Estatuto da Criança e do Adolescente afirma ser dever de todos a proteção da criança e do adolescente. Cabe à família, entendida como comunidade formada pelos pais e quaisquer de seus descendentes, o reconhecimento de seu papel insubstituível para o desenvolvimento integral da criança e do adolescente. Os pais não somente devem cuidar do seu sustento, como também da guarda e educação dos filhos menores, para que possam desenvolver de modo sadio e harmonioso, em condições dignas de existência. E ainda, quando o Estatuto propõe medidas de proteção à criança e ao adolescente, estabelece que, em sua aplicação, sejam levadas em conta as necessidades e características que fortaleçam os vínculos familiares e comunitários (SÊDA, 1997). Um adequado ambiente familiar vai moldando tanto valores pessoais quanto valores sociais, todos eles intimamente interligados. Podemos destacar alguns desses valores: a formação da personalidade humana, a aquisição de uma consciência de ser sujeito, que deve 26 conviver com os outros, partilhar desejos e aspirações com eles, a assimilação de limites, o respeito, a responsabilidade, a experiência de comunhão e participação, que deve caracterizar a vida cotidiana da família, representa a sua primeira e fundamental contribuição à família, dentre outros (ZAGURY, 2000). Tal realidade confirma-se num depoimento de um adolescente de 15 anos quando diz que: “dialoga e partilha muito com seus pais. Sua mãe é uma grande amiga, estando sempre pronta para ouvir e falar. Afirma que é bom demais”. Segundo Filho (2002, p. 73), “a família é um espaço privilegiado para a construção da cidadania. É no seio da família que a criança toma consciência de estar mergulhada numa história que tem passado, é vivenciada no presente e aponta para o futuro”. A educação para a formação da cidadania é um processo lento e profundo que poderá levar gerações para se perpetuar concretamente dentro do espaço social. A dimensão de construção é muito ampla e longa, pois trata-se de construir “gente”, além de meros trabalhadores treinados e alienados, estamos falando de construir “pessoas” informadas e conscientes de sua situação e condição dentro da sociedade a qual lhe atribui direitos e deveres sociais. Diante dessas reflexões sabemos que são muitas as perspectivas, análises e abordagens que podemos dar a esse tema. Parece-nos evidente que uma família com ambiente fraterno, equilibrado, harmonioso, humano, justo e aberto à realidade, construirá verdadeiros cidadãos para a sociedade. Assim escreve Thiago de Mello em “De Uma Vez Por Todas”: “Cidadania é também obrigação: a de ajudar a construir a claridão na consciência de quem merece o poder.” 27 1.3. Principais abordagens teóricas da escola atual no Brasil A escola tem a tarefa de preparar membros jovens para sua inserção futura na sociedade e para o desempenho de funções que possibilitem a continuidade da vida social. Ela desempenha um papel importante na formação do indivíduo e do futuro cidadão. Ela tem a obrigação de ensinar bem conteúdos específicos de áreas do saber, escolhidos como sendo fundamentais para instrução de novas gerações. Devem criar um ambiente de respeito, confiança e responsabilidade a fim de que o jovem possa percorrer dignamente para a sua trajetória na sociedade, construindo relações humanas estáveis, amorosas e servidoras do bem comum. Num âmbito geral, a educação é fundamental para a humanização e socialização do homem. Podemos dizer que se trata de um processo que dura a vida inteira, e que não se restringe a mera continuidade, mas supõe a possibilidade de rupturas para as quais a cultura se renova e o homem faz a história. O elemento fundamental e fundante da educação é formar a pessoa humana, conceituada e compreendida como “ser” e com possibilidades constantes de “vir–a–ser”, inserida no mundo, fazendo parte de um povo sem a caminho, com responsabilidades e compromissos fraternos com o mundo (antropologia e ecologia), na perspectiva da promessa (utopia e igualdade social), sem perder de vista a sua consciência de “ser–do–mundo” e com responsabilidade na partilha das posses, do saber e do gozo com a alteridade. Isto é, numa abertura constante e generosa com o outro, tendo como ponto de partida o outro excluído e na sombra do “não–ser”. Este identificado concretamente com o negro, com o pobre, com o índio, com a mulher, com as crianças e adolescentes de rua e desamados, com o sem-terra, o 28 bóia-fria, o lixeiro e com todo aquele que vive na marginalidade e no esquecimento da partilha, do afeto, da ternura, da dignidade e da esperança. Formar por exemplo, o jovem para a liberdade e responsabilidade é formar para a consciência real e perplexa dos absurdos das desigualdades de oportunidade e das desigualdades de vida cotidiana. Não podemos mais formar a criança e o jovem sobre os enfoques da “lógica da conquista”, tendo em vista o êxito, a vitória, a conquista, em detrimento da maioria derrotada, fracassada e gerada na dependência. A “lógica da conquista” necessariamente perpetua a sociedade historicamente dividida entre vencedores e vencidos, desenvolvidos e sub-desenvolvidos, dominadores e dominados, credores e devedores. Ao mesmo tempo, legitima a opressão e as desigualdades sempre mais crescentes e disformes. E moralmente se satisfaz dando esmolas, elaborando programas assistenciais, legitimando profissões caritativas. (STEIN, 1981). Nos últimos anos a educação no Brasil passou por mudanças radicais, ocupando um lugar de destaque no conjunto das ações governamentais federais que redesenham hoje a arquitetura institucional e o papel do Estado brasileiro “Lei de Diretrizes Básicas nº 9394/96”. Mudanças essas vinculadas às funções econômicas e ideológicas, estratégicas no atual estágio de desenvolvimento do capitalismo: a garantia de uma formação técnica flexível, adequada às exigências dos novos padrões de produção e consumo e às variações do mercado de compra e venda da força de trabalho, assim como a garantia de uma formação ideologicamente funcional ao paradigma da empregabilidade. Em 1996 é aprovada a nova Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional – LDB que, aponta avanços enormes no que diz respeito à consideração da criança e do adolescente como sujeitos centrais para o planejamento e execução de políticas públicas. Alguns exemplos que demonstram este compromisso da LDB: a garantia de liberdade para aprender, ensinar, pesquisar e divulgar o pensamento, a arte e o saber; a incorporação da educação infantil e do 29 ensino médio, além do ensino fundamental, à educação básica; a autonomia das escolas e dos educadores para elaborar a proposta pedagógica mais adequada à realidade local; a abertura para a gestão democrática da escola pública, enfatizando a participação dos pais e de instâncias da comunidade; a exigência de padrões de qualidade, dentre outros. Conforme afirma Coutinho (1990), a primeira e mais grave característica deste campo da política social é a não universalização do acesso da população à educação escolarizada, decorrente, sobretudo, de um confronto de interesses alimentado e realimentado por uma cultura política excludente e elitista, que não consegue incorporar a participação das massas nos ciclos de alternância do poder e de desenvolvimento econômico. Vemos esta realidade em algumas afirmações dos adolescentes entrevistados quando dizem “que sentiram-se mal avaliados e injustiçados” no fechamento do bimestre, diante de alguns professores que não sabiam ensinar, e passar os conteúdos determinados. E ainda algumas das escolas dos adolescentes entrevistados, segundo diretores, precisam passar por uma