unesp UNIVERSIDADE ESTADUAL PAULISTA “JÚLIO DE MESQUITA FILHO” Faculdade de Ciências e Letras Campus de Araraquara JÚLIA SILVA LOBO CAMPOS Entre reconhecimento e enquadramento: uma análise da Teoria de Justiça de Nancy Fraser ARARAQUARA - SP 2019 JÚLIA SILVA LOBO CAMPOS Entre reconhecimento e enquadramento: uma análise da Teoria de Justiça de Nancy Fraser Trabalho de Conclusão de Curso (TCC) apresentado ao Conselho de Curso de Ciências Sociais, da Faculdade de Ciências e Letras – Unesp/Araraquara, como requisito para obtenção do título de Bacharel em Ciências Sociais. Orientador: Prof. Dr. Marcelo Santos ARARAQUARA - SP 2019 Ficha catalográfica elaborada pelo sistema automatizado com os dados fornecidos pelo(a) autor(a). JÚLIA SILVA LOBO CAMPOS Entre reconhecimento e enquadramento: uma análise da Teoria de Justiça de Nancy Fraser Trabalho de Conclusão de Curso (TCC) apresentado ao Conselho de Curso de Ciências Sociais, da Faculdade de Ciências e Letras - Unesp/Araraquara, como requisito para obtenção do título de Bacharel em Ciências Sociais. Orientador: Prof. Dr. Marcelo Santos Data da defesa/entrega: 29/11/2019 MEMBROS COMPONENTES DA BANCA EXAMINADORA: Presidente e Orientador: Prof. Dr. Marcelo Santos - UNESP/Araraquara Membro Titular: Prof. Dr. Milton Lahuerta - UNESP/Araraquara Membro Titular: Prof.ª Dr.ª Carla Gandini Giani Martelli - UNESP/Araraquara Local: Universidade Estadual Paulista Faculdade de Ciências e Letras UNESP - Campus de Araraquara AGRADECIMENTOS Aos meus pais, por acreditarem em mim e nunca deixarem de me incentivar. À minha irmã, pelo companheirismo e auxílio com quaisquer questões que me geraram dúvida durante todos esses anos. Ao meu orientador, Prof. Marcelo Santos, pela atenção e dedicação nas conversas e orientações. Aos meus amigos de sala, Karen, Ju, Laís e João. Pela amizade e empatia, o meu mais sincero obrigada. Às companheiras da República TL, pela parceria e aprendizado sem fim. Tenho em mim, hoje, um pouco de cada uma. “A igualdade, em contraste com tudo o que se relaciona com a mera existência, não nos é dada, mas resulta da organização humana, porquanto é orientada pelo princípio da justiça. Não nascemos iguais, tornamo-nos iguais como membros de um grupo por força da nossa decisão de nos garantirmos direitos reciprocamente iguais”. Hannah Arendt (2012, p. 410) RESUMO O trabalho exposto aqui apresenta o tema da justiça social a partir da abordagem dada a tal pela filósofa norte-americana Nancy Fraser que, através de categorias e conceitos essenciais estabelecidos, busca elaborar uma teorização normativa objetivando pesquisar as reivindicações sociais próprias da contemporaneidade constitutivas de demandas por justiça. Em meio a pluralidade e variedade de manifestações particulares características das sociedades contemporâneas, a autora realiza uma investigação aprofundada que possibilita compreender de forma concreta a relação entre os sujeitos e as instituições sociais como originadoras de ações mais ou menos justas. Assim, ao refletir a respeito de períodos históricos específicos fundamentais a colocação de padrões de valor - responsáveis estes, pela regência das preferências humanas - e, consequentemente, às necessidades sociais manifestadas, Fraser parte da observação das atividades dos movimentos sociais entre os anos de 1970 e 1980, chegando até o advento da globalização e as transições sofridas pela estrutura social e organização dos indivíduos em meio a coletividade para atingir, assim, uma argumentação concreta e próxima do real sobre a relação entre as teorias de justiça, os modelos normativos construídos e a sociedade. Através de conceitos-chave particulares, como enquadramento, reconhecimento e representação, é possível depreender da teorização colocada aqui, respectivos embates e contribuições teóricas que, quando problematizadas a partir da observação das vivências coletivas, vêm a elucidar o objetivo da autora com a sua pesquisa e proporcionar reflexões a respeito do vir a ser dos arranjos democráticos e da participação social na esfera política. Palavras-chave: Nancy Fraser, teoria de justiça, reconhecimento, enquadramento ABSTRACT The work presented here presents the theme of social justice based on the approach taken to this by the American philosopher Nancy Fraser who, through established categories and essential concepts, It seeks to elaborate a normative theorization aiming at researching the social claims proper to contemporaneity constitutive demands for justice. Amid the plurality and variety of particular manifestations characteristic of contemporary societies, the author carries out an in-depth investigation that makes it possible to understand concretely the relationship between the subjects and social institutions as originators of more or less just actions. Thus, in reflecting on specific fundamental historical periods, the laying down of value standards - responsible for these, for the rule of human preferences - and, consequently, for the social needs manifested, Fraser part of the observation of the activities of the social movements between the years 1970 and 1980, arriving until the advent of globalization and the transitions suffered by the social structure and organization of the individuals amid the collectivity to reach, thus, a concrete and close argument about the relation between the theories of justice, the built normative models and society. Through particular key concepts such as framework, recognition and representation, it is possible to deduce from the theorization placed here, their respective clashes and theoretical contributions that, When problematized from the observation of collective experiences, come to elucidate the goal of the author with its research and provide reflections on the future of the democratic arrangements and social participation in the political sphere. Keywords: Nancy Fraser, theory of justice, recognition, framework SUMÁRIO 1 Introdução ……………………………………………………………….. 11 2 Nancy Fraser e as Teorias de Justiça …………………………………... 13 2.1 Injustiça Econômica e Injustiça Cultural ………………………….... 14 2.2 Coletividades Bivalentes …………………………………………….... 16 2.3 Remédios Afirmativos e Remédios Transformativos ……………….. 18 3 A questão do reconhecimento ………………………………………….. 21 3.1 O modelo da identidade ………………………………………………. 21 3.2 O modelos do status …………………………………………………... 25 4. A questão do enquadramento …………………………………………. 29 4.1 O modelo Westfaliano e a esfera Política da Justiça ………………... 30 4.2 O modelo pós-Westfaliano ……………………………………………. 33 4.3 Os perigos do século XX e a contribuição de Hannah Arendt ……... 35 5 Considerações Finais ……………………………………………………. 41 Referências Bibliográficas ………………………………………………... 45 11 1. Introdução Desde o início dos processos de desenvolvimento humano aos quais se tem conhecimento, tais referentes ao ser humano como animal racional munido pela ato da comunicação e do pensamento coletivo e político, o tema da justiça tem integrado o espectro de questões eleitas fundamentais à convivência harmônica dos grupos sociais e a sua continuidade também. A percepção de uma existente necessidade normativa e anterior teorização sobre o assunto se fez presente, então, a partir dos primeiros traços de arranjos sociais relatados pela história social, onde o estudo das relações humanas e da interação entre sociedade e instituições permitiu seu desdobramento através dos tempos, acompanhando, assim, as mudanças sofridas pelas organizações sociais e pela configuração dos sujeitos. Ao longo de tais transformações, o conceito de justiça experimentou importantes mutações também, que refletem, justamente, características significações que tal termo passou a ocupar em dado momento histórico-social. Assim, pensar em modos de ação que sejam configurados como justiça implica, antes, em reconhecer as necessidades requeridas inseridas em uma situação ideal de justiça, ou seja, nos princípios valorativos e institucionalizados que manifestam os gostos e preferências padronizadas constituintes do desejo humano, e que denota a ele a possibilidade de fazer escolhas. A maneira com que os sujeitos reivindicam suas respectivas prerrogativas afirma o padrão valorativo que constrói a sua formação social como membros de um corpo coletivo e a forma de ver o mundo a sua volta, assim como os princípios que regem o pensamento dos seres humanos e perduram durante anos de existência em seus grupos de convivência. Tendo, então, que as teorizações de justiça produzidas procuram nas características manifestadas pela sociedade o seu padrão de regência e normatização, é possível pensar que os tipos de associações valorativas feitas ao longo da história da humanidade são responsáveis por denotar, também, a forma predominante de análise que será colocada perante o estudo da relação entre as teorias e as realidades sociais correspondentes a essas. De forma a investigar, então qual a norma social prevalecente e mais efetiva para a organização de políticas sociais mais justas e relacionadas ao problemas de cada tempo e realidade histórica, os estudos sobre justiça buscam pensar os conflitos sociais próprios de cada período a partir das necessidades manifestadas socialmente e dos valores dominantes de tais momentos. Dessa maneira, as teorias de justiça contemporâneas, ao refletirem a respeito dos problemas próprios da contemporaneidade, indicam o vir a ser da sociedade atual através dos valores 12 cristalizados socialmente e das transformações que esses sofrem advindas do desdobramento da vivência dos seres em conjunto e das descobertas técnicas realizadas. O trabalho exposto aqui, assim, almeja refletir a respeito de princípios fundamentais à construção de uma teoria normativa de justiça e a sua relação com a realidade social concreta contemporânea, tendo, como base, a teoria de justiça sistematizada pela filósofa norte-americana Nancy Fraser. A partir de um primeiro capítulo introdutório responsável por dissertar sobre a linha de raciocínio da autora, busca-se compreender os aspectos eleitos pela mesma como essenciais ao entendimento e identificação das demandas sociais contemporâneas, as suas formas de manifestação e, os principais conceitos normativos que dão significado à tal elaboração teórica pela justiça. O segundo e o terceiro capítulos referem-se, especificamente, a duas categorias normativas essenciais ao desdobramento da estrutura de justiça de Fraser e a respectivos embates teóricos encaminhados pela autora em dado momento. No capítulo dois, será discutido o tema do reconhecimento, a sua relação com distintos modelos de justiça social, e, ainda, o diálogo existente entre os escritos de Fraser com o filósofo alemão Axel Honneth. Enquanto, o capítulo três, vem de forma a apresentar uma continuidade e atualização da obra de Fraser, onde a questão do enquadramento toma frente do debate e inclui à reflexão as contribuições de Hannah Arendt a respeito da negação de humanidade e dos perigos propriamente humanos para a democracia. Ao compreender, então, o caminho lógico proposto pela autora, se faz possível também, depreender questões teóricas fundamentais a teorização sobre justiça social, bem como expandir a reflexão a respeito das consequências concretas aos modos de vida dos sujeitos contemporâneos, passando, assim, por uma reflexão sobre a democracia atual e o espaço participativo ocupado pelos atores sociais do período, em meio a um modelo de sociedade global e plural. 