FACULDADE DE FILOSOFIA E CIÊNCIAS UNESP - UNIVERSIDADE ESTADUAL PAULISTA “JÚLIO DE MESQUITA FILHO” GABRIELA DE FREITAS DIREITOS HUMANOS EM TEMPOS SOMBRIOS: REFLEXÕES SOBRE NACIONALISMO E APATRIDIA EM HANNAH ARENDT. MARÍLIA 2022 GABRIELA DE FREITAS DIREITOS HUMANOS EM TEMPOS SOMBRIOS: REFLEXÕES SOBRE NACIONALISMO E APATRIDIA EM HANNAH ARENDT. Dissertação apresentada ao Programa de Pós-Graduação em Filosofia como parte das exigências para obtenção do título de Mestre em Filosofia pela Faculdade de Filosofia e Ciências, Universidade Estadual Paulista (UNESP), Campus Marília. Área de concentração: História da Filosofia, Ética e Filosofia Política. Orientador: Prof. Dr. Ubirajara Rancan de Azevedo Marques MARÍLIA 2022 F866d Freitas, Gabriela de Direitos Humanos em tempos sombrios: : reflexões sobre nacionalismo e apatridia em Hannah Arendt. / Gabriela de Freitas. -- Marília, 2022 62 p. Dissertação (mestrado) - Universidade Estadual Paulista (Unesp), Faculdade de Filosofia e Ciências, Marília Orientador: Ubirajara Rancan de Azevedo Marques 1. Direitos Humanos. 2. Política. 3. Nacionalismo. 4. Apátridas. I. Título. Sistema de geração automática de fichas catalográficas da Unesp. Biblioteca da Faculdade de Filosofia e Ciências, Marília. Dados fornecidos pelo autor(a). Essa ficha não pode ser modificada. GABRIELA DE FREITAS DIREITOS HUMANOS EM TEMPOS SOMBRIOS: REFLEXÕES SOBRE NACIONALISMO E APATRIDIA EM HANNAH ARENDT. Dissertação apresentada ao Programa de Pós-Graduação em Filosofia da Universidade Estadual Paulista “Júlio de Mesquita Filho” (UNESP), como requisito parcial para obtenção do título de Mestre em Filosofia. Linha de Pesquisa: Conhecimento, ética e política. BANCA EXAMINADORA: ___________________________________ Prof. Dr. Ubirajara Rancan de Azevedo Marques Orientador Universidade Estadual Paulista “Julio de Mesquita Filho” Faculdade de Filosofia e Ciências – Campus Marília ___________________________________ Prof. Dr. Hélio Alexandre da Silva Universidade Estadual Paulista “Julio de Mesquita Filho” ___________________________________ Prof. Dr. José Antônio Martins Universidade Estadual de Maringá Marília, 26 de agosto de 2022. Marília, 26 de agosto de 2022. AGRADECIMENTOS Primeiramente, agradeço aos meus pais, Sonia e Benevides, base de tudo que conquistei até aqui; nenhum valor monetário seria capaz de pagar tudo o que fizeram e ainda fazem por mim. Às minhas irmãs, Taoane e Isabela, e ao meu irmão Matheus, que me apóiam e torcem pelo meu sucesso. Aos meus avós, Marina e Sebastião (em memória), que dedicaram todo o amor possível aos seus netos. Ao meu companheiro Davi, pelo amor e tranquilidade que acrescenta em minha vida. Agradeço ao Departamento de Filosofia da Unesp de Marília e seu Programa de Pós-Graduação, por me oportunizar a realização deste trabalho. Ao Professor Dr. Ubirajara Rancan de Azevedo Marques que me acolheu no meio do caminho, dando luz a essa caminhada. Ao Professor Dr. Helio Alexandre da Silva por aceitar participar da banca e pelas valiosas contribuições que me apresentou durante esse processo. Ao Professor Dr. José Antônio Martins, que me acompanhou desde a graduação, me despertou o interesse nas aulas de política e me oportunizou a iniciação científica, ponto crucial para a realização da atual pesquisa. Ao Professor Tiago Fonseca, o ―culpado‖ de tudo, que me introduziu às maravilhas e as tristezas da filosofia e que inspirou minha trajetória acadêmica; espero, um dia, conseguir ser uma educadora tão boa quanto o senhor. Agradeço a todos que, direta ou indiretamente, me auxiliaram na construção desse trabalho; com certeza, uma obra feita por muitas mãos e que compartilho os acertos com todos que até aqui me sustentaram. Quanto às falhas e imperfeições assumo sozinha toda a responsabilidade. Nada e ninguém existe neste mundo cujo próprio ser não pressuponha um espectador. Em outras palavras, nada do que é, à medida que aparece, existe no singular; tudo que é, é próprio para ser percebido por alguém. Não o Homem, mas os homens é que habitam esse planeta. A pluralidade é a lei da Terra. Hannah Arendt (2000, p. 17). RESUMO A pesquisa tem por objetivo analisar o fundamento dos direitos humanos em ―As origens do totalitarismo‖ de Hannah Arendt, bem como o porquê de tais direitos se apresentarem de modo frágil em sua aplicação efetiva. Observando como a noção de direitos humanos evoluiu no decorrer da história, o presente estudo busca retomar leituras de certos contextos em que a fragilidade de tais direitos ficou mais explícita, fazendo-o, sobretudo, por meio da leitura crítica que Hannah Arendt apresenta em algumas de suas obras sobre o mesmo tema. O cenário de uma democracia instável implica na formação de um contexto propício para o enfraquecimento da efetivação dos direitos humanos, visto que o cumprimento destes está diretamente ligado à relação que o sujeito mantém com o Estado. Visando compreender de que maneira os direitos humanos se apresentam em um contexto de ruptura política, o trabalho em pauta não se ocupa com questionar a importância das declarações de direitos na emancipação e resistência ao arbítrio, mas, sim, com pensar criticamente a respeito de sua efetividade quanto à tutela jurídica da vida humana. Palavras – chave: Direitos Humanos; Estado; política. ABSTRACT The research aims to analyze the foundation of human rights in ―Origins of totalitarianism‖ Hannah Arendt, as well as why such rights are fragile in their effective application. Observing how the notion of human rights has evolved over the course of history, the present study seeks to resume reading of certain contexts in which the fragility of such rights became more explicit, doing it, above all, through the critical reading that Hannah Arendt presents in some of his works on the same topic. The scene of an unstable democracy implies the formation of a context conducive to the failure of the realization of human rights, since the fulfillment of these is directly linked to the relationship that the subject maintains with the State. In order to understand how human rights are presented in a context of political rupture, the work in question is not concerned with questioning the importance of declarations of rights in emancipation and resistance to arbitrariness, but with thinking critically about their effectiveness regarding the legal protection of human life. Keywords: Human rights; State; politcs. SUMÁRIO 1. INTRODUÇÃO ................................................................................................9 2. POLÍTICA, LIBERDADE E ESTADO..............................................................11 2.1 O papel da política na realização do sujeito..................................................11 3. O PROBLEMA DA EFETIVAÇÃO DOS DIREITOS HUMANOS....................18 3.1 O direito divino como fundamento do direito natural......................................18 3.2 A importância da Pluralidade para o desenvolvimento dos Direitos Humanos 22 3.3 A desnacionalização como ferramenta para a desumanização e o caso dos apátridas........................................................................................................29 4. DIREITO E CIDADANIA, UMA RELAÇÃO NECESSÁRIA ...........................39 4.1 A crise do Estado-nação................................................................................39 4.2 O direito a ter direitos.....................................................................................44 4.3 Território e Mundo..........................................................................................51 5. CONSIDERAÇÕES FINAIS .............................................................................56 6. REFERÊNCIAS ...............................................................................................59 9 1. INTRODUÇÃO Em sua obra Origens do Totalitarismo, Hannah Arendt analisa as experiências e as condições que possibilitaram o surgimento de uma forma de opressão política que, em sua essência, difere de todas as outras: o totalitarismo. Segundo Arendt, é fundamental que nos voltemos para o passado para compreendermos o presente, em um processo de reapropriação seletiva de fatos que podem esclarecer os acontecimentos do presente depois de recuperados do esquecimento e re-iluminados pela nova visão retrospectiva. Dentre os fatos analisados por Arendt nessa obra, buscar-se-á analisar, principalmente, no capítulo intitulado ―O declínio do Estado-nação e o fim dos direitos do homem‖, a questão dos direitos humanos, e como a efetivação desses direitos se relaciona com o cenário político vigente dentro da filosofia arendtiana. A autora chama atenção para o fato de que os direitos humanos, conforme declarados no século XVIII, apresentam um vício já em sua fundamentação. Segundo Arendt, a Declaração dos Direitos do Homem significou o prenúncio da emancipação do homem, porque foi a partir daquele momento que ele se tornou a fonte de toda a lei. Em outras palavras, o homem não estava mais sujeito a regras provindas de uma entidade divina ou asseguradas meramente pelos costumes da história, mas ele havia se libertado de qualquer tutela e, doravante, dotara-se de direitos simplesmente por ser Homem. Dessa forma, esses direitos passaram a ser tidos ou mesmo definidos como inalienáveis, pois pertenciam ao ser humano onde quer que estivesse. A definição de direitos humanos como direitos que emanam do Homem ou de uma ideia de homem – isto é, de um ser abstrato e indefinível –, entretanto, opõe-se à condição humana da pluralidade, essencial à ação e à dignidade humana. Nesse 10 sentido, o indivíduo isolado continua sendo homem; porém, ao separar-se do espaço público e da companhia de outras pessoas, ele não pode mais se revelar e confirmar sua identidade. De fato, na filosofia arendtiana, são as relações estabelecidas no espaço público com os diversos homens que representam a atividade dignificadora do ser humano. No espaço público, o homem iniciará relações únicas, marcadas por sua existência unívoca e iluminadas por suas particularidades. Nessa esfera, cada ação tem sua importância exatamente porque é fruto da atividade livre de cada indivíduo específico, revelando a identidade única e singular daquele que age. A ação política, advinda da liberdade e da singularidade de cada um, revela o seu agente aos demais, e confirma para si mesmo quem de fato ele é. Sem essa revelação, o homem não mais faz parte da história, e após a sua morte, nada existe que possa recuperar sua existência ou sua memória. Sem a companhia dos iguais, a relação do eu com o mundo se parte pela falta de ratificação do senso comum. Por isso, apenas quando o indivíduo está em companhia de outros homens diferentes de si, em um espaço público, é que ele realmente age, confirmando sua singularidade e sua identidade com o advento de relações inéditas que refletem a si mesmo como agente unívoco na totalidade da comunidade humana. E é somente nesse momento que ele atualiza sua dignidade (ARENDT, 2006). 11 2. POLÍTICA, LIBERDADE E ESTADO. Neste capítulo, buscar-se-á introduzir e analisar o papel da política na vida do sujeito, sua estrutura de realização e de que maneira o Estado como instituição deve configurar-se para garantir a realização de tal atividade humana. 