reciclagem, ou seja, “...os professores devem se atualizar e buscar a capacitação permanente. Ainda assistimos educadores ensinando conceitos que aprenderam há trinta anos atrás, com professores que por sua vez aprenderam há trinta anos atrás, com outro professor que aprendeu há trinta anos atrás. E não dá mais para ficarmos achando que a educação antiga que tivemos é a melhor para os nossos alunos de hoje.” (Diretora de Escola Estadual – ensino fundamental) Demo (2000) afirma que não conseguimos sequer a universalização quantitativa de maneira aceitável, pelo menos em regiões mais pobres. Em vez de inclusão universal, temos esquema seletivo, a começar pela situação degradada da escola pública. Os grupos mais pobres da sociedade são os mais diretamente afetados pelos baixos índices de desempenho do sistema educativo. Estudos realizados no Brasil, segundo os Indicadores Sociais da UNICEF/IBGE (1989), indicam que em 1987, 44% da população de 0 – 17 anos viviam em famílias com renda mensal de até ½ (meio) salário mínimo per capita , 30 ou seja, pouco mais de 20 dólares. É nestes grupos que os índices de aproveitamento escolar têm resultados particularmente nefastos. Os alunos são obrigados a ingressar no mercado de trabalho, a estudar a noite com péssimas condições de alimentação e saúde. Aí se explica muito da evasão, da repetência, enfim, da baixa qualidade do sistema educativo. O Banco Mundial no relatório sobre Indicadores do Desenvolvimento Mundial (abril, 1998) registrou dados que no Brasil, 37 milhões e 700 mil pessoas ganham menos de 1real por dia ou 30 reais por mês. O país abriga 4% do pobres do mundo. E ainda 20% da população (cerca de 30 milhões de pessoas) concentra em suas mãos 67% da renda nacional, que está atualmente em torno de 860 milhões de dólares. Significando que 32 milhões de brasileiros têm em mãos cerca de 576 bilhões de dólares sendo uma média de 18 mil dólares anuais por pessoa (BENEDITO, 2.000 p.87). Na outra ponta da escala social, os 20% mais pobres (cerca de 32milhões) dividem entre si 2% da renda nacional (cerca de 17 bilhões de dólares). Dando uma média de 0,53 centavos de dólar por pessoa (BENEDITO, 2.000 p. 88). Segundo Demo (1998) a qualidade da educação consiste numa escola voltada para a cidadania, onde assume o compromisso de gestar nos alunos o saber pensar e o aprender a aprender, de teor político. Orienta-se, no sentido pedagógico, para formação do sujeito crítico e criativo, capaz de história própria. A educação básica de qualidade ensina a ler, escrever e contar, para podermos ler a realidade politicamente, descobrir que somos vítimas de privilégios de minorias, surpreender nossa miséria como produto histórico e descortinar alternativas que dependem sempre, em primeiro lugar, dos próprios excluídos. Afirma ainda, que a qualidade da educação depende da qualidade dos professores e do desempenho dos alunos. Confirmamos em nossa pesquisa com os 35 adolescentes evadidos, quando temos 28 deles que abandonaram seus estudos para trabalharem e ajudarem na renda familiar. 31 É necessário compreender a educação não apenas como fonte do saber, do conhecimento humano, do entendimento e da compreensão; não apenas como processo necessário que encaminha a pessoa humana para uma profissão e para vencer na vida (onde há competência e concorrência, vencedores e vencidos). A educação, antes de tudo, deve ser compreendida como experiência de mudanças e como fonte de transformação das mentalidades, das relações socais e dos regimes sociais. Em outras palavras, compreender a educação como agente principal que provoca as mudanças transformadoras: superar as lutas por “interesses” e participar das lutas por causas libertadoras. (GOULART, 1998). A tarefa de educar visa a formação integral, personalizada, harmônica, integrada e crescente da pessoa humana; e visa a formação do homem novo, inserido numa ordem social nova e num mundo novo. Portanto, o marco referencial da educação é a pessoa humana do aluno, e não apenas os seus rendimentos intelectuais ou os seus resultados quantificados em notas ou conceitos. O aluno é a pessoa inserida num projeto novo de sociedade e um projeto novo que aponta para novas relações sociais. Assim como já afirmamos o ensino de qualidade, antes, começa com uma legislação de qualidade, com uma escola de qualidade, com seus objetivos, estratégias, programas, conteúdos, metodologia e convivência humana e humanizadora, socializada e socializadora; com um quadro de professores comprometidos com a causa do ser humano, com a escola, seus fins e seus princípios e com sua qualificação permanente. Nesse aspecto, a educação só pode dar certo, e o planejamento poderá então dedicar-se à tarefa de equacionar prioridades, estabelecer planos de melhoria qualitativa em todo o sistema, sobretudo no ensino fundamental, e efetivamente contribuir para que a educação seja um instrumento de redistribuição de oportunidades sociais. A consolidação dos sistemas democráticos reforça a educação política e por isso aumenta também a cota de 32 responsabilidade do cidadão (adolescente), na cobrança de melhores serviços e de uma escola que forme verdadeiros cidadãos, como diz Paulo Freire em seu poema: “A escola”. “Escola é... o lugar onde se faz amigos não se trata só de prédios, salas, quadros, programas, horários, conceitos... Escola é, sobretudo, gente, gente que trabalha, que estuda, que se alegra, se conhece, se estima. O diretor é gente, o coordenador é gente, o professor é gente, o aluno é gente, cada funcionário é gente. E a escola será cada vez melhor na medida em que cada um se comporte como colega, amigo, irmão. Nada de ‘ilha cercada de gente por todos os lados’. Nada de conviver com as pessoas e depois descobrir que não tem amizade por ninguém nada de ser como o tijolo que forma parede, indiferente, frio, só. Importante na escola não é só estudar, não é só trabalhar, é também criar laços de amizade, é criar ambiente de camaradagem, é conviver, é se ‘amarrar nela! Ora, é lógico... Numa escola assim vai ser fácil estudar, trabalhar, crescer, fazer amigos, educar-se, Ser feliz.” 33 1.4 O acesso e a permanência do adolescente na escola como direitos fundamentais O direito de acesso à escola formal, conquista das camadas populares e, atualmente, garantido constitucionalmente, demonstra que a escola é a instituição de maior expressão da educação na sociedade, uma vez que é um espaço onde o aluno pode relacionar-se com seus pares, com o ambiente e com profissionais da educação. Podemos dizer que, com a universalização da escola, as camadas populares passaram a ter acesso aos mesmos conhecimentos que, historicamente, eram exclusivos de uma pequena parcela da população. Nesse sentido, é papel da escola garantir o acesso ao conhecimento científico e erudito aos alunos das camadas populares, uma vez que o domínio desse conhecimento é condição de cidadania para essa parcela da população. A escola começa a cumprir essa função social com o ingresso do aluno (JUSTEN, 1993). Ingresso esse que faz-se necessária a realização de políticas públicas educacionais que devem zelar pela inclusão e não pela exclusão, tais como campanhas abrangentes de chamamento de matrícula a cada final de ano, o que requer a ampliação de vagas através da construção de salas de aula ou do aproveitamento de espaços mal utilizados. Programas específicos de transporte escolar também são fundamentais, porque garantem a matrícula de crianças que têm o acesso dificultado pela localização geográfica das escolas (SÊDA e MOTI, 1998). Não há dúvida que as ações que dizem respeito à garantia do acesso à escola implicam numa ação