13 2. Nancy Fraser e as teorias de justiça normativa. A autora norte-americana Nancy Fraser destaca-se como um dos principais nomes dentre os estudos contemporâneos em teorias de justiça devido ao caráter transformador, analítico e concreto de seus escritos, dado que faz-se notável em suas obras a preocupação em relação a abrangência teórica e a compatibilidade normativa com o objeto de estudo. Nascida em 1947, na cidade de Baltimore, Fraser estudou Filosofia na City University of New York e pode ser interpretada atualmente como uma filósofa e intelectual aliada a escola de pensamento da Teoria Crítica. Em suas obras, a autora transparece o esforço analítico empenhado a fim de proporcionar um vínculo consistente entre teoria e prática nas questões reais de justiça e injustiça social. De forma a investigar e compreender os distintos elementos componentes das realidades contemporâneas, compromete-se com o estudo das relações interpessoais, bem como do indivíduo com a sociedade, e leva tal conteúdo ao âmbito teórico de maneira a não deixar escapar detalhes minuciosos e sutis de análise que, entretanto, são fundamentais à sua pesquisa. Visto que as sociedades contemporâneas são verdadeiras aglomerações de agentes sociais, compostas por sujeitos distintos, que encontram-se em grande número e abarcam um vasto território de pluralidades, gostos, origens e manifestações diferentes entre si, impõe-se como uma frequente indagação aos teóricos da contemporaneidade pensar a forma com que se dá a relação de tais atores sociais e, a partir de quais categorias ela é estabelecida, perante quais aspectos e circunstâncias particulares. Tal modelo de sociedades é composto por diversos setores que influenciam as formas de vida dos seus respectivos sujeitos e são responsáveis pelo desdobramento da estrutura social tal qual se conhece. O tema da justiça como conceito normativo é pensado a partir da constatação de maneiras de se relacionar estabelecidas por esses diferentes setores, onde através de um esquema de hegemonia, domínio e padronização valorativa as inferências em cada sujeito da sociedade vêm a diferir. Ao passo que todos esses setores estão presentes na estrutura social a partir de uma institucionalização dos mesmos, nota-se que de acordo com a vinculação e a consequência prática existente entre dado setor e sujeito, são caracterizadas ações de justiça ou injustiça. Sendo tais ações institucionalizadas, pois são advindas de características institucionais, a discussão a respeito dos valores que regem a concretização das injustiças também é inserida no campo institucional, por meio de teorizações e experiências normativas. Fraser, ao indagar sobre a questão da justiça em 14 meio às sociedades contemporâneas opta, então, por pensar a partir do que de fato se constitui uma ação de injustiça e traçar um caminho de retorno até a sua origem, no cerne das relações humanas contemporâneas e das grandes áreas institucionais responsáveis por aparelhar a vida em sociedade. 2.1 Injustiça Econômica e Injustiça Cultural Ao se pensar nos principais setores influentes na sociedade contemporânea, tem-se que a economia e a cultura constituem eixos institucionais fundamentais ao desenvolvimento humano e a sua forma de estabelecer conexões consigo, com os demais e o espaço. Seguindo o raciocínio colocado por Fraser, é possível ter que tais esferas sociais - economia e cultura - são capazes, assim, de promover tanto justiça, quanto injustiça, dependendo isso da maneira com que é fundada e reproduzida a sua relação com os indivíduos em sociedade. Em Da redistribuição ao reconhecimento? Dilemas da justiça numa era “pós-socialista” (2006) e Repensando o reconhecimento (2010), Nancy Fraser discorre sobre as características de tais esferas quando influentes na forma como os sujeitos vivem em conjunto e, ainda, reflete a respeito das ações de justiça e injustiça próprias de cada um desses setores sociais, pensando, assim, no que de fato pode ser compreendido como uma estrutura social promotora de igualdade ou desigualdade. Assim, é proposto pela autora especificar de forma analítica dois tipos de injustiça que, em meio à arena de discussão sobre teorias de justiça, manifesta uma divisão de visões de mundo refletidas, então, em investigações primordiais sobre a constituição da injustiça fundamental: a injustiça econômica e a cultural ou simbólica. A injustiça econômica é diretamente ligada à esfera social da economia e, pode ser concretizada a partir da concepção de exploração, privação e marginalização social. Nota-se, logo, que tal injustiça pode ser encontrada radicada na estrutura de trabalho e na divisão do trabalho social das sociedades contemporâneas, onde um trabalho que não possui remuneração condizente com a ação desempenhada na função, não permite acesso a um padrão básico de vida comum a sociedade e explora o trabalhador a partir de uma obrigação desagradável, se configura como causador de injustiças. A injustiça simbólica ou cultural se enquadra em um tipo diferente de esfera social, sendo característica dos “padrões sociais de representação, interpretação e comunicação” (FRASER, 2006, p. 232). Nesse caso, as ações de injustiça estão vinculadas com a ausência de respeito recorrente de alguma característica tipicamente cultural, a partir de esteriotipações, difamações e desqualificações baseadas em uma padronização de valor 15 dominante e em atos supressivos de particularidades advindas de tradições ou expressões alegóricas, sendo essas características de culturas e manifestações distintas da ordem vigente dominante também. É importante ressaltar que, de acordo com a autora, há um histórico de compromisso com o igualitarismo àqueles autores teóricos que, inseridos no âmbito de investigação das teorizações de justiça, afirmavam ter a injustiça econômica como a fundamentadora de demais injustiças que o sujeito pode vir a sofrer perante sua existência em convivência social, como, por exemplo: “(...) a teoria de Marx sobre a exploração capitalista; a concepção de justiça de Rawls, como justiça na seleção dos princípios que regem a distribuição dos ‘bens primários’; a visão de Amartya Sen, de que justiça implica ‘capacidades de função’ iguais; e a de Ronald Dworkin, de que justiça implica igualdade de recursos.” (FRASER, 2006, p. 232) E da mesma forma, em oposição a tal corrente de pensamento, há certa consonância entre a defesa pela diferença e a constatação de que a injustiça simbólica se constitui como fundamental e originadora das demais ações contrárias a justiça social. Assim, em continuação a distinção realizada aqui, Fraser, ao identificar duas formas características de injustiça social, a econômica e a simbólica - advindas das esferas da economia e da cultura, respectivamente - , passa a pensar analiticamente em soluções para ambas não justiças, configuradas a partir da demanda inscrita em cada uma delas. Logo, à injustiça econômica é pensado um remédio que tenha relação direta com a estrutura econômica da sociedade, capaz de atingir o ponto de origem dos impedimentos causados pelo arranjo econômico vigente. Tomando por um termo genérico, a autora coloca aqui o conceito da redistribuição, onde a reorganização da distribuição de renda e de outros meios básicos de ordem econômica podem vir a restabelecer uma vivência coletiva mais justa a todos os sujeitos. Em relação à injustiça cultural, diferentemente do remédio redistributivo, promotor este de uma maior igualdade entre todos, a solução vem por meio de uma mudança de valoração simbólica, onde o termo genérico do reconhecimento afirma a prática de revalorização e avaliação positiva da diferenças culturais. Entretanto, para Fraser, não é necessário vincular-se a alguma das duas vertentes apresentadas aqui, visto que elas são essenciais para o objetivo de sua pesquisa, mas, não constituem o todo de seu conteúdo. Este, terá foco no 16 que é possível depreender da relação entre ambos tipos de injustiça e qual seria a real consequência prática de suas ações para os indivíduos contemporâneos. 2.2 Coletividades Bivalentes Então, pensando na relação prática entre as esferas simbólica e econômica, nas formas possíveis de propagação de injustiça social - através das injustiças econômica e cultural - e de seus respectivos remédios - a distribuição e o reconhecimento -, Fraser traz ao cenário teórico e normativo a discussão a respeito das reais inferências que tais categorias promovem nos modos de vida dos indivíduos, configurando-se, assim, em ações isoladas ou complementares. De acordo com o raciocínio anterior, compreende-se que, isoladamente, cada remédio referente a dada injustiça, leva à consequências finais contraditórias entres si, visto que a distribuição visa promover a igualdade entre os sujeitos, enquanto o reconhecimento almeja justamente o oposto, a valorização da diferença a partir da desestruturação de padrões culturais que homogeinizam a sociedade e suas manifestações. Logo, ambos remédios podem interferir um no outro, de modo que, até mesmo, contribuam para perpetuar o tipo de injustiça contrário a que se propõem solucionar. E, pensando nitidamente nas realidades sociais contemporâneas, o sujeito que vive em determinada posição social determinante de ambas injustiças permanece, aparentemente, preso a tal condição, pois ele necessitará tanto de distribuição, quanto de reconhecimento e, estes, teoricamente, não são compatíveis entre si. Fraser continua sua reflexão afirmando que quando se trata de situações posicionadas nos extremos da estrutura, onde o sujeito se enquadra apenas no âmbito da injustiça econômica ou na injustiça cultural, não há demasiada dificuldade teórica ao se colocar soluções para promoção de justiça. Entretanto, a situação começa a embaçar-se quando se aproximam as duas extremidades e encontra-se, assim, sujeitos que se identificam com ambas as injustiças, o que a autora irá denominar por “coletividades bivalentes” ou “tipos híbridos” (FRASER, 2006, p. 233). “Coletividades bivalentes, em suma, podem sofrer da má distribuição socioeconômica e da desconsideração cultural de forma que nenhuma dessas injustiças seja um efeito indireto da outra, mas ambas primárias e co-originais. Nesse caso, nem os remédios de redistribuição, nem os de 17 reconhecimento, por si sós, são suficientes. Coletividades bivalentes necessitam dos dois.” (FRASER, 2006, p. 233) Como exemplos concretos de tal conceito, Fraser localiza os paradigmas de “raça” e gênero como coletividades bivalentes, por incorporarem tanto características econômicas, quanto culturais e, assim, necessitam de ambos remédios. A tal afirmação, a autora justifica argumentando que as duas categorias constituem, simultaneamente, princípios fundamentais a estruturação econômica, a partir da divisão do trabalho social contemporâneo, e parâmetros de padronização e valoração simbólica, através da construção de estigmas e esteriótipos dotados de significado. A “raça”, por exemplo, se configura socialmente como um aspecto que estrutura a divisão capitalista do trabalho, pois, dentre os trabalhos remunerados, há uma distinção que relaciona a cor da pele do sujeito a maior ou menor condição salarial, visto que, cargos de elevada remuneração, que possuem maior status também, são relacionadas aos brancos, enquanto aos negros são colocadas funções de baixa remuneração e baixo status social. Tal fato, devido ao “legado histórico do colonialismo e da escravidão” (FRASER, 2006, p. 235), determina a estrutura econômico-social e, assim, o acesso à educação e ao mercado de trabalho como um todo, delimitando a população negra à situações de exploração e marginalização pela “raça”. Então, a “raça” como elemento próprio da injustiça econômica, necessita de certa redistribuição na estrutura de divisão do trabalho, onde a diferenciação (aqui, a distinção entre cor de pele) seja banida e possibilite uma igualização das oportunidades de trabalho. Entretanto, ela também caracteriza ações valorativas simbólicas, dado o histórico deixado pela colonização europeia, responsável por determinar a normatização do racismo e do preconceito racial dentre os costumes e hábitos das sociedades. Assim, a reprovação de quaisquer traços relacionados ao sujeito negro e a diminuição das características relacionadas à cultura dos povos negros, como a relação causal de esteriótipo perante a violência urbana, configura a “raça” como elemento que necessita, também, de políticas de valoração cultural, próprias da estima pela diferença e da esfera da injustiça cultural. Tal qual a “raça”, o gênero se faz condição estruturante de ambas esferas sociais de maneira que, na divisão social do trabalho, há nítida divisão entre o trabalho remunerado externo ao ambiente familiar - relacionado aos homens - e o trabalho doméstico e reprodutivo - relacionado às mulheres. E, ainda, dentro da condição de 18 trabalho remunerado externo, vê-se a promoção da deliberação de determinadas funções às mulheres, entendidas como mais ‘femininas’, e a menor remuneração em relação aos homens, mesmo em casos de igual função e cargo. Em tal abordagem, o gênero faz-se, então, uma categoria que necessita de remédios de redistribuição, onde seja estabelecida uma posição de igual status entre homens e mulheres, de modo que a diferença entre tais não seja levada em consideração. E, ao mesmo tempo, o gênero é também um princípio regulador de valores culturais, pois: “(...) uma característica central da injustiça de gênero é o androcentrismo: a construção autorizada de normas que privilegiam os traços associados à masculinidade.” (FRASER, 2006, p. 234) Este, juntamente ao sexismo, característico pela depreciação de características quaisquer relacionadas ao feminino, reproduz um padrão social de desvalorização e hierarquização entre os gêneros, objetificando as mulheres e negando a sua participação como sujeito absoluto e fundamental à vivência coletiva. Assim, a tais coletividades bivalentes, o resultado de ações isoladas gera um “círculo vicioso de subordinação cultural e econômica” (FRASER, 2006, p. 234), onde a autora percebe a necessidade de se pensar uma política alternativa e integrada, capaz de reorganizar a contradição teórica distribuição-reconhecimento e promover aos tipos híbridos uma vivência mais justa e aberta às esferas sociais institucionais da sociedade. 2.3 Remédios Afirmativos e Remédios Transformativos Dispondo, então, da concepção de que a redistribuição promove o fim das diferenças e, por outro lado, o reconhecimento valoriza-as de forma positiva, faz-se necessário pensar em meios conciliadores de ambas reivindicações a partir dos sujeitos que se identificam tanto pela injustiça econômica, quanto pela cultural. Para Fraser, tem-se aqui uma importante seção à construção normativa de justiça, visto que empenhar tal raciocínio significa buscar abordagens teóricas alternativas que possam resultar em soluções concretas distintas da realidade que se tem conhecimento. Assim, objetivando a criação de formas de análise que possam ser capazes de atravessar a distinção distribuição-reconhecimento e corrigir os dois tipos de injustiça discutidos aqui, a autora propõe distinguir duas formas de questionamento que auxiliem no tratamento de tal problemática. 19 Denominando tais categorias por remédios afirmativos e transformativos, Fraser posiciona o primeiro como um tipo de solução que corrige as desigualdades encontradas sem que, entretanto, haja algum tipo de quebra ou desestabilização da estrutura vigente responsável pelas ações de injustiça. Em contraste, o remédio de caráter transformativo visa combater a injustiça a partir da reconfiguração dos arranjos que promovem desigualdade, de forma a transicionar o modo com que as decisões são tomadas e as ações realizadas. Segundo a autora, “o ponto crucial do contraste é efeitos terminais vs. processos que os produzem - e não mudança gradual vs. mudança apocalíptica” (FRASER, 2006, p. 237) e, através dessa abordagem, se torna possível pensar em remédios independente do tipo de injustiça social. Seja uma ação de caráter econômico ou cultural, o método de análise utilizado é que levará ao resultado de combate às injustiças. Ao examinar a aplicação de tais remédios em cada uma das injustiças estudadas aqui, tem-se que no caso da injustiça cultural, é extremamente recorrente a associação de remédios afirmativos à corrente de pensamento multiculturalista, visto que são comumente defendidas por tal, propostas de “revalorização das identidades grupais” (FRASER, 2006, p. 237) como meio de suprir a injustiça, o preconceito e o desrespeito sofrido ao longo da história social. Assim, os remédios afirmativos aqui solucionam a injustiça através do resultado final e mantém, sem nenhum tipo de transformação, a estrutura de valoração que originou a diferenciação entre as culturas e grupos simbólicos. Os remédios transformativos, por outro lado, compensariam a injustiça cultural por meio da desestabilização da construção social determinante de valores simbólicos, quebrando as diferenciações entre os grupos e promovendo um aumento da autoestima de cada indivíduo inserido em coletividades distintas. Assim, de acordo com a reflexão colocada aqui, é possível compreender que ambas argumentações são válidas e concretas quando se trata de solucionar a problemática da injustiça cultural. Entretanto é importante observar uma significativa distinção prática, onde: “(...) os remédios de reconhecimento afirmativos tendem a promover as diferenciações de grupo existentes, os remédios de reconhecimento transformativos tendem, no longo prazo, a desestabilizá-las, a fim de abrir espaço para futuros reagrupamentos.” (FRASER, 2006, p. 237) 20 De acordo, então, com a lógica de distinções, o mesmo pode ser feito e depreendido quando se trata da injustiça econômica e das aplicações de cada um dos remédios. Partindo da constatação de que os remédios afirmativos, em relação à injustiça econômica, estão historicamente associados aos Estados de bem estar social liberais, entende-se que a busca pela diminuição da desigualdade social, nesse caso, é confrontada no resultado final da ação de injustiça, mantendo, assim, o processo e a estrutura econômica intactas. Já os remédios transformativos, contêm forte ligação com as correntes de pensamento socialistas, onde a transformação do sistema de produção econômico seria a resposta ideal ao fim das injustiças sociais, alterando a divisão de trabalho vigente e abolindo a estrutura de classes existente no capitalismo. Nota-se, também, que levando às últimas consequências, os remédios afirmativos econômicos podem gerar injustiças culturais, visto que permitem a criação de “diferenciações de grupo fortemente antagônicas” (FRASER, 2006, p. 238) ao manterem a ordem vigente da estrutura do capital. Em contraste, os remédios transformativos econômicos podem vir a solucionar algumas das injustiças simbólicas, na medida que estes “reduzem a desigualdade social, porém sem criar classes estigmatizadas (...) promovendo reciprocidade e solidariedade”. (FRASER, 2006, p. 238). Assim, é importante concluir que ambas abordagens apresentadas aqui podem resultar em soluções positivas ao combate às injustiças. Entretanto, é possível depreender, a partir da constatação da existência de coletividades bivalentes na sociedade, que determinado remédio empregado pode contribuir para a perpetuação das ações de injustiça, sendo, assim, propriamente adequado à situação de injustiça apenas quando localizado de forma isolada. Resta, ainda, avançar em tal discussão de forma que não sobrem questões mal resolvidas, que possam vir a produzir casos de exceção em meio às teorizações de justiça, visto que essas detém um potencial altamente influenciador na criação de arestas institucionais que permitam a perpetuação de casos de injustiça e impeçam a normatização de meios de reivindicação. A dicotomia distribuição-reconhecimento exige a reflexão a respeito de suas consequências concretas nos modos de vida das pessoas, a partir das realidades sociais contemporâneas, cuja pluralidade e multiplicidade de manifestações contém questão essencial para a pesquisa aqui: como teorizar o problema da justiça de forma compatível às demandas atuais e, ainda, através de abordagens que - sendo essas muito bem planejadas - possam, primeiramente, não aumentar o sistema de perpetuação de injustiças e, então, solucionar de maneira plena o 21 problema da desigualdade social presente nas principais esferas institucionais da sociedade contemporânea. 