2.1 O papel da política na realização do sujeito Arendt define (2010, p. 31) a esfera pública, em poucas palavras, como o espaço que possibilita o aparecimento dos cidadãos através da ação e do discurso. É no âmbito público – esfera da liberdade e felicidade pública – que se realiza e configura a política, na medida que os cidadãos vêm a público para agir e debater uns com os outros. Ocorre, entretanto, o que Arendt nos apresenta em sua obra como o ―encolhimento da esfera pública‖, fenômeno da modernidade que tende a se tornar mais agudo na medida que o modelo de organização do espaço público é moldado pelos partidos políticos em detrimento de outras formas de participação política. Diante das catástrofes do século XX, a constatação de que a destruição total – a eliminação da Humanidade e de toda vida orgânica da face da Terra – é uma possibilidade real fez não apenas com que se questionasse o que representa uma decisão "política" em uma guerra de extermínio, mas principalmente reforçou uma já tradicional aversão pela política e o anseio geral pela ilusória extinção da mesma. Dessa forma, é possível afirmar que o fato de a "política" ter levado à desumanização completa dos indivíduos nos campos de concentração e de ter como resultado possível a extinção do fenômeno humano está diretamente ligado aos preconceitos contra a mesma nas sociedades atuais, vez que a política passa a ser identificada como violência, com domínio desenfreado de uns sobre outros 12 norteados por interesses individuais, na medida que se tem por evidente que "todo poder corrompe e que o poder absoluto corrompe ainda mais". Segundo a autora, na obra ―O que é política?‖, a passividade, a apatia dos indivíduos e a renúncia ao exercício da cidadania foram cultivadas; essa "condenação do poder" corresponde a um "desejo inarticulado das massas" e tem gerado a "fuga à impotência" (ARENDT, 2006, p.28). Para Arendt, a política não deve configurar-se apenas como relação de domínio, nem deve ser baseada na distinção entre governantes e governados, tampouco ser mera violência, mas, sim, ação de comum acordo, ação em conjunto, sendo reflexo da condição plural do homem e fim em si mesma. A ação não é um meio para objetivos mais elevados, como, por exemplo, a preservação da vida; ela significa, na verdade, a expressão da liberdade. Ao se desconhecer a "verdadeira política" e se confundir "aquilo que seria o fim da política com a política em si" (ARENDT, 2006, p.25), a esfera da liberdade também passa a ser prejudicada. Tais preconceitos acerca da política não são novidade, vez que verifica-se certa tradição de identificação da política com domínio, com violência, desvinculando política e liberdade. Nesse sentido, Arendt aponta que não havia sequer o interesse pela questão da liberdade na Antiguidade. Assim, a liberdade é pensada como interioridade, sendo este o único meio de aqueles que não possuíam um lugar no mundo sentirem-se, de certa forma, livres, o que possibilitava aos homens serem, simultaneamente, escravos e livres. Mais especificamente, a liberdade em Epicteto, por exemplo, resume-se a ser livre dos próprios desejos, a desejar somente aquilo que se pode obter, em oposição à concepção de que liberdade seja fazer tudo o que se deseja. Por outro lado, o conceito de autarkeia, de Aristóteles, diz respeito a auto- suficiência da polis na promoção do bem comum para seus cidadão, enquanto que a 13 eleuthería refere-se a possibilidade de ócio do sujeito, isto é, a desobrigação com questões relacionadas a ofícios ou ocupações cotidianas permite ao sujeito o tempo livre para ocupar-se de si mesmo ou da polis. Por outro lado, liberdade entre iguais foi justamente no que se baseou a pólis grega, pois, diferentemente do âmbito doméstico em que reinava o despotismo e a desigualdade, do espaço privado destinado à satisfação das necessidades da vida, no qual era justificada a violência e natural o domínio de uns sobre outros, do pai sobre esposa, filhos e escravos, a pólis surge como um espaço em que a distinção entre governantes e governados não fazia sentido, no qual todos aqueles que igualmente obtiveram libertação das necessidades vitais podiam tornar-se livres, podiam participar e construir um mundo comum através de feitos e palavras. Desse modo, percebe-se que a liberdade não era obtida no relacionamento do eu consigo mesmo, mas sim na interação com seus semelhantes, pressupondo tanto a presença de outros indivíduos, quanto a existência de um espaço público organizado que permitiria a todos os homens livres aparecer, isto é, agir. Compreende-se, então, porque Arendt considera a liberdade e a ação política como sinônimas, haja vista que não é enclausurando-se em si mesmo, utilizando-se unicamente da capacidade de pensar ou de querer que um indivíduo passa a ser livre. Segundo a autora, liberdade existe na medida em que a condição plural do homem seja considerada, sendo nada mais que ação; noutras palavras, o indivíduo só é livre enquanto está agindo: nem antes, nem depois. Resta então dizer que o que pretendemos enfatizar ao analisar o conceito de política para Hannah Arendt é que o mesmo implica não só a possibilidade, latente em todos os seres humanos, de "começar", de criar algo novo, fazendo surgir o 14 inesperado, o imprevisível, mas, também, e não de maneira secundária, que a ação política nunca se realiza no isolamento, sempre é uma ação em conjunto, configurando um acordo entre iguais. Dessa forma, por mais que a iniciativa possa ser obra de um único indivíduo, a relação com o outro se mostra necessária para que a ação seja concluída, havendo então uma complementaridade. Por conseguinte, a política, apesar de ser iniciada pela espontaneidade humana, surge como relação, existindo entre os homens; noutras palavras, não é da essência do homem, considerado isoladamente, ser um "animal político" como afirmado por Aristóteles (Pol. 1253a 5); mas, por viver num mundo plural, a presença do outro é uma marca indelével do fenômeno humano. Correlata à ação política está a busca por distinção, isto é, a luta por reconhecimento da própria singularidade, pois, segundo Arendt, é na coragem de agir e aparecer no espaço público que o homem revela quem é, que ele confirma a sua própria identidade e a imagem que possui de si mesmo. Sem essa dimensão compartilhada, não seria possível ao homem saber-se real, ou seja, ele não poderia confiar em seu aparato sensorial; noutros termos, não saberia se existe ou se não passa de um sonho, tal como constatou Primo Levi, ao falar sobre os efeitos que o regime totalitário, criado pelas leis fascistas, impuseram a si por ser judeu, já que ele teria sido condenado a "viver num mundo só [s]eu, um tanto apartado da realidade, povoado de racionais fantasmas cartesianos" (LEVI, 1988, p.11). A aniquilação do espaço comum iniciada com a atomização da sociedade de massas e potencializada com os regimes totalitários é concomitante à eliminação dos parâmetros normativos que são configuradores do político, vez que sem a mediação do Direito – enquanto liberdade e igualdade – só há poder que devora a si 15 mesmo (LAFER, 1988, p 150). O regime totalitário nega não apenas o princípio do Direito, mas também sua simbologia, o que nos possibilita considerá-los como a perpetuação da exceção, haja vista que eventuais criações de leis positivas não conferem legitimidade aos regimes de terror, permitindo concluir que se não existe política tal como Arendt a concebe, tampouco há Direito nos regimes totalitários. Nesse sentido, por mais que haja formalização jurídica em um regime totalitário, por mais que Hitler tenha chegado ao poder observando os procedimentos legais, tendo o partido nazista obtido aproximadamente 13 milhões de votos nas eleições de julho de 1932, por mais que tenha sido aprovada a denominada Lei de Autorização, que permitia ao gabinete governar em situações de emergência sem submeter seus atos à apreciação do parlamento, não podemos considerar tal regime como um Estado de Direito. O regime que inviabiliza a articulação de um mundo comum entre os indivíduos, mundo este configurador da política e do Direito, que pretenda a concentração do poder em uma só pessoa está fadado a entrar em crise, pois não há governo que permaneça sem uma base de sustentação, em outros termos, poderíamos dizer que mesmo que todos os homens se tornem "Um-Só- Homem" (ARENDT, 1990, p.519), que o governante se intitule o representante do povo, procedendo a uma reificação1 do mesmo através da adoção do ideal de uma sociedade transparente, unificada, sem diferenças e sem conflitos, tal governo não passa de uma abstração, de um mito cujo trágico destino já está traçado. São a artificialidade e a fragilidade do consenso que o sustentam, pois tal governo não está baseado em convicções, mas sim na vacuidade, na ausência do pensar, o que leva à submissão à regra pela regra, a uma absolutização da lei – ou, nos termos de 1 Sobre a controvérsia que gira em torno da ideia de representação política, conferir “The concept of representation”, de Hanna Pitkin. 16 Arendt, na burocratização da vida –, que, se for radicalmente alterada em caso de eventual mudança de regime, provavelmente levará consigo o apoio dos adeptos do regime anterior. Nas palavras de Arendt, [...] todas as nossas experiências nos dizem que precisamente os membros da sociedade respeitável, aqueles que não tinham sido afetados pela comoção intelectual e moral dos primeiros estágios do período nazista, foram os primeiros a se render. Eles simplesmente trocaram um sistema de valores por outro. Diria que, portanto, os não-participantes foram aqueles cuja consciência não funcionava dessa maneira, por assim dizer, automática – como se dispuséssemos de um conjunto de regras aprendidas ou inatas que aplicamos caso a caso, de modo que toda nova experiência ou situação já é prejulgada, e precisamos apenas seguir o que aprendemos ou o que possuímos de antemão. (ARENDT, 2004, p.106-107). É justamente na capacidade de pensar, na possibilidade de realização do diálogo interno consigo mesmo que reside o sentimento de legalidade (cf. ARENDT, 2004, p.103) que emana daqueles que se colocam contra a lei de seu país em situações-limite; a ação política como liberdade não é uma utopia, mas uma possibilidade sempre aberta, sendo esta a promessa da política (ARENDT, 2005). O papel do Estado reside em garantir a realização desse contexto de efetivação da política. Independente do formato legal que adote, o Estado deve apenas viabilizar a esfera pública da ação. A construção do mundo comum é de suma importância para a realização da própria condição humana2. O Estado totalitário se utiliza apenas do aspecto de homo faber do indivíduo e exclui sua possibilidade do agir; o mundo totalitário é a expressão extremada da artificialidade, vez que é alicerçado no uso da propaganda, que elabora estórias, com certa coerência aparente, para isolar as massas do mundo real. A propaganda totalitária eficiente deve ser capaz de transpor o abismo entre ficção e realidade, a fim de atomizar as massas e persuadi-las a essa fuga da realidade. Diferente da política, 2 “A condição humana”, obra de Arendt que, em certo momento, a autora apresenta a vida humana como algo dividido em três âmbitos essenciais: o labor, o trabalho e a ação. Neste contexto em específico, interessa-nos não apenas a esfera da ação, mas também o trabalho, essa capacidade de constituir e construir o mundo que o cerca. Na esfera da ação construímos as relações, na esfera do trabalho construímos a artificialidade que nos cerca. (ARENDT, 2010, p. 17 que estimula expressar a singularidade do sujeito no âmbito público, o totalitarismo busca desenvolver o individualismo, fazendo com que o sujeito se feche em seu próprio mundo (conf. ARENDT, 1989, p. 486). Segundo Arendt, a possibilidade do Estado totalitarista se estabelecer surge quando os indivíduos se afastam do espaço público; a política não aceita espaços vazios e, na medida em que os sujeitos deixaram de ocupar a esfera da ação, a ideologia – racista, no caso do nazismo – passou a ocupar tal espaço. A partir do momento que o totalitarismo se estabelece, busca não apenas o domínio da vida externa do indivíduo – as ações e relações públicas – como também o domínio interno– impossibilitando a imprevisibilidade e espontaneidade das ações humanas, anulando a pluralidade e o espaço público. 18 3. O PROBLEMA DA EFETIVAÇÃO DOS DIREITOS HUMANOS Neste capítulo, apresentaremos a crítica de Hannah Arendt acerca da efetividade dos direitos humanos. Para tanto, faz necessário o resgate histórico do nazismo na Alemanha e a análise da relação entre Estado e direito. Arendt nos mostrou a forma com que o regime totalitário rompeu com as fundamentações dos direitos, tornados nada mais do que retórica vazia (ARENDT, 2009). Ela chama atenção para a maneira com que os direitos humanos, na forma em que se configuravam na época, foram insuficientes para os sujeitos submetidos à violência do Estado. 