direta e efetiva do poder público, tanto em nível federal e estadual como municipal, em cumprimento ao que determina a Constituição Federal. Esse direito do cidadão está garantido, também, em outras leis que decorrem da Constituição Federal de 1.988. Dentre 34 elas pode-se destacar a Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional, o Estatuto da Criança e do Adolescente e o Sistema Estadual de Educação. Cada escola representa a presença e a ação do poder público em uma dada comunidade, em atendimento ao que prescreve o Art. 208 da Constituição Federal, o Art. 163 da Constituição Estadual e o Art. 54 do Estatuto da Criança e do Adolescente, que se referem ao dever do Estado de assegurar à criança e ao adolescente o Ensino Fundamental obrigatório e gratuito, inclusive aos que a ele não tiveram acesso na idade própria; progressiva extensão da obrigatoriedade e gratuidade ao ensino Médio; atendimento educacional especializado aos portadores de necessidades especiais, preferencialmente na rede regular de ensino; manutenção de programas suplementares de material didático, transporte, alimentação e assistência à saúde; ensino noturno regular adequado às condições do educando (COSTA, 1996). A presença de uma escola, por si só, não garante este direito. Se observado o Art. 206 da Constituição Federal, o Art. 249 da Constituição Estadual e o Art. 53 do Estatuto da Criança e do Adolescente, conclui-se que na garantia do acesso à escola está implicada, também, a ação dos profissionais da educação, uma vez que esses artigos referem-se ao direito da igualdade de condições para o acesso e permanência na escola; de ter liberdade de aprender, ensinar, pesquisar e divulgar o pensamento, a arte e o saber; de ser respeitado por seus educadores; de contestar critérios avaliativos, podendo recorrer às instâncias escolares superiores; de organização e participação em entidades estudantis; de os pais terem ciência do processo pedagógico e de participar da definição das propostas educacionais. É a postura das autoridades educacionais na gestão da política governamental, da direção, dos especialistas e dos professores na implementação dessa política nas escolas que vai garantir ou não esse direito aos alunos (SÊDA, 1995). 35 Cabe destacar, neste momento, que no parágrafo primeiro do Art. 208 da Constituição Federal e no parágrafo primeiro do artigo 54 Estatuto da Criança e do Adolescente, lê-se, textualmente, que o “acesso ao ensino obrigatório e gratuito é direito público subjetivo”. Isso significa dizer que qualquer cidadão, grupo de cidadãos ou entidade de classe pode acionar o poder público para exigir o cumprimento deste direito. Comprovada a negligência no cumprimento do preceito legal, a autoridade competente poderá ser responsabilizada criminalmente, conforme prevê o parágrafo segundo do Art. 208 da Constituição Federal e parágrafo segundo do Art. 54 do Estatuto da Criança e do Adolescente. Como a escola representa a presença do poder público numa comunidade, segundo Sêda (2002, p. 57-58), a direção do estabelecimento deve considerar se as ações que são desencadeadas no seu cotidiano respeitam os direitos dos alunos e das crianças e adolescentes que a procuram. Para exemplificar: quando a escola deixa de matricular alunos por falta de vagas ou por falta de condições para atender crianças com necessidades especiais; suspende por falta de uniforme ou de material escolar; retém documentos da vida escolar dos alunos pelo não-pagamento da contribuição espontânea para a Associação de Pais e Professores; suspende ou transfere alunos por problemas disciplinares, de alguma forma está deixando de garantir o direito de acesso e permanência na escola. É importante ressaltar que a LDB e o Sistema Estadual de Educação são, atualmente, as leis que regulamentam o direito social à educação, previsto pelas Constituições Federal e Estadual. E da parte dos educadores é necessário maior aprofundamento da legislação, visto que envolve a ação e a postura do poder público, dos profissionais da área e da comunidade escolar (DEMO, 2001). A escola que levar em consideração os aspectos legais e éticos, que abordamos, estará trabalhando na perspectiva de garantir o direito à educação. Também a escola precisa trabalhar com o dever da família, uma vez que efetuar a matrícula das crianças, a partir de sete 36 anos de idade, é responsabilidade dos pais. Da mesma forma que o poder público pode ser responsabilizado criminalmente pela não-oferta de vagas, os pais também o serão pela ausência dos filhos à escola. Cabe ao poder público promover a divulgação de que nenhuma criança deve ficar fora da escola e de que a lei determina que os alunos tenham um mínimo de 75% de freqüência do total de horas letivas, cientificando os pais de sua parcela de responsabilidade para com a garantia desse direito (SÊDA, 1997). Observando o que prescreve a legislação em vigor, percebemos que, enquanto a mesma garante o direito de acesso, refere-se também ao direito da permanência. Matricular o aluno pode ser mais fácil do que garantir sua permanência na escola. São necessárias também, ações diretas do poder público para a permanência do aluno na escola. Um primeiro passo é promover a socialização do conhecimento como forma de preparar o cidadão para sua inserção no mundo em que vive. Essa ação só se viabiliza com a melhoria qualitativa do ensino através de uma gestão democrática e da reorganização escolar, tanto no que se refere ao currículo como ao procedimento técnico-pedagógicos; da melhoria das condições físicas e materiais das escolas; da assistência ao estudante quanto à alimentação e ao material escolar e da formação do profissional da educação. Assim, os nossos adolescentes, sujeitos da pesquisa relatam que “ficar na escola era difícil, pois não sentiam-se motivados para estudar” (adolescente de 16 anos). Entre as ações governamentais desencadeadas no sentido de garantir a permanência dos alunos na escola, nos últimos anos, podem ser registradas: pelo governo federal, a criação do Fundo de Desenvolvimento do Ensino Fundamental e Valorização do Magistério – FUNDEF, que procura uma distribuição mais eqüitativa dos recursos destinados à educação entre os estados e municípios; o Programa do Livro Didático e da Merenda Escolar; a edição dos Parâmetros Curriculares Nacionais – PCNs, que representa uma atitude responsável do Ministério da Educação e do Desporto – MEC, no sentido de dar uma direção ao currículo 37 escolar da Educação Básica em todo o País; o Programa de Informática – PROINFO, que introduz, na rede escolar pública, a utilização dos instrumentos tecnológicos mais avançados (MEC, 1997). Sabemos, no entanto, que não apenas com políticas governamentais que se pode garantir a permanência dos alunos na escola, pois tem muito haver com posturas dos professores diante do ato pedagógico, que zelem igualmente pela inclusão, a fim de que todos aprendam, não apenas os que têm facilidade para tal, garantindo que o conhecimento do qual o professor é portador seja efetivamente oportunizado a todos os alunos. 