3. A questão do reconhecimento A questão do reconhecimento e do reconhecimento da diferença constitui parte importante do debate a respeito da justiça social e de sua constituição normativa. A partir de meados dos anos 1970 e 1980, notou-se uma nova orientação na organização dos movimentos sociais que, ao deixarem em segundo plano a bandeira da distribuição e do igualitarismo, sistematizaram-se em torno de demandas da diferença e da cultura, onde raça, sexualidade e gênero moldaram as lutas e as reivindicações pelo reconhecimento e valoração de tais tópicos. Aliado ao reconhecimento tem-se o tema da identidade como questão fundamental aos arranjos sociais e às teorias de justiça. Este é o caráter que une os sujeitos a uma mesma bandeira e constitui a sensação de pertencimento necessária à formação e manutenção das coletividades. Tal questão é relacionada ao campo das relações sociais intersubjetivas, onde a formação da identidade individual é ligada diretamente à maneira com a qual o ‘outro’ percebe as particularidades do sujeito. E, a partir deste primeiro contato, a forma com que se dará a relação entre os sujeitos caracteriza as manifestações de justiça e injustiça social. Tendo por base, assim, a distinção e a percepção valorativa das identidades, as lutas por reconhecimento entram em consonância, muitas vezes, com a corrente teórica multiculturalista e estudos próximos a ela, onde a estima pela diferença é afirmada pela busca por reconhecimento às pluralidades e manifestações particulares de diversas sociedades e grupos sociais. Autores como Charles Taylor, Stuart Hall e Axel Honneth compartilham de tal viés contemporâneo que, guiado pelo princípio de identidade descrito em Hegel e suas obras, consiste em teorizar o tema do reconhecimento a partir das reivindicações e exigências de identidades coletivas e, além,das relações de valor existentes em uma sociedade cada vez mais urbana, plural e global. 3.1 O modelo da identidade A filosofia de Georg Wilhelm Friedrich Hegel (1770-1831), filósofo alemão do século XVIII, é de extrema importância a discussão posta aqui. A teoria hegeliana a respeito do direito, da eticidade e da formação da sociedade civil influenciou diversos autores multiculturalistas e estudiosos da questão do reconhecimento, bem como, trouxe 22 a noção de identidade à discussão, da qual fazem uso até os dias de hoje.Ao colocar a formação das comunidades sociais a partir da percepção e compreensão da relação subjetiva de reconhecimento de um indivíduo para o outro, a filosofia do direito de Hegel julga o ato de adquirir consciência de si mesmo à medida que os outros sujeitos que constituem o seu círculo social reconhecem-no como livre e consciente. Por meio de definições de instâncias do espírito e do direito, Hegel entende cada etapa do processo dialético delimitado em sua filosofia como uma forma de superação da fase posta como anterior. Entretanto, estas não são desconectadas uma da outra, mas, conservam em si sempre algo das esferas passadas. É por meio de tal característica que se torna possível observar a construção de um pensamento racional que pretende superar complexos da abstração e atingir um nível de compreensão da realidade e da liberdade independente de contradições e pendências metodológicas. Tendo como um dos momentos do direito do reconhecimento a esfera da moralidade, Hegel trava aqui um debate com Immanuel Kant (1724 – 1804), filósofo alemão que dedicou seus escritos filosóficos à questão da moralidade a partir da crítica racional da própria racionalidade e de um desenvolvimento prático da razão que permite pensar a política e as instituições civis como âmbito de reflexão de uma época em esclarecimento e em constante debate sobre si mesma e seu futuro. A principal distinção identificada entre tais teóricos consiste nos conceitos de moralidade e eticidade, onde a primeira, representada em Kant como instância máxima, é vista em Hegel como precedente à última esfera de determinação de práticas, a eticidade. “As expressões moralidade (em alemão, Moralitat) e eticidade (Sittilchkeit) são habitualmente tomadas como sinônimos. Mas para Hegel é importante destacar a diferença entre a moral ou ética pensada abstratamente sem referência à vida socializada e a moral ou ética considerada concretamente tal como se manifesta nos costumes e instituições visíveis.” (RAMOS, MELO, FRATESCHI, 2012, p. 182). A ética entendida como manifestação concreta dos costumes, hábitos e ancestralidades é o que integra os indivíduos sociais e os une em um traço comum a todos. Assim, diferenciando-se de Kant - e de seu conceito de moralidade que pode vir a ser universalizada -, o que é chamado em Hegel por eticidade comporta, justamente, as características que compõem formas de coletividades, particularidades subjetivas e 23 próprias de reuniões de sujeitos objetivados em um mesmo ponto subjetivo comum. Tal eticidade é o que representa a realização da razão sobre as realidades históricas de forma completa e dos seres livres, reconhecidos e conscientes de si mesmo e do âmbito de socialização a qual fazem parte. De tal forma, a tradição filosófica hegeliana carrega em seus seguidores os conceitos de eticidade e identidade a partir da manifestação de heranças e hábitos coletivos, onde os sujeitos sociais alcançam o reconhecimento pleno e recíproco por meio da construção de uma sociedade de convivência intersubjetiva e de sua participação na mesma. Em termos contemporâneos, os estudiosos que buscam resgatar e atualizar as teorias sobre a questão do reconhecimento baseiam-se, com grande frequência, nos escritos de Hegel e procuram reativar seus ideais de identidade em meio às sociedades contemporâneas e seus respectivos conflitos sociais. Entre os principais autores inseridos nesse contexto de atualização, Axel Honneth, filósofo e sociólogo alemão,é um dos principais nomes que contribui para o debate conceitual a respeito da questão do reconhecimento e da formulação de uma teoria de justiça normativa que seja capaz de conter determinadas injustiças e formas de não respeito características das sociedades contemporâneas. Em uma de suas obras mais significativas, Luta por reconhecimento. A gramática moral dos conflitos Sociais de 1992, Honneth procura por meio de exemplos práticos da realidade social desenvolver uma reflexão a respeito das diversas manifestações de ações que configurariam meios de não reconhecimento e, relaciona a isso também, as etapas de formação coletiva e de socialização dos indivíduos em determinados grupos sociais. Possui, em meio a vasta bibliografia de autores que buscam resgatar as noções da questão do reconhecimento, uma posição de importância, pois ao indagar sobre os motivos subjetivos que levariam os indivíduos a engajar-se por uma luta social, encontra perante as experiências e tradições específicas e particulares dos sujeitos, razões que fundamentariam ânsia por reconhecimento e que poderiam resultar em expectativas de mudanças e de transformação das realidades sociais, a partir de um movimento de resgate da integridade de cada um. Em seu sistema de busca e percepção das motivações subjetivas e vivências dos sujeitos, o autor recobra os escritos de Hegel – mais especificamente em sua primeira fase, também chamada pelo período de “jovem Hegel” - e seu conceito de identidade e eticidade para travar, assim, um diálogo com demais áreas do conhecimento, tais como a psicologia, a psicologia social e o direito. Assim, são 24 pensadas como dinâmica de compreensão do tema três esferas do reconhecimento que guiam a teoria de Honneth e fundamentam sua hipótese inicial de pesquisar o desenvolvimento social dos indivíduos em conjunto a experiências particulares e próprias. O amor, o direito e a solidariedade constituem as dimensões fundamentais aqui, responsáveis por orientar o estudo a respeito do reconhecimento e das relações intersubjetivas cultivadas entre os indivíduos de uma mesma sociedade. Cada uma dessas áreas corresponde, também, a um determinado tipo de reconhecimento, de não reconhecimento e a um meio específico de ligação entre os sujeitos. O amor, ou as relações de afeto amoroso, constituem a primeira dimensão de socialização a qual os indivíduos são expostos e onde são vivenciadas as primeiras experiências de reconhecimento.Esta se configura como a forma mais elementar de reconhecimento e está inscrita nas relações primárias de afeto entre os indivíduos. Por ser praticada em reduzidos grupos de socialização, tal dimensão do reconhecimento é caracterizada por uma relação de dependência mútua, pautada no sentimento do desejo e da carência dos seres entre si, como em relacionamentos íntimos, amizades e laços familiares próximos (mãe e filho, por exemplo). O amor promove a identificação com a autoconfiança mútua e percebe a dependência a partir de uma autonomia que é gradativamente construída. A dimensão do direito amplia o campo do reconhecimento e leva o tema ao âmbito público, correspondente a um maior número de sujeitos inseridos nos grupos de socialização. Ainda assim, entretanto, é possível observar determinada relação de dependência recíproca a partir do estabelecimento de normas que reconhecem todos os indivíduos de uma sociedade como cidadãos, sendo estes iguais perante a lei e detentores todos de direitos e deveres. Assim, independente de relações afetivas, os seres possuem reconhecimento por meio da constituição como indivíduos do direito, onde a liberdade de todos é realizada por meio do respeito da liberdade de cada um. E, assim, o direito promove a identificação com o autorrespeito sob bases livres, jurídicas e autônomas. A última dimensão do reconhecimento, a solidariedade, fundamenta-se na percepção, aceitação e valoração das qualidades individuais dos seres humanos, bem como na compreensão de que tais características são importantes para a sociedade como um todo e para sua manutenção.Ao afirmar que “as realizações pessoais são cumpridas por meio de interpretações particulares e originais dos valores que permeiam a vida social” (RAMOS, MELO, FRATESCHI, 2012, p. 346), Honneth coloca, então, a 25 necessidade da autoestima como identificação da solidariedade onde essa se configura inserida no conceito do sistema de eticidade descrito em Hegel e recuperado pelo autor aqui. É por meio da avaliação positiva das manifestações particulares que o sujeito se afirma e se reconhece, comprovando a sua própria existência em meio ao grupo social total. “(...) somente aqueles conflitos sociais nos quais a eticidade natural se despedaça permitem desenvolver nos sujeitos a disposição de reconhecer-se mutuamente como pessoas dependentes umas das outras e, ao mesmo tempo, integralmente individuadas.” (HONNETH, 2003, p. 58). Assim, quando alguma das formas de reconhecimento colocadas por Honneth é desrespeitada, ocorre a negação de reconhecimento intersubjetivo e, a reação a isso se configura nas lutas sociais e lutas pela posição de ser reconhecido. O desrespeito ao amor ocorre por meio da violência, de atos de tortura e diversas maneiras de violação de relações primárias e íntimas. A negação de direitos civis fundamentais promove a ausência de respeito na esfera do direito, e ações que atentem às capacidades dos seres humanos e privem-nos da convivência de uns com os outros caracterizam o desrespeito à solidariedade, como, por exemplo, o preconceito, a marginalização e a exclusão social. Logo, vê-se que a teoria normativa construída ao longo do pensamento de Honneth tem a questão do reconhecimento, a partir da ideia de identidade hegeliana, como fundamental à formação intersubjetiva dos seres e às respectivas relações descobertas por esses em meio às sociedades e corpos coletivos. Para o autor, é imprescindível discorrer da prática dialógica entre os sujeitos componentes de uma mesma sociedade, ao passo que haja em tal exercício a intenção de se encontrar as identidades individuais e obter certa noção de reconhecimento intersubjetivo. Este, em Honneth, é a característica que permite a execução de uma liberdade social e, essa, levaria enfim, à promoção de justiça a todos na sociedade. 