3.1 O direito divino como fundamento do direito natural. Podemos observar que desde os primórdios da filosofia ocidental, muitos autores se dedicavam a uma reflexão sobre a questão do direito. Este tema, por exemplo, é abordado na peça de Sófocles, ―Antígona‖. Sobre isso, Aristóteles observara na obra ―Retórica”, que: Pois realmente há, como todos de certo modo intuem, uma justiça e uma injustiça naturais, compulsórias para todas as criaturas humanas, mesmo para as que não têm associação ou compromisso com as outras. É isso que a Antígona de Sófocles claramente quer exprimir quando diz que o funeral de Polinices era um ato justo apesar da proibição; ela pretende dizer que era justo por natureza. (1373b e seguintes) Ainda que não tenham sido empregados os termos pelos quais conhecemos os direitos naturais, Aristóteles já aponta em sua análise da obra de Sófocles a diferenciação crucial entre um direito natural – no caso, divino – e um direito escrito. As leis naturais seriam superiores às leis escritas, visto que fundamentar-se-iam em um caráter divino e atemporal, enquanto que as leis escritas seriam mutáveis.Mais à frente, Aristóteles (1375a 31) complementará, afirmando que ―a lei universal tampouco muda, pois se trata da lei natural, ao passo que as leis escritas muitas vezes 19 mudam", com o que, então, explicita uma possível hierarquia entre as leis.Nesse sentido, a questão central para Antígona não é apenas enterrar seu irmão, mas, sim, insurgir-se contra uma lei que padece de legitimidade frente a outras leis de validade universal. Ou seja: Antígona questiona a validade das leis de Creonte e decide pelo não reconhecimento e descumprimento de uma lei injusta e indevidamente3 imposta. As leis naturais, ou não escritas, presentes em Antígona e que se pautavam principalmente pelo divino, passam a assumir a forma histórica dos direitos humanos inerentes à natureza humana. O embate de Antígona e Creonte na obra do dramaturgo grego mostra-se relevante para a compreensão dos debates acerca da questão jusfilosófica da modernidade, uma vez que as leis naturais não escritas, reivindicadas por Antígona contra o édito positivo imposto por Creonte, encontram- se positivadas nas constituições modernas dos ditos estados democráticos de direito, como direitos fundamentais e inalienáveis do sujeito. São esses direitos naturais – constitucionalmente assegurados como liberdades públicas – que, desde sua positivação, estabelecem os limites do poder soberano, legitimando as ações de resistência do cidadão, caso tais determinações sejam transgredidas por um poder soberano arbitrário. Nesses direitos, concentram- se as razões da justiça em contraste com a violência, mesmo que revestida de legalidade. A obra de Sófocles representa um documento de suma importância para a legitimação das leis não escritas, visto que faz referência à natureza do ser humano. Em dado momento da obra, quando Creonte questiona Antígona se esta sabia que uma lei criada por ele proibia o sepultamento de seu irmão, ou seja, se 3 Sobre as leis de Creonte e as punições impostas à Antígona a personagem afirma que “A tua lei não é a lei dos deuses; apenas o capricho ocasional de um homem. Não acredito que tua proclamação tenha tal força que possa substituir as leis não escritas dos costumes e os estatutos infalíveis dos deuses. Porque essas não são leis de hoje, nem de ontem, mas de todos os tempos: ninguém sabe quando apareceram. Não, eu não iria arriscar o castigo dos deuses para satisfazer o orgulho de um pobre rei” (SÓFOCLES, 2001, 225-26) 20 esta tinha conhecimento dos limites prescritos pelo direito positivo, a personagem então responde: Mas Zeus não foi o arauto delas para mim, nem essas leis são as ditadas entre os homens pela Justiça, companheira de morada dos deuses infernais; e não me pareceu que tuas determinações tivessem força para impor aos mortais até a obrigação de transgredir normas divinas, não escritas, inevitáveis; não é de hoje, não é de ontem, é desde os tempos mais remotos que elas vigem, sem que ninguém possa dizer quando surgiram. E não seria por temer homem algum, nem o mais arrogante, que me arriscaria a ser punida pelos deuses por violá-las. (SÓFOCLES, 2001, p.219) Desde muito antes de qualquer concepção moderna, nos primórdios de nossa civilização, havia, ainda que de forma rudimentar, certa percepção de algumas leis evidentes e indubitáveis, relativamente às quais não seria possível afirmar quando ou onde terão surgido, mas que apenas são tomadas como princípios objetivos, superando quaisquer condições que a estas se apresentem no decorrer do tempo (GIACÓIA, 2008, p. 269). A personagem em questão considera que, tratando-se de leis superiores, divinas, estas estariam mais próximas da justiça de fato, independente do ordenamento estabelecido. Partindo da interpretação de tais percepções da antiguidade é que alguns filósofos dos séculos XVII e XVIII estabeleceram as bases do que hoje conhecemos desses direitos naturais universais imanentes à natureza humana. Fundamentando-se nessa concepção de direito, apresenta-se como resultado dos processos de democratização no ocidente a positivação de ordenamentos jurídicos dos modernos estados de direito – como, por exemplo, a Declaração de Direitos da Virgínia de 1776 e a Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão da constituinte francesa de 1789. A propósito, assim se lê no artigo terceiro da Declaração de Direitos da Virgínia acerca do papel do Estado: [...] o governo é instituído, ou deveria sê-lo, para proveito comum, proteção e segurança do povo, nação ou comunidade; [...]de todas as formas e modos de governo esta (a declaração) é a melhor, a mais capaz de produzir maior felicidade e segurança, e a que está mais eficazmente assegurada contra o perigo de um mau governo;[...] se um governo se mostra 21 inadequado ou é contrário a tais princípios, a maioria da comunidade tem o direito indiscutível, inalienável e irrevogável de reformá-lo, alterá-lo ou aboli- lo da maneira considerada mais condizente com o bem público (art. 3º, 1776). Da mesma forma, no artigo segundo da Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão de 26 de agosto de 1789, coloca-se que: ―A finalidade de toda associação política é a conservação dos direitos naturais e imprescritíveis do homem. Esses direitos são a liberdade, a propriedade, a segurança e a resistência à opressão‖ (art. 2º, 1789). Seguindo a mesma linha das duas declarações citadas anteriormente, a Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão da Constituição Francesa de 24 de junho de 1793 expressa nos artigos primeiro e segundo, que: ―O objetivo da sociedade é a felicidade comum. O governo é instituído para garantir ao homem o usufruto dos seus direitos naturais e imprescritíveis. Esses direitos são a igualdade, a liberdade, a segurança, a propriedade‖ (art. 1º-2º, 1793). Torna-se aqui explícito que, a partir do surgimento do moderno estado democrático de direito, o fundamento e a justificação teórica da autoridade política se encontra não mais na vontade de Deus, nos costumes herdados pela tradição ou na história, mas, sim, enraizados na natureza humana (ARENDT, 1989, p. 324). Nesta concepção, os direitos fundamentais e inalienáveis emergem desta condição racional do indivíduo4, ou seja, são direitos intrínsecos ao homem em função de sua humanidade cuja validade se sobrepõe a qualquer ordenamento jurídico-político empírico vigente, que, mesmo assim, teria a função de assegurá-los e torná-los efetivos. A esse respeito, Arendt afirma: Os direitos do Homem, afinal, haviam sido definidos como ―inalienáveis‖ porque se supunha serem independentes de todos os governos; mas sucedia que, no momento em que seres humanos deixavam de ter um governo próprio, não restava nenhuma autoridade para protegê-los e nenhuma instituição disposta a garanti-los. (ARENDT, 1989, p. 325). 4 Por condição racional do individuo compreende-se, segundo Arendt, as características relacionadas às esferas da ação e do trabalho, ou seja, a capacidade de relacionar-se com o outro e a capacidade de ser artífice no mundo que o cerca. 22 A autora expressa que, ainda que os sujeitos estejam universalmente consagrados e juridicamente positivados pelas Declarações, os direitos humanos não foram capazes de protegê-los em situações extremas, demonstrando, assim, uma fragilidade radical. O ponto fundamental é que, apesar de os direitos humanos serem declarados como inalienáveis e autossuficientes, sua efetivação só é possível dentro de um Estado que legitime sua validade. Para Arendt, a própria positivação dos direitos naturais – expressa pela Declaração dos Direitos do Homem no fim do século XVIII – significava não apenas uma emancipação dos costumes, mas também uma segurança extra ao cidadão perante o Estado. Quer dizer: ainda que as formas de organização da sociedade viessem a mudar – seja pelo Estado, seja pelos costumes sociais –, havia um direito superior que garantiria o bem-estar dos indivíduos em face de qualquer tipo de arbitrariedade (ARENDT, 1989, 324). A situação de restrição e abolição da liberdade pública e das garantias individuais, presente no regime nazista, fez com que Arendt questionasse a funcionalidade dos direitos humanos, sobretudo a forma como estes foram constituídos, vez que o contexto histórico demonstrou que sua inalienabilidade – até então inquestionável –não existia. 3.2 A importância da Pluralidade para o desenvolvimento dos Direitos Humanos. O conceito de pluralidade desenvolvido pela autora é de grande ajuda para compreender o problema no fundamento da concepção de direitos humanos da época. Para ela, o sujeito só se revela como Homem quando é percebido por outros homens; ou, melhor: ainda que isolado, o indivíduo permanece homem; porém, apenas em contato com outros homens é que estes são capazes de revelar e 23 confirmar sua identidade. De certa forma, segundo Arendt, semelhante ao que Aristóteles (conf. Pol, 1253a) expressa, ao definir o homem como animal político que só se realiza plenamente agindo na polis: As coisas vivas aparecem em cena como atores em um palco montado para elas. O palco é comum a todos os que estão vivos, mas parece diferente para cada espécie e também para cada indivíduo da espécie. Parecer – o parece-me, dokei moi – é o modo – talvez o único possível – pelo qual um mundo que aparece é reconhecido e percebido. Aparecer significa parecer para outros, e esse parecer varia de acordo com o ponto de vista e com a perspectiva dos espectadores. Em outras palavras, tudo o que aparece adquire, em virtude de sua fenomenalidade, uma espécie de disfarce que pode de fato – embora não necessariamente – ocultar ou desfigurar. Parecer corresponde à circunstância de que toda aparência, independentemente de sua identidade, é percebida por uma pluralidade de espectadores. (ARENDT, 1981, p. 20-21). Ao agir na esfera pública, o homem não só é percebido como sujeito, mas também como algo individual, com suas particularidades e especificidades. O aparecer na esfera pública é para o sujeito a oportunidade de, a partir de suas peculiaridades, contribuir para a pluralidade e espontaneidade necessárias para o campo político. Desse modo, não faria sentido fundamentar os direitos humanos em uma ideia abstrata e amórfica de homem. Se o homem expressa suas particularidades no público, os direitos humanos devem também, de certa forma, expressá-las. São as relações estabelecidas no espaço público que caracterizam a atividade dignificadora do ser (TELES, 2013). A novidade apresentada pelas declarações dos direitos humanos foi não apenas seu conteúdo, mas sim a emancipação do homem, vez que o fato de possuir a condição humana e ser dotado de dignidade foram suficientes para fazer com que o homem fosse a fonte e o fundamento da própria lei. Quer dizer: o indivíduo não mais se submetia inteiramente às leis de origem divina ou à vontade de um poder soberano; com as declarações, o homem libertou-se e fundamentou um direito próprio que se legitimava na sua característica de ser humano. 