MARIA GUIOMAR BENUTO FRASTRONE UM ESTUDO FILOSÓFICO INTERDISCIPLINAR DO CONCEITO D E CORPO MARÍLIA 2009 MARIA GUIOMAR BENUTO FRASTRONE UM ESTUDO FILOSÓFICO INTERDISCIPLINAR DO CONCEITO DE CORPO Dissertação apresentada à Faculdade de Filosofia e Ciências da Universidade Estadual Paulista “Júlio de Mesquita Filho”, Campus de Marília, para obtenção do título de Mestre em Filosofia (Área de Concentração: Filosofia da Mente, Epistemologia e Lógica) Orientadora: Profa. Dra. Mariana Claúdia Broens Marília 2009 MARIA GUIOMAR BENUTO FRASTRONE UM ESTUDO FILOSÓFICO INTERDISCIPLINAR DO CONCEITO D E CORPO DISSERTAÇÃO PARA OBTENÇÃO DO TÍTULO DE MESTRE COMPONENTES DA BANCA EXAMINADORA: Profa. Dra. Mariana Claúdia Broens (orientadora) Departamento de Filosofia FFC - UNESP Prof. Dr. Alfredo Pereira Júnior Departamento de Educação UNESP Botucatu Prof. Dr. Gustavo Maia de Souza Departamento de Biologia UNESP Ribeirão Claro e UNOESTE SUPLENTES Prof. Dr. Antônio Trajano Menezes de Arruda Departamento de Filosofia FCC – UNESP Prof. Dr. Romeu Guimarães Departamento de Biologia UFMG Marília, 09 de fevereiro de 2009. DEDICATÓRIA Dedico este trabalho, como não poderia deixar de ser, para minha orientadora e amiga Mariana Claudia Broens. Dizer que a admiro é pouco, não existem palavras para descrever todo o carinho, respeito e admiração que sinto. Minha gratidão será eterna, não somente por todo o seu esforço para me inserir no “deslumbrante mundo da filosofia” e para que esse trabalho pudesse ter, em alguma medida, uma contribuição acadêmica, mas principalmente por me ensinar que o respeito, o trabalho, a persistência, a paciência, a sinceridade, a humildade, a honestidade e a amizade estão acima de qualquer conceito. Não tenho como agradecer, a não ser dizendo que você é um exemplo de vida para mim. Obrigada por toda a compreensão e por todo carinho sempre dispensados. Agradecimentos Agradeço aos meus pais Joana e Lourival, ao meu irmão Edgar, a minha amada tia/irmã Rosana e ao Daniel. Nada em minha vida seria possível sem vocês. Agradeço a Virna Zanin, Rodrigo Zanin e Maira Herrera pelo apoio, carinho com que sempre me receberam. A amizade de vocês é muito importante e preciosa. Agradeço aos meus amigos Márcia Borini, Rafael Tavares, Alexssander Lacerda, Merry Martinez, Valdir Carrenho, Edvaldo Terassi, Laís Cristina, Danilo Aprígio, Maria Fernanda Almeida, Ulisses Pinheiro, Celso Ricardo, Osvaldo Júnior, Leonides Oliveira, Adriano Forest, Miriam Paglione, Luciane Uliana, Aline Palmezano, Claudia Moreira, , Sabrina Barbosa, Luana Botter. Esses anos de convivência me ensinaram a acreditar na amizade, na persistência, e é claro, que a vida pode ser e deve ser divertida... Rir é o melhor remédio! Agradeço ao meu amigo Edvaldo Carlos Terassi pelo apoio e compreensão. À família Silva Alves – Luciane, Fernanda, Mariane, João Paulo, Regina Maria e João de Deus. Uma família especial que me acolheu, em muitos momentos da minha vida, e da qual hoje me considero parte. Agradeço os meus amigos (e admirados) companheiros de Unesp pelos intensos e ricos debates que me proporcionaram momentos reflexão e de descobertas. César, Vicente, Ramon, Cristina, Mariana, João, Fernando, Paulo Henrique, Heloísa, Hebert, Vanessa, Felipe, Caio, Luciane, Ticiana, Thaisa, Juliana: vocês mudaram minha vida em todos os sentidos, serei eternamente grata. Agradeço a amizade de duas jóias raras: Ticiana Cochieri e Thaisa Reino. Aos professores Ricardo Tassinari, Maria Cândida Soares Del Masso, Hércules Feitosa, Pim Haselager, Adrian Montoya, Maria Claudia Cabrini, Alfredo Pereira Júnior, Lauro Frederico Barbosa, Ivo Ibri e Cassiano Terra Rodrigues. Agradeço aos Professores. Gustavo Maia e Alfredo Pereira Júnior por participarem do meu exame de qualificação e por toda contribuição ao longo dessa pesquisa. Agradeço especialmente à professora Maria Eunice pelo apoio incondicional e, por estimular o debate interdisciplinar com tanta clareza e sensibilidade. Agradeço especialmente ao professor Trajano, simplesmente por ele ser Ele! Aos funcionários de Departamento de Pós-Graduação, em especial a incansável Aline. À Edna por toda gentileza, carinho e alegria dispensados. Às “meninas” da biblioteca por todo apoio. A Capes pelo apoio financeiro. À Unesp! Nada posso dizer a não ser obrigada! A experiência, em verdade, não conhece separação alguma entre os interesses humanos e um mundo puramente mecânico e físico. A morada do homem é a natureza; a execução de seus intuitos e objetivos depende das condições naturais. Separados dessas condições, eles tornam-se sonhos vazios e vôos ociosos da fantasia John Dewey Resumo: Este trabalho tem por objetivo investigar alguns pressupostos e implicações filosóficas da noção cartesiana de corpo e contrapor esta concepção ao entendimento de que o corpo dos organismos é uma estrutura biológica com capacidades cognitivas que se atualiza evolutivamente de modo auto-organizado. Apoiados na teoria de sistemas complexos, tal como proposto por Souza (2000, 2004, 2007), Souza e Daminelli (2008), Guimarães (2000, 2004), Pereira Júnior (2004), caracterizamos o corpo como instância auto-organizada que se atualiza nas relações com o meio e entre suas estruturas constituintes. Defendemos também a hipótese, apoiados em Haselager (2004, 2007, Gonzalez (2004) e Broens (2004, 2007), que a estrutura corpórea, em contraste com os postulados dualistas – mais proeminente o cartesiano -, corresponde à atualização de padrões disposicionais cuja interação com o meio é de importância central para a cognição. Assim, entendemos que o corpo não pode ser reduzido a uma substância extensa sem nenhum papel cognitivo, como entendiam Descartes e muitos dualistas, ou, como parecem pressupor alguns cognitivistas tradicionais, a desempenhar, quando muito, um papel cognitivo secundário. Procuraremos ressaltar que, adotada uma perspectiva evolucionária, (1) o corpo deve ser entendido simultaneamente como produto e produtor de processos cognitivos na dinâmica auto-organizativa própria da vida e (2) a adoção desta perspectiva têm implicações importantes para a Filosofia da Mente. Palavras-chave: corpo; auto-organização; evolução; hábitos; cognição/conhecimento. Abstract: This work aims at inquiring into some of the philosophical assumptions and implications of the Cartesian concept of body, seeking to contrast such view to the understanding that the body of organisms is a biological structure with cognitive capacities actualizing itself in an evolutive self-organized way. We rely on the theories of complex systems, such as those argued for by Souza (2000, 2004, 2007), Souza and Daminelli (2008), Guimarães (2000, 2004), Pereira Júnior (2004), and we seek to identify the body as a self-organized instance actualizing itself in the relations with the environment and in between its constitutive structures. Based on the works of Haselager (2004, 2007), Gonzales (2004) and Broens (2004, 2007), and in contrast to dualistic assumptions, mainly of a Cartesian character, we also defend the hypothesis that corporal structure corresponds to the actualization of dispositional patterns, of which the interaction with the environment is chiefly significant to cognition. So, we understand that the body cannot be reduced to a mere bundle of matter and made to occupy a secondary role, as traditional cognitivists defend. Our account acquires consistency when the body is seen as a source of knowledge grounded on a fluid and continuous evolutive history, being not only a mere result reached from logical processes coordinated by knowledge representations, as Haselager points out (2004). We stress the central role of the body in processes of acquisition of knowledge. Finally, we conclude that the body cannot be resumed to an extended substance with no cognitive role at all, as Descartes and many other dualistic thinkers assumed; or, as many traditional cognitivists seem to assume, that it has only a secondary role in cognition. We seek to reinforce that once an evolutive standpoint is taken, (1) the body must be understood at the same time both as producer and product of cognitive processes in life's own self-organized dynamics, and (2) the adoption of this view has significant implications to Philosophy of Mind. Key-words: body; self-organization; evolution; habit; cognition/knowledge. SUMÁRIO INTRODUÇÃO ................................................................................................... 12 CAPÍTULO 1 - O CORPO NEGLIGENCIADO – O DUALISMO MECANICISTA CARTESIANO ...................................................................... 15 1.1 O dualismo cartesiano e algumas de suas implicações ......................................... 15 1.2 As paixões da alma – o mecanicismo fisiológico proposto por Descartes ............ 24 1.3 Contribuições de Dewey para uma crítica a doutrinas dualistas ........................... 29 CAPÍTULO 2 – O CORPO NO CONTEXTO CIENTÍFICO CONTEMPORÂNEO E ALGUMAS IMPLICAÇÕES FILOSÓFICAS ....... 33 2.1 Relevância dos processos evolucionários ............................................................. 45 2.2 Seleção natural e “programa” genético ................................................................. 48 2.3 O corpo na perspectiva da fisiologia...................................................................... 52 2.3.1 O processo metabólico e sua relevância para a noção de corpo........................... 57 CAPÍTULO 3 - O PROJETO DA CIÊNCIA COGNITIVA E SUAS CONTRIBUIÇÕES PARA UMA RECONSTRUÇÃO DO CONCEITO DE CORPO................................................................................................................. 63 3.1 Contribuições históricas para a concepção mecanicista de corpo ......................... 63 3.2 O Corpo na Teoria da Cognição Incorporada e Situada........................................ 79 3.3 O Corpo Auto-Organizado..................................................................................... 83 3.4 Características Básicas do Corpo....................... ................................................... 87 CONSIDERAÇÕES FINAIS.............................................................................. 97 BIBLIOGRAFIA .................................................................................................. 