1.5. O Adolescente Frente à Evasão Escolar A sociedade tem um compromisso, tanto do ponto de vista ético quanto do legal, de proteger as gerações mais novas contra todo tipo de agressão, seja ela física ou moral. Com isso, os brasileiros recentemente promulgaram normas revolucionárias na Constituição de 1988, firmaram a Convenção sobre os Direitos da Criança de 1989 e criaram novas regras de conduta no Estatuto da Criança e do Adolescente de 1990. Segundo Sêda (1998, p. 43), o problema básico que percebemos é que autoridades tais como: legisladores, membros do executivo, juízes, promotores, policiais e a sociedade em geral: pais, filhos, professores, alunos, médicos, esportistas, empresários, sindicalistas, jornalistas e outros, contribuíram, muitas vezes, vendo a infância brasileira pobre, em situação irregular (Lei 6679/79 – Código de Menores), “adultos em miniatura”, quando deveriam ver crianças e adolescentes, sujeitos de direitos e “pessoas em desenvolvimento” (Art. 6º da Lei 8069/90 – Estatuto da Criança e do Adolescente). Problema maior ainda se dá quando essas pessoas comuns, como cidadãos ou como autoridades, dizem, pensam ou fazem de conta que vêem crianças e adolescentes quando na 38 verdade, nas práticas da vida cotidiana, por suas atitudes e atos, continuam tratando como menores. Essa é uma das trajetórias da passagem do milênio e nosso desafio. Deixar de ver menores e passar a ver crianças e adolescentes é mudança de paradigma segundo Sêda (1998, p. 10-11) em seu livro “Infância e Sociedade: terceira via – o novo paradigma da criança na América Latina”. “Mudar de paradigma, significa passar a ver as crianças e os adolescentes como cidadãos, como sujeitos de direito e de deveres em si mesmo e não como extensões dos pais e do Estado. Implica também preparar continuamente crianças e adolescentes para que se vejam a si mesmos, como cidadãos, sujeitos de direitos e deveres.” Esse, é um dos desafios do século XXI (SÊDA, 1998). Todo adolescente tem direito ao acesso, regresso, permanência e sucesso ao sistema de educação, sendo o Estado responsável pela oferta dos serviços. Nesse campo, todos devem obedecer aos princípios da Convenção Internacional que afirma a obrigatoriedade e compulsoriedade da oferta de ensino (SÊDA, 1999). Sendo o ensino obrigatório, a criança, o adolescente e seus pais não tem o direito de não querer exercer este dever. Os pais que não o exercem praticam o crime de abandono intelectual do filho. Para garantir a obrigatoriedade sob pena de multa, pelos pais, pelo filho, pela escola, o Conselho Tutelar pode e deve ser acionado, pois tem o poder de aplicar medidas jurídica e administrativamente exigíveis (SÊDA, 2000). A lei prevê o direito e a compulsoriedade do ensino fundamental com as qualidades necessárias ao desenvolvimento da cultura geral do educando, com oportunidades para desenvolver aptidões, senso de responsabilidade moral, capacidade de emitir juízo, etc. Segundo Sêda (2000), a lei moderna outorga ao adolescente e à criança o direito de estudar próximo à sua residência, de ser respeitado por seus educadores e o dever de respeita- los e de contestar os critérios avaliativos, podendo recorrer às instâncias superiores daquilo 39 que na escola mais parece incorreto ou injusto. São deveres de criança e adolescentes freqüentar as aulas, submeter-se às regras corretas do sistema de ensino e respeitar os princípios da convivência cidadã. É assegurado também no Estatuto da Criança e do Adolescente o atendimento educacional especializado àqueles que são portadores de deficiência, com medida de integração na rede de ensino. Ética e legalmente o sistema de Ensino deve se ajeitar as crianças e adolescentes. E tal ajuste se faz em comitês e Conselhos participativos entre Organizações Não-Governamentais (Ongs) e Organizações Governamentais (Ogs), conforme retrata Sêda (2003). Ao adolescente trabalhador é garantido também o direito de acesso ao ensino noturno adequado às sua condições, devendo ainda, a exemplo das crianças, receber atendimento de programas suplementares tais como reforço alimentar, material didático, assistência à saúde e outros. A escola deve respeitar os valores culturais do ambiente em que vive o educando2, valores esses agregados à nova ética, em que crianças e adolescentes são sujeitos e não 2 Lei 8.069/90 – Art. 58: No processo educacional respeitar-se-ão os valores culturais, artísticos e históricos próprios do contexto social da criança e do adolescente, garantindo-se a estes a liberdade de criação e o acesso às fontes de cultura. objetos de políticas públicas arbitrárias. Isso não percebemos nos vários relatos dos adolescentes entrevistados quando alguns dizem “sentirem-se injustiçados nas avaliações". O artigo 6 da Lei 8.069/90 – Estatuto da Criança e do Adolescente, apresenta que a interpretação da mesma levar-se-á em consideração, dentre outras exigências, “a condição peculiar da criança e do adolescente como pessoas em desenvolvimento”3 . Segundo os princípios gerais do desenvolvimento humano, sabe-se que este refere-se ao aspecto qualitativo, sem excluir aspectos quantitativos. O desenvolvimento humano abrange processos fisiológicos, psicológicos e ambientais contínuos e ordenados. Tanto o 40 crescimento como desenvolvimento produzem mudanças nos componentes físicos, mental, emocional e social do indivíduo. Essas mudanças ocorrem segundo uma ordem invariante. Por exemplo, antes de andar, a criança engatinha; antes de falar, por meio de sentenças completas, ela fala usando frases monossilábicas (BIAGGIO, 1991). Etimologicamente, a palavra adolescência vem do verbo adolescere, que significa crescer ou desenvolver-se até a maturidade (Dicionário Da Língua Portuguesa – AURÉLIO). Sociologicamente, adolescência apresenta-se como período de transição em que o indivíduo passa de um estado de dependência do seu mundo maior para uma condição de autonomia e, sobretudo, em que o indivíduo começa a assumir determinadas funções e responsabilidades características do mundo adulto (POWEL, 1997). Segundo o ponto de vista psicológico, adolescência é o período critico de definição da identidade do “eu”, do papel sexual, da escolha de uma profissão, da independência emocional e até financeira, repercutindo de forma otimal ou negativa para o indivíduo e a sociedade, conforme analise Erik Erikson segundo a fase da crise de identidade do adolescente (BIAGGIO, 1997). 3Art. 6: Na interpretação desta lei levar-se-ão em conta os fins sociais a que ela se dirige, as exigências do bem comum, os direitos e deveres individuais e coletivos, e a condição peculiar da criança e do adolescente como pessoas em desenvolvimento. E ainda, do ponto de vista de um conceito psicossocial da adolescência podemos afirmar que ela é um período de transição na vida humana. O adolescente não é mais criança, porém, ainda não é adulto. Essa condição, ambígua tende a gerar considerável confusão na mente do adolescente que ainda não sabe exatamente qual o seu papel na sociedade. Essa confusão tende a desaparecer quando o adolescente define sua identidade, através do amadurecimento sexual, intelectual, da aquisição de valores: humanos, morais, éticos e autotrancendentes, e o próprio desenvolvimento fisiológico (RAVAGLIOLI, 1998). 