24 O problema da fundamentação dos direitos humanos fica mais latente a partir de Revolução Francesa e do surgimento do conceito moderno de Estado-nação. Ou seja: De uma só vez, os mesmos direitos essenciais eram reivindicados como herança inalienável de todos os seres humanos e como herança específica de nações específicas; a mesma nação era declarada, de uma só vez, sujeita à leis que emanariam supostamente dos Direitos do Homem, e soberana, isto é, independente de qualquer lei universal, nada reconhecendo como superior a si própria. (ARENDT, 1989, p. 262). Apesar de ser declarado como inalienável, a elaboração abstrata dos direitos humanos culminou em sua ineficácia. Sendo a pluralidade parte da condição humana na Terra, a massificação prevista nas declarações de direitos humanos – em uma falha tentativa de abarcar todas as pessoas – culminou no esvaziamento do próprio conceito de humanidade. Dessa forma, os direitos humanos passam a ser uma ―opção‖ aos Estados e sua efetivação dependente da soberania do mesmo. Em sua obra ―Mein Kampf‖, Adolf Hitler deixou claro que os direitos humanos não eram uma preocupação; mais do que isso, ele delimitou o conceito de humano apenas para aqueles considerados arianos puros, submetendo os demais à classe de ‖raças inferiores‖, e, de certa forma, esvaziando o estatuto de sujeitos de direito. Primo Levi, judeu italiano sobrevivente do campo de concentração de Auschwitz, em ―É isto um homem?‖, fala a respeito do ―muçulmano‖ (Müselmann), termo utilizado nos campos para designar prisioneiros que estavam em grave situação de degradação, sucumbidos pela fome, frio, doenças e exaustão, aqueles dos quais haviam sido suprimidos todos seus direitos: Sucumbir é mais fácil: basta executar cada ordem recebida, comer apenas a ração, obedecer à disciplina do trabalho e do Campo. Desse modo, a experiência demonstra que não se aguenta quase nunca mais do que três meses. A história – ou melhor, a não-história – de todos os ―muçulmanos‖ que vão para o gás, é sempre a mesma: simplesmente, acompanharam a descida até o fim, como os arroios que vão até o mar. Uma vez dentro do Campo, ou por causa da sua intrínseca incapacidade, ou por azar, ou por um banal acidente qualquer, eles foram esmagados antes de conseguir adaptar-se; ficaram para trás, nem começaram a aprender alemão e a perceber alguma coisa no emaranhado infernal de leis e proibições, a não 25 ser quando seu corpo já desmoronara e nada mais poderia salvá-los da seleção ou da morte por esgotamento. A sua vida é curta, mas seu número é imenso; são eles, os “muçulmanos”, os submersos, são eles a força do Campo: a multidão anônima, continuamente renovada e sempre igual, dos não-homens que marcham e se esforçam em silêncio; já se apagou neles a centelha divina, já estão tão vazios, que nem podem realmente sofrer. Hesita-se em chamá-los vivos; hesita-se em chamar “morte” à sua morte, que eles já nem temem, porque estão esgotados demais para poder compreendê-la.‖ (LEVI, 1988, p. 91. Grifo meu) . Conforme Arendt (2005b, p. 195), os campos de concentração implicaram na retirada e esvaziamento dos predicados que faziam a pessoa humana ser considerada um sujeito de direitos, o que resultou na perda de toda sua dignidade; mais do que perda de direitos, os indivíduos que se encontravam nessa situação de precariedade perderam também a utilidade para o resto da sociedade. Hannah Arendt mostrou como a relação entre direitos humanos e Estado- nação implicou no surgimento de categorias de pessoas sem direitos, classificadas, num primeiro momento, como cidadãos de segunda classe (second-class citizens) para, posteriormente, serem privadas de toda cidadania (cf. ARENDT, 1999, p. 51). Segundo a autora, antes mesmo da ascensão do nazismo, por meio da constituição de Weimar, algumas leis já segregavam os cidadãos. Ao selecionar quais pessoas teriam acesso ao direito, instituiu-se o estatuto de cidadão de segunda classe (second-class citzen), tal qual aconteceu com o povo judeu (conf. ARENDT, 2009, p. 51-52). O processo de esvaziamento político foi construído aos poucos. A desqualificação do judeu perante a sociedade foi um processo lento e de certa forma sutil. Por vezes, a expulsão do judeu da lei foi confundida com o estabelecimento de leis próprias para esse povo. O fato de ele ser primeiro reconhecido como judeu, não como alemão, favoreceu o movimento segregacionista. A desnacionalização foi um instrumento posterior, vez que, ainda que a discriminação tenha se iniciado antes, foi 26 apenas com a promulgação das Leis de Nuremberg (1935) que o povo judeu foi destituído de seus direitos políticos. Os apátridas e as minorias haviam perdido, segundo Arendt (1989, p. 301), os direitos que até então eram tomados como inalienáveis; mais do que isso: ―não dispunham de governos que os representassem e protegessem e, por isso, eram forçados a viver ou sob as leis de exceção dos Tratados das Minorias [...] ou sob condições de absoluta ausência da lei‖. Esses grupos estavam convencidos de que a perda de direitos nacionais era idêntica à perda de direitos humanos e que a primeira levava à segunda. Em poucas palavras, os tratados das minorias – dos períodos entre guerras – previam que apenas pessoas de mesma origem nacional poderiam dispor de maneira integral de sua cidadania, do contrário – para os outros grupos em geral – vigoravam os tratados de exceção. O fato a ser levado em consideração é que as minorias já existiam há tempos, mas a minoria como instituição permanente, isto é, o reconhecimento internacional de que existiam milhões de pessoas vivendo à margem da proteção legal – e que necessitavam de um organismo exterior para garantir seus direitos elementares –, era novidade no contexto europeu. Mais ainda: a consciência de que sua situação não era temporária e necessitava de um aparato para regulamentá-la, tudo isso era novo. Os tratados de minorias passaram a cumprir a função de regulamentar algo que já estava implícito no sistema de funcionamento dos Estados-nação, qual seja: o fato de que somente os nacionais poderiam ter estatuto de cidadãos. Apenas aqueles de mesma origem nacional teriam acesso à proteção completa oferecida pelas instituições legais; os demais, com nacionalidade distinta, necessitavam de 27 uma lei de exceção enquanto não fossem completamente assimilados pela ―identidade‖ dominante (cf. WINCKLER, 2001, p. 116). Com isso, como nenhum Estado reclamava esses indivíduos, restava-lhes apenas a exceção. Os indivíduos eram praticamente transformados em uma instituição permanente, detentora de suas próprias leis (ainda que, de certa forma, ineficazes). Tais direitos supostamente inalienáveis se mostraram incompatíveis quando surgiam pessoas que não eram cidadãos de algum Estado soberano: perderam não só seus lares, impossibilitados de encontrar um novo lar, mas também toda a tutela jurídica e proteção do governo (cf. ARENDT, 1989, p. 327). A calamidade dos que não têm direitos não decorre do fato de terem sido privados da vida, da liberdade ou da procura da felicidade, nem da igualdade perante a lei ou da liberdade de opinião [...]mas do fato de já não pertencerem a qualquer comunidade. Sua situação angustiante não resulta do fato de não serem iguais perante a lei, mas sim de não existirem mais leis para eles; não de serem oprimidos, mas de não haver ninguém mais que se interesse por eles, nem que seja para oprimi-los. Só no último estágio de um longo processo o seu direito à vida é ameaçado; só se permanecerem absolutamente ―supérfluos‖, se não se puder encontrar ninguém para ―reclamá-los‖, as suas vidas podem correr perigo. Os próprios nazistas começaram a sua exterminação dos judeus privando-os, primeiro, de toda condição legal (isto é, da condição de cidadãos de segunda classe) e separando-os do mundo para ajuntá-los em guetos e campos de concentração; e, antes de acionarem as câmaras de gás, haviam apalpado cuidadosamente o terreno e verificado, para sua satisfação, que nenhum país reclamava aquela gente. O importante é que se criou uma condição de completa privação de direitos antes que o direito à vida fosse ameaçado. (ARENDT, 1989, p. 329. Grifo meu) A ruptura que os campos de concentração significaram para os direitos humanos não consistiu apenas no fato de reprimirem a liberdade das pessoas, mas ainda no fato de terem retirado de uma categoria de indivíduos, até mesmo a possibilidade de se reconhecerem como sujeitos de direito, e, desse modo, a possibilidade de resistirem a qualquer forma de opressão. Quando excluído de sua comunidade, o sujeito não perde apenas seu lugar no mundo, mas também seu propósito nele. Ao privar o sujeito de parte de sua condição humana, transformando- 28 o em coisa, sua existência passa a ser supérflua e, sendo assim, qualquer coisa pode ser feita com esse indivíduo. Sem um vínculo com o mundo que o cerca, ninguém reclama sua falta. Nesse contexto, ao fundamentar os direitos humanos em uma ideia universal e abstrata de homem – desconsiderando sua singularidade –, terminou-se por anular a possibilidade do agir, um aspecto fundamental na vida do homem. A ação caracteriza-se pela interação própria dos seres humanos singulares com outros seres humanos, sendo estes tão concretos e diversos quanto existem em uma comunidade. E é precisamente dessa relação entre indivíduos diversos e singulares que se expressa sua dignidade. Isto é, porque é único, e não mera cópia homogênea e substituível de uma natureza genérica. Os direitos humanos deveriam refletir essa dignidade do individuo. Tal situação mostra-se de extrema importância, vez que não se trata apenas de pessoas tendo seus direitos básicos cerceados, mas de toda uma comunidade política incapaz de garantir quaisquer direitos. Os direitos humanos – na forma em que estavam dispostos – só teriam legitimidade e eficácia se assim quisesse o poder soberano vigente, dando margem para os regimes totalitários operarem todo tipo de atrocidades. Mesmo perdendo todos os chamados Direitos do Homem, o sujeito pode manter a qualidade essencial de homem, sua dignidade humana, mas a perda de sua comunidade pode expulsá-lo da humanidade. (ARENDT, 1989). Portanto, o pertencer a uma comunidade política apresenta-se como a base fundamental do direito a ter direitos. 29 3.3 A desnacionalização como ferramenta para a desumanização e o caso dos apátridas. No caso dos apátridas, por exemplo, o fato de pertencerem à espécie humana não foi suficiente para que os direitos humanos os protegessem. A falta de vínculo com um Estado fez com que ninguém tutelasse essas pessoas. Os apátridas passaram de maneira tão extrema pelo processo de ―desumanização‖,5 que aos Estados não interessava nem os proteger, nem os oprimir; eram meros corpos vagando pelo território. A tríade soberania, povo e território já não fazia sentido para os apátridas. Na verdade, se os ditos direitos fundamentais – na forma em que estavam previstos – tivessem alguma efetividade, seria nessa situação de abandono do Estado que os direitos humanos deveriam agir. Com a ascensão do regime nazista ao poder, declarou-se como direito supremo a soberania nacional, outro ponto que acabou dificultando a efetivação dos direitos humanos. Fundamentado na ideia abstrata e universalista de homem, os direitos humanos necessitavam que o homem fosse tido como superior a sua própria comunidade; contudo, ao declarar, simultaneamente, esse poder soberano ao Estado, criou-se um elo de dependência dos direitos humanos com o Estado. O Estado-nação passa a ter arbítrio acerca da efetivação e legitimidade sobre os direitos humanos em seus domínios. O resultado disso é a transformação dos direitos humanos em direitos nacionais, aplicáveis apenas para aqueles com reconhecido estatuto de cidadão e circunscrito àquele território. Em contrapartida, essa elevação da nação como entidade soberana ao mesmo tempo em que os direitos humanos são dados supremos, também acarretou certas complicações para o Estado. Uma vez que a nação torna-se entidade efetiva 5 Utilizamos o termo desumanização para significar o processo de retirada de quaisquer direitos e deveres de alguns indivíduos, anulando toda sua capacidade de agir político. 