103 12 Introdução Este trabalho tem por objetivo argumentar em favor de uma concepção de corpo orgânico como produto e produtor de processos cognitivos auto-organizados concomitantes à interação ambiental dos organismos. Esse caráter dinâmico inerente ao corpo dos organismos revela que as concepções mecanicistas e fisicalistas redutivas não conseguem explicar satisfatoriamente a natureza corpórea, ora por atribuir ao corpo o estatuto de máquina, ora por tratá-lo como mera organização da matéria regida por leis físico-químicas, deixando de lado os aspectos dinâmicos de sua história evolutiva. O olhar da ciência concebe o corpo dos seres vivos como uma junção de células, tecidos, órgãos e sistemas, não enfatizando as relações que propriedades estabelecem entre si para construir a totalidade corpórea. Assim, embora os mais recentes avanços científicos confirmem muitas das posições fisicalistas, alguns problemas permanecem, principalmente no que diz respeito ao caráter relacional e dinâmico da corporeidade. Neste contexto, deparamos com um problema central, assim enunciado: é possível argumentar exclusivamente em favor das abordagens reducionistas para definir o corpo, abandonando, em um plano macroscópico, a totalidade que se apresenta como uma continuidade de experiências que se construíram ao longo de uma história biológica evolutiva? Acreditamos que não, e argumentaremos nesse sentido. No Primeiro Capítulo, apresentamos algumas teses cartesianas que, entendemos, sustentaram na tradição ocidental uma negligência à corporeidade, por exemplo, ao compará-la, como mostraremos, às máquinas e autômatos construídos até então, especialmente ao mecanismo do relógio. Ao longo de sua argumentação nas Meditações, Descartes considera a substância pensante (razão, mente ou alma) como detentora do conhecimento e produtora da verdade. A substância extensa ou corpo, para 13 o filósofo, em nada se distingue de outros corpos físicos não-vivos e é apenas um receptáculo da alma, como se tal substância o habitasse a fim de movê-lo. Ressaltamos, ainda, a descrição pormenorizada que o filósofo apresenta do corpo, como se este fosse uma máquina constituída de peças, semelhante em princípio a qualquer outro autômato então construído pelo engenho humano. Ressaltamos, também, que a doutrina dualista acabou por designar ao corpo um estatuto meramente secundário em relação ao conhecimento e, embora Descartes tenha tentado explicar a relação que se estabelece entre mente-corpo, propôs um modelo explicativo causal que se mostrou insatisfatório e problemático: como pode algo não físico causar efeitos físicos? Entretanto, mesmo com todos os problemas que levanta, a tradição dualista se difundiu amplamente no contexto filosófico vigente e prevaleceu até o final do século XIX. Com o propósito de problematizar a tradição dualista, apresentamos as críticas de John Dewey (1859-1952) ao dualismo, o qual é caracterizado por Dewey como principal responsável por uma dicotomização de nossa visão de mundo que compromete nosso entendimento da natureza do conhecimento e do papel que a experiência corpórea desempenha em sua produção. Em poucas palavras, propõe a redefinição ou a reconstrução do conceito de experiência considerando sua intrínseca relação de continuidade com o ambiente. No Segundo Capítulo, apresentamos o conceito de corpo através de uma vertente da biologia, no viés mecanicista, construído sob o olhar de um processo evolutivo caracterizado pelas abordagens mecanicistas do fisicalismo, e favorecida pela Teoria da Seleção Natural de Darwin e pelas descobertas contemporâneas envolvendo os processos genéticos. 14 No que diz respeito a tais processos genéticos, ressaltamos a importância de uma abordagem interdisciplinar que pudesse apresentar características importantes para a compreensão do corpo e da corporeidade num contexto teórico não dualista. Procuraremos ressaltar que abordagens reducionistas não são capazes de explicar satisfatoriamente o conceito de vida e nem de corpo. Inserimos o papel do metabolismo neste contexto e discutimos a importância desses processos de troca de energia e matéria com o organismo na construção, transformação e auto-sustentação da corporeidade. No terceiro capítulo, discutimos as contribuições da Teoria da Auto- Organização e da Teoria da Cognição Incorporada e Situada na construção de uma concepção não mecanicista de corpo. Procuramos ressaltar que o corpo se ajusta evolutivamente e tem características específicas que permitem comportamentos adaptativos. Há uma dinâmica biológica que incorpora conhecimento na atualização com o ambiente. Deste modo, o corpo parece se atualizar na dinâmica relacional contínua e fluída com o ambiente ao longo do tempo. Neste sentido, entendemos que o aparato biológico que instancia o sistema se constrói e se reconstrói na experiência e na continuidade com a natureza e possibilitam a compreensão que a interação dinâmica entre corpo, cérebro e ambiente pode resultar em padrões organizacionais relativamente estáveis no tempo. Podemos admitir ainda que o corpo se desenvolve naturalmente a partir das nossas interações com o ambiente e independente das descrições e modelos do mundo. Nosso objetivo é ressaltar que o corpo orgânico constitui unidade evolutivamente moldada, com identidades onto e filogenéticas, graças aos processos interacionais com o ambiente cognitivamente significativos. 15 CAPÍTULO 1 – O CORPO NEGLIGENCIADO – O DUALISMO MECANICISTA CARTESIANO 1.1 O dualismo cartesiano e algumas de suas implicações Neste capítulo procuraremos mostrar que na tradição filosófica ocidental a abordagem mecanicista que se inicia no século XVII acaba por entender o corpo como uma máquina em princípio semelhante aos autômatos (já construídos a partir de séculos anteriores), diferenciando-se deles apenas pela natureza de sua matéria e a complexidade de suas partes. Essa perspectiva se tornou extremamente difundida com o cartesianismo, na medida em que Descartes propõe em sua obra filosófica algumas teses ontológicas e epistêmicas que sustentam esse ponto de vista e que passamos a expor. Descartes inicia suas Meditações metafísicas apontando que o conhecimento produzido até então era pouco confiável, pois teses verdadeiras se misturavam com teses falsas em diversos campos do saber e não se tinha um critério capaz de distinguir umas das outras. Há já algum tempo eu me apercebi de que, desde meus primeiros anos, recebera muitas falsas opiniões como verdadeiras, e de que aquilo que depois eu fundei em princípios tão mal assegurados, não podia ser senão mui duvidoso e incerto; de modo que me era necessário tentar seriamente, uma vez em minha vida, desfazer-me de todas as opiniões a que até então dera crédito, e começar tudo novamente desde os fundamentos, se quisesse estabelecer algo de firme e de constante nas ciências. (DESCARTES, 1973, p.117). Assim, com o objetivo de distinguir o verdadeiro do falso, propõe o método da dúvida radical: duvidar radicalmente de algo é considerar o duvidoso como equivalente ao falso, pelo menos momentaneamente, por menor que seja o motivo da dúvida. 16 Ao duvidar de todas as suas antigas opiniões, ele aponta que não seria necessário provar a verdade/falsidade das opiniões uma por uma. A estratégia que adota é pôr a prova os princípios em que tais opiniões se alicerçam, as quais são as bases fundamentais do conhecimento até então produzido. Afirma Descartes: Tudo o que recebi, até presentemente, como o mais verdadeiro e seguro, aprendi-o dos sentidos ou pelos sentidos: ora, experimentei algumas vezes que esses sentidos eram enganosos, e é de prudência nunca se fiar inteiramente em quem já nos enganou uma vez. (DESCARTES, 1973, p.118). O método da dúvida tem como primeiro alvo o conhecimento baseado nos sentidos. Colocando metodicamente em dúvida tudo o que havia concebido até então como verdadeiro, considera o conjunto de conhecimento adquirido pelo aparato perceptual incerto e duvidoso, logo falso, segundo a dúvida radical. A confiabilidade das percepções para fornecer dados adequados sobre o mundo é colocada sob suspeita. Ao afirmar ser falso tudo aquilo que se conhece pelo aparato sensorial, Descartes, conseqüentemente, mesmo que por razões metodológicas, nega a confiabilidade do corpo enquanto sistema cognitivo, desqualificando radicalmente o conjunto de dados que a corporeidade oferece sobre o mundo. Ao tratar o duvidoso como falso e assumindo o argumento do erro dos sentidos, o filósofo retoma a discussão sobre a confiabilidade dos sentidos, pois algumas coisas não parecem ser, no plano do bom senso, passíveis de dúvida, embora sejam supostamente conhecidas através das sensações, das experiências e da propriocepção: E como poderia eu negar que estas mãos e este corpo sejam meus? A não ser que eu me compare a esses insensatos, cujo cérebro está de tal modo perturbado e ofuscado pelos vapores da bile que constantemente asseguram que são reis quando são muito pobres; que estão vestidos de ouro e púrpura quando estão inteiramente nus; ou imaginam ser cântaros ou ter um corpo de vidro. Mas quê? São loucos e eu não seria menos extravagante se me guiasse por seus exemplos. (DESCARTES, 1973, p.119). 17 Ao expor o argumento da loucura, observamos que Descartes reconhece que parece insensato duvidar das percepções. Por exemplo, na perspectiva do bom senso pereceria que questionar a propriocepção seria sinal de doença mental. Aprofundando sua investigação, Descartes apresenta o argumento do sonho. Ao fazê-lo, descreve a experiência sensível e representacional supostamente presente no sonho e suas possibilidades de engano. Argumenta que inúmeras vezes, durante o sono, pensou estar vivenciando situações que, ao acordar, constatou serem imaginárias. O que parece causar grande espanto para Descartes é a dificuldade de distinguir a vigília do sono nesses momentos. Esta possibilidade de engano em relação à distinção do sono e da vigília parecem corroborar as incertezas que apresenta em torno do conhecimento proveniente do aparato sensorial e, conseqüentemente, do corpo. Assim, ao duvidar metodicamente do conhecimento sensível, e considerando o argumento do sonho, Descartes irá duvidar metodicamente da existência dos corpos em geral e da existência de seu próprio corpo em particular, ressaltando assim a irrelevância cognitiva da corporeidade no interior de sua doutrina. As particularidades, segundo o filósofo, representadas durante o sono podem ser formadas à semelhança dos corpos que alegadamente o sonho representa, mas não temos, ainda segundo Descartes, instrumentos adequados para demonstrar que esses corpos existam acima de qualquer dúvida. Tal carência fica evidente quando se considera as certezas matemáticas que não são afetadas pelo argumento do erro dos sentidos: “[...] pois, quer eu esteja acordado, quer esteja dormindo, dois mais três formarão sempre o número cinco, e o quadrado nunca terá mais do que 4 lados; e não parece possível que verdades tão patentes possam ser suspeitas de alguma falsidade ou incerteza.” (DESCARTES, 1973, p.120). 18 Entendemos que a noção de grau de precisão e acerto do aparato perceptual é diferente da precisão do saber matemático. O saber matemático é formal e, na concepção cartesiana, produz certezas demonstráveis. Embora não se possa negar a precisão da matemática, parece-nos, no mínimo, reducionista a idéia de que o conhecimento verdadeiro fique restrito ao tipo de conhecimento próprio da matemática. Ao duvidar, enquanto conhecimento verdadeiro, das informações obtidas através do aparato perceptivo/sensorial, nasce a desconfiança em relação ao corpo e a separação dele da mente. No universo cartesiano, o sujeito se constituirá de uma mente (alma ou razão) distinta de um corpo ao qual estaria momentaneamente unida. Essa suposta superioridade da mente sobre o corpo, e a conseqüente primazia da razão para alcançar um conhecimento verdadeiro e necessário, acaba por deixar os dados da experiência e a corporeidade desempenhando um papel cognitivo secundário, todas as atenções voltando-se à mente (ou alma). Pensarei que o céu, o ar, a terra, as cores, as figuras e todas as coisas exteriores que vemos são apenas ilusões [...]