3.2 O modelo do status Entretanto, quando analisa-se os escritos de Nancy Fraser, percebe-se que a questão do reconhecimento necessita ser tratada, de acordo com a autora, a partir de uma abordagem que avalie o status individual dos sujeitos e a subordinação 26 institucionalizada como condição para uma participação paritária em meio à sociedade. Diferentemente de Honneth e de vários autores multiculturalistas, Fraser afirma que o reconhecimento não deve ser relacionado à identidade coletiva específica de um grupo ou manifestação cultural, mas, levar em consideração o status de cada membro de um grupo, como iguais e parceiros no processo de integração e participação. Assim, a subordinação social e o impedimento institucionalizado de um participar como igual a todos caracterizam as formas de não reconhecimento e injustiça social. Quando a autora coloca o debate a respeito de uma política do reconhecimento como um dos remédios à injustiça social a partir de uma abordagem de status, está sendo posta, também, uma avaliação dos sistemas institucionais de valor, onde o determinado tipo de padrão utilizado no tratamento às culturas e manifestações particulares denota maior ou menor necessidade de intervenção e quebra de padronizações. Com objetivo de se alcançar uma ação efetiva de justiça, que se constitua de maneira igualitária a distintos sujeitos, tal averiguação investiga os níveis de paridade participativa de um sujeito com o outro e, caso verifique atores sociais subordinados, excluídos e inferiorizados, conclui-se que não há reconhecimento, e, que este deriva de uma estrutura de subordinação socialmente institucionalizada e, muitas vezes, independente de danos culturais. Logo, o não reconhecimento como injustiça advém de uma sequência de negações e subordinações institucionalizadas que compõem uma estrutura social de submissão e valoração entre distintos grupos de sujeitos. A padronização cultural colocada aqui permite a realização de julgamentos de valor e comparações entre manifestações particulares distintas. Assim, também, tornam-se possíveis justificativas a tratamentos diferenciados e a caracterizações entre sujeitos, como uns superiores e, outros, inferiores. De tal maneira, através da interpretação do modelo de status, o impedimento da participação paritária pelos sujeitos é consequência direta de normas culturais valorativas postas por um sistema institucionalizado. Este, como responsável pelo regimento da interação social entre os atores e grupos de sujeitos, tem a capacidade de aceitar, negar e caracterizar determinados sujeitos, repassando isso às normas sociais de relacionamento e convivência e, construindo modelos operacionais de merecimento e exclusão. 27 “Ser não-reconhecido, por conseguinte, não é simplesmente ser desaprovado, ser olhado com desdém ou desvalorizado nas atitudes, crenças ou representações dos outros. Antes, é ter negado o status de parceiro integral na interação social, como uma conseqüência de padrões institucionalizados de valor cultural que constituem uma pessoa como comparativamente não merecedora de respeito ou estima” (FRASER, 2010, p. 121) De maneira mais elucidativa, Nancy Fraser traz, também, exemplos da sociedade contemporânea que auxiliam no entendimento dos conflitos de justiça e podem facilitar uma compreensão concreta das questões de reivindicação por reconhecimento no cotidiano social e a forma com são que construídos certos perfis humanos de subordinação social. A autora cita casos de leis e normas institucionalizadas que regulam, por exemplo, o casamento e a relação estável entre casais homossexuais, a segurança pública através da relação entre determinados grupos sociais e altos índices de violência, o vínculo entre mães solteiras chefes de família e programas assistencialistas. Todos esses cenários são dependentes da interação social regulada institucionalmente por modelos de valoração cultural que, de maneira sutil, impõem a ideia de categorias de sujeitos menos e mais merecedores de respeito e justiça. A sociedade responde a tal delimitação através da perpetuação de estigmas e atitudes que caracterizam exclusões, impedindo, assim a participação como iguais por parte dos sujeitos. Quando a união entre casais do mesmo sexo não é regulamentada – ou, em alguns casos, é colocada como um princípio afirmativo que, porém, não iguala o casamento hétero a um casamento homossexual –, um perfil de criminalidade é constantemente traçado a partir da cor da pele dos sujeitos e mulheres que cuidam de seus lares sem a presença masculina são inferiorizadas e vistas como impróprias, o status de sujeitos como parceiros integrais em paridade participativa é negado e o não-reconhecimento concretizado. É importante destacar que tais modelos de valoração cultural inscritos nas instituições sociais são expressos não somente por uma forma. Apresentando-se como conceitos legais, normas profissionais, atitudes políticas e midiáticas e práticas informais do hábito social e dos costumes, elas colaboram de todo jeito para a subordinação de determinados atores sociais e negam a participação em mesmo nível a todos os sujeitos. 28 No modelo do status de Fraser, em conjunto a reflexão a respeito do que configuraria o não-reconhecimento e por meio de quais estruturas inseridas na sociedade ele se coloca, têm-se a necessidade de, após determinada a injustiça, buscar formas de reivindicação por reconhecimento que solucionem a questão do desrespeito e da subordinação. Assim, restabelecer uma justa relação entre os distintos sujeitos que pertencem a uma sociedade não significa valorizar identidades coletivas e manifestações culturais particulares, mas nivelar a participação de cada indivíduo membro de um grupo como parceiros iguais na integração social. Em outras palavras, recompor o reconhecimento no modelo do status de Fraser, representa a quebra dos padrões institucionalizados de valoração cultural que regulam as relações de interação entre os sujeitos e a substituição por normas e hábitos que apresentem ideais de paridade entre as diferenças e promovam a participação social em igual nível a todos. “Reparar a injustiça certamente requer uma política de reconhecimento, mas isso não significa mais uma política de identidade. No modelo do status, ao contrário, isso significa uma política que visa a superar a subordinação, fazendo do sujeito falsamente reconhecido um membro integral da sociedade, capaz de participar com os outros membros como igual.” (FRASER, 2007, p. 107) Assim como os padrões de valoração cultural, as soluções por reivindicação do reconhecimento também não se encontram em apenas uma forma concreta. Estas podem se manifestar através de transformações legislativas, transições de comportamento e hábitos do cotidiano, entre outras atitudes. Logo, não há um modelo único de política de reconhecimento que solucione todos os casos de reivindicação por justiça. O espaço onde as demandas tomarão forma depende da característica e do conteúdo do caso em si. Há questões que, inscritas em uma estrutura de valoração cultural institucionalmente aceita, necessitam de remédios que diminuam a diferença entre um grupo e outro, como também, são encontrados em tal esquema de subordinação, casos que demandam maior reconhecimento, justamente, àquilo que torna os grupos mais distintos um do outro. Em oposição ao modelo da identidade, o modelo do status apresentado aqui constitui uma alternativa às políticas de reconhecimento que focam na valorização das características próprias de cada coletivo. Ao procurar restaurar a participação em mesmo nível àqueles sujeitos que são estigmatizados e, em conseqüência, excluídos de 29 diversas formas de interação social, tal teoria promove uma ruptura de normas institucionalizadas que contribuíam de modo negativo à sociedade e aumentavam as disparidades e rivalidades sociais. Através da construção de novos regulamentos de relações entre os sujeitos, a ideia de Nancy Fraser propõe a superação das subordinações por meio da paridade de participação individual de todos os membros de grupos na sociedade. A reparação e o restabelecimento do reconhecimento nas relações sociais, e do respeito entre atores sociais distintos, são feitas em âmbito institucional e, assim, as reivindicações e os debates por políticas mais justas também. “É verdade que há, no plano da teoria moral, divergências quanto à pertinência do enfoque monista ou dualista da justiça; ou seja, que no plano da teoria política sempre há desacordos ou sobre estratégias de funcionamento e adequação dos modelos explicativos para os atuais conflitos sociais. Mas não seria equivocado dizer que a principal disputa conceitual entre Honneth e Fraser situa-se em um nível mais importante e profundo, que diz respeito aos objetivos - seu “porquê” e seu “para quê” - da justiça social.” (FERNANDES, 2016, p. 205) 4. A questão do enquadramento Dando continuidade a reflexão de Nancy Fraser a respeito da teorização normativa de um modelo de justiça próprio às reais necessidades dos sujeitos injustiçados socialmente, a autora atinge um ponto em suas colocações onde percebe certa conveniência em promover uma revisão de seu trabalho até aqui - visto que, como a própria comenta em seu livro Scales of Justice. Reimagining Political Space in a Globalizing Word (2010), por se tratar de um tema contemporâneo, seria devida tal atualização e historicização das pesquisas feitas até o momento. O advento da globalização, como observado por Fraser, provocou tremenda mudança nas formas com que as pessoas se relacionam entre si e, também, com o território. O fenômeno global detém a capacidade de conectar sujeitos e assuntos através das barreiras e fronteiras físicas existentes no solo das nações, tornando-se, de certa forma, independente da ligação que o Estado como instituição máxima da cidadania fornece às sociedades e seus componentes. Assim, a partir da observação do poder de transformação inscrito na globalização, faz-se necessário repensar e complementar as teorias anteriores a tal evento e depreender por meio da pesquisa como este pode afetar e continuar 30 transformando os sujeitos, os territórios e as relações com o conhecimento e a forma de viver na contemporaneidade. De tal forma, o modo com que são discutidas as questões relacionadas à convivência entre os seres humanos e a tomada de decisões políticas também se altera de acordo com o advento da globalização. Fraser passa a refletir, então, a respeito de um meio adequado de se satisfazerem as demandas por justiça, mas, agora, inseridas em um novo mundo com distintas maneiras dominantes de se relacionar, de formação de identidades e de se manifestar. Onde o sujeito torna-se personagem global na história da humanidade, faz-se necessário realocar as fronteiras do direito e da justiça, tendo o tema da participação – e a questão do “como” realizá-la de forma plena – como central às novas discussões e primordial ao alcance dos atores que protagonizam os quadros de injustiça social no mundo. Entretanto, simultaneamente a esse ponto, aparece também um assunto em conjunto que problematiza a noção do ato de participar e, se faz necessário à atualização das teorias de justiça social contemporâneas. Visto que a globalização dissipa as fronteiras e barreiras físicas existentes nos territórios e muda o diálogo decisório no âmbito social, não fica denominado de maneira clara quem seriam tais sujeitos que fazem parte dessa tomada de decisões renovada e por quais traços e símbolos eles se unem para tal feito. Pois, o território do Estado-Nação, anteriormente, se constituía como marco capaz de instituir quem se configuraria como ator participante ou não, pautado, assim, no argumento de que aqueles participantes se constituiriam como cidadãos da pátria, seres humanos pertencentes ao estado humanitário por encontrarem-se inseridos no território de um determinado Estado. A este período, Nancy Fraser denomina “Keynesiano-Westfaliano”, em referência ao ideário criado em torno do Estado de bem-estar social pós-guerra, onde o centro de todo o poder e decisão de âmbito político-social concentrava-se no Estado-Nação e em seu correspondente espaço territorial. 