30 de direitos, acaba por transformar o Estado em mero instrumento, utilizando-o como meio para realização de interesses da nação. A tragédia do Estado-nação surgiu quando a crescente consciência nacional do povo interferiu com essas funções [de proteção de todos os habitantes de seu território e de instituição legal suprema]. Em nome da vontade do povo, o Estado foi lançado a reconhecer como cidadãos somente os ―nacionais‖, a conceder completos direitos civis e políticos somente àqueles que pertenciam à comunidade nacional por direito de origem e fato de nascimento. Isso significa que o Estado foi parcialmente transformado de instrumento da lei em instrumento da nação. (ARENDT, 1989, p. 261) O Estado se desvia de seu objetivo inicial – que seria a proteção de seu povo – e passa a ter como objetivo principal a defesa dos interesses da nação, sobrepondo o interesse nacional à legalidade. Conforme observado com relação ao regime nazista, esse processo de perversão do Estado acaba corrompendo a estrutura de suas instituições, vez que elas deixam de servir aos interesses do povo e passam a ter como objetivo a manutenção do poder soberano. Esse cenário evidencia o problema da fundamentação dos diretos humanos. A validade e efetivação dos direitos humanos deveria ser independente do vínculo que o indivíduo mantém com Estado, mas o que a experiência mostrou é que a sua realização está amplamente vinculada à cidadania do sujeito, marginalizando aquele que não dispõe de tal predicado. A fundamentação de tais direitos em uma ideia abstrata e universalista de Homem leva à anulação da própria essência do Homem; melhor dizendo: o que se expressa nessa universalização do sujeito é muito mais uma generalização biológica do que qualquer outra coisa, com o mero intuito de evitar a complexidade do ser. Essa simplificação do sujeito faz com que, ao mesmo tempo, o conceito de direitos humanos vincule-se a todos, sem nada agregar a ninguém. A desumanização desses sujeitos desprovidos de direitos – apátridas, refugiados e minorias étnicas – não ocorreu de uma hora para outra; na verdade, há um processo, de certa formal sutil, segundo o qual, no mais das vezes, o indivíduo 31 só se percebe desprotegido de fato quando a vida lhe é ameaçada. A segregação e marginalização desses indivíduos em relação à sociedade em geral é o primeiro passo. A desnacionalização segue-se como consequência disso. Outro instrumento importante neste processo com certeza é o desemprego; um exemplo disso é que em certo momento do regime nazista os comércios que pertenciam a pessoas judias tinham sua fachada marcada para sinalizar ao povo ariano que aquele não seria um bom lugar a ser frequentado. Com seu empreendimento arruinado devido à queda nos ganhos e à constante ameaça à sua integridade física, os proprietários de tais negócios acabaram sendo aglomerados em guetos. Outro fator a ser destacado no surgimento desses povos em situação de fragilidade jurídica é o contexto do período entre guerras. Apesar de ter contribuído grandemente para o aumento desses povos, os apátridas e refugiados não são uma invenção do nazismo. O fim da Primeira Grande Guerra também colaborou para o aumento desta população. Segundo Arendt: A Primeira Guerra Mundial foi uma explosão que dilacerou irremediavelmente a comunidade dos países europeus, como nenhuma outra guerra havia feito antes. A inflação destruiu toda a classe de pequenos proprietários a ponto de não lhes deixar esperança de recuperação, o que nenhuma crise financeira havia feito antes de modo tão radical. O desemprego, quando veio, atingiu proporções fabulosas, sem se limitar às classes trabalhadoras, mas alcançando nações inteiras, com poucas exceções. As guerras civis que sobrevieram e se alastraram durante os vinte anos de paz agitada não foram apenas mais cruéis e mais sangrentas do que as anteriores: foram seguidas pela migração de compactos grupos humanos que, ao contrário de seus predecessores mais felizes, não eram bem vindos e não podiam ser assimilados em parte alguma. Uma vez fora do país de origem, permaneciam sem lar; quando deixavam o seu Estado, tornavam-se apátridas; quando perdiam os seus direitos humanos, perdiam todos os direitos: eram o refugo da terra. Nada do que estava sendo feito, por mais incrível que fosse e por mais numerosos que fossem os homens que conheciam e previam aas conseqüências, podia ser desfeito ou evitado. [...] Ficou visível o sofrimento de um número cada vez maior de grupos de pessoas às quais, subitamente, já não se aplicava as regras do mundo que as rodeava. Era precisamente a aparente estabilidade do mundo exterior que levava cada grupo expulso de suas fronteiras, antes protetoras, a parecer uma infeliz exceção a uma regra sadia e normal, e que, ao mesmo tempo, inspirava igual cinismo tanto às vítimas quanto aos observadores de um destino aparentemente injusto e anormal. (ARENDT, 1989, p. 369-370 grifo nosso) 32 Os conflitos no território europeu impulsionaram o processo migratório, fazendo com que as leis de exceção fossem cada vez mais necessárias. Países que já se encontravam fragilizados em decorrência do cenário conflituoso, tinham que lidar não apenas com seus problemas internos, mas também com os estrangeiros que buscavam refúgio. A desnacionalização passa a ser utilizada como estratégia para que o Estado não tenha que lidar com grupos considerados problemáticos; como nenhum outro Estado-nação reclamara esses povos para si, nem reclamavam acerca da defesa de seus direitos, tal prática acabou sendo vista com certa normalidade. Segundo Lafer, a desnacionalização em massa passou a ser um processo comum; logo em seu início, o regime nazista ―promoveu desnacionalizações maciças, iniciadas por lei de 14 de julho de 1933, alcançando grande número de judeus e de imigrantes políticos residentes fora do Reich‖ (LAFER, 1988, p. 143). Ao privar o indivíduo de sua nacionalidade, o Estado não se livra imediatamente desses grupos, mas possibilita que qualquer coisa seja feita com essa pessoa. Se ela não participa de nenhuma comunidade política, então não participa de nenhum ordenamento jurídico. Sendo assim, qualquer coisa pode ser feita com esse indivíduo. Ele perde o estatuto de cidadão de segunda classe e passa para um vazio jurídico. Se por um lado os apátridas eram povos sem expressão política nenhuma – vez que ninguém tutelava por eles –, as minorias, apesar de necessitarem de proteção internacional, eram povos parcialmente sem Estado. As minorias, no geral, participavam de uma comunidade, mas tinham baixa ou nenhuma capacidade de agir politicamente, tendo algumas vezes seus direitos básicos cerceados. Já no caso dos apátridas, eles são aqueles que não só perderam seu estatuto de cidadãos em 33 seu país de origem, como também não conseguiram readquiri-lo noutro lugar. São pessoas sem vínculo nenhum; perderam sua nacionalidade e ficaram, praticamente, à mercê da sorte. Arendt afirma (1989, p. 371) que apesar do estabelecimento dos Tratados das Minorias, estes nunca tiveram de fato força de lei, e, por não haver um governo que os representasse, os apátridas e as minorias vivenciavam um estado de completa ausência perante a lei. A desnacionalização em massa trouxe um problema para a comunidade internacional: vez que país algum daria asilo político para centenas ou milhares de pessoas de uma vez, era necessário estudar caso por caso, não havendo possibilidade de serem aceitos grupos fechados. O asilo seria uma ferramenta individual, donde o número de apátridas ter tanto crescido. Além disso, outro problema identificado foi a dúvida sobre o que fazer com essas pessoas; não havia como naturalizá-las em outro país (por conta do grande número de pessoas), nem como repatriá-las. Aliás, não se sabia ao certo o número de apátridas, vez que a subnotificação também era um empecilho no trato dessas pessoas. Um refugiado costumava ser uma pessoa levada a buscar refúgio por causa de algum ato praticado ou opinião sustentada. Bem, é verdade que tivemos de buscar refúgio; mas não praticamos nenhum ato e a maioria de nós nunca sonhou em ter qualquer opinião política radical. Conosco o significado do termo ―refugiado‖ mudou. Agora ―refugiados‖ são aqueles de nós que foram tão infelizes a ponto de chegarem em um novo país sem recursos e terem de ser ajudados por comitês de refugiados. (ARENDT, 2016, p. 477) Sem seu lugar no mundo, as displaced persons6 passaram a ser consideradas a própria personificação da exceção política. Sem ninguém para reclamar seus direitos, sem vínculo com Estado nenhum, sem direitos e sem deveres. O único tipo de norma jurídica que poderia abranger tais indivíduos eram os 6 Termo utilizado por Arendt para designar apátridas e refugiados; pessoas que tiveram seu lugar no mundo extinto (conf. 1989, 495). 34 tratados estabelecidos pela Liga das Nações7, que, em muitos países, não tinham força de lei. Diante do cenário de completa anomia política, fome e desemprego crescentes, os apátridas adotaram uma nova estratégia: a criminalidade. Em alguns casos, como último recurso para saciar a fome; noutros, porém, cometiam crimes para serem presos, e, a partir disso, serem reconhecidos pela norma. Melhor dizendo: apesar de não estarem vinculados ao Estado, as leis penais não deixariam de ser aplicadas em caso de transgressão. Dessa maneira, eles perdem o estatuto de refugo da terra e passam a ser reconhecidos como sujeitos de direito, mesmo que de maneira inadequada. As sociedades democráticas prevêem que todos são iguais perante a lei; logo, uma vez reconhecida a violação às leis de um determinado território, o apátrida não poderia ter tratamento diferente. O totalitarismo revelou-se como uma novidade política. Com certeza, um progresso8 em relação aos regimes autoritários anteriormente conhecidos. Cumpre ressaltar que a ideia de progresso não cumpre um papel positivo, quer dizer, o totalitarismo não significou uma melhora positiva dos regimes autoritários, mas sim uma nova maneira de subjugar o homem. No caso nazista, a principal novidade que o regime totalitário trouxe foram os campos de concentração. Obviamente, no início do regime, os campos de concentração não eram vistos como máquinas de morte, mas apenas como campos 7 Criada após a Primeira Guerra Mundial, a Liga das Nações tinha por objetivo a manutenção da paz. Inicialmente composta pelos países vencedores da Primeira Guerra. Dissolvida de 1942. 8 Cumpre aqui trazer à luz a concepção benjaminiana de progresso da história. Em que, segundo o autor “Existe um quadro de Klee intitulado ':Angelus Novus". Nele está representado um anjo, que parece estar a ponto de afastar-se de algo em que crava o seu olhar. Seus olhos estão arregalados, sua boca está aberta e suas asas estão estiradas. O anjo da historia tem de parecer assim. Ele tem seu rosto voltado para o passado. Onde uma cadeia de eventos aparece diante de nos, ele enxerga uma única catástrofe, que sem cessar amontoa escombros sobre escombros e os arremessa a seus pés. Ele bem que gostaria de demorar-se, de despertar os mortos e[untar os destroços. Mas do paraíso sopra uma tempestade que se emaranhou em suas asas e é tão forte que o anjo não pode mais fechá-las. Essa tempestade o impele irresistivelmente para o futuro, para o qual dá as costas, enquanto o amontoado de escombros diante dele cresce até o céu. 0 que nos chamamos de progresso é essa tempestade.” (BENJAMIN, P. 87, in LÖWY, 2005). 