. Considerar-me-ei a mim mesmo desprovido de mãos, de olhos, de carne, de sangue, desprovido de quaisquer sentidos, mas dotado da falsa crença de ter todas essas coisas. (DESCARTES, 1973, p.123). Assim, Descartes suspende seu juízo em relação à totalidade dos dados da percepção, inclusive da propriocepção, e reconhece apenas ter a ilusão, a “falsa crença” de possuir um corpo. Enquanto ele não puder se manifestar sobre a verdade dos dados da percepção, todos os dados provenientes do corpo serão considerados falsos, mesmo que momentaneamente. Para Descartes, o que nos permite conhecer verdadeiramente e apresenta um suporte para um conhecimento seguro é o aparato racional auxiliado pelas ferramentas lógicas e matemáticas. O corpo físico, biológico, somente poderá nos fornecer um 19 conhecimento seguro quando e se os dados da percepção forem racionalmente corroborados. Na Segunda Meditação, Descartes permanece no estado de dúvida em relação ao conjunto de dados de sua experiência. Não se pode, contudo, deixar de considerar que esse processo de dúvida metódica não é permanente e, ao duvidar de todo o conhecimento até então adquirido, está buscando construir algo de certo e indubitável para a produção de um conhecimento verdadeiro e necessário. O processo de dúvida que se inicia na Primeira Meditação permeará também a segunda, na constante busca para encontrar algo de verdadeiro e indubitável para a fundamentação do conhecimento. Podemos perguntar: se o conjunto de conhecimento proveniente do aparato sensorial é considerado falso, neste momento por razões metodológicas, o que poderá ser considerado verdadeiro? Mas que sei eu, se não há nenhuma outra coisa diferente das que acaba de julgar incertas, da qual não se possa ter a menor duvida? Não haverá algum Deus, ou alguma outra potencia, que me ponha no espírito tais pensamentos? Isso não é, necessário, pois talvez seja eu capaz de produzi-los por mim mesmo. Eu então, pelo menos, não sereia alguma coisa? Mas já neguei que tivesse qualquer sentido ou qualquer corpo. Hesito no entanto, pois que se segue daí? Serei de tal modo dependente do corpo e dos sentidos que não possa existir sem eles? (DESCARTES, 1973, p.126, grifo nosso). Como vimos, ao duvidar metodicamente dos sentidos e da corporeidade, Descartes duvida sistematicamente da existência dos corpos em geral, inclusive do seu próprio corpo. Contudo, ao duvidar de sua existência, acaba por pressupô-la em alguma medida, pois entende ele que para se poder duvidar é preciso existir, pelo menos enquanto algo, alguma substância, capaz de pensar. Devemos ressaltar que a existência a que ele se refere diz respeito à substância pensante. Mesmo que não possua corpo e que todo o conjunto de corpos físicos supostamente percebidos seja ilusório. Considera a afirmação de sua existência como uma proposição verdadeira, enunciada por uma “substância pensante”. Haveria, assim, uma substância pensante cuja 20 existência não pode ser alvo de dúvida, ao contrário do corpo, cuja existência, reiteramos, é considerada incerta e duvidosa, logo metodicamente falsa. Neste momento de sua argumentação, o que há de certo e indubitável para Descartes, pelo menos temporariamente, é a existência da substância pensante. Para ele, inclusive, a substância pensante é mais facilmente cognoscível do que a substância extensa, ou corpo, cuja existência ainda não pode ser demonstrada (sendo isso possível, na ordem argumentativa do filósofo, apenas depois da alegada prova da existência de Deus). Após conquistar a primeira certeza “eu sou, eu existo” e com o propósito de aprofundar o conhecimento proveniente desse eu, Descartes passa a reiterar a necessidade de rever as faculdades e atributos desse eu comprovadamente existente, de maneira que só permaneça o que é certo e indubitável. Assim, tendo alcançado a primeira certeza, a de sua indubitável existência como substância pensante, retoma as antigas opiniões que tinha a seu próprio respeito, umas filosóficas e outras supostamente naturais, na tentativa de preservar apenas o que é certo e indubitável e pode ser verdadeira e precisamente descrito. Para que tal tarefa seja levada a cabo, Descartes retoma conceitos filosóficos à respeito da definição de homem. Lembra ele da clássica definição aristotélica, segundo a qual o “homem é um animal racional” e que, segundo ele, não é satisfatória porque seus termos não podem ser definidos com precisão. Contudo, aponta a necessidade de considerar outras informações valiosas para a edificação de um conhecimento seguro acerca desse eu comprovadamente existente. Neste sentido, Descartes amplia sua visão de homem/substância para além do contexto filosófico e procura estabelecer outras bases para a sua compreensão, retomando o “conhecimento natural” que tem de si mesmo importante na determinação do conteúdo dessa existência. 21 Ao tentar estabelecer o conteúdo dessa existência, Descartes analisa sua própria natureza, enfatizando que esse conhecimento não é, ainda, suficientemente claro. No entanto, ao descrever sua natureza corpórea, é enfático ao tratar o corpo como uma máquina, composta de partes como cabeça, mãos e braços tal como aparecem em um cadáver. Além disso, descreve sua antiga concepção de alma como um sopro ou uma chama que teria por tarefa “animar” – ou movimentar – o corpo. Assim, novamente colocará ao crivo do método da dúvida radical todo o conhecimento até então adquirido, para que permaneça apenas o que possa ser de todo indubitável. Haveria, então, uma existência ativa da alma imbricada ao pensamento, sendo o corpo um mecanismo animado, isto é, momentaneamente habitado pela alma ao qual está unida enquanto o corpo opere adequadamente. O descaso cartesiano em relação ao corpo vai ao seu limite quando Descartes ressalta que sem a alma o corpo é igual a um cadáver. Para Descartes, o corpo humano e o corpo de qualquer outro animal são semelhantes, pois apenas correspondem igualmente a consecução de atividades autômatas, tais como as de um de um relógio. E quando estas findam, o corpo (substância extensa) simplesmente deixa de funcionar – enquanto que a alma, segundo ele, própria apenas à espécie humana, não cessaria de existir por não estar sujeita às leis naturais. Ao estabelecer o conhecimento proveniente da substância pensante enquanto verdade fundamental, Descartes novamente suspende o juízo em relação ao corpo, visto que a certeza do conhecimento verdadeiro e necessário dado pela substância pensante é indubitável, enquanto que a existência do corpo é incerta, duvidosa e difícil de conhecer. Os sentidos e a imaginação não fornecem bases sólidas e seguras para o conhecimento. [...] Ora, eu sou uma coisa verdadeira e verdadeiramente existente; mas que coisa? Já o disse: uma coisa que pensa. E que mais? Excitarei ainda minha imaginação para saber se não sou algo mais. Eu não sou essa reunião de membros que se chama o corpo humano; não sou um ar tênue penetrante, disseminado por todos esses membros; não sou um vento, um sopro, um 22 vapor, nem algo que posso fingir e imaginar, posto que supus que tudo isso não era nada e que, sem mudar essa suposição verifico que não deixo de estar seguro de que sou alguma coisa. (DESCARTES, 1973, p. 128) Há, pois, a definição da essência do ser enquanto uma substância pensante e capaz de realizar operações de modo a duvidar, conceber, afirmar, negar, querer, não querer, imaginar e sentir. Mesmo que essas operações às vezes resultem em algo duvidoso, nada mais seriam do que pensar, segundo o filósofo. De fato, ao duvidar, conceber, afirmar, negar, querer, não querer, imaginar e sentir, o faz pelo pensamento. Neste sentido, o corpo é apenas um canal intermediário da substância pensante, em verdade configura-se como a “extensão” da razão. Mas o que eu sou, portanto? Uma coisa que pensa. Que é uma coisa que pensa? É uma coisa que duvida, que concebe, que afirma, que nega, que quer, não quer, que imagina também e que sente. Certamente não é pouco se todas essas coisas pertencem a minha natureza. (DESCARTES, 1973, p. 130) A demonstração cartesiana do sentir como resultado do pensar estabelece que, uma vez que, quando sonhamos, pensamos sentir, a última palavra em relação a nossa capacidade de sentir pertence à substância pensante, razão ou alma. Segundo Descartes, os órgãos do corpo limitam-se a servir como “transmissores de dados” para a alma, sendo esta a responsável pela organização desses dados e a conseqüente produção de imagens mentais ou idéias (de que os objetos percebidos seriam modelos). Embora pareça certo que as percepções e sensações sejam capturadas pelos órgãos dos sentidos, o que se pode compreender por meio delas deverá ser avaliado pela razão. Essas sensações, mesmo muitas vezes gerando incertezas e dúvidas são, para Descartes, objetos do pensar, isto é, alvos da investigação da substância pensante, na medida em que mesmo sem se saber se algo existe ou não pode ser objeto do pensamento. Assim, a incerteza em torno da existência dos corpos permanece, embora a faculdade de sentir seja da alçada da substância pensante. A problemática está na dificuldade em conhecer o 23 que é inerente à natureza corpórea e considera que as coisas aparentemente mais duvidosas e difíceis de conhecer (como a alma, por exemplo) são efetivamente mais facilmente conhecidas. Na tentativa de demonstrar que faculdades anteriormente anunciadas efetivamente pertencem à substância pensante, Descartes apresenta o famoso exemplo do pedaço de cera. Ao tomar o pedaço de cera, que pode ser alvo de todos os sentidos humanos (visão, audição, tato, paladar e olfato) e aproximá-lo do fogo as informações que anteriormente haviam sido dadas pelos sentidos a seu respeito (a forma, a cor, o som que produzia se nele batéssemos, o gosto e o perfume do mel que ainda retinha) se perdem quando a cera é aquecida, mudando inteiramente sua aparência. Visto que sua constituição conhecida por intermédio dos sentidos encontra-se totalmente alterada, argumenta Descartes que nossa capacidade de reconhecer o objeto como o mesmo (e não outro) decorre de que, desde o início, não eram essas informações sensoriais as responsáveis pelo nosso conhecimento do objeto, mas nossa razão, a qual desde o início nos ensinava que se tratava de um objeto extenso e mutável, propriedades que lhe são essenciais, são racionalmente determináveis, e que permanecem mesmo tendo mudado sua aparência. Um dos objetivos de Descartes com esta argumentação parece ser o de mostrar que, desde o início, efetivamente conhecemos não graças aos sentidos, como ele colocou no início da Primeira Meditação, mas graças à razão, mente ou alma. Para o filósofo, nenhum objeto é conhecido quando visto, cheirado, tocado, provado ou ouvido, mas sim quando é concebido pela substância pensante. Descartes argumenta que, se os órgãos dos sentidos forem deixados a si mesmos, por assim dizer, seriam obrigados a afirmar que a cera derretida é um objeto diferente. Cabe ressaltar neste momento da argumentação cartesiana o quanto a doutrina relega a segundo plano nossa relação perceptual com os objetos (cuja existência, aliás, supostamente ainda 24 desconhecemos porque ainda não foi racionalmente demonstrada e os dados da experiência são, para Descartes, incapazes de fazê-lo). Assim, considerar o sentir como faculdade do pensamento corrobora a irrelevância cognitiva da corporeidade no processo de aquisição de conhecimento no cartesianismo. Enfim, fica evidente, segundo Descartes, que o conhecimento acerca da alma – mente ou razão – é seguro e indubitável, sendo esta mais fácil de conhecer que o corpo. A natureza da alma é mais simples favorecendo o seu conhecimento. Assegurada a existência da alma, Descartes aponta que é mais fácil conhecê-la que o corpo, e se o corpo existe é pelo pensamento que é conhecido. Ao contrário do corpo, cujo conhecimento exige um esforço maior, visto que a imaginação e os sentidos são incapazes de proporcionar conhecimento verdadeiro e necessário, para Descartes a existência da alma pode ser demonstrada graças aos recursos racionais que são de sua esfera de atuação. Ao contrário, os recursos que pertencem à esfera de atuação do corpo – os sentidos – são, para Descartes, incapazes de desempenhar um papel cognitivo semelhante. 1.2 As Paixões da Alma – o mecanicismo fisiológico proposto por Descartes Em as Paixões da Alma, Descartes retoma a discussão em torno das dificuldades em tomar como verdadeiro o conjunto de conhecimento científico baseado nas idéias já estabelecidas, especialmente no que se refere à natureza das paixões. Ao analisar as funções desse eu (segundo ele essencialmente pensante e indubitavelmente existente) nas Meditações, Descartes vai estabelecer uma distinção entre as ações e as paixões. 