41 Sendo assim, ouvimos de um adolescente de 14 anos, o pedido de respeito às suas necessidades: “A professora precisa saber ouvir a gente também, não só ela falar o tempo todo na aula”. Segundo Piaget (1980), o desenvolvimento cognitivo do adolescente alcança aquilo que ele chama estágio das operações formais. Estágio esse que inicia aos 11 ou 12 anos de idade, caracteriza-se pela existência de um sistema estável de estruturas abstratas do pensamento alcançado aos 14 ou 15 anos de idade. Depois que o adolescente estabelece as propriedades físicas e concretas de conservação associadas com objetos, e alcança um nível elementar de operações concretas de classificação, seriação e numeração, ele está pronto para construir teorias formais sobre o evento. Tal mudança cognitiva tem profundas repercussões na vida do ser humano. O adolescente se torna apto a refletir sobre suas próprias operações e, conseqüentemente, pode raciocinar a base das relações operacionais mesmas independentemente do seu conteúdo. Assim, o foco do pensamento formal não é mais o objeto real conhecido, mas a possibilidade lógica em que o real é reconhecido como uma entre outras possibilidades. No pensamento do adolescente, portanto, cada símbolo tem agora dois aspectos diferenciáveis: o aspecto figurativo, que se refere ao evento sensorial ou motor e o aspecto operativo, que se refere à significação simbólica existente na situação. Conforme a Teoria de Piaget (1980), na adolescência, operações lógicas são aplicadas não somente a estruturas concretas, mas também a sistemas cognitivos. Adverso a criança que encontra-se limitada por operações concretas, o pensamento do adolescente não se limita pela realidade imediata. O adolescente por exemplo, pode acompanhar a forma de um argumento, com qualquer conteúdo concreto pode considerar diferentes hipóteses e antecipar o que se seguiria, caso tais hipóteses fossem verdadeiras. Em Direito Público, o Brasil comprometeu-se a perceber e tratar a criança e o adolescente, sob o ponto de vista de suas capacidades, capacidades essas que são dinâmicas e 42 envolvem segundo o grau de maturidade da pessoa e medidas com a escala de valores dos direitos humanos, do bom trato, do bem comum. Segundo Sêda (2001), no que diz respeito à evasão escolar são várias e as mais diversas as causas da evasão escolar. Os adolescentes oriundos das classes populares têm dificuldades para o acesso a escola e a sua permanência. Muitas vezes por terem que trabalhar para ajudar no orçamento do lar, a incompatibilidade no horário para os estudo, o desgaste prematuro no trabalho, não sobrando tempo e ânimo para estudar, a distância da escola de suas casas, ou mesmo a falta de moradia fixa, com constantes mudanças de endereços, uma escola não atrativa, autoritária, professores despreparados, ausência de motivação, sem propostas pedagógicas, aluno indisciplinado, com problema de saúde, gravidez precoce, uso de violência doméstica, negligência dos pais ou responsáveis, uso indevido de drogas, desestrutura familiar, baixa poder aquisitivo para aquisição de materiais escolares exigidos pelas escolas, violência e outras causas oriundas do sistema capitalista e educacional do país. Tal realidade confirma-se diante do relato dos nossos adolescentes evadidos, quando apontam os motivos pelos quais abandonaram a escola (violência, trabalho, indisciplina, prostituição, gravidez, falta de motivação e aprendizado e outros). E ainda quando alguns disseram que: “abandonar a escola, não foi o melhor para o meu futuro, mas tínhamos dificuldades que sozinhos não conseguíamos solucionar” (adolescente de 16 anos). Destarte, o combate a evasão escolar é uma forma de garantir o direito a educação, sem um dever imposto a todos, que devem atuar de forma independente e harmônica, para garantir o sucesso da intervenção. Assim por força da Constituição e do Estatuto da Criança e do Adolescente, são parceiros necessários quando o tema é educação: família, escola, os vários conselhos municipais, Diretoria de Ensino, Ministério Público e Judiciário, e acima de tudo o Conselho Tutelar que tem o dever de zelar para que os direitos sejam respeitados e adotar medidas mais 43 fortes, segundo Sêda (2002, p. 31) em seu livro: A criança e o perfeito estadista, que resolvam o problema. “O Conselho Tutelar não foi criado para fazer o que outros fazem ou devem fazer, mas sim, como remédio mais enérgico com mais força institucional e jurídica para forçar alguém a, legitimamente, resolver a questão”. Observa-se que a força não está no conselho, mas na lei que rege a atribuição do conselho (SÊDA, 1997). Enfim, o principio da prioridade absoluta, constitucionalmente garantido quanto à educação, somente será cumprido, quando o problema da evasão escolar for enfrentado de forma articulada, com vista a sua gradual redução, conforme afirma os profissionais entrevistados que trabalham diretamente com os adolescentes evadidos das escolas estaduais do município de Barretos. CAPÍTULO II O CONSELHO TUTELAR “As atividades devem sempre ter como ponto de partida o real interesse do educando. Do contrário, frustram-se com as melhores possibilidades educativas”. Jorge C. Hansen 44 2.1 A Construção Histórica da Lei 8.069/90 – Estatuto da Criança e do Adolescente A história brasileira carrega como sua marca no ano de 1980 a rearticulação dos seus movimentos sociais, um período do avanço gradual do país em direção a democracia. Para os direitos da criança e do adolescente, a década de 1980 foi decisiva. Ela efetivamente, foi o palco do surgimento e do desenvolvimento de uma nova consciência entre uma nova postura em relação à população infanto-juvenil, de um modo geral, e, particularmente, do amplo seguimento desse contingente que se encontra em situação de risco pessoal e social (SÊDA, 1998). Esta era uma tarefa de todos os movimentos e entidades, visto que para conseguir colocar os direitos da criança e do adolescente na Carta Constitucional, torna-se necessário iniciar um sério e longo trabalho, antes mesmo das eleições dos parlamentares constituintes, no sentido de levar os candidatos à assumirem compromisso públicos com a causa dos direitos da infância e juventude. Nesta nova etapa da luta política pelos direitos da criança e do adolescente, os programas envolvidos são mais numerosos com identidade ideológica e com posição social as mais diversas; o compromisso político, no entanto, é o mesmo com a promoção e defesa dos direitos de infância e da juventude (COSTA, 1993). Nesta fase destacam-se: A frente Nacional de Defesa dos Direitos das Crianças e dos Adolescentes, a Pastoral do Menor da Conferência Nacional dos Bispos do Brasil, o Movimento Nacional Meninos e Meninas de Rua e a Comissão Nacional Criança e Constituinte. 45 Em setembro de 1986, foi assinada a Portaria Interministerial 449, criando a Comissão Nacional da Criança e Constituinte. Esta articulação do setor público federal envolveu os Ministérios da Educação, Saúde, Previdência e Assistência Social, Justiça, Trabalho e Planejamento. Em novembro do mesmo ano, a UNICEF assumiu com o Ministério da Educação um termo de acordo de Cooperação Técnica Financeira, assegurando então a sua efetiva participação no processo de mudanças no panorama legal que ocorreria nos anos seguintes (SÊDA, 1994). A Comissão Nacional da Criança e Constituinte realiza um amplo processo de sensibilização, conscientização e mobilização da opinião pública e dos constituintes: Encontros Nacionais de debates em diversos Estados, ampla difusão de mensagens nos meios de comunicação, eventos envolvendo milhares de crianças em frente ao Congresso Nacional, distribuição de panfletos e abordagens pessoal aos parlamentares constituintes, participação dos membros da comissão nas audiências públicas dos grupos de trabalho responsáveis pelas diversas aéreas temáticas do texto constitucional, carta de reivindicações contendo mais de 1,4 milhões de assinaturas de crianças e adolescentes, exigindo dos parlamentares constituintes a introdução dos seus direitos a nova Carta (COSTA, 1993). A iniciativa privada também teve sua participação através dos meios de comunicação. As redes de televisão cederam espaço para a divulgação de mensagens. O mesmo fizeram as emissoras de rádio e jornais disponibilizando muitos espaços de alto custo. Foram apresentadas duas emendas de iniciativa popular, perfazendo mais de 200 mil assinaturas de eleitores, à Assembléia Nacional Constituinte: “Criança e Constituinte” e “Criança e Prioridade Nacional”. Ambos os textos foram fundidos entrando no corpo da Constituição com a