35 de trabalho. Contudo, ao utilizá-los para prender, escravizar e matar os ―indesejáveis‖ na cena política, configurou-se uma nova concepção de povo. A singularidade dos indivíduos é anulada e a pluralidade entre eles combatida (LAFER, 1988, p. 117). Povo transforma-se em uma massa amórfica, como um reflexo do próprio Estado, ou sua figura soberana, que visa única e exclusivamente combater o diferente. O Füher dita quem é o povo e, todos aqueles que fogem de tais normas passam a ser considerados inimigos públicos. Ao privar o indivíduo da participação nessa coletividade denominada ‗povo‘, retira-se dele também toda a capacidade de agir político, incapacitando-o para a resistência a quaisquer atrocidades cometidas contra ele. Ao retirar do indivíduo o estatuto de cidadão, a vida dele acaba por tornar-se supérflua para o Estado; uma vez que o sujeito perde a possibilidade de ação, que sua espontaneidade e singularidade são anuladas, ele se torna um mero corpo. O objetivo dos campos de concentração não foi apenas banir os diferentes da convivência do povo classificado como tal pelo Füher, mas também anular e aniquilar tais diferenças. A homogeneidade era um objetivo político, e este só poderia ser atingido pelo estabelecimento do inimigo público e a ressignificação deste, não mais como indivíduo, mas sim como coisa a ser combatida. Pode-se considerar como objetivo final do totalitarismo o domínio total da vida. O Estado dita não só as regras públicas, mas sim domina aqueles aos quais essas regras se aplicam e também aqueles a quem elas não se aplicam. Os campos de concentração são apenas uma destas ferramentas de domínio da vida. O fim do sistema arbitrário é destruir os direitos civis de toda a população, que se vê, afinal, tão fora da lei em seu próprio país como os apátridas e os refugiados. A destruição dos direitos de um homem, a morte da sua pessoa jurídica, é a condição primordial para que seja inteiramente dominado. E isso não se aplica apenas àquelas categorias especiais, como os criminosos; os oponentes políticos, os judeus, os homossexuais (com os quais se fizeram as primeiras experiências), mas a qualquer habitante do Estado totalitário. O livre consentimento é um obstáculo ao domínio total, 36 como o é a livre oposição. A prisão arbitrária que escolhe pessoas inocentes destrói a validade do livre consentimento, da mesma forma como a tortura — em contraposição à morte — destrói a possibilidade da oposição. (ARENDT, 1989, p. 598) Antes de destruir o corpo físico do individuo, o Estado priva-o de seus direitos, seus deveres, até de sua personalidade. Transforma-o em um corpo estranho a ser combatido, pelo bem do Estado, e, consequentemente, pelo bem de seu povo. Os campos de concentração configuravam não apenas um ataque à vida e à dignidade do indivíduo, mas, também, o aniquilamento de sua história. Quer dizer: o indivíduo era de tal forma desfeito, que não só perdia a perspectiva de futuro, como também se esquecia de seu passado, perdendo a capacidade de enunciar sua própria história. O campo era repleto de figuras apáticas, que, já desfeitas de sua humanidade, nada conseguiam comunicar, apenas sucumbiam (conf. AGAMBEN, 2008). Os campos e a matança de adversários políticos são apenas facetas do esquecimento sistemático em que se mergulham não apenas os veículos da opinião pública, como a palavra escrita e falada, mas até as famílias e os amigos das vítimas. A dor e a recordação são proibidas. [...] Mesmo em seus períodos mais negros, mundo ocidental deu sempre ao inimigo morto o direito de ser lembrado, num reconhecimento evidente de que todos somos homens (e apenas homens). Até mesmo Aquiles providenciou os funerais de Heitor; os governos mais despóticos honraram o inimigo morto; os romanos permitiam que os cristãos escrevessem martirológios; a Igreja manteve os seus hereges vivos na memória dos homens; e por isso, somente por isso, tudo não foi em vão e jamais poderia ter sido em vão. Os campos de concentração, tornando anônima a própria morte e tornando impossível saber se um prisioneiro está vivo ou morto, roubaram da morte o significado de desfecho de uma vida realizada. Em certo sentido, roubaram a própria morte do indivíduo, provando que, doravante, nada — nem a morte — lhe pertencia e que ele não pertencia a ninguém. A morte apenas selava o fato de que ele jamais havia existido. (ARENDT, 1989, p. 599-600, grifo nosso) O Estado totalitário domina de tal forma o individuo, que o vai aos poucos desmontando: primeiro, mata sua pessoa moral (retirando-o da esfera pública);depois, sua pessoa jurídica (destituindo-o de seus direitos); em seguida, já nos campos de concentração, mata sua espontaneidade, transformando-o em um ―feixe de reações‖ (conf. DUARTE, 2000, p. 20). Desse modo, quando já não resta 37 nada que singularize esse individuo, nem sua própria morte lhe pertence mais; em alguns casos, a morte já nem faz mais diferença. O ponto para o qual Arendt chama atenção é que alguns predicados que são considerados inerentes ao homem, na verdade necessitam ser garantidos por artifícios para que possam ser efetivados. Os direitos humanos são um caso disso. A cidadania, a legalidade e o respeito à dignidade e à pluralidade são atributos necessários para a efetivação dos direitos humanos, mas que também necessitam dessa validação. A criação de uma política que transforma pessoas em coisas, e, mais do que isso, todo um aparato estatal para descartar essas coisas, é uma das principais características do regime nazista. O evento totalitário inaugurou uma nova categoria de seres humanos. Os ‗novos refugiados‘ são o mais triste exemplo do que pode acontecer com o individuo quando reduzido à ―mera vida‖ (conf. AGUIAR, 2019). A figura do refugiado e do apátrida passa a representar a desintegração entre indivíduo e mundo. Sem um povo que os reivindique e sem um território para chamar de seu, personificam o desamparo crescente a tudo que seja alheio à vontade do Führer; segundo o professor Odílio Aguiar o “refugiado é o paradigma dos seres humanos em situação de desamparo, vítimas de preconceitos étnicos ou de outro tipo, expulsos da humanidade e em risco de descartabilidade‖ (2019). Isto é: a perda do reconhecimento de sua dignidade política não só priva o refugiado ou o apátrida do agir público, mas o reduz a um algo, a uma existência vazia de propósito. Nesse contexto, os direitos humanos mostram-se como o que Arendt (1989) chama de retórica vazia, em que ainda que já estejam tipificados e conhecidos por todos, mesmo que declarados como inerentes ao individuo e inalienáveis, de nada adiantaram no auxílio a esses indivíduos sem garantias. Da forma como foram 38 fundamentados, os direitos humanos demonstravam que tais direitos estavam resguardados pela condição de humanidade do indivíduo; contudo, é exatamente quando essa condição de mera humanidade se expressa que o individuo fica mais vulnerável e os direitos humanos mais ineficazes. A carência de pertencimento mostra-se avassaladora. Sem o vínculo a uma comunidade política, o individuo acaba exposto a toda e qualquer animosidade dos Estados nacionais. Com o esvaziamento de seus direitos e a anulação de quaisquer elos políticos, esses indivíduos são praticamente jogados para fora da humanidade. 39 4. DIREITO E CIDADANIA, UMA RELAÇÃO NECESSÁRIA. Conforme visto no capítulo anterior, o indivíduo só pode ser considerado sujeito de direitos se estiver em pleno gozo de sua cidadania; melhor dizendo: apenas aqueles que mantêm vínculo com um Estado terão seu resguardo jurídico garantido. A efetivação dos direitos humanos é condicionada pelo reconhecimento do indivíduo como cidadão, só assim o Estado reconhece o seu direito a ter direitos. É somente a partir do reconhecimento político do estatuto de cidadão de um sujeito que se pode pensar na efetivação de seus direitos humanos. 4.1 A crise do Estado-nação A ascensão do Estado-nação e a vinculação entre cidadania e nacionalidade culminaram na ruína das instituições políticas, vez que o conceito de igualdade política foi abandonado e substituído pela igualdade factual. Com efeito, nem todos os habitantes desse Estado possuíam os mesmos direitos; na verdade, alguns eram excluídos do contexto jurídico. Ao tentar negar a pluralidade e buscar algo intrínseco ao homem, que o ligue ao ordenamento jurídico para legitimar seu acesso às leis, o resultado é a negação da singularidade dos indivíduos, marginalizando todos aqueles que escapam dos critérios de homogeneização estabelecidos pelo Estado-nação. Dado que a pluralidade é parte da condição humana, a diferença entre os homens se expressa como condição de sua existência; quando o Estado-nação passa a usar certa igualdade factual como critério político, não só marginaliza aquilo que é considerado como o outro, mas também contraria a própria condição humana na terra. A igualdade é, na verdade, um artifício criado pelo homem com intuito de organizar a vida em sociedade. A igualdade pode ocorrer dentro da comunidade 40 sem que contrarie a condição humana da pluralidade; é o caso da igualdade política. Essa igualdade política foi denominada na Grécia Antiga isonomia, e, segundo Arendt, ―a igualdade presente na esfera pública é, necessariamente, uma igualdade de desiguais que precisam ser ‗igualados‘ sob certos aspectos e por motivos específicos. Assim, o fato igualador não provém da natureza humana, mas sim de fora‖ (2010, p. 268). Diante disso, a igualdade política pode ser entendida como o reconhecimento de direitos mútuos entre os cidadãos, em que pessoas desiguais têm os mesmos direitos. Apenas por meio do artifício jurídico (leis e direitos) é que se torna possível estabelecer certa igualdade em conformidade com a pluralidade natural do sujeito (cf. BRITO, 2013). Os critérios que visam homogeneizar os sujeitos – étnicos, metafísicos ou biológicos – não se sustentam dentro de um corpo político saudável, vez que excluiriam parte de sua comunidade da convivência política. O que ocorreu, no caso dos Estados-nação, foi que, ao adotarem o critério étnico na atribuição e legitimação de direitos, fizeram com que a igualdade política fosse anulada. Toda estrutura do Estado-nação é constituída a partir do domínio da legalidade, posto que o surgimento de tal forma de Estado ocorreu quase que ao mesmo tempo em que surgiram os governos constitucionais, que tinham por alicerce o domínio da lei acima dos interesses individuais e burocracias administrativas (ARENDT, 1989). A nulidade da igualdade política é prejudicial ao próprio Estado-nação, pois tem como consequência direta a desintegração das instituições político-jurídicas, que são fundamentais para tal sistema. Além disso, na medida que o Estado-nação passa a ser incapaz de lidar com a situação, transforma-se a configuração de um Estado de Direito para um Estado Policial, em que o aparato passa a decidir quem 41 tem direito à que (LAFER, 1988, p. 149). Arendt enfatiza a essencialidade da igualdade política em detrimento da sociedade de privilégios, afirmando que: Pois o Estado-nação não pode existir quando o princípio da igualdade perante a lei é quebrado. Sem essa igualdade legal, que originalmente se destinava a substituir as leis e ordens mais antigas da sociedade feudal, a nação se dissolve numa massa anárquica de indivíduos super e subprivilegiados. As leis que não são iguais para todos transformam-se em direitos e privilégios, o que contradiz a própria natureza do Estado-nação. Quanto mais clara é a demonstração de sua incapacidade de tratar os apátridas como ‗pessoas legais‘, e quanto mais extenso é o domínio arbitrário do decreto policial, mais difícil é para os Estados resistir à tentação de privar todos os cidadãos da condição legal e dominá-los com uma polícia onipotente. (ARENDT, 1989, p. 323-324). Segundo Arendt, as práticas imperialistas cumprem o objetivo de estabelecer e demonstrar a superioridade européia sobre o resto do mundo, além da criação de instrumentos de dominação para subjugar as colônias, de maneira que isso não afete a estrutura jurídica do país