25 Nesta tentativa de solidificar um conhecimento distinto entre suas ações e suas paixões, Descartes deixa de lado as antigas opiniões que se tinha sobre sua natureza. Observa ele: [...] para começar, considero que tudo quanto se faz ou acontece de novo é geralmente chamado pelos filósofos uma paixão em relação ao sujeito a quem acontece, e uma ação com respeito àquele que faz com que aconteça; de sorte que, embora o agente e paciente sejam amiúde muito diferentes, a ação e a paixão não deixam de ser uma mesma coisa com dois nomes, devido aos sujeitos diversos aos quais devemos relacioná-la. (Descartes, 1973, p. 296). Contudo, para chegar ao conhecimento das paixões, Descartes ressalta a importância de manter e analisar a distinção substancial que há entre corpo (substância extensa) e a alma (substância pensante). Para isso, toma as percepções sensórias como atribuições do corpo e ressalta que estas também podem estar nos corpos inanimados. Neste sentido, alega Descartes que aquilo que sentimos existir em nós é referente a objetos fora de nós e é considerado atributo do corpo, logo passível de dúvidas e incertezas. Por outro lado, Descartes alega que há aquilo que existe em nós e constitui a existência do eu verdadeiro e indubitável, e que não pode ser de modo algum pertencente à existência corpórea, deve ser atribuído à nossa alma ou substância pensante. O enfoque cartesiano da supremacia da alma sobre o corpo – cujas propriedades fundamentais correspondem a algo extenso em comprimento, largura e profundidade – reforça a impossibilidade de uma cognição corpórea. Uma vez que, para Descartes, no corpo não há pensamento, toda espécie de pensamento em nós existente pertenceria à alma ou substância pensante. A idéia subjacente de que a existência da substância pensante sobrevém à existência corpórea (extensão) permeia todo o sistema cartesiano. Entretanto, Descartes 26 não duvida de que todos os corpos, inclusive o corpo humano, apresentem as propriedades dos objetos extensos acima referidos. Assim os movimentos e o calor existentes em nós, por exemplo, são propriedades não dependentes do pensamento, pertencendo unicamente ao domínio da corporeidade. É importante ressaltar que Descartes considera que as funções do corpo não têm como princípio a substância pensante, e devem ser analisadas independentemente da alma, visto que a estrutura corpórea, para Descartes, como apontamos, é tal qual uma máquina. A alma é considerada como intimamente associada à estrutura corpórea, mas não é, por princípio, responsável pela formação dessa estrutura e nem mesmo por sua conservação. Isso porque a alma pode se ausentar desta máquina quando esta deixa de existir, ou se corrompe por um motivo qualquer. A morte não é atributo da alma, mas sim do corpo, quando este tem sua sustentabilidade corrompida ou entra em colapso. Essas informações mostram que, para o cartesianismo, a morte não atinge a alma, mas sim o corpo, tido como uma máquina e comparável a um autômato que pode parar de funcionar como decorrência do desgaste de seus mecanismos. Os argumentos cartesianos em relação à distinção entre a alma e o corpo geram um grande problema, na medida em que é preciso explicar como duas substâncias de natureza distinta conseguem interagir. Descartes utilizará posteriormente a noção de uma união substancial entre a substância pensante e a substância extensa na tentativa de solucionar o problema. Tal noção foi apresentada na Sexta Meditação e nas correspondências entre Descartes e a Princesa Elizabeth (carta de 2 maio de 1643 e carta de 28 de junho de 1643), nas quais Descartes tenta responder as dúvidas da Princesa Elizabeth que indaga “como a alma sendo somente uma substância pensante pode fazer com que o corpo desempenhe ações voluntárias?” Descartes justifica que o corpo é uma máquina e seu funcionamento independe da alma, contudo, inicialmente ele explica que 27 seus argumentos estavam voltados para o estabelecimento de uma distinção entre alma e corpo. Embora Descartes permaneça distinguindo alma e corpo, o filósofo tenta explicar a maneira pela qual concebe a união substancial entre a substância pensante e a substância extensa. O argumento da alma em conjunto com o corpo, ou talvez interagindo com este, está calcado na noção de força que a alma dispõe para mover o corpo. Parece aqui que, em certo sentido, a alma “invade” a extensão a fim de movê-la. Entretanto, Descartes sugere que o corpo também apresenta relações causais em relação à alma. Em algumas situações as paixões e os sentimentos podem ser excitados por movimentos corpóreos. Ao atribuir às partes do corpo determinadas funções, Descartes estabelece que processos vitais acontecem independentemente da alma. Depois de ter assim considerado todas as funções que pertencem somente ao corpo, é fácil reconhecer que nada resta em nós que devemos atribuir à nossa alma, exceto nossos pensamentos [...]. (Descartes, 1973, p.306). Essas atribuições físicas e estruturais do corpo extenso distinguem, segundo Descartes, alma e corpo. O arranjo corporal, sendo um mero veículo para a alma, entremeia padrões de resposta fisiológica, as quais estão intimamente relacionadas às paixões. Em um sentido mais estrito, não é possível, segundo Descartes, controlar as mudanças fisiológicas em nossos corpos e as percepções em nós existentes constituem- se apenas como representação da matéria extensa, sendo causadas pelo corpo, sem envolvimento da vontade. Há, no entanto, dois tipos de vontade provenientes da alma: um que resulta em pensamento e não é material, e outro que resulta em funções estritamente corpóreas ou dos objetos extensos. As paixões relacionam-se aparentemente a uma possibilidade de comunicação entre o corpo e a alma. Descartes deixa transparecer esquemas de inter-relações entre o 28 corpo e a alma; na medida em que, embora constituídos de substâncias distintas, a alma e o corpo estariam unidos. Mas, ao compartilhar com o corpo as paixões, a alma poderia ser também considerada como corporal, o que Descartes se recusa a admitir, devendo, então, explicar como elas interagem, embora supostamente pertençam a diferentes planos de realidade. Sendo a alma e o corpo duas substâncias diferentes, o que as impediria de interagir, Descartes aponta uma explicação para a relação mente – corpo. Reconhece que embora a alma esteja unida ao corpo como um todo, existe uma parte em que ela exerceria mais particularmente suas funções, a glândula pineal. Observa Descartes, fazendo sua descrição fisiológica, que a glândula pineal, esse pequeno órgão localizado no interior do cérebro, é extremamente móvel, o que o tornaria mais sensível para interagir com os espíritos animais e as impressões dos sentidos. O argumento principal para que esta pequena glândula constituísse o local privilegiado para a interação da substância pensante com a substância extensa baseia-se no pressuposto de que nesta glândula o conhecimento sensível apreendido pelo corpo seria “traduzido” e transformado em informações compatíveis com a substância pensante. No entanto, é desnecessário dizer, que este estranho argumento não fornece solução para o problema mente – corpo. Ao atribuir à glândula pineal o estatuto de sede da alma, Descartes não explica como a alma incorpórea poderia excitar movimentos corpóreos na glândula e, mais além, não esclarece como mecanismos fisiológicos da substância extensa causariam alterações no universo pensante. Esta tentativa de reconciliação não resolve a relação mente – corpo, o que permite supor que a supremacia da alma sobre o corpo permanece, na medida em que a alma não estaria sujeita aos processos de corrupção próprios apenas à substância extensa. 29 1.3 Contribuições de Dewey para uma crítica a doutrinas dualistas A tradição ontológica dualista foi historicamente muito bem sucedida a despeito dos problemas que acarreta; ela permeou o contexto filosófico vigente e prevaleceu até a segunda metade do século XIX. A partir da segunda metade do século XIX, e num contexto filosófico-científico permeado pelo aparecimento da teoria da evolução, vários filósofos, dentre eles John Dewey (1859-1952), dirigiram inúmeras críticas às ontologias dualistas. Tal como para outros pensadores pragmatistas, como Charles S. Peirce e William James, Dewey tem por preocupação central o processo de produção do conhecimento, no entendimento dele prejudicado pela tradição dualista. O tradicional problema mente-corpo passou a constituir um dos problemas fundamentais em Filosofia da Mente, e no centro dessa controvérsia aparece uma série de tentativas de resolução, cuja classificação geral é apresenta por PEREIRA JUNIOR (2008) por meio de um diagrama em forma de árvore: “Na base da árvore temos a distinção entre teorias dualistas de substâncias (sendo René Descartes, historicamente, a principal referência) e as teorias monistas de substância. As segundas se bifurcam em teorias dualistas de propriedades (em que assumem uma semântica de terceiro excluído: se uma propriedade é física então é mental e vice-versa) e teorias que propõem um monismo de propriedades (admitindo o terceiro excluído, i. é., que as propriedades de um sistema sentiente e cognoscente possam ser físicas e mentais ao mesmo tempo). Os monistas de propriedade, por sua vez, se bifurcam em dois grandes grupos. O primeiro se caracteriza por uma abordagem metafísica (ou anti-metafísica, como no caso de Gilbert Ryle) do problema, e se divide em dois grandes grupos: aqueles que assumem uma identidade ontológica e epistemológica de corpo e mente (panpsiquistas) e aqueles que assumem a identidade ontológica ao lado de uma dualidade epistemológica (teorias de duplo aspecto). O segundo grande grupo é constituído por aqueles que propõem um abordagem do problema nos padrões da ciência ocidental contemporânea, tomando a física como modelo da explicação científica. Estes se dividem em dois grandes grupos: os fisicalistas reducionistas (materialistas, eliminativistas e/ou defensores da fundamentalidade dos fenômenos microscópicos) e os fisicalistas não reducionistas (emergentistas, construtivistas, defensores da criatividade do processo evolutivo, e/ou da hierarquia de níveis explicativos). (PERERIRA JÚNIOR, 2008, p. 44) 30 Neste sentido, ao criticar o dualismo, Dewey propõe a reconstrução do conceito de experiência, ressaltando seu papel nos processos de produção e aquisição do conhecimento, entendida como prática, constituindo um continuum, cuja extensão se prolonga em experiências que se sucedem. Doutrinam dualistas se equivocam porque sugerem haver uma quebra dessa continuidade e geram um abismo na construção do conhecimento verdadeiro que posteriormente, quando discutem as interações mente/corpo, teoria/prática, natureza/cultura, dentre outras, tentam, em vão, superar. Na perspectiva de Dewey, a natureza da experiência tem intrínseca relação com o ambiente e se faceta em um aspecto ativo pela possibilidade de agir ou atuar sobre algo, e em um aspecto passivo, que recebe conseqüências de sua atividade (processo este posteriormente consagrado pelo nome de feedback e que é considerado como essencial aos processos de aprendizagem. Assim, a experiência se concretiza na continuidade entre os fenômenos naturais, os acontecimentos sociais e a experiência humana, em oposição às ontologias dualistas que dividem e supõem existirem barreiras entre essas instâncias. Essa dinâmica intrínseca da natureza da experiência se revela em princípio como uma ação ativo-passiva, e inicialmente traz mudanças pouco significativas. Neste contexto essas experiências se acumulam e se atualizam em um permanente fluxo e refluxo, imbricada ao meio e em busca de uma unidade. Na medida em que constrói, reconstrói, organiza e reorganiza, a experiência não é em princípio cognitiva, mas uma ação ativo-passiva. Adquire esse status quando se prolonga e se acumula. Assim construímos nossas experiências e aprendemos através desse continuum experiencial “indecomposto” das relações com o meio. Para Dewey, “a medida do valor de uma experiência reside na percepção das relações ou continuidades a que nos conduz” (Dewey, 1959, p.153). 