4.1 O modelo Westfaliano e esfera Política da Justiça Então, anterior ao advento da globalização e no auge da chamada social democracia, a discussão sobre justiça girava em torno dos territórios nacionais, seus respectivos cidadãos e suas relações sociais internas ao Estado. Por ocorrer em meio ao ápice do sistema econômico keynesiano, as reivindicações por justiça eram levadas diretamente ao Estado e, esperava-se dele, logo, algum tipo de intervenção. Tal maneira 31 de se discutir justiça focava, assim, no “que” significava justiça a partir das demandas dos sujeitos. O “quem” fazia parte dessa camada social não era debatido, pois, tal circunstância não formalizava, de fato, uma questão: era consenso que a justiça problematizada dentro dos territórios nacionais concernia à população daquele próprio território nacional. Porém, com a disseminação da globalização e do crescimento do poder da comunicação e das mídias, a opinião tornou-se transnacional e as diversas questões que antes eram internas ao território geram, agora, debates e referências externas ao Estado-Nação. Para Fraser: “O efeito disso, é desestabilização da prévia estrutura de formulação de demandas políticas – e, portanto, a mudança do modo pelo qual discutimos a justiça social.” (FRASER, 2009, p. 14) Surgindo, assim, a necessidade de se pensar em novas formas de arranjos capazes de abranger as demandas contemporâneas de justiça em frente às transições ocorridas nas realidades sociais pelo fenômeno da globalização, Fraser coloca em termos normativos a chegada de uma nova esfera de justiça que auxilie e complemente a sua já existente teorização sobre o tema. De acordo com a autora, faz-se urgente para tal discussão uma reflexão sobre o tipo de enquadramento social utilizado no exercício de teorizar a justiça, colocando, assim, em pauta o “quem” são os sujeitos participantes e a suficiência de tal arranjo no confronto às injustiças. Para que o enquadramento escolhido seja compatível com o mundo contemporâneo, Nancy Fraser propõe a inclusão de uma terceira dimensão da justiça, onde em conjunto à economia (que leva ao remédio da distribuição) e à cultura (que leva ao remédio do reconhecimento), agora entre a política, levando assim, ao remédio posto pela pauta da representatividade. Quando é passado da teoria à prática, nesse caso, o que está sendo colocado tem significado direto no modo de viver dos sujeitos contemporâneos e em sua formação como seres dotados de direitos e deveres. A partir do momento em que as questões sociais são transbordadas para fora do território do Estado nacional, as reivindicações por justiça também se modificam em termos das demandas exigidas e da forma com que essas se manifestam. A expressão que as manifestações adquirem por meio da globalização faz com que os problemas sejam globais, ajustando-se, assim, ao tipo de sujeito que vive no mundo hoje em dia. Logo, seja uma questão referente à distribuição ou ao reconhecimento, as questões contemporâneas de justiça devem passar 32 pela dimensão da representação para que sejam solucionadas com efeito satisfatório, pois, indiferente ao seu conteúdo, elas atingirão os sujeitos em nível transnacional, onde o caráter de pertencimento colocado pelo modelo Westfaliano de justiça não é mais adequado às exigências dos seres humanos contemporâneos. Assim, a introdução de uma terceira esfera de justiça vem no sentido de preencher o espaço que antes era ocupado pelo território nacional e que poderá, agora, relacionar-se com os conflitos sociais de justiça de maneira mais adequada às reais necessidades e efetiva, onde o ajuste por um enquadramento mais compatível às mudanças advindas com a globalização questiona os padrões institucionais existentes de solução de problemas. A política é posta, então, como a terceira dimensão da teoria normativa de justiça discutida aqui, de forma que venha a atingir de maneira mais específica a esfera própria das tomadas de decisão, da formulação de leis e regras, na qual as lutas por reivindicação são travadas e pensadas. “Distribuição e reconhecimento pareciam constituir as únicas dimensões da justiça apenas enquanto o enquadramento Keynesiano-Westfaliano era tomado como pressuposto. Uma vez que a questão do enquadramento se torna sujeita à contestação, o efeito disso é tornar visível uma terceira dimensão da justiça que foi negligenciada em meu trabalho anterior (...) A terceira dimensão da justiça é o político. (...) eu considero o político em um sentido mais específico, constitutivo, que diz respeito à natureza da jurisdição do Estado e das regras de decisão pelas quais ele estrutura as disputas sociais. O político, nesse sentido, fornece o palco em que as lutas por distribuição e reconhecimento são conduzidas.” (FRASER, 2009, p. 18-19) Vê-se, então, que a dimensão política da justiça caracteriza aqui as diversas etapas existentes em processos de reivindicação por demandas mais justas socialmente. Por conceber a renovação do significado de pertencer socialmente na era contemporânea, ela torna os sujeitos específicos e insere-os de maneira direcionada em um novo enquadramento de lutas. Dando base às atualizações exigidas pela passagem do tempo, a política molda o novo enquadro social e realoca os sujeitos anteriormente excluídos dos processos decisórios tanto por distribuição, quanto por reconhecimento, promovendo, logo, um meio de integração e participação social condizente aos conflitos atuais e, também, que busca se compor de forma mais igualitária. E é por meio da representação política que tal esfera pode agir de forma a abranger mais categorias 33 como participantes do processo de realização da justiça, pois, tomando a representatividade como uma “questão de pertencimento social” (FRASER, 2009, p. 19), torna-se possível levar a discussão a um nível de maior reflexão e aprofundamento. De maneira que onde, anteriormente, o tema central se constituía a partir do “que” era justiça, passará, agora, ao debate a respeito do “quem” compõe as reivindicações e, ainda, de “como” proceder de maneira mais efetiva às demandas colocadas pelos sujeitos que são atingidos com frequência por atos institucionalizados de injustiça social e impedimento de participação. Isto culmina, aos poucos, em uma tentativa de democratização dos espaços políticos e sociais, onde os processos decisórios são discutidos e as tomadas de decisão políticas são pensadas de forma a cada vez mais incentivar e promover a participação dos sujeitos afetados. 4.2 O modelo pós-westfaliano Adquirindo, então, conhecimento a respeito do advento da globalização e das mudanças causadas por tal evento nas relações sociais e institucionais de uma sociedade, Nancy Fraser propõe pensar dentro de sua já existente teorização de justiça social, um determinado tipo novo de abordagem que focado, dessa vez, no enquadramento social que servirá como fundamento para as ações de justiça, possa vir a ser capaz de transformar as fronteiras construídas pelo Estado Westfaliano e englobar os sujeitos que estariam excluídos das políticas de justiça estabelecidas anteriormente. De acordo com o raciocínio colocado aqui, “se a representação é a questão definidora do político, então a característica política da injustiça é a falsa representação.” (FRASER, 2009, p. 21) Sofrer ações de injustiça através da esfera política, logo, significa ser falsamente representado. E, como dito anteriormente, se o domínio do político como esfera de justiça aparece com a chegada da globalização para suplantar as necessidades e reivindicações que o Estado e o território nacionais não possuem mais capacidade de solucionar de maneira satisfatória e justa, conclui-se que a falsa representação como forma de injustiça advém de um equívoco provocado pelo mau enquadramento social, pela negação de participação integral e paritária a determinados sujeitos que institucionalmente não eram tidos como pertencentes da categoria selecionada. A partir dessa interpretação, o modelo de enquadramento disposto pelo Estado Keynesiano-Westfaliano pode se constituir como um extremo ator da injustiça social, a medida que automaticamente exclui dos processos decisórios políticos as reivindicações e ações injustas sofridas por aqueles sujeitos que não estão enquadrados inicialmente no 34 território nacional, que não são considerados, assim, cidadãos da nação na qual estão muitas vezes inseridos. Por tal motivo, justifica-se a afirmação a respeito da globalização e do efeito de transbordar as fronteiras relacionais e espaciais causado pela mesma, tanto em âmbito institucional, quanto nas realidades humanas do período contemporâneo. Assim, através da densa análise realizada a respeito do uso do território como marcador de participação e das transições as quais o mundo e as sociedades sofreram por parte do processo globalizador, Fraser sugere um novo tipo de enquadramento social que, coerente aos conflitos sociais contemporâneos e a formação espacial e transnacional em que os sujeitos se encontram, possa vir a incluir todas as pessoas na expressão e reivindicação de suas necessidades e, a longo prazo, democratizar o ambiente de tomada de decisões políticas. De modo geral e, em suas palavras: “O objetivo é superar as injustiças decorrentes do mau enquadramento por meio da mudança não apenas das fronteiras do “quem” da justiça, mas também do modo de sua constituição, ou seja, da forma pela qual elas são desenhadas.” (FRASER, 2009, p. 29) Denominando sua nova proposta como modelo Pós-Westfaliano, a autora se utiliza da categoria de remédios afirmativos para instituir uma distinta abordagem de enquadramento que visa alterar a gramática normativa por meio da qual era realizada a discussão sobre justiça, suas esferas e sujeitos participantes. O que ela chama, então, por “princípio de todos os afetados” se constituirá como base de tal política transformativa, auxiliando, logo, na construção de um modelo de enquadramento mais justo seguindo o viés de ampliação de participação de atores sociais. Assim, tal proposição afirma que, independente unicamente do território nacional, todos aqueles sujeitos que são afetados estruturalmente por ações institucionalizadas de injustiça social possuem o status moral de pessoas detentoras de direitos e que, então, podem e devem reivindicar justiça. Por meio dessa interpretação, não se trata mais de unir as pessoas em um coletivo de lutas por sua proximidade territorial. Em um mundo globalizado, o que de fato importa é a localização das injustiças comuns aos sujeitos em um mesmo enquadramento padronizado institucionalmente que as digam como viver, interagir e participar, “moldando, assim, suas respectivas possibilidades de vida segundo padrões de vantagem e desvantagem”. 