expressiva maioria de 435 votos a favor e somente 08 contra, resultando no artigos 204 que diz: 46 Art. 204. As ações governamentais na área da assistência social serão realizadas com recursos do orçamento da seguridade social, previstos no art. 195, além de outras fontes, e organizadas com base nas seguintes diretrizes: I-descentralização político-administrativa, cabendo a coordenação e as normas gerais à esfera federal e a coordenação e a execução dos respectivos programas às esferas estadual e municipal, bem como a entidades beneficentes e de assistência social; II-participação da população, por meio de organizações representativas, na formulação das políticas e no controle das ações em todos os níveis. e no art. 227 da atual Constituição Brasileira que garante com “absoluta prioridade” os direitos fundamentais da infância brasileira: Art. 227. É dever da família, da sociedade e do Estado assegurar à criança e ao adolescente, com absoluta prioridade, o direito à vida, à saúde, à alimentação, à educação, ao lazer, à profissionalização, à cultura, à dignidade, ao respeito, `a liberdade, e à convivência familiar e comunitária, além de coloca-los a salvo de toda forma de negligência, discriminação, exploração, violência, crueldade e opressão. § 1º O Estado promoverá programas de assistência integral à saúde da criança e do adolescente, admitida a participação de entidades não governamentais e obedecendo aos seguintes preceitos: I-aplicação de percentual dos recursos públicos destinados à saúde na assistência materno-infantil; II-criação de programas de prevenção e atendimento especializado para os portadores de deficiência física, sensorial ou mental, bem como de integração social do adolescente portador de deficiência, mediante o treinamento para o trabalho e a convivência, e a facilitação do acesso aos bens e serviços coletivos, com a eliminação de preconceitos e obstáculos arquitetônicos. § 2º A lei disporá sobre normas de construção dos logradouros e dos edifícios de uso público e de fabricação de veículos de transporte coletivo, a fim de garantir acesso adequado às pessoas portadoras de deficiência. § 3º O direito a proteção especial abrangerá os seguintes aspectos: I-idade mínima de dezesseis anos para admissão ao trabalho, observando o disposto no art. 7º, XXXIII; II-garantia de direitos previdenciários e trabalhistas; III-garantia de acesso do trabalhador adolescente à escola; IV-garantia de pleno e formal conhecimento da atribuição de ato infracional, igualdade na relação processual e defesa 47 técnica por profissional habilitado, segundo dispuser a legislação tutelar especifica; V-obediência aos princípios de brevidade, excepcionalidade e respeito à condição peculiar de pessoa em desenvolvimento, quando da aplicação de qualquer medida privativa de liberdade; VI-estímulo do Poder Público, através de assistência jurídica, incentivos fiscais e subsídios, nos termos da lei, ao acolhimento, sob a forma de guarda, de criança ou adolescente órfão ou abandonado; VII-programas de prevenção e atendimento especializado à criança e ao adolescente dependente de entorpecentes e drogas afins. § 4º A lei punirá severamente o abuso, a violência e a exploração sexual da criança e do adolescente. § 5º A adoção será assistida pelo Poder Público, na forma da lei, que estabelecerá casos e condições de sua efetivação por parte de estrangeiros. § 6º Os filhos, havidos ou não da relação do casamento, ou por adoção, terão os mesmos direitos e qualificações, proibidas quaisquer designações discriminatórias relativas à filiação. § 7º No atendimento dos direitos da criança e do adolescente levar-se-á em consideração o disposto no art. 204. O caput do artigo 227 introduziu na Constituição Brasileira o enfoque e a substância básica da Convenção Internacional dos Direitos da Criança em 1.959. Assim, em 5 de outubro de 1.988, o Brasil incorpora em sua Carta Magda os elementos essenciais de uma Convenção Internacional, que seria aprovada em 20 de novembro de 1.989 (NOGUEIRA, 1991). Mais tarde o Estatuto da Criança e do Adolescente – Lei 8.069/90, seria criado para regulamentar as conquistas em favor da infância e da juventude, obtidas na Carta Constitucional. Quanto à forma de sua elaboração, a nova lei rompeu de modo visceral com os métodos e processos de elaboração legislativa que vigora há séculos no Brasil. Trata-se de um lei pensada e escrita por milhares de pessoas (NOGUEIRA, 1991). Com isso, dezenas de movimentos e entidades uniram-se no Fórum DCA (Fórum Nacional de Entidades Não Governamentais de Defesa das Crianças e Adolescentes) para 48 coordenar a elaboração e lutar pela aprovação da nova lei, apontadas, desde o princípio, como a “Constituição das Crianças e dos Adolescentes do Brasil”. Tiveram especial destaque as entidades: Movimento Nacional Meninos e Meninas de Rua, a Pastoral do Menor da CNBB, a Frente Nacional de Defesa dos Direitos da Criança e do Adolescente, a Articulação Nacional dos Centros de Defesa de Direitos, a Coordenação dos Núcleos de Estudo ligados às Universidades, a Sociedade Brasileira de Pediatria, a Associação Brasileira de Proteção à Infância e à Adolescência (ABRAPIA) e a Ordem dos Advogados do Brasil (OAB). Também no campo governamental, os dirigentes e técnicos ligados à articulação Criança e Constituinte desempenharam também uma importante função nesta fase: o Fórum Nacional de Dirigentes Estaduais de Políticas Públicas pela Criança e o Adolescente (FONACRIAD) e a Frente Parlamentar pelos Direitos da Criança, articulada pelos deputados e senadores de todos os partidos (COSTA, 1996). Afirma Sêda (1997), que o Estatuto da Criança e do Adolescente é a Lei que concretiza e expressa os novos direitos da população infanto-juvenil brasileira. Seu caráter inovador representa uma extraordinária ruptura com a tradição nacional e latino-americana neste campo. Ele inova em termos de concepção geral de processo de elaboração. Até 1.988 a lei brasileira via nossas crianças e adolescentes como menores ou em situação irregular. Induzia as pessoas e as autoridades a verem crianças e adolescentes como incapazes. Essa tradição do passado tratava crianças e adolescentes naquilo que não eram capazes, não eram sujeitos de direitos e deveres, não eram autônomos em relação aos seus pais ou em relação ao Estado (SÊDA, 1988). Assim, a concepção sustentadora do Estatuto é a chamada Doutrina da Proteção Integral, defendida pela ONU com base na Declaração Universal dos Direitos da Criança. Esta doutrina afirma o valor intrínseco da criança e do adolescente como ser humano; o valor prospectivo da infância e da juventude, como portadores da continuidade do seu povo, da sua 49 família e da espécie humana e o reconhecimento de sua vulnerabilidade, o que torna as crianças e os adolescentes merecedores de proteção integral por parte da família, da sociedade e do Estado, o qual deverá atuar através de políticas específicas pelo atendimento, à promoção e a defesa de seus direitos (SÊDA, 2001). Os adolescentes entrevistados confirmam tal realidade abordando a dificuldade de serem aceitos na escola em que foram matriculados, na sala de aula e de não poderem expressar seus pensamentos e partilharem suas vidas: “... a gente não podia nem falar, tudo o que a gente falasse estava errado. Sempre quem sabia mais era os meninos da frente” (adolescente de 16 anos). 