31 Para Dewey, um dos principais equívocos da tradição filosófica dualista é desprezar a atividade corpórea como instância cognitiva. Em verdade, a atividade corpórea é, na maioria dos casos, tida como irrelevante para os processos cognitivos, especialmente naqueles considerados de “alto nível”. Dewey alerta que uma das conseqüências desta concepção é uma concepção mecânica do corpo, que continua dissociado da atividade mental. Neste sentido essa separação mantém um abismo entre mente e corpo, em detrimento das relações e múltiplas associações e interdependências das distintas atividades corpóreas (dos órgãos dos sentidos, do cérebro, dos diversos órgãos e subsistemas, etc.) que resultam de e produzem os diferentes processos cognitivos. Reassumindo as posturas de Dewey, os processos cognitivos são indissociáveis desse fluxo contínuo da experiência em intrínseca relação com o ambiente. Para Dewey, quando uma criança vai à escola, por exemplo, ela vai enquanto uma unidade mente/corpo, como uma estrutura única de relações, com uma história e temporalidade que é pessoal e intransferível, e não como uma máquina conduzida pela alma que lhe permite caminhar. Ainda em suas considerações críticas sobre as doutrinas dualistas, Dewey ressalta que o conhecimento implica uma complexa dinâmica de relações e associações, que se refletem na modificação de hábitos que se colocam com esse fluxo e refluxo de experiência. E, para Dewey, essas relações não são simples sobreposições físicas ou mentais, mas revelam-se no contínuo experiencial. Destas colocações do Dewey, podemos inferir que, a partir de observações no ambiente, o organismo pode tacitamente prever os resultados de suas ações à medida que as experiências ficam inscritas na sua memória. Essas ações podem se manifestar de maneira mais primitiva em experiências de tentativa e erro. Esse método, eficiente em 32 algumas situações, é muitas vezes falível e representa experiências pouco significativas. Contudo, as memórias dessas experiências, satisfatórias ou não, ficam incorporadas na história do organismo e poderão ser utilizadas em experiências subseqüentes. Assim sendo, toda ação experienciada pelo organismo fica incorporada. Neste sentido, o conhecimento é uma atividade direcionada, não tem um fim em si mesmo, mas pressupõe um processo relacional e associativo dirigido para a experiência, resguardado por toda uma história biológica evolutiva que não pode ser desagregada. Para Dewey o conhecimento implica continuidade e essa continuidade é incompatível com abordagens dualistas. Assim, organismo e natureza são contínuos, sendo que o organismo constitui uma unidade corpo/história que não pode ser dissociada e que interage com o meio em um fluxo e refluxo de experiências. Vimos neste capítulo algumas das principais teses dualistas no que se refere à concepção filosófica de corpo e alguns de seus principais problemas. Também ressaltamos que a abordagem dualista substancial pôde ser problematizada no contexto científico evolucionário, presente na abordagem crítica do pragmatismo de Dewey. Assim sendo, consideramos que para um estudo filosófico do conceito de corpo é preciso considerá-lo em sua unidade ontológica. Tendo isso presente, no próximo capítulo passamos a expor algumas contribuições de uma abordagem interdisciplinar para o estudo filosófico da relevância cognitiva do corpo. 33 CAPÍTULO 2 - A NOÇÃO BIOLÓGICA DE CORPO E ALGUMAS IMPLICAÇÕES FILOSÓFICAS Não vejo nenhuma forma de evitar o problema da coordenação e ainda compreender as bases físicas da vida. H. Pattee Ao longo de toda a história da civilização, diferentes disciplinas procuraram conhecer o corpo (especialmente o humano), tentaram compreender suas estruturas e processos e o aparente “mistério” envolvendo seu funcionamento. Múltiplos campos do saber em diversas perspectivas teóricas abordaram a questão, cada qual com suas próprias premissas, indagações e ferramentas de análise, propondo diferentes concepções de corpo. Observamos uma preocupação com o corpo em discussões científicas e filosóficas (assumindo uma conotação freqüentemente negativa como fonte de erros, paixões, etc.), entretanto, do ponto de vista conceitual, não há um conceito pacífico de corpo, mas diferentes noções que tentam apreender algumas de suas características e principais propriedades. Assim, propomos investigar algumas dessas noções de corpo e seu estatuto na tentativa de avançar na sua conceituação, considerando, em especial, as teses propostas por Dewey no que se refere a conceber o corpo como uma unidade em continuidade ao ambiente e interagindo com ele. Desse modo, propomos uma discussão que vê uma continuidade indissociável entre o biológico e o cultural, entendendo aqui a cultura num sentido amplo, não antropocêntrico, e que envolve a noção de fluxo e refluxo da 34 experiência com significado e direcionalidade proposta por Dewey, mas não mais necessariamente restrita à espécie humana1. Desse modo, ao investigar a natureza dinâmica do corpo, enfatizamos as incertezas geradas por sua inerente complexidade, e por essa razão o corpo vem se tornando, segundo Santaella (2006, p.10), “um nó de múltiplos investimentos e inquietações”. Como vimos, em Descartes (1973), o corpo é de domínio da natureza e distinto substancialmente da alma. Ao separar de forma radical as dimensões corpo e alma, Descartes reforça a idéia do funcionamento corporal independentemente da alma, como um mecanismo que atua autonomamente por princípios mecânicos. De um lado a substância extensa material (objeto da natureza), de outro, a substância pensante imaterial (mente ou alma). Entretanto, como já discutido no capítulo anterior, Descartes não encontrou explicações para a ligação entre a mente e o corpo, e permanece que, embora a alma esteja unida ao corpo, a essência humana, o eu, é um atributo da alma, do qual o corpo está excluído por princípio. Como já ressaltamos no capítulo anterior, o cartesianismo propôs um modelo centrado na substância pensante, como essência do humano. Nesse ponto de vista, a mente define o eu e o corpo é a porção de matéria, tal como outro objeto qualquer, que executa as ações da alma. Quando suas funções cessam ou se corrompem por um determinado motivo, o eu (substância pensante) supostamente permanece, é imortal, enquanto o corpo está sujeito a todos os processos de corrupção. Como ressaltamos, é parte da doutrina de Descartes a tese da distinção substancial mente-corpo, que tem como pressupostos a exclusão do corpo como 1 Do ponto de vista evolucionário fica difícil defender teses em que processos cognitivos são exclusivos da espécie humana. 35 entidade capaz de conhecer, é considerado mais difícil de ser conhecido do que a mente e é concebido e tratado como uma máquina. Em suma, o corpo é uma entidade exclusivamente física, com fronteiras bem definidas, e que, em se tratando da espécie humana, dependente de suporte e sustentação da alma. Durante muito tempo a relevância do corpo foi subestimada nas tentativas de resolução do problema mente-corpo, as atenções estando mais voltadas para os “mistérios da mente”. Entretanto, Chomsky (2005) ressalta uma dificuldade fundamental para o problema mente-corpo, mais do que propriamente as discussões em torno da mente, o corpo se torna fonte de problematização na medida em que se observa a falta de critérios para aquilo que o constitui. Na tentativa de desconstrução da dicotomia herdada da tradição cartesiana, as discussões em torno do corpo, sua definição, sua natureza e propriedades fundamentais deixaram de ser pacíficas e têm provocado perplexidade no universo científico. Na física, na química e na biologia, a corporeidade tem sido um problema de difícil resolução, e permeia discussões nestes e em diversos outros campos do saber. Enquanto essas discussões perduram, nossa concepção de corpo, e em especial, de ‘corpo vivo’- distinto, então, em algum sentido, do conceito amplo de corpo presente nos estudos da Física e da Mecânica -, permanece fragmentada. Mas ocorre que os físicos também investigaram o conceito de vida, o que nos permite supor que muitos físicos consideram em algum sentido que os fenômenos biológicos são redutíveis aos físicos. Configura-se, assim, a abordagem conhecida como fisicalismo redutivo, ao qual nos referiremos posteriormente. Os estudos de Jordon (1945), Schrödinger (1944), Crick e Watson (1953), apoiados no conhecimento básico sobre a natureza química dos processos biológicos, ampliaram o plano de análise do conceito de vida e impulsionaram o nascimento da 36 biologia molecular. Deste modo, a compreensão do corpo como um objeto da física diz respeito a sua possível explanação pelas teorias da mecânica clássica, da física quântica, empiricamente descrito por um conjunto de leis físicas e químicas. Neste sentido, o corpo seria uma coleção de massa, que, em tese, pode ser analisada individualmente. Imerso em tal contexto reducionista, o corpo pode ser considerado um objeto, composto de inúmeras partículas regidas por leis físicas, as quais determinam sua posição, orientação e mudanças no espaço. Essas “ações” ou “estados” do objeto corpóreo são resultado de interações manipuladas por modelos teóricos da física, como por exemplo, a força. Da possibilidade da unidade corpórea ser decomposta em outras unidades, emerge a noção de dimensão, que descreve o espaço modelado, correspondendo à extensão como sinônimo de medida ou tamanho. Assim, observamos que o corpo é resultado da soma de partículas, cuja dimensão é esculpida por forças da física. Esta concepção foi reforçada porque, a partir dessas acepções da física e com a compreensão do fenômeno da vida, desencadeado pelo conhecimento da natureza química dos processos biológicos, foi possível intervir no plano molecular do ser vivo. Ressaltamos, contudo, que essas propriedades químicas e físicas da matéria são necessárias na descrição e constituição dos corpos, mas não nos parecem suficientes para uma descrição adequada. Consideramos insatisfatório que a noção de corporeidade se reduza a seus elementos constituintes (átomos, moléculas, células, etc.), uma vez que a organização e as relações que eles estabelecem entre si e com o meio em que os organismos estão inseridos parecem fazer diferença. Nesse sentido, investigaremos a tese segundo a qual o corpo é um sistema inerentemente complexo e irredutível às leis da física, pois é essencialmente interativo, e suas relações com o meio e seu desenvolvimento evolucionário, altamente relevantes 37 para compreender sua natureza e propriedades, não parecem ser facilmente descritíveis pelos atuais modelos da física. Por sua vez, a Biologia da modernidade clássica (dos séculos XVII, XVIII e início do XIX), em que impera uma abordagem mecanicista, não escapou ao modelo de mundo da mecânica. Mais do que isso, inclui em seu arcabouço teórico a filosofia adjacente a este modelo inspirado no mecanicismo de Descartes, Galileu, Newton, Leibniz, La Mettrie, que consideravam o universo e os organismos vivos como máquinas semelhantes aos autômatos construídos até então. Esse olhar da ciência moderna concebe o corpo como uma somatória funcional de órgãos compostos por partes decomponíveis. Dessa forma, seria, em tese, plenamente possível “desconectar” tais partes para entender o seu funcionamento e o modo como elas se relacionam. Embora o projeto científico forneça evidências em favor do mecanicismo em algumas áreas do conhecimento, algumas questões permanecem abertas. Quando se trata do problema mente-corpo, destacamos a dificuldade em conhecer e compreender não apenas a mente, mas também o corpo. No contexto mecanicista clássico, o enfoque está voltado à resolução de problemas formulados no âmbito do universo cartesiano. O corpo, enquanto um fenômeno biológico (e ecológico, poderíamos acrescentar), agente e paciente do contínuo fluxo e refluxo da experiência no meio, permanece preterido: ao adotar um modelo mecanicista para identificar o que denominamos corpo, concebendo os organismos como autômatos, a biologia reduz o corpo biológico a estruturas e componentes físico-químicos. Perspectiva que não nos parece satisfatória. Assim, desde o início do século XX, com o irromper de importantes recursos teóricos no universo científico, abre-se uma nova perspectiva teórica denominada 38 fisicalismo, definido por Kim (1999) como sendo a perspectiva segundo a qual “[...] tudo o que existe no mundo espaço-temporal é físico e cada propriedade de algo físico ou é uma propriedade física ou uma propriedade intimamente relacionada de algum modo com a sua natureza física” (p. 645). Numa ontologia fisicalista redutiva, não há nada além das propriedades e leis descritos pela física. No