35 (FRASER, 2009, p. 29) De fato, o que leva até tal formulação é a constatação de que para os sujeitos contemporâneos viverem com qualidade nas grandes cidades e aglomerações de pessoas existentes hoje em dia, menos influência possui o espaço do Estado nacional quando comparado a estrutura transnacional dominante criada através da globalização. Torna-se inevitável ser afetado pelos acontecimentos externos ao espaço territorial nacional, entretanto, isso não justifica que quaisquer sujeitos sejam menosprezados e excluídos de ações políticas. Assim, a transformação necessita ocorrer nas arenas de tomada de decisões e demais espaços de discussões, onde, a arquitetura política é pensada e institucionalizada, com efeito. Em termos práticos, já é possível verificar grupos e movimentos sociais que hoje promovem ações de reivindicação e manifestação a partir do que é chamado aqui de princípio de todos os afetados para solucionarem de maneira mais efetiva suas problemáticas. Um exemplo característico que Fraser coloca é a luta ambientalista e indígena pelo direito de preservação da terra e do meio ambiente, onde tais atores sociais procuram auxílio de conselhos externos ao território nacional e que obtenham valor internacional e humanitário com intuito de que suas demandas sejam acolhidas e pensadas como alternativa às políticas existentes que podem vir a prejudicar e desviar a favor de interesses privados e de poucos a pauta em questão. 4.3 Os perigos do século XX e a contribuição de Hannah Arendt Assim, a partir do que foi discutido até agora a respeito da questão do enquadramento político em meio à teoria normativa de justiça de Nancy Fraser, nota-se o papel fundamental ocupado pela globalização em todo o processo de análise e teorização sobre a sociedade contemporânea e seus respectivos dilemas. Inúmeras indagações decorrem de tal profunda observação contextual e, estas, podem relacionar-se com diversas áreas do conhecimento, como a história, a geografia, e a sociologia. O estudo dos efeitos referentes aos impactos sociais e relacionais ocasionados pelo fenômeno global nos leva, aqui, às investigações realizadas pela filósofa alemã Hannah Arendt (1906-1975) e sua teoria acerca dos males humanos do século XX e dos riscos existentes pela negação de humanidade à determinadas categorias de sujeitos. Nancy Fraser faz, também, a tentativa de rever os escritos de Arendt para pensá-los em nosso tempo presente, refletir o que era constatado no século XX e na política normativa da época como método de pesquisa e avaliação do nosso 36 próprio tempo e verificar até que ponto a abordagem de tal filósofa pode – ou não - auxiliar e iluminar partes obscuras e ainda não descobertas dos perigos para a humanidade e o caráter humano em si, relativos ao século XXI, que, entretanto, carrega consigo dilemas iniciados no século passado. Pensar teorias normativas de justiça leva o raciocínio humano a analisar categorias a priori que se configurem como base argumentativa e explicativa para as tomadas de decisão que serão propostas posteriormente. Tais pressupostos são fruto da própria pesquisa realizada pela observação das transformações e reações sociais e, são utilizados com intuito de explicitarem de maneira correta o que não estaria nitidamente compreensível. A partir do que foi constatado por Hannah Arendt em seus escritos e observações, através da investigação sobre a sua própria época, é possível – e, em certa medida, necessário – utilizar de sua experiência com os regimes totalitários do século XX, e com a percepção da negação de capacidades espontâneas e plurais ao ser humano, como avaliação do que está acontecendo em nosso próprio tempo histórico. Assim, de acordo com Fraser, o uso de categorias colocadas por Arendt é lógico no sentido de pensar, através de experiências históricas, o vir a ser da humanidade dentre seus conflitos contemporâneos, e que podem estes estar vinculados, ou até mesmo espelhados, por um passado social que não foi superado. Hannah Arendt não pode ser colocada como uma teórica propriamente da justiça. Há, inclusive, críticas a ela nesse sentido, no que concerne à brechas deixadas em meio aos seus escritos que abordam a política, a liberdade e o totalitarismo mas não se referem diretamente a alguma formulação em si de teoria de justiça social. Entretanto, isso não é suficiente para que suas conclusões a respeito de tais temáticas sejam negligenciadas e descartadas. Muito pelo contrário, o debate Arendtiano sobre os males da sociedade do século XX – a construção de pensamento que a filósofa coloca em suas obras abordando os modos de vida do período durante e pós as Grandes Guerras e os conflitos sociais que culminaram no exercício de governos totais e autoritários – e a negação de caráter humanitário aos sujeitos de sua própria época podem elucidar os dilemas postos aqui relacionados a não participação política por determinados atores sociais e à organização de um sistema de enquadramento que, após o advento da globalização e a consequente dissolução do que havia restado desde o século passado da importância do território nacional, necessita de atualizações e transformações no seu modo de desenvolver processos decisórios e de realizar ações 37 mais justas socialmente – tanto nas decisões tomadas em si, quanto no processo de decidir pelas mesmas. Hannah Arendt foi uma autora alemã com formação em filosofia e de origem judaica extremamente importante para o pensamento filosófico, político e social. Tendo sido aluna de Heidegger na Universidade de Marburg e escrito sua tese a respeito do conceito de amor em Santo Agostinho, Arendt viveu na condição de apátrida por, aproximadamente, quase vinte anos, após ter saído da Alemanha por conta da perseguição nazista aos judeus e se estabelecido nos Estados Unidos. Ao procurar desvendar as origens e as condições sociais que levaram a humanidade do século XX a dividir-se em homens detentores de direito e povos quase não dignos de qualquer traço humano, o seu pensamento se debruça em acontecimentos chave para a idealização e compreensão da realidade que era tida naquele momento. Os anos de tal século foram seguidamente palco de transformações sociais e novas descobertas feitas pelo homem em sociedade. É válido destacar aqui a mutação sofrida no caráter humano, em referência ao que naquele tempo foi colocado como se configurar de fato humano. A partir do progresso tecnicista das formas de trabalho, da transição territorial percebida pela sociedade através da dissipação dos Estados-Nação, e do aumento da transformação do corpo social em uma sociedade de massas – cada vez mais ampliada, diversa e expropriada – é possível depreender a existência de um tipo de projeto político que favoreceria a classificação de seres humanos entre dignos e não dignos, de acordo com o local onde nasceram e sua descendência hereditária. Em Origens do Totalitarismo (2012), Hannah Arendt, estruturando seu pensamento sobre o caminho tomado pela sociedade que culminou com os mais marcantes governos totalitários do século XX, o nazismo e o stalinismo, analisa a partir do aumento constatado de propagandas antissemitistas da época a criação de uma imagem de terror do outro e da diferença. Esta tornou passível a justificação da experiência dos campos de concentração e a campanha de expulsão em massa de determinadas pessoas de seus territórios nacionais. Para a autora: “O antissemitismo (não apenas o ódio aos judeus), o imperialismo (não apenas a conquista) e o totalitarismo (não apenas a ditadura) – um após o outro, um mais brutalmente que o outro – demonstraram que a dignidade humana precisa de nova garantia, somente encontrável em novos princípios políticos e em uma nova lei na terra, cuja vigência desta vez alcance toda a humanidade, mas cujo poder deve permanecer estritamente limitado, 38 estabelecido e controlado por entidades territoriais novamente definidas.” (ARENDT, 2012, p. 13-14) Com isso, o pensamento arendtiano denota a vinculação existente entre o Estado-Nação e os direitos humanos, de maneira que os migrantes – derivados das Grandes Guerras e de disputas internas ao território nacional motivadas pela questão de desvalorização de determinadas origens sociais – no momento em que perdiam a sua terra, deixavam para trás também os seus direitos como pessoas, seres humanos dignos e pertencentes a uma nação. Constituíam-se como o “refugo da terra” (ARENDT, 2012, p. 369) e assim, aos poucos, mas durante todo o século XX foi-se observando o processo de dissipação e finalização do que era tido como território nacional e o seu grau de participação política. Pois, uma das principais responsabilidades delegadas à nação, a proteção de seu povo e a garantia de direitos fundamentais a esses, não obtinha mais sentido mediante os acontecimentos do momento. Após as campanhas em massa de exclusão e banimento que se compõem como um dos fatores responsáveis pela criação de pessoas sem povo, a noção de comunidade nacional tornava-se nitidamente uma calamidade social, onde o conceito de pertencimento social mascarava um projeto de negação de identidade e humanidade a grupos específicos de sujeitos que não correspondiam aos interesses políticos dominantes. Assim, a partir da conclusão de que, ao homem, “só a perda da própria comunidade é que o expulsa da humanidade” (ARENDT, 2012, p. 410), Hannah Arendt insere a relevância que a convivência entre os homens possui em sua teoria social. A questão dos diversos modos de vida coexistentes em uma mesma sociedade, para a autora, denotam a condição de perpetuação da pluralidade e da manifestação de distintas características próprias a grupos de