dominante. A dominação das colônias era fundamentada pela negação de qualquer limite político, legal ou moral (ARENDT, 1989), visando sempre o controle sobre o território anexado. Contudo, a partir do momento que tais mecanismos são utilizados para a dominação das colônias, não demora para que tais práticas ultrapassem as fronteiras e tornem-se rotineiras também no país dominante. A oposição entre normas do direito estabelecidas pelo Estado-nação e as ações praticadas pelo mesmo em seu território colonial degeneram a legitimidade da ordem jurídica em geral, vez que os princípios essenciais do Estado-nação – isonomia, soberania nacional e autodeterminação – são antagônicos às ações de dominação manifestas por ele (BRITO, 2013). Na verdade, Arendt aponta que a nação acabou fechando-se em si mesma e estabeleceu o fim das migrações. Por outro lado, o Estado como instituição de poder se abre para novos territórios, expressando seu caráter expansionista. Tais elementos – o fechado e o aberto – combinados no Estado-nação resultam em 42 movimentos imperialistas. Segundo a autora, toda essa situação só foi possível a partir da queda da monarquia e do surgimento de classes, vez que a falta de unidade no corpo político – em consequência desses dois acontecimentos – gerou certa insegurança, na medida que o interesse comum foi substituído por conflitos constantes entre classes na busca pelo domínio do aparato estatal (LAFER, 1988, p. 147). Segundo Arendt, essa degradação não foi mero acaso9, vez que, de acordo com a autora, Estado e nação são elementos opostos e a união de ambos os conceitos já apresenta um vício em sua origem. Nesse sentido, o Estado deixa de operar dentro da legalidade e a nação acaba dominando-o com uma ideologia racista; a norma jurídica deixa de ser o fundamento das ações e o Estado é submetido à posição de instrumento dos interesses mutáveis da nação. No caso analisado por Arendt, o objetivo da nação era a eliminação de qualquer coisa que escapasse da noção de identidade criada por ela; o uso de políticas excludentes e separatistas foi o que culminou no surgimento dos apátridas. Os apátridas são pessoas desprovidas de quaisquer estatutos legais, relativamente às quais nenhum outro Estado reclama a tutela. Na medida que nenhum corpo político reivindique a tutela jurídica desses sujeitos e lhes garanta acesso aos direitos e deveres de um cidadão, nenhuma lei pode alcançar esses indivíduos, seja de maneira positiva, seja de maneira negativa. O vazio legal desses indivíduos em relação aos demais (que participavam do corpo político) significava, 9 Segundo Arendt (2010, p. 232), a história é constituída de “atos e feitos, e não de tendências e forças ou ideias”; ou seja, não há uma determinação ou necessidade que paute o desenvolvimento histórico. A história é resultado da ação humana, pautada pela espontaneidade, imprevisibilidade e liberdade de seus atos. No caso dos Estados-nação, o fato de não estarem radicalmente fadados ao fracasso, não quer dizer que já na sua origem essa degradação não se apresentasse como possibilidade, que se realizou – não por uma necessidade histórica – por eventualidade das ações humanas. 43 para a autora, a perda do mundo (ARENDT, 1989), dado o impedimento deles de participar e compartilhar do mundo criado pelo artifício humano. Arendt caracteriza essa falta de tutela legal como perda do mundo, porque esse vazio jurídico não se constitui apenas em um estado, mas, sim, na destituição dos atributos legais do sujeito; melhor dizendo: no caso dos apátridas, não a relação entre um sujeito e um Estado que se desfaz, mas, sim, a do sujeito e de qualquer ordenamento jurídico. Enquanto um corpo político não reclamar esse indivíduo, ele segue sendo o refugo da terra (ARENDT, 1989). Sem uma personalidade legal, nenhuma lei se aplica a ele, nenhuma reivindicação dele é ouvida; não há direitos, nem deveres, e esse sujeito passa a ser considerado como um nada (BRITO, 2013). Diante disso, é possível afirmar que a expulsão de uma comunidade política significava a perda de todos os direitos do indivíduo, vez que ―não restava nenhuma autoridade para protegê-los e nenhuma instituição disposta a garanti-los‖ (ARENDT, 1989, p. 325). Mais do que isso, a perda da comunidade política significava também a perda de sua dignidade. O fato de algumas pessoas não conseguirem se estabelecer em lugar nenhum e não encontrarem lugar na terra para fixar-se foi, para a autora, algo sem precedentes. A situação desses povos sem lar foi considerada por Arendt como sintoma grave de problemas no sistema político internacional, vez que a ocorrência de apátridas foi crescendo cada vez mais, o que fez com que isso se tornasse um problema para toda comunidade internacional, não mais como a situação de um único Estado. Diante de várias minorias étnicas e apátridas sem espaço para ser algo dentro de algum Estado-nação, emerge a necessidade de aplicação de tratados 44 excepcionais para lidar com o cenário. Os Tratados de Minorias apenas reforçavam o caráter sistemático da situação. Antes que a política totalitária conscientemente atacasse e destruísse a própria estrutura da civilização europeia, a explosão de 1914 e suas graves consequências de instabilidade haviam destruído a fachada do sistema político – o bastante para deixar à mostra o seu esqueleto. Ficou visível o sofrimento de um número cada vez maior de pessoas às quais, subitamente já não se aplicavam as regras do mundo que as rodeava. (ARENDT, 1989, p. 300-301.) A utilização dos Tratados de Minorias representava não apenas um problema de organização política dos Estados-nação da Europa, como também um reconhecimento de que milhões de pessoas viviam em situação de fragilidade legal. Além disso, o estabelecer da necessidade de afirmação desses tratados tornou as minorias uma espécie de instituição permanente que carecia de proteção especial, fazendo com que a exceção fizesse parte da vida dessas pessoas. Os tratados revelavam explicitamente que no contexto desses Estados- nação apenas os nacionais são considerados cidadãos, e, mais do que isso, que, somente quando abre mão de sua singularidade é que o diferente pode ser reconhecido como ser de direito. O problema dos apátridas era mais do que uma questão temporária; era, na verdade, uma característica endêmica desse sistema que só encontraria solução a partir da assimilação completa (ARENDT, 1989). 4.2 Direito a ter direitos. A ideologia nacionalista se pautava em uma noção biológica de nação, em que os sujeitos eram divididos como raças homogêneas que passaram a ser incompatíveis entre si, estabelecendo como base das relações a dinâmica de amigo e inimigo. Em um contexto em que a nação se encontrava cercada de inimigos, a única possibilidade de sobrevivência era sua emancipação nacional (por meio do Estado-nação) e a eliminação total de seus inimigos públicos (os não-nacionais). 45 Como consequência disso, um sentimento nacionalista racista e separatista passou a dominar a nação, que por sua vez passou a interferir nas funções próprias do Estado. O elemento Estado, que deveria ser a instituição responsável por resguardar e amparar todos os seus habitantes passou a ser mero instrumento de aplicação de políticas separatistas e dominação da nação. O nacionalismo surgiu não só como princípio uniformizador entre os indivíduos, mas também como elo entre indivíduo e Estado. A proteção estatal passa a adotar a nacionalidade como critério de tutela. Arendt percebe que ao perder sua nacionalidade, o indivíduo encontra-se despido de quaisquer direitos, inclusive daqueles que antes eram declarados intrínsecos ao homem. Os direitos humanos da forma como estavam configurados seriam, na verdade, direitos nacionais. A única lei que abarcava de alguma forma esses indivíduos sem lar eram os tratados de minorias. Os direitos humanos sem um Estado que legitimasse seu reconhecimento e efetivação não tinham poder de tutela. Da mesma forma que a autora critica o caráter abstrato dos direitos humanos – vez que essa abstração e idealismo contrapõem-se ao princípio de pluralidade –, ela também demonstra que o nacionalismo choca-se diretamente com o princípio de pluralidade humana. O nacionalismo opera a partir da oposição a um outro (amigo/inimigo), o que inviabiliza o relacionamento entre sujeitos diferentes; melhor dizendo: todo aquele que escapa dos critérios nacionalistas de cidadão não serve para o estabelecimento de qualquer tipo de relação. Segundo a professora Renata Brito (2011, p. 57): A ideologia nacionalista, que determina sua identidade justamente em oposição a um outro (que é em geral definido como inimigo), é um obstáculo ao relacionamento entre homens diferentes, isto é, entre pessoas que não compartilham dos mesmos vínculos culturais, históricos, étnicos e etc. Embora a pluralidade signifique que não podemos pensar os homens de forma independente de quem eles são e do contexto em que vivem, onde sua singularidade pode vir à tona, o excesso de vinculação a um determinado contexto também é compreendido como um obstáculo à pluralidade, visto que significa a desvalorização ou desconsideração do que é diferente. 46 O vínculo com seu meio é importante não só para a formação da identidade do sujeito, como também para que ele a expresse e, assim, apareça para o outro. Contudo, o sujeito não pode limitar suas relações aos costumes de seu meio; quando o homem se fecha para o diferente, acaba anulando a pluralidade, e, assim, impossibilita a expressão de sua própria identidade. O único direito humano que é de fato anterior a todos os outros direitos é o direito a ter direitos. Os direitos humanos – assim como qualquer outro direito – não são dados, nem tampouco garantidos por natureza. Assim como todas as leis, os direitos humanos são um artifício político, e, como tal, necessitam de uma organização política que os fundamente, legitime e exerça. O ponto a ser destacado em relação a analise de Arendt com respeito aos direitos humanos é que a autora chama atenção aos problemas que impossibilitam a efetivação de tais direitos e que a superação desses problemas só seria possível quando a questão fosse levada ao debate na esfera pública; melhor dizendo: seria necessário parar de tratar tais direitos como próprios do sujeito por natureza e levá- los à discussão no âmbito político, ao qual todos os direitos pertencem. Não existe um conjunto de direitos por natureza anteriores à comunidade política. A efetivação de tais direitos só é possível na medida que esses são levados ao debate público, e, por meio do discurso e da política, são redefinidos e reestruturados: A privação fundamental dos direitos humanos manifesta-se, primeiro e acima de tudo, na privação de um lugar no mundo que torna a opinião significativa e a ação eficaz. (...) [Os homens são] privados não do seu direito à liberdade, mas do direito à ação; não do direito de pensarem o que quiserem, mas do direito de opinarem. (ARENDT, 1989, p. 330). Quer dizer, a perda dos direitos humanos significa a impossibilidade de participação do artifício humano mundo. O mundo ao qual Arendt se refere é a forma com que os seres humanos se organizam na Terra; esse mundo não comporta 47 apenas os objetos criados pelo homem, mas também as instituições e leis que organizam o convívio e relações estabelecidas. Quando Arendt refere-se aos apátridas como povos sem lar, não diz respeito apenas a não pertencerem a um território, mas sim a perderem o poder de ação ou de relacionar-se dentro do artifício social. Sem esse mundo como instrumento mediador das relações humanas, elas simplesmente não são possíveis; por isso, ao ser expulso desse mundo, os apátridas eram considerados excluídos da humanidade. Melhor dizendo: a vida humana na Terra necessita de um grau de organização que delimite espaços de acordo com suas funções; a principal divisão é aquela entre espaço público e espaço privado. Quando um indivíduo é impossibilitado de exercer sua função no âmbito público, ele ainda pertence à comunidade política, e, sendo assim, ainda é sujeito de direitos, pois sofrer algumas sanções ou punições também faz parte da vida do cidadão. Contudo, quando o indivíduo é expropriado de seu lugar no mundo ele perde não só a possibilidade de agir no espaço público como também o direito a possuir um espaço privado (BRITO, 2013). Estar no âmbito privado significa, para a autora, privar-se da realidade que advém de ser visto e ouvido por outros, desprovido de uma relação objetiva com outros em decorrência do fato de ligar-se e separar-se deles por intermédio de um mundo comum de coisas, bem como privado da possibilidade de realizar algo mais permanente do que a própria vida (BRITO, 2013). Contudo, cumpre ressaltar que o espaço privado tem extrema relevância para a vida humana, vez que esta não pode se desenvolver apenas no espaço público e necessita, por vezes, ocultar-se da inspeção alheia para poder desenvolver-se em sua singularidade (ARENDT, 2007). 