naturalismo fisicalista redutivo postula-se uma redução do mental (do fenomênico, do intencional ou de estados com conteúdo) ao físico. Essa redução pode tomar a forma de uma identidade entre propriedades mentais, de um lado, e propriedades físicas, de outro (ABRANTES, 2004, p.07). O fisicalismo supõe uma ontologia que deixa de lado dualismos metafísicos, o que entendemos correto no mesmo sentido apontado por Dewey, mas parte significativa das teses fisicalistas adota a abordagem reducionista, tal como ocorre no mecanicismo. Consideramos as abordagens reducionistas insuficientes e insatisfatórias para explicar a constituição dos corpos, na medida em que não parece poder explicar satisfatoriamente os fenômenos do plano macro que envolvem interações ambientais. Não é possível (nem almejamos fazer isso) simplesmente descartar a abordagem fisicalista, contudo, nos perguntamos se a corporeidade e os fenômenos que lhe são correlatos podem ser reduzidos a suas partes fundamentais: será que as relações complexas dos ecossistemas podem ser explicadas através de instrumentos do fisicalismo redutivo? Esta e muitas outras questões que envolvem as interações organismos/meio parecem ainda carecer de respostas satisfatórias. Na abordagem reducionista, como observamos anteriormente, a natureza física da corporeidade é ressaltada, e os fatores históricos, evolutivos e interativos parecem ser deixados em um segundo plano. Por isso, adotaremos uma abordagem fisicalista não redutiva, na medida em que entendemos que o corpo é resultado (inacabado e em constante transformação) de uma série de interações ao longo de uma história evolutiva 39 que ultrapassa o alcance das abordagens reducionistas do mecanicismo e do fisicalismo redutivo. Com as dificuldades em se encontrar definições abrangentes para o corpo, e não nos contentando com as explicações do fisicalismo redutivo, propomos, neste trabalho, investigar uma possível caracterização do corpo como uma instância biológica, orgânica, cognitiva, relacional, dinâmica, auto-organizada e temporal. Essa mudança, por sua vez, implica na investigação de uma série de outros problemas, como por exemplo, caracterizar e definir vida, e como os mecanismos da evolução se atualizam para a ocorrência da evolução biológica da corporeidade, a qual resulta nessa estrutura inacabada e que marca a complexidade dos organismos vivos. A vida permanece como um fenômeno extremamente peculiar e, ao longo do último século, algumas abordagens alcançaram notável êxito, apoiadas em empreendimentos interdisciplinares, embora algumas questões essenciais permaneçam sem solução. A origem e a evolução dos organismos vivos são explicadas como resultantes de uma série de complexos processos interacionais, graças aos quais surgiram as bases nitrogenadas, fundamentais na construção das moléculas de DNA e RNA. Assim, supostamente, a partir da individualização dessas complexas moléculas, que se revestiram de membranas, constituiu-se a primeira célula e deste modo, segundo Margulis (2002) “a vida permaneceu em meio ao mundo e à matéria, mas separada dele por uma membrana translúcida e semipermeável”. Conforme mencionado, DNA e RNA são cruciais para os processos orgânicos que ocorrem na Terra, mas, podemos perguntar: a vida precisa fundamentar-se neles? Esta delimitação, entendida aqui como um elemento de fronteira, mostra que ao longo do tempo evolutivo a vida não apenas evolui, mas é o resultado de toda a trajetória de uma história e essencialmente vinculada ao tempo. 40 As interações físico-químicas, em ambientes propícios, possibilitaram o aparecimento de uma rica variedade de formas vivas. Entendemos que essa variação nas formas foi resultado de complexos processos de interação entre as unidades materiais e físicas e o ambiente, subsidiados por processos biológicos, mas não redutíveis a eles, como já apontado anteriormente. Deste modo, talvez seja insuficiente entender a vida unicamente em termos de estruturas físico-químicas. “Ela [a vida] não é simplesmente matéria, mas matéria energizada, matéria organizada, matéria com uma história embutida que é gloriosa e peculiar. A vida como matéria, com necessidades inseparáveis de sua história, tem que se manter e se perpetuar, nadar ou afundar” (MARGULIS, 2002, p. 55). Embora durante muito tempo tais processos tenham sido tratados como frutos do acaso, surgiram teorias científicas, ao longo dos últimos anos, que propõem novas abordagens dentro da física, da química e da matemática, na tentativa de construção de novos paradigmas que romperam com essa noção de acaso amplamente difundida até então (SOUZA, 2007, p.83). Diante disso, Souza (2007, p. 83) propõe que, no tocante à vida, “a organização é um fato intrínseco a ela, a vida possui o poder de se auto-organizar”. A teoria da auto-organização é de especial importância para este trabalho e será tratada adiante com maior atenção. Explicar a singularidade da complexidade da evolução biológica é uma tarefa difícil. Contudo, de modo geral, somadas as interações atômicas fundamentais para a construção das moléculas de RNA e DNA que formam as estruturas celulares e favoreceram a constituição da primeira célula viva, originaram-se seres cada vez mais complexos. Essa complexificação progressiva dos organismos nos permite observar que não parecem ser apenas as partes constituintes dos organismos e suas relações que constituíram os elementos-chave dos processos evolucionários, mas as relações 41 existentes simultaneamente entre as diversas partes dos organismos, suas relações internas e suas interações com o ambiente que parecem fundamentais para constituir a unidade organizada do ser vivo. Embora as relações entre os seres vivos e o ambiente sejam facilmente observáveis, foi somente nos séculos XVIII e XIX que surgiu a idéia de que os seres vivos evoluíam e se alteravam ao longo da história, introduzida mais especificamente por Buffon, Lamarck (XVIII), Darwin e Wallace (XIX). Uma primeira noção de evolução das espécies foi proposta por Buffon (1780) mediante evidências fósseis, e posteriormente desenvolvida por Lamarck (séculos XVIII e XIX). Segundo Lamarck, grosso modo, a evolução dos organismos decorre do desenvolvimento de determinados órgãos de acordo com suas necessidades de sobrevivência em diferentes condições ambientais (esta hipótese constitui a base da célebre Lei do uso e desuso cujo principal exemplo é o desenvolvimento progressivo do pescoço da girafa). A Teoria da Seleção Natural de Darwin (1809-1882), por sua vez, sugere que entre os organismos vivos e o ambiente há um ajuste, uma harmonia fundamental para sua sobrevivência. Assim sendo, para Darwin, há uma variabilidade entre os organismos de uma mesma espécie que lhes permite se adaptarem ao ambiente moldando seus corpos progressivamente. O darwinismo está centrado na idéia de que todos os organismos hoje presentes na Terra possuem ancestrais comuns e que a seleção natural ou luta pela sobrevivência, assim só os mais fortes ou os mais adaptados sobrevivem. Há, então, uma variedade de formas vivas que se ajustam ao meio, permitindo (ou não) a adaptação da espécie. Darwin não soube explicar (também não tinha recursos teóricos para tanto) por que os seres vivos apresentavam diferenças individuais. Despertou, assim, inúmeras 42 críticas por não considerar a origem da variabilidade entre os organismos de uma mesma espécie, voltando-se somente ao conjunto de organismos que constituem a espécie. O problema só foi resolvido, em tese, a partir do século XX, com o entendimento das mutações e da recombinação genética como fonte de variabilidade entre as espécies. Com a descrição da seqüência de DNA, da posição das proteínas e do RNA, subsidiadas por eficientes processos químicos, os quais são portadores da informação genética que será transmitida às gerações futuras, seria possível, em tese, prever o comportamento de qualquer sistema vivo. Embora o código genético trabalhe para fazer cópias de si mesmo, há processos que podem levar a imperfeições na reprodução, resultando em algumas diferenças em relação a seus progenitores, o que contribui para o aumento da diversidade biológica. Nesse sentido, considera-se os genes como dirigentes, planejadores e ditadores dos eventos biológicos. Assim, sedimentou-se o conceito de gene e a maioria dos estudos mais recentes sobre os seres vivos estão centrados nos genes e no DNA. (GUIMARÃES & MOREIRA, 2000, p. 251). Sendo assim, os organismos vivos seriam regidos por um “programa” genético portador do conteúdo informacional que será transmitidos às gerações futuras. Como observa Eigen (1997), todo processo químico e de transmissão de informação é regido e controlado por um programa, cuja meta é a auto-replicação dos sistemas, os quais podem (re) produzir modificações nos sistemas futuros. Observamos, contudo, uma intersecção do todo funcional. Ao atribuir a estrutura genética (DNA, RNA e proteínas), toda a “responsabilidade” na transmissão das informações dos componentes que constituirão o todo funcional, as abordagens reducionistas novamente aparecem. No contexto fisicalista reducionista, o DNA aparece como a chave para desvendar os segredos biológicos. Compreender o funcionamento do DNA, em conjunto 43 com outras estruturas, responsáveis pela produção dos corpos em geral, é extremamente importante, contudo, o DNA, o RNA e as proteínas consideradas de forma isolada não podem explicar a vida, nem em seu aspecto local, nem nos corpos que dos organismos. É preciso considerar ainda que a abordagem genética tem um grande alcance, mas não é completa. Não há o determinismo - sistemas determináveis são vistos como uma grande máquina funcionando com o mesmo princípio de causa e efeito - , nem genético, nem do meio, mas uma interação que reorganiza a estrutura do organismo vivo. Para além das leis da física e da química, há que se pensar em algo mais, a saber, a organização, aquilo que ordena as relações entre as partes. E para compreender alguns aspectos importantes do que é a vida, temos que considerar uma estrutura central, uma forma de organização se organiza a si mesma, que é, em si, auto- organização. Essa relação corpo/vida se constrói no processo evolutivo dos organismos, cuja vida e transformação dos corpos se caracterizam pela emergência de propriedades que se atualizam continuamente na dinâmica das interações organismo/ambiente. Tal continuidade é preservada pela substituição química ininterrupta – o metabolismo – e pelas relações estabelecidas entre corpo e meio. Para Maturana e Varela (2002), no metabolismo está a essência do que acreditam ser fundamental para a vida: a autopoiese, que se refere à produção contínua de si mesmo pelo organismo. “A noção de autopoiese é um caso particular de uma classe ou família de organizações com características próprias” (MATURANA & VARELA, 2002, p.55). Ainda segundo os autores, a autopoiese caracteriza os sistemas vivos, pois todas as transformações que um organismo experiencia, para a constituição e manutenção de sua identidade, são resultantes da autopoiese. 