2.2 A Política de Atendimento A Lei 8.069, de 13 de julho de 1.990 – Estatuto da Criança e do Adolescente consta de 267 artigos, construindo os artigos 259 a 267 suas disposições finais e transitórias. Esta lei entrou em vigor em 14 de outubro de 1.990, substituiu integralmente o velho Código de Menores de 1.979 (Lei 6679 )4 . Assim, pela primeira vez, uma construção de direito positivo vinculado à infância – adolescência rompe explicitamente com a chamada doutrina da proteção irregular5, substituindo-a pela doutrina da proteção integral, também chamada doutrina das Nações Unidas para a proteção dos direitos da infância. Desta forma, o Estatuto da Criança e do Adolescente, para garantir o atendimento à população infanto-juvenil, com base nesta doutrina apresenta como grande inovação no artigo 86, “a política de atendimento que far-se-á por um conjunto articulado de ações governamentais e não governamentais, da União, dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios”. (SÊDA, 1998, p. 23) 50 São dois os princípios que presidem a estruturação da política de atendimento: o princípio da hierarquia que vai do município à União, passando pelos Estados e pelo Distrito Federal e o princípio da complementariedade que concatena os esforços do Estado com o da sociedade. Contudo, mais do que justapor instância e níveis de gestão, a política de atendimento inscrita no Estatuto busca conferir organicidade do conjunto de ações, governamentais ou não 4O Estatuto deixa também sem efeito a Lei 4.518 de 1.964 que dispunha acerca da política nacional do bem-estar do menor. 5Lei 6679 – Código de Menores. em favor da infância e da juventude através de uma reconfiguração das diversas modalidades de intervenção presentes na sociedade e, principalmente, no ramo social do Estado brasileiro. Isso ocorre no momento em que as intervenções são hierarquizadas com base no critério da abrangência das quatro modalidades de atuação previstas nas linhas definidoras do perfil da política de atendimento: 2.2.1 Políticas sociais básicas; 2.2.2 Política de assistência social; 2.2.3 Política de proteção especial; 2.2.4 Política de garantias. Caracterizaremos cada linha de ação da política de atendimento, a partir da sua abrangência de intervenções e o perfil de destinatários, ou seja, pelas políticas sociais básicas. 51 2.2.1 Políticas sociais básicas: Segundo Costa (1993), podemos definir, em princípio, como políticas sociais básicas os benefícios ou serviços de prestação pública dos quais são reconhecidos como direito de todos e dever do Estado, ou seja, as políticas sociais básicas dirigem-se ao universo mais amplo possível de destinatários, sendo, portanto, de prestação universal. Como exemplo, saúde e educação, são direitos de todas as crianças e adolescentes e deveres do Estado. Não pode, contudo, existir criança ou adolescente, privados legalmente do direito à educação e à saúde, independente de sua condição, pois trata-se de um direito de todos, reconhecido e prestado ao conjunto da população infanto-juvenil sem distinção alguma. Outras também são políticas sociais básicas tais como: a cultura, a recreação, o esporte, o lazer e a profissionalização. No entanto é importante reforçar que a educação e a saúde constituem-se no interior da difícil conjuntura econômico social que o País atravessa, requerendo maior ênfase e prioridade da família, da sociedade e do Estado. Sabemos também que segundo os direitos elencados no caput do artigo 227 da Constituição, constituem uma totalidade orgânica, indivisível em sua inteireza, e que o desacordo de um deles afeta negativamente a busca da proteção integral. 2.2.2 A política de assistência social A política de assistência social está prevista na Constituição Federal, no artigo 2036 como direito dos que estão em estado de necessidade, ou seja, delimita a abrangência das ações do aparelho assistencial do Estado àqueles que delas necessitem. Não se podendo dizer mais que é um direito de todos e dever do Estado. 52 Os destinatários da política de assistência são: as pessoas e grupos que se encontrem em estado permanente ou temporário de necessidade, em razão de privação econômica ou de outros fatores de vulnerabilidade. Sendo assim, por exemplo, não podemos afirmar que um programa de leite, uma cesta básica, um abrigo provisório ou auxílio material ou financeiro imediato sejam “direitos de todos”. As ações de natureza assistencial, portanto, não se dirigem a um destinatário de âmbito universal, ou neste caso à população infanto-juvenil de uma cidade, de um Estado ou 6Artigo 203: A assistência social será prestada a quem dela precisar, independentemente de contribuição à seguridade social, e tem por objetivos: I- a proteção à família, à maternidade, à infância, à adolescência e à velhice; II- o amparo às crianças e adolescentes carentes; III-a promoção da integração ao mercado de trabalho; IV- a habilitação e reabilitação das pessoas portadoras de deficiências e a promoção de sua integração à vida comunitária; V- a garantia de um salário mínimo de benefício mensal à pessoa portadora de deficiência e ao idosos que comprovem não possuir meios de prover à própria manutenção ou de tê-la provida por sua família, conforme dispuser a lei. do País. As políticas de assistência dirigem-se àquele segmento da população que delas necessita, ou seja, que se encontre em estado de necessidade. Portanto, podemos afirmar que em termos de abrangência, as políticas básicas, já citadas no item anterior, dirigem-se ao universo, ao conjunto da população infanto-juvenil, já a política de assistência social dirige-se a determinados segmentos da população, que, em muitas situações, podem constituir-se na fração majoritária da população de uma determinada área (COSTA, 1993). 53 2.2.3 Política de proteção especial Segundo o Estatuto da Criança e do Adolescente o novo conceito de política de proteção não abrange o universo e nem ao menos segmentos determinados da população infanto-juvenil. Sua intervenção é o caos ou no máximo, grupos de crianças e adolescentes que se encontram em circunstâncias especialmente difíceis ou ainda, em situação de risco pessoal e social. Tal situação se configura com a exposição da criança ou do adolescente a fatores que ameacem ou, efetivamente, transgridam a sua integridade física, psicológica ou moral por ação ou omissão da família, de outros agentes sociais ou do próprio Estado. Podemos incluir, diante da realidade brasileira, a esse grupo de proteção especial: crianças e adolescentes vítimas de abandono e tráfico; vítimas de abuso, negligência e maltrato na família e nas instituições; moradores de rua ou que fazem dela seu espaço de luta pela vida; vítimas de trabalho abusivo e explorador; envolvidos no uso e tráfico de drogas; prostituídos; em conflito com a lei, em razão do cometimento de ato infracional e outras situações que impliquem ameaça ou violação da integridade física, psicológica ou moral das crianças e adolescentes a elas expostas (SÊDA, 1994). 2.2.4 Política de garantias A política de garantias é responsável pela defesa jurídico-social dos direitos individuais e coletivos da população infanto-juvenil. Tais políticas atuam entre a lei a realidade, buscando diminuir a distância entre dois planos da vida social. Existem alguns órgãos da estrutura do Estado que se expandem e complexificam à medida que se consolidam o Estado Democrático de Direito: o Ministério Público, a 54 Defensoria Pública, a Magistratura e a Polícia, para garantir, assegurar e manter o respeito dos direitos do conjunto dos cidadãos , coibir e, se necessário, punir aqueles que os transgridem (SÊDA, 2002). As delegacias da mulher, os órgãos de defesa do consumidor e do meio ambiente, os Conselhos ligados a questões de direitos humanos e da cidadania de segmentos específicos como a mulher, o índio, o negro, a população carcerária e outros nesta linha consubstanciam o aparato garantista do Estado. Por sua vez, a sociedade civil também dispõe de estruturas garantistas como as Comissões de Direitos Humanos da OAB, as Comissões de Justiça e Paz da CNBB, a Associação Brasileira de Imprensa, o Movimento Nacional de Direitos Humanos, diversas pastorais da linha social da CNBB, o Movimento Meninos de Rua, os Centros de Defesa de Direitos, como todos atores sociais garantistas. Portanto, na área da promoção e defesa dos direitos da criança prevê-se a formação de Conselhos de Direitos, organizados ao nível da União, dos Estados e dos Municípios, e os Conselhos Tutelares, organizados nas diversas localidades de um município, que objetiva a aproximação da lei com a realidade buscando a efetivação da política de atendimento (COSTA, 1993). 