48 É somente na esfera privada que os homens podem estabelecer relações de afetividade e intimidade, além de poder se distanciar para realizar atividades de reflexão e contemplação. Segundo Arendt, isso só é possível no espaço privado, por causa da propriedade privada, que consegue proporcionar a devida segurança em relação ao espaço público, estabelecendo um lugar próprio no mundo que não diz respeito a todas as outras pessoas. A propriedade privada cumpre a função de proporcionar algo estável e permanente e, por conta disso, desempenha o papel de refúgio protetor da intimidade humana; além disso, empresta estabilidade à esfera pública, vez que auxilia na fixação das pessoas em determinadas comunidades, garantindo sua permanência no corpo político. Desse modo entende Arendt a propriedade privada, em função de suas características relevantes para ambas as esferas da existência humana, revelando uma noção de mundo entendido como múltiplos espaços em que diversas formas de relação podem ser estabelecidas. A perda do mundo significa então o esvaziamento de todo e qualquer tipo de relação humana já estabelecida pelo sujeito e a impossibilidade de ele instituir novas relações. O mundo toma a forma de palco primeiro das ações humanas e, segundo a autora (ARENDT, 1999, p. 35-36): [...] em toda parte e que os homens se juntam - seja de forma privada ou socialmente, seja em público ou politicamente –, um espaço é gerado que simultaneamente os reúne e os separa uns dos outros. Cada um desses espaços tem sua própria estrutura que se transforma com a mudança dos tempos e que se revela no contexto privado como costumes; em um contexto social como convenções e em um contexto público como leis, constituições, estatutos e coisas semelhantes. Sempre que os homens se juntam, entende-se o mundo entre eles, e é nesse inter-espaço que se conduzem os assuntos humanos. O desligamento do sujeito em relação ao mundo significa não só a perda dos direitos, mas também a impossibilidade de ele relacionar-se com as demais pessoas,tanto no âmbito público (politicamente), quanto também na esfera privada 49 (afetivamente). Ao anular o espaço de relacionamento para os apátridas, estes também são privados de seu próprio desenvolvimento como humanos, vez que é apenas nesse espaço que a vida humana na Terra se realiza. O sujeito precisa do reconhecimento alheio para conseguir não apenas desenvolver a relação com o outro, mas também uma relação com o mundo. Na falta desse reconhecimento, o sujeito perde a capacidade de vincular-se a algo ou a alguém. O mundo construído pelo homem oferece a estrutura que possibilita o estabelecimento de uma relação entre os indivíduos, e os apátridas, ao serem destituídos de sua cidadania, e, consequentemente,de seus direitos tanto civis,quanto humanos, foram privados justamente dessa estrutura. O direito a ter direitos significa, dessa forma, o direito de participar do próprio artefato humano, que Arendt entende como usufruir de direitos ou participar de um corpo político, vez que se trata de uma ―estrutura onde se é julgado pelas ações e opiniões‖. (ARENDT, 1989, p. 330). Para legitimação do direito de agir e da relevância da opinião, se faz necessário que estes estejam inseridos em uma ordem jurídica, e o direito a ter direitos aponta para a necessidade de um ordenamento tal que impossibilite a exclusão de determinados homens dessa estrutura. Arendt ainda chama atenção para o caráter de essencialidade da política na vida humana, na medida em que afirma que ―só a perda da própria comunidade é que expulsa [o homem] da humanidade‖ (ARENDT, 1989, p. 331), demonstrando o caráter fundamental da organização político-jurídica para o indivíduo. Contudo, levanta-se a questão do que garantiria ao sujeito o seu pertencimento a uma comunidade específica, assegurando assim uma posição legal que lhe permita participar no mundo humano. Na obra ―The Right of Others” (2004), 50 Benhabib faz um paralelo entre a ideia apresentada por Arendt do direito a ter direitos com a noção kantiana de direito cosmopolita, afirmando que Arendt fundamenta o direito a ter direitos no conceito de humanidade, quando afirma que (ARENDT, 1989, p. 332): [...] a humanidade, que para o século XVIII, na terminologia kantiana, não passava de uma ideia reguladora, tornou-se hoje de fato inelutável. Esta nova situação, na qual a humanidade assumiu de fato um papel antes atribuído à natureza ou à história, significaria nesse contexto que o direito de ter direitos, ou o direito de cada indivíduo de pertencer à humanidade, deveria ser garantido pela própria humanidade. Diante da situação, a humanidade perderia seu caráter biológico e passaria a operar como instituição. O problema é que isso não funciona factualmente, dado o fato de os sujeitos pertencerem à espécie humana não lhes privou dos sofrimentos causados pelos regimes totalitários. No que diz respeito à humanidade, Arendt não vê como viável a ideia de um governo mundial, que seria responsável por assegurar o pertencimento de cada indivíduo a uma espécie de Estado global, vez que os homens são seres plurais e circunstanciados que fundamentam seu agir de acordo com os costumes e leis de uma comunidade específica territorialmente limitada. Um governo mundial destruiria o espaço para a política, pois inviabilizaria o compartilhamento de espaços públicos em comum. (BRITO, 2013). A autora ainda vincula a noção de humanidade às noções de pluralidade e de mundo comum, afirmando não só que é parte da natureza humana ser plural, como também que essa pluralidade só é possível se inserida em experiências políticas dentro de comunidades determinadas. Cabe investigar aqui o que significa essa noção de humanidade na filosofia arendtiana. 51 4.3 Território e Mundo. Arendt afirma que ao anular as leis, anula-se também a liberdade. A liberdade só é passível de efetivação dentro de um mundo construído pelas relações humanas e organizado por instrumentos legais e instituições humanas. A autora explicita a conexão entre o participar de uma rede de legalidade e o estar no mundo entendido como artifício humano, explicitando os possíveis riscos políticos produzidos pela ausência de mundanidade. Em parte de sua análise sobre o chamado nacionalismo tribal – que teve destaque principalmente no centro e no leste europeu –, a autora argumenta que um dos fatores fundamentais que proporcionou esse isolacionismo (BRITO, 2013) e a vinculação, quase que simultânea, dessa ideologia com as teorias racistas foi o fato de que tais povos dessas regiões não pertenciam a território nenhum. Esses povos tinham um vasto histórico de migrações constantes que fazia com quem eles não possuíssem de fato um lar. Não tendo o estabelecimento de um território fixo, não era possível que esses povos se identificassem com nenhum corpo político fixo e estabelecido; o critério de identificação se dava, portanto, pela nacionalidade, o que fez com que suas relações se fundamentassem não na construção de um mundo comum com outros povos, mas em questões naturais ou biológicas. A esses povos faltava a estabilidade e permanência das instituições políticas, que se mantêm apesar das mudanças naturais, pois suas vidas eram marcadas também por constantes mudanças. O que lhes faltava era o vínculo com o mundo artificial, vez que essa ausência dele nas relações com os demais povos foi o que impulsionou ainda mais a divisão entre eles e o resto do mundo, gerando isolacionismo e racismo (BRITO, 2013). 52 A ausência de um vínculo com o mundo ocorrendo de maneira simultânea com o fenômeno do desenraizamento resultou no isolacionismo, justamente porque é esse mundo que nos une. É o mundo e as relações estreitadas dentro dele, e não a natureza, que o homem tem em comum com os demais; e é por conta dessa necessidade de compartilhar o mesmo espaço que os indivíduos relacionam-se entre si (ARENDT, 2010). O mundo, criado pelas ações e artifícios dos homens (em oposição à natureza, que lhes é dada), é de responsabilidade desses homens. Nesse sentido, compartilhar um mundo significa também compartilhar a responsabilidade por esse mundo, vez que, por conta do avanço tecnológico, as decisões tomadas em uma parte da Terra têm o potencial de afetar todos seus outros habitantes. Se, por um lado, a grande intensificação do racismo nos séculos XIX e XX foi uma tentativa de excluir as relações de um povo com todos os demais, ao mesmo tempo isso indica também que o mundo humano expandiu-se de tal forma a ponto de ser, factualmente, um só. Contudo, contra a ideia simplista de um único mundo, Arendt contrapõe a noção de humanidade. Em seu artigo ―The Rights of Man. What are they?‖(1949), Arendt argumenta que, embora o direito efetivo seja possível apenas quando inserido em uma comunidade política, depende também da garantia tácita que os membros da comunidade oferecem uns aos outros; além disso, ainda que os chamados direitos humanos sejam históricos e dependam das circunstâncias em que os sujeitos estão inseridos – o que significava, naquele momento, que eles são garantidos pela nação –, há um direito que não obedece a essa lógica, isto é, que não se origina dentro da nação e que precisa de garantias para além das garantias nacionais: este é o direito a ter cidadania (ARENDT, 1949). 53 Esse direito não deve entendido como um direito natural dado e anterior à instituição de organizações políticas. Segundo Arendt, nos séculos XVIII e XIX, assumiu-se, inicialmente, que a natureza é menos estranha à essência do homem que a história e, por conta disso, os direitos históricos foram substituídos por direitos naturais. Contudo, a perspectiva de uma natureza que abrigue espiritualmente o homem, oferecendo-lhe um todo compreensível e determinado, também já foi superada, fazendo com que tanto a natureza, quanto a história sejam consideradas estranhas ao homem; o resultado disso é que apenas a humanidade seria capaz de garantir tais direitos. Nesse ponto, Arendt explicita aquilo que será retomado em Origens do Totalitarismo, ou seja, a humanidade passou de um conceito ideal para uma realidade inescapável. As nações não mais se encontraram geograficamente delimitadas, e, uma vez que não existem mais obstáculos naturais que impeçam seu relacionamento mútuo, a divisão acaba sendo dissolvida. Em decorrência dessa nova condição política, a humanidade passa a exercer a função de garantidora de direitos; isso quer dizer que a responsabilidade de garantia dos direitos, antes compartilhada pelos membros de cada nação, se expande para além das fronteiras do território nacional, sendo agora compartilhada por membros de diversas nações diferentes simultaneamente; quer dizer: a responsabilidade política é estendida para a vida internacional. Diante disso, a humanidade manifesta-se como uma única entidade política possível, na medida que essa entidade transcende a esfera da lei internacional daquele momento, inaugurando uma esfera de lei acima das nações. (ARENDT, 1949). Ainda que o direito internacional se utilize de tratados e acordos mútuos para