44 Essa construção conceitual situa, assim, os organismos como unidades autônomas. Embora dependam das trocas materiais com o meio externo, os fenômenos por eles produzidos dependem da configuração pela qual sua autonomia é realizada, como resultado de um sistema contínuo de auto-reprodução. Quando se deram no planeta Terra as condições suficientes para a formação de moléculas orgânicas, surgiram também condições para a formação de unidades autopoiéticas. Então, a formação de sistemas autopoiéticos ocorreu, num certo sentido, de modo inevitável. Conforme Maturana e Varela (2002), seria esse o momento da origem da vida. Retomando o conceito de autopoiese, para seus postuladores somente as células (unidade fundamental da vida) e os organismos por ela constituídos são autopoiéticos e podem executar os processos metabólicos. Assim, na constante busca pela sobrevivência, o metabolismo se constitui como base do processo evolutivo. Os processos biológicos, como observam Guyton e Hall (2002) e Alberts (2006), funcionam a partir da célula, definida como unidade fundamental da vida, capaz de desenvolver autonomamente as funções básicas que caracterizam a vida: a reprodução, o crescimento e a morte. A evolução marcada pela aleatoriedade das interações acarretou a progressiva “construção” da vida e dos corpos. Essas relações, ao longo de milhões de anos, não podem ficar restritas à evolução através da mudança genética. Entendemos que, na constituição da vida e no escopo da evolução, os corpos e as interações espaço-temporais têm um papel primordial. Enfatizamos que, ao buscar a manutenção da vida, os corpos também se auto-transformam, irrompendo, em certa medida, em novas formas, incorporando, inclusive no sentido dos processos metabólicos, em especial o anabólico, o meio. O potencial evolutivo dos organismos 45 vivos preserva uma continuidade que incorpora as atualizações entre organismos, o ambiente e suas relações no tempo. Entendemos que considerar esta temporalidade é essencial na construção de conhecimento acerca da vida e na investigação sobre a constituição dos corpos. Trata-se de uma temporalidade vivida e sua relação espacial é incorporada ontogênica e filogeneticamente. A relação espaço-temporal, que envolve um substrato material, interconectada em uma rede de relações biológicas e evolutivas, se atualiza nas estruturas corpóreas hoje existentes. Sobretudo, destacamos que tais relações não são processos que têm um fim em si mesmos, não são lineares – a influência de um estado anterior do sistema dinâmico sobre o posterior não é diretamente proporcional (SOUZA, 2004, p. 126) - e não estão acabados. Fazem parte de um sistema aberto cuja dinâmica relacional permite a constante troca de elementos como matéria, energia e informação, que por intermédio de processos evolutivos e de trocas dinâmicas com o meio, transformaram e impulsionaram a auto-transformação dos corpos. 2.1 Relevância de processos evolucionários Há hoje certo consenso que supõe que a vida na Terra surgiu há aproximadamente 3,5 bilhões de anos e que, na violenta fase primitiva de sua história, o planeta foi habitado apenas por células bacterianas. Entretanto, há muitas dúvidas sobre o modo como isso aconteceu. Assim, aparentemente a vida teria se iniciado a partir da constituição de estruturas simples, mas capazes de auto-replicação, de átomos amplamente encontrados na natureza. À medida que surgiam as primeiras células concomitantemente já havia a interação de muitas moléculas. Contudo, algo 46 extraordinário ocorreu neste período, essas bactérias ou algumas delas envolveram-se na exploração e combinação do hidrogênio com o oxigênio, obtendo assim uma forma muito mais eficiente de energia. Surgia a fotossíntese e a respiração celular, e, assim, advém um novo tipo celular, mais complexo e mais eficiente: as células eucarióticas, distinta das procarióticas – mais primitivas – pela presença de núcleo definido e membrana. Essas células parecem ter se originado a partir de uma relação simbiótica. A bióloga Lynn Margulis (Gaia, s/d), propõe a teoria simbiótica, apoiada por descobertas sobre a natureza e a evolução das mitocôndrias e cloroplastos. Essa teoria propõe que as células surgiram após eventos sucessivos de fagocitose entre procariotos. Contudo, algumas dessas bactérias primitivas, por uma razão desconhecida, acabaram não sendo digeridas por seus predadores e permaneceram em seu interior desfrutando da afluência de compostos semi-digeridos presentes no citoplasma dessas células. Com o passar do tempo, os procariotos fagocitados passaram a oferecer a suas células capturadas vantagens, como uma maior eficiência de utilização da energia contida nos alimentos, através da fotossíntese e da respiração celular. Isso fez com que essas células obtivessem vantagens sobre suas vizinhas, que dependiam de formas pouco eficientes para a obtenção de energia. Essa passagem do organismo unicelular para organismo multicelular, através de estratégias químicas e biológicas, progressivamente permitiu complexas formas de vida produzindo corpos também mais complexos: os organismos mais simples passaram por um prolongamento evolutivo intenso, assim como por adaptações biológicas enquanto estratégias de manutenção, transformação de energia, movimentos, cooperação e, em síntese, segundo Margulis (Gaia, s/d, p. 92), já caminhando em direção ao “moderno repertório da vida”. 47 Estes sistemas químicos evoluíram para sistemas biológicos através de magníficas estratégias metabólicas. Usavam energia e material externos para se reproduzirem, manterem-se e se auto-refazerem. Mas, estas células avançaram e se constituíram de material genético (DNA, RNA e proteínas) e assim, através da reprodução, envolvendo crescimento e divisão celular, buscavam a manutenção e sobrevivência do sistema vivo. “Nosso desejo instintivo de viver está diretamente relacionado com o imperativo autopoiético de sobreviver, que se relaciona, por sua vez, com a ânsia de dissipação de calor”. (MARGULIS & SAGAN, 2002, p. 91). Esses sistemas abertos que recebem continuamente energia e matéria do meio externo estão longe do equilíbrio. Contudo, a desordem interna intrínseca à dinâmica da corporeidade impulsiona o organismo a acessar energia e matéria incessantemente, na constante busca pela sobrevivência. De fato, ressaltamos que o metabolismo é uma propriedade da vida desde seus primórdios e entendemos ser um aspecto central para a o entendimento de sistemas dinâmicos que evoluem no domínio do tempo e para a atualização biológica da corporeidade. Estes sistemas, em particular, são flexivelmente passíveis de mudanças, emergindo assim novos padrões que caminham rumo à complexificação. Partindo deste pressuposto e apoiados em Haken, Kelso (1997) e Debrun (1996), inserimos a teoria da auto-organização, isto é, a abordagem que entende haver sistemas (como os organismos, por exemplo) que não resultam da ação intencional de um supervisor todo-poderoso e nem devem a um controlador central a determinação de seus padrões de organização. Pelo contrário, em sistemas auto-organizados novos padrões emergentes podem surgir em um plano macroscópico das relações de elementos constituintes do sistema. 48 Todavia, a base conceitual ainda dominante em biologia não se sustenta no paradigma da auto-organização, mas tem como foco a concepção de que os organismos vivos são controlados por um programa genético e não como parte de um sistema aberto. Assim, todos os processos envolvendo a organização biológica, sob esse ponto de vista, obedeceriam um “programa genético” (HAKEN & KELSO, 1997, p. 181). Ao considerar esses pressupostos, organismos vivos estariam cada vez mais próximos da concepção mecanicista do fisicalismo redutivo. Além disso, todos os conhecimentos envolvendo os sistemas vivos seriam, nessa perspectiva, causalmente direcionados por esse programa. Da mesma forma, noções como causalidade, determinismo ganham força e, nesse contexto, os fenômenos envolvendo organismos vivos seriam rigidamente ditados pelas leis da física e da química. A corporeidade e sua constituição seriam resultados de um programa genético que determinou as propriedades atualmente apresentadas pelos diversos corpos dos organismos. 2.2 Seleção natural e programa genético Já mencionamos que a tradição mecanicista que imperou na física até o século XIX foi extremamente influente na biologia e na teoria evolucionária (e, devemos acrescentar, até em seu correlato posterior, o neodarwinismo). Mencionamos que a hipótese evolucionária de Darwin era baseada na idéia de seleção natural, neste processo, dadas certas condições – a replicação, a variação, a competição e a adaptação –, os organismos com maiores chances de sobreviver e mais adaptados ao ambiente sobreviveriam, com tendência à complexificação, resultando na evolução das espécies e possível transformação dos organismos em sintonia com a dinâmica ambiental. 49 A mudança evolutiva pressupõe uma origem única de vida na Terra, e através de abundante produção de variação genética e combinação bem adaptada de caracteres hereditários a partir de formas mais simples de vida, originam-se as próximas gerações. Entretanto, Darwin não sabia nada sobre cromossomos e genes e, com as descobertas da reprodução por meio dos genes (DNA), a teoria darwiniana foi acrescida do conceito de mutação genética. Neste contexto, “a evolução com base na seleção natural implica geração da informação” (EIGEN, 1997, p.19). Desta forma, segundo os pressupostos de Eigen, foi através desse programa genético/informacional em ambientes propícios que os sistemas vivos se constituíram durante a evolução. Assim sendo, essa perspectiva evolucionária e neodarwinista dominou e domina as bases conceituais em biologia e atrelada ao modelo da física, caracterizou os organismos como sistemas vivos variando sua organização e complexidade. O que se impõe ao sistema é a dependência da informação genética e a transmissão dessa informação aos descendentes. Parece-nos que o abordagem genética de transmissão de informação é uma perspectiva fisicalista redutiva se não comportar a possibilidade de surgimento de novidades. Esse processo de formação de sistemas complexos a partir de regras simples ocorrendo através do tempo é usado para descrever fenômenos em uma escala macroscópica. Podemos dizer, então, que o fisicalismo intrínseco ao processo evolucionário/neodarwinista sustenta, em contrapartida a explicações metafísicas, que os fenômenos da vida são fundamentalmente constituídos de matéria orgânica e emergem como resultado de interações entre os organismos e o meio ambiente. Essa ordem biológica sustentada pela estabilidade de moléculas orgânicas é essencial à vida e à evolução dos organismos vivos. Contudo seria suficiente para 50 explicar as peculiaridades dos seres vivos, especialmente aquelas relativas a fenômenos culturais em sentido amplo? Para KAUFFMAN (1997, p. 103), “o comportamento ordenado é uma média, e ele não decorre do comportamento de moléculas individuais”. Assim, na perspectiva da auto-organização, um ser vivo é um sistema aberto e sua energia é constante, pois há incessante troca com o meio de forma que a quantidade de energia que entra no sistema (por meio da alimentação, por exemplo) é tal qual a que sai (ao gastar energia). Essa corrente ininterrupta de trocas de componentes conduzem à emergência de complexos comportamentos de reações químicas de não equilíbrio. Assim, é nesse fluxo de energia e matéria, longe do equilíbrio, que os sistemas vivos se auto-organizam (Schneider e Key, 1997, p. 188. No próximo capítulo abordaremos a Teoria da Auto-Organização detalhadamente). Ao considerar essa ininterrupta troca de energia do meio interno com o meio externo, esses sistemas biológicos passam por reorganização interna que pode resultar em modificações do comportamento. Entretanto, essa ordem na transmissão de informação baseada nos pressupostos do citado “programa genético” e esse comportamento ordenado podem não ser suficientes para explicar a evolução dos sistemas. A essa mudança de organização, apoiados em Schrodinger (1944), Ashby (1946), Kauffman (1997) e Kelso & Haken (1997) consideramos imprescindível o papel da auto-organização nos processos evolutivos de sistemas biológicos. Desde Darwin, passamos a acreditar que a seleção é a única fonte de ordem na biologia. Os organismo, passamos a acreditar, são “engenhocas”, casamentos ad hoc de princípios do projeto, acaso e necessidade. Considero esta visão inadequada. Darwin não conhecia o poder da auto organização. De fato, nós mesmos mal vislumbramos esse poder. Tal auto-organização, desde a origem vida até a sua dinâmica coerente, deve ter um papel essencial na história da vida, e na verdade, em qualquer história de vida. Mas Darwin também estava certo. A seleção natural encontra-se sempre em ação. Portanto, precisamos repensar a teoria evolucionária. A história natural da vida é algum tipo de casamento entre a auto-organização e a seleção. Precisamos ver a vida de uma maneira nova e interpretar novas leis para seu desdobramento. (KAUFFMAN, 1997, p. 132. Grifo nosso). 