55 2.3 A Formação de Conselhos como Mecanismos de Exigibilidade de Direitos O Pacto pela Infância, a continuidade do grande processo de mobilização social em favor da criança e do adolescente, que teve início no período pré- Constituinte, enfatiza três áreas fundamentais de atenção à população infanto-juvenil brasileira, devido às dificuldades que o País atravessa: Educação, Saúde e Proteção. Sendo esta uma forma válida de priorizar aspectos fundamentais do atendimento, com vistas a deter o acelerado processo de degradação pessoal e social das novas gerações (SÊDA, 1999). Antes do Estatuto havia uma política de proteção (assistência) para todos que dela necessitam e uma política de menores para os que se encontravam à margem do processo social. Hoje a realidade não permite tal discriminação, visto que todos têm direito a uma política de proteção ampla no ambiente de sua convivência social, com prioridade absoluta, ou seja, com proteção especial para a criança. A política de assistência é uma só. Nela, às crianças e adolescentes, se deve garantir prioridade absoluta. Desta realidade a necessidade da formação dos Conselhos Públicos Municipais, e dois muito especiais: Um, da Assistência Social, para anciãos, adultos e aspectos comunitários gerais, sem prioridade absoluta; Outro, o da Criança e do Adolescente para se garantir prioridade absoluta à população infanto-juvenil (NOGUEIRA, 1991). Mediante esta concepção de proteção integral à cidadania, governados e governantes co-participam da formulação e do controle da política de Estado. Em todo município deve ser organizado um conjunto de programas de proteção voltados para a prevenção e ao atendimento especializado à criança e ao adolescente vítimas de abuso, negligência, maus- tratos, exploração, crueldade e opressão. Deve organizar também programas sócio-educativos, para cumprir as sentenças do Juiz da Juventude a adolescentes culpados de atos infracionais à 56 lei criminal, com técnicas adequadas para o devido respeito à situação peculiar de desenvolvimento na qual encontram-se os adolescentes (SÊDA, 2002). Tradicionalmente, todo caso de maltrato a crianças ia parar no âmbito do Poder Judiciário, única instância que detinha o poder para ditar o que era direito e fazer o controle das omissões e dos abusos. O Brasil inovou acompanhado de outros países da América Latina, criando uma nova instituição representativa das próprias comunidades e com poderes de decisão. Esse é o processo de desjudicialização de questões que podem se resolvidas em outras instâncias que não a via judicial, pois esta é onerosa, morosa e complexa de formalidades. A criação do Conselho Tutelar passou a ser a grande esperança da lei e realidade aproximarem-se de tal forma que criança e adolescentes tenham seus direitos garantidos e efetivados na totalidade (ANDRADE, 2000). Agora, no Brasil, toda suspeita e toda confirmação de maus tratos devem ser obrigatoriamente comunicados ao Conselho Tutelar da localidade. O Conselho Tutelar é uma autoridade pública municipal com cinco pessoas que assumem cerca de oitenta por cento dos casos que eram atendidos por outra autoridade pública, antes o estadual, o antigo juiz de menores. A função de atender ameaçados e violados em seus direitos, organiza-se melhor agora no âmbito municipal. Decisões que antes eram jurídicas jurisdicionais, ou seja, aplicadas por juiz, agora são jurídicas administrativas, ou seja, aplicadas por uma autoridade administrativa, o Conselho Tutelar. Quem viola a força jurídica do Conselho Tutelar, paga multa (BRUM, 2000). Na última década do Século XX, o Brasil foi exemplo de um esforço pela municipalização dos direitos da criança e do adolescente. No modelo brasileiro, cada município deve organizar sua política e criar conselhos e programas regidos pelo princípio da participação. A democracia participativa é um princípio constitucional no Brasil, e um 57 instituto jurídico alternativo a ser garantido nos Tribunais, gerando novas relações de poder (NOGUEIRA, 1991). As organizações representativas (Ongs) da população participam da formulação municipal, no Conselho Municipal dos Direitos da Criança e do Adolescente, que registra e autoriza os programas governamentais e não governamentais a funcionar (SÊDA, 2003). Todos os Estados e a União devem manter o Conselho dos Direitos da Criança e do Adolescente, um órgão deliberativo, com o mesmo número de membros representantes da população (Ongs) e do Governo (Ogs) a que o Conselho fica vinculado. Sem esse Conselho fica inconstitucional a política para criança e adolescente, com a participação de representantes de organizações não governamentais. E ao Conselho Tutelar cabe o dever de fiscalizar a efetivação das políticas sócias públicas (SÊDA, 2001). 2.4 Conceito, criação e funcionamento do Conselho Tutelar Após a promulgação da Lei 8.069/90, o Estatuto da Criança e do Adolescente, teve início no Brasil a implementação e implantação dos Conselhos Tutelares. O Conselho Tutelar é um órgão que tem sua origem em lei municipal, conforme dispõe o art. 134 do Estatuto da Criança e do Adolescente. Tal dispositivo prevê, a determinação de local, dia, horário, destinação de recursos para o seu funcionamento e eventual remuneração de seus membros. É um órgão permanente e autônomo, não jurisdicional, encarregado pela sociedade de zelar pelo cumprimento dos direitos da criança e do adolescente, definidos na Lei 8.069 de 13 de julho de 1.990, que entrou em vigor no dia 14 de outubro de 1.990. É um órgão público, criado por lei, que integra definitivamente o conjunto de instituições brasileiras, estando, portanto sujeito e subordinado ao ordenamento jurídico do 58 país e que, em suas decisões, tem autonomia para desempenhar as atribuições que lhes são confiadas pelo Estado Federal que o instituiu. A necessidade da criação do Conselho Tutelar surgiu da expectativa e da impossibilidade de organização popular, impedida, nos últimos trinta anos por movimentos políticos autoritários. Essa explosão do direito de reunir-se e associar-se permitiu que a comunidade construísse um mecanismo de participação mais democrática, oposto ao direito anterior, que impedisse a violação dos direitos individuais da criança e do adolescente e garantisse um atendimento adequado e justo de suas necessidades (SÊDA, 1998). Ao regulamentar o art. 227 da Constituição Federal, o Estatuto da Criança e do Adolescente cria e dá vida ao Conselho Tutelar, “a ele cabendo atender os casos de queixas contra ameaça ou violação de direitos individuais, com poderes explícitos de requisitar serviços e fiscalizar entidades governamentais de atendimento à população infanto-juvenil”, segundo Sêda (1993 n2, p.12). Com essas características, o Conselho Tutelar, que surge após ampla e cuidadosa escolha pela comunidade, assume funções que anteriormente, eram exercidas pela Justiça da Infância e da Ju