51 Mesmo admitindo que os organismos vivos são sistemas abertos – abertos ao fluxo de matéria, energia e informação -, a biologia marcada pelo mecanicismo, e posteriormente pelo fisicalismo redutivo, tendeu a explicar os comportamentos do sistema via causalidade. Dessa forma, os processos de auto-organização permaneceram recebendo pouca atenção. Nos modelos não reducionistas, os sistemas vivos são sistemas de não equilíbrio, o que permite a emergência de novos padrões não lineares. Sistemas não- lineares “são aqueles cuja influência do sistema dinâmico sobre o posterior não é diretamente proporcional, envolvem laços de reatroalimentação que podem influenciar o sistema globalmente” (SOUZA & OLIVEIRA, 2004, p. 126). Na tentativa de lidar com o problema relacionado ao grande universo material que conduz à constituição e emergência de novos padrões, as estruturas biológicas se auto-organizam. Nessa passagem para os sistemas auto-organizados aparecem princípios de comportamentos coletivos, instituindo-se à totalidade das relações um significado que anteriormente era buscado em suas partes. Ao deslindar as bases moleculares da vida e o entendimento da estrutura do DNA, as explicações das características biológicas implicam um caráter pré- determinado. Ao tratar essas estruturas (células, genes) separadamente e explicar os fenômenos a partir desses elementos, as atividades coordenadas do sistema como uma totalidade ficam perdidas nos constituintes fundamentais. O que queremos ressaltar é que a dinâmica evolutiva da constituição da corporeidade parece envolver processos auto-organizativos. 52 A teoria da auto-organização, como mostraremos no próximo capítulo, permite conceber uma série de interações que não são lineares e, sobretudo, são emergentes2. Dessa auto-organização interna emergem padrões diferentes dos seus constituintes e se caracterizam pelo surgimento de novos comportamentos que passam a constituir o sistema. O recurso explicativo dos processos auto-organizados parece preencher algumas das lacunas deixadas pelo neodarwinismo que aborda as mutações genéticas como obra do acaso, pois, em se tratando de organismos vivos, a organização parece ser um fato resultante de inúmeras interações ambientais. 2.3 O corpo na perspectiva da fisiologia As descobertas do século XX, segundo uma abordagem biológica mecanicista, investigam a natureza da vida, atribuindo às células a formação de todas as coisas vivas. Nesta visão, como descrito por Guyton & Hall (2002), o corpo é na realidade, um “ordenamento social” de trilhões de células, que se organizam em estruturas funcionais variadas. Mesmo os organismos unicelulares, por mais primitivos que pareçam, apresentam uma complexa estrutura biológica cujo funcionamento interno é extremamente organizado. Assim, organelas especializadas trabalham de maneira orquestrada para a sobrevivência, auto-manutenção, alimentação, locomoção e reprodução do organismo. Cabe acrescentar que parece haver unidades universais e processos comuns essenciais para todas as formas de vida. E, embora a enorme variedade de aparências 2 A propriedade de emergência, ou comportamento emergente, é tipicamente entendida como um processo ou comportamento que surge ao nível macro do sistema, mas que se mostra irredutível aos comportamentos e propriedades de suas partes (Wolf & Holvoet, 2004). 53 dos seres vivos possa parecer ilimitadamente variada, suas estruturas fundamentais parecem ser muito semelhantes. Neste sentido, apesar das células do corpo diferirem entre si, algumas características básicas são similares, como as que sustentam os mecanismos de controle, mantendo as condições do corpo. Essa organização geral e os meios pelos quais as partes do corpo atuam harmonicamente contribuem para aquilo que essa biologia denomina manutenção do organismo vivo, sustentado pelo corpo funcional. Nesse contexto, o corpo aparece como espaço genérico da fisiologia, da biofísica e da bioquímica, somatória de peças de um sistema mecânico de organização funcional. Essa constância nos mecanismos fundamentais nas mais variadas espécies é marcada por ligações peculiares, nas quais organismos transferem informações específicas a seus descendentes: a hereditariedade. Esse fenômeno é essencial na definição de vida e do ponto de vista biológico. Embora o corpo humano seja constituído por incontáveis números de células, foi gerado a partir da dissensão de uma única célula fecundada, logo uma célula fecundada é o veículo de toda a informação hereditária que definirá o indivíduo da espécie. A natureza química dos processos biológicos instituiu-se como ponto de partida para as investigações acerca da compreensão da organização celular e de suas funções subjacentes. Neste processo, destaca-se a informação genética, podendo ser armazenada e transferida de geração para geração (Eigen, 1995). As estruturas químicas que dirigem esses processos encontram-se codificados em moléculas no interior da célula: o DNA. Assim, é inegável que o sistema se desenvolve em consonância com as informações genéticas, nosso objetivo é ressaltar, porém, que dentro de um campo de possibilidades 54 restrito pelas informações genéticas, há uma margem que permite uma certa plasticidade nas relações ambientais do organismo. Assim, para Eigen (1995, p.18) as reações químicas de um ser vivo seguem padrões baseados na auto-replicação, processo pelo qual a informação é transferida de geração para geração, na mutação, enquanto possibilidade de alteração da informação, e no metabolismo. Essa capacidade de uma dada forma de vida gerar descendentes, com possibilidades de variação mediante processos auto-organizados, permitiu a evolução de todas as formas de vida constituídas de material genético. As células vivas, sem exceção conhecida, armazenam informações hereditárias em moléculas de DNA. Esse código químico, além de controlar a hereditariedade, dirige o funcionamento das células do organismo, determinando as substâncias sintetizadas pela célula. O gene é um dos fatores que determina a forma ou função de uma dada característica qualquer dos seres vivos, pois por meio dele ocorre a produção de proteínas. O controle dessas reações químicas é realizado por intermédio de outro elemento, o RNA. O sistema genético – DNA – desempenha papel importante em todos os processos da vida, mas não podemos esquecer que isso não significa que todos os processos da vida sejam redutíveis ao sistema genético. No último século, a biologia genética tornou-se o ponto central nos estudos em biologia, e associados ao evidente sucesso na descrição e entendimento dos processos envolvendo o sistema genético-DNA, proporcionaram um reforço às abordagem mecanicista e fisicalista redutiva dos organismos vivos. As descobertas envolvendo os componentes e estrutura do DNA impulsionaram análises mecanicistas e reducionistas dos fenômenos que envolvem a vida e as características biológicas são explicadas em termos de suas unidades. 55 Essa abordagem reducionista que ignora o sistema como um todo e atribui ao sistema genético a base e explicação para o que constitui a vida consolida a negligência ao conjunto, em especial, ignora fatores importantes, que entendemos serem essenciais para a constituição dos organismos vivos. Ao ignorar o fato de que o organismo vivo é um sistema complexo de múltiplas redes interacionais, dispostas em múltiplos níveis que interagem para constituir o todo, esse modelo reducionista mantém um forte compromisso ontológico com o mecanicismo. Nessa perspectiva, o conjunto de mecanismos reguladores determina as características celulares, controlando todas as etapas do desenvolvimento do organismo, desde a fertilização até o todo funcional do corpo. Na tentativa de manutenção do equilíbrio desse todo funcional, as células se organizam em diversos sistemas ou aparelhos, os quais, constituídos por órgãos se arranjam em conjunto para realizar determinadas funções. Todos esses ajustamentos atuam na manutenção do equilíbrio interno e no esforço de adaptação a mudanças. Na abordagem fisicalista não redutiva, a manutenção do equilíbrio homeostático é a propriedade de sistemas abertos regularem o seu ambiente interno, mantendo uma condição estável mediante diversos ajustes de equilíbrio dinâmico mantidos pela interação de processos de regulação. Os processos pelos quais o organismo mantém esse equilíbrio baseiam-se em reações químicas que ocorrem em todas as células. Os sistemas vivos adquirem e utilizam energia para desempenhar as suas várias funções necessárias para a manutenção do estado vivo. Essa organização estrutural e funcional baseada em nível celular por reações químicas e físicas que ocorrem no interior destas células propiciam o funcionamento do corpo dos seres vivos na incessante busca pela sobrevivência. 56 Já numa perspectiva reducionista, a complexidade dos seres vivos como sistemas moleculares e celulares (Guimarães, 2001, p. 47) calcados em uma visão mecanicista essencialmente estática, exibe uma estrutura baseada em leis e regularidades. Esse processo biológico contínuo quanto à sobrevivência do organismo vivo é determinístico e aparentemente se reduz a leis físico-químicas. Neste contexto, o corpo parece reduzir-se às interações moleculares. Atualmente observa-se um amplo conhecimento da organização celular sobre o enfoque molecular, fato este que tornou possível enfocar questões fundamentais da biologia. Entretanto, as estruturas básicas que compõem um sistema biológico são formadas por átomos comuns, dispersos por todo meio externo, não sendo exclusivos aos sistemas vivos, sejam eles átomos de hidrogênio, carbono ou qualquer outro. É interessante ressaltar que, apesar do organismo vivo ser uma estrutura independente, há uma constante troca de componentes internos da célula com o meio externo e mesmo assim ela permanece independente. Neste sentido, os constituintes celulares estão em ininterrupta transformação. Os átomos intracelulares estão em fluxo e refluxo constante de troca com o meio, contudo há um padrão que permanece. É nesse fluxo e refluxo que o organismo vivo enquanto um contínuo se mantém. Assim sendo, a vida e, sobretudo os corpos, não parecem poder ser reduzidos satisfatoriamente à mera junção e disjunção de suas partes. Ao refletirmos sobre as transformações epistêmicas que vêem ocorrendo ao longo do século XX na biologia, observamos que esta passou a considerar que organismo e ambiente coexistem, embora a concepção mecanicista que trata os organismos vivos tal como máquinas, arranjados estruturalmente por peças bem definidas que podem ser montadas e desmontadas, seja a base conceitual dominante. No 57 tocante à fisiologia e à anatomia, a aproximação ao mecanicismo clássico parece-nos mais evidente. Reduzir o corpo a suas interações moleculares significa defender que o corpo assume o papel de local ou espaço genérico de interações celulares e moleculares regidas por leis físico-químicas. Neste ponto, observamos que avançar no conhecimento no plano da bioquímica e da biofísica acarreta um afastamento da visão dinâmica e relacional dos organismos vivos. Aprofundamos o conhecimento nos detalhes desses organismos, contudo, as relações são apenas um pano de fundo para a construção de verdades científicas. Reduz-se o corpo à sua unidade fundamental – a célula – deixando-se de lado as múltiplas relações que o próprio corpo estabelece enquanto sistema com uma identidade. Nesse âmbito, confunde-se o corpo com seus elementos constituintes, sem levar em conta que o todo funcional apresenta propriedades que não podem ser isoladas em suas partes. Entendemos que, ao desconstruir a totalidade, suas partes pouco significado terão e até mesmo mínima função vão apresentar, contudo, ao considerar o todo funcional em um plano macroscópico estaremos considerando uma estrutura biológica, dinâmica, auto-organizada e informacio