pessoas. Quando, então, o homem é privado da permanência em seu território nacional, lhe é negada a convivência com os demais e, consequentemente, sua condição de existência por meio de certa pluralidade e diversidade também, de sua própria condição humana. Este é, de fato, o conflito que contém o século XX e revela a necessidade posta por Arendt de uma “nova lei na terra”, de “entidades territoriais novamente definidas”. O fim dos Estados-Nacionais pede a criação de novas formas organizacionais que sejam capazes de conceber todas as pessoas de forma mais igualitária e não excludente e, que possibilite à política uma discussão abrangente a respeito dos conflitos sociais e das necessidades reais dos sujeitos. Como colocado pela autora Elisabeth Young-Bruehl (1997, p. 195): 39 “(...) o problema que emerge diante da decadência do estado nacional – isto é, o problema não resolvido de uma nova organização dos povos -, da perpetuação do racismo – isto é, o problema não resolvido de um novo conceito de humanidade – e do avanço do imperialismo, isto é, o problema não resolvido de organizar um mundo em constante encolhimento, que precisamos partilhar com povos cujas histórias e tradições estão fora do mundo ocidental.” (apud FERNANDES, 2016, p. 140) Assim, dando continuidade a reflexão colocada pela relação entre os escritos de Hannah Arendt e a teoria normativa de justiça de Nancy Fraser, tem-se que a partir da visão arendtiana referente aos limites que os atos de negação da humanidade – de um homem por outro – podem atingir, a capacidade humana de distinguir-se pluralmente dentre diversos sujeitos está estritamente ligada aos direitos humanos, na medida em que estes permanecem conectados ao conceito de cidadãos pertencentes a um território nacional. E, quando meios de poder são manifestados em técnicas excludentes e classificatórias perante atitudes de expulsão e expatriação de determinados grupos sociais, atinge-se tal nível de indiferença e ódio que as soluções as quais a história do mundo assistiu configuraram-se em regimes totalitários, ausência de liberdade de pensamento, criação de povos sem nação, violência pela diferença e negligência. Fraser, ao pensar na diversidade existente nos dias de hoje e no efeito que o aumento do fenômeno global causa diretamente nas relações sociais e institucionais, utilizará de tais observações e análises adquirindo, logo, uma visão histórica abrangente com intuito de diagnosticar o que o tempo presente pode dizer a partir da vulnerabilidade humana destacada por Hannah Arendt. Ao examinar os “contornos das cristalizações que instigam o pensamento” (LAFER, 2007, p. 295), Nancy Fraser dá seguimento ao estudo propondo questões fundamentais que interliguem e guiem o raciocínio arendtiano até os próprios males do século XXI. Assim, a reflexão é iniciada a partir da indagação a respeito da forma com que a análise de Arendt se relaciona com as pesquisas respectivas ao tempo presente relativas aos perigos de cada período. Em seguida, através das constatações da filósofa alemã sobre a eliminação de espontaneidades no século XX, é pensado se os conflitos de hoje também advém de tal tipo de projeto exterminador de manifestações distintas e variadas. E, por fim, coloca-se a questão referente a similaridade de origem dos 40 conflitos passados e contemporâneos, onde é perguntado se o fim do Estado-Nação ainda ocupa posição central nos problemas e males humanos observados atualmente. Fraser irá apontar que, respondendo às três inquietações postas aqui, não há necessidade de radicalmente dizer totalmente sim ou não para as questões apontadas. É possível utilizar-se de um pouco de cada questionamento para pensar o mundo de hoje, mesmo com as devidas particularidades dos períodos históricos em pauta. A partir de ideia de ações autoritárias que se configuraram em totalitarismos e figuras sociais totalitárias – colocadas por Arendt como nazistas e stalinistas – no século XX, tornou-se necessário observar em nosso tempo atitudes que possam vir a seguir o mesmo caminho do período passado, apesar de que há a possibilidade de os fenômenos originários de tais acontecimentos não necessariamente serem os mesmos. Nancy Fraser irá dizer que: “I suspect that the answer to each of these questions is yes and no. On the one hand, our present dangers diverge sufficiently from those of the mid-twentieth century to preclude any simple extension of Arendt’s analysis. On the other hand, the deeper dynamic she identified can nevertheless clarify those newer threats to humanity that are gathering force today. In general, then, the approach I propose is this: we should neither rashly reject nor slavishly preserve Arendt’s analysis. Rather, we should creatively transform Arendtian thinking to account for new modes of negating the human in the twenty-first century.” (FRASER, 2010, p.135) Entretanto, não se pode deixar de destacar que existam semelhanças entre os perigos arendtianos e muitos dos acontecimentos da contemporaneidade. A questão da geração de uma sociedade de massas, cada vez mais populosa e diversa, os avanços tecnológicos – correspondentes, claro, às suas próprias épocas – que modificam as formas de trabalho e de vida das pessoas e as mutações sofridas pelas formas com que os sujeitos se relacionam são sintomas que contribuem para que seja estabelecida uma relação de pensamento tanto entre ambas as autoras, quanto entre o tempo passado e o presente. 41 5. Considerações Finais A teoria de justiça colocada por Nancy Fraser representa, seguramente, uma noção alargada de justiça e análise institucional, onde a adequada mobilização de conceitos normativos direciona o pensamento reflexivo até a construção de categorias normativas precisas e compatíveis com a realidade social contemporânea e a história social. Tendo por objetivo manter um compromisso de proximidade entre o exercício da teorização e da prática social em meio às ações e manifestações dos sujeitos da atualidade, a autora desenvolve tal linha de raciocínio capaz, assim, de localizar aspectos reais de injustiça fundamentais para que seja pensada a elaboração de uma estrutura de justiça mais inclusiva, igualitária e acessível. Através da constatação da existência de arranjos sociais da contemporaneidade como associações de sujeitos plurais, múltiplos e globais, Fraser estabelece como princípio regulador de sua normatização pensar o tema da justiça como meio de compreender a relação efetiva instituições, esferas de influência, atores sociais e padrões de valoração pré-estabelecidos. E, utilizando-se de distinções e oposições categóricas, a autora denota o caráter analítico de sua normatização a partir da explanação de pares conceituais, responsáveis estes, por representar valores institucionais e demandas sociais a fim de que se alcance uma exemplificação real de situações contemporâneas. Assim, ao distinguir a esfera econômica e a esfera cultural, a injustiça econômica e a injustiça cultural ou simbólica, a má distribuição e o não reconhecimento, a redistribuição e o reconhecimento, e os remédios afirmativos e transformativos, denota-se que a forma típica de Fraser de lidar com as questões de injustiça envolvem sempre a manifestação de dualidades conceituais que levam, assim, à uma terceira via pensamento própria da autora, a qual procura estar sempre mais próxima da realidade social vigente quando comparada aos seus pares antecessores. Tal dinâmica pode ser observada tanto em sua configuração de coletividades bivalentes, quanto no embate teórico afirmado com Honneth, visto que a principal distinção entre as teorias de ambos autores se manifesta na monologia e na duologia teórica, onde o modelo da identidade, de acordo com Fraser, não analisa de forma satisfatória as injustiças econômicas - deslocando-as do rol de assuntos em discussão -, dando, majoritariamente, prioridade às injustiças culturais. Ao passo que, discorrendo a respeito dos tipos híbridos sociais, a autora propõe, justamente, pensar além das distinções e da eleição de um caminho normativo isolado, dada a percepção de que as demandas sociais contemporâneas exigem a integração de mais de um remédio e, 42 muitas vezes, em uma ação simultânea de ambos. Surgindo, então, com o seu modelo de status, Fraser consegue conciliar a distribuição e o reconhecimento de modo a explorar a questão da posição social ocupada por cada membro dentre seus grupos sociais e particularidades e, ainda, introduzir diante da discussão sobre justiça social a questão da participação e do acesso paritário à integração e convívio em sociedade. Tomando consciência dos efeitos da globalização como fenômeno influenciador e determinante de tendências sociais, Fraser aloca suas formulações teóricas às mudanças sociais sofridas pelos indivíduos e pode, assim, aprofundar a sua análise a respeito da paridade participativa, em função da quebra de paradigmas e estruturas institucionais trazida pelos acontecimentos globais. Com isso, a autora proporciona ao debate teórico de justiça novas abordagens referentes ao tratamento das reivindicações por justiça em meio a um novo cenário de processos decisórios, estabelecendo, logo a categoria do enquadramento como vinculador de uma nova esfera social, a política, uma nova injustiça, o mau enquadramento, e um novo remédio, a representação. Assim, Fraser determina um novo momento de teorização normativa sobre justiça, onde possibilita que tipos de injustiça social próprios da contemporaneidade sejam adicionados às pautas de processos decisórios e enxergados como problemáticas sociais globais, objetivando, assim, o combate à marginalização, exclusão e negação de particularidades humanas. Ao resgatar Hannah Arendt, Fraser complementa a linha de raciocínio sobre o mau enquadramento e o não pertencimento territorial, a fim de pensar às últimas consequências a negação, o desrespeito, o impedimento e a injustiça em todos os níveis já observados pela autora. Portanto, ao unir as categorias de análise estabelecidas por Fraser, os princípios reguladores de demandas colocados pela mesma, e o desenvolvimento da teorização de justiça normativa discutida aqui - juntamente à consciência histórica a respeito dos acontecimentos sociais próprios da contemporaneidade -, depreende-se que as lutas por justiça, inseridas no contexto social contemporâneo de multiplicidade de valores, pluralidade de gostos e transnacionalização de informações, só serão efetivadas de maneira plena e satisfatória se buscarem realização em aliança às lutas por democracia e a uma maior democratização da esfera política de processos decisórios. Assim, de acordo com a autora, o aumento da participação social, sendo essa caracterizada por um maior acesso ao processo político e pela paridade de oportunidades em nível de igualdade entre todos, pode vir a ser o remédio principal 43 contra as injustiças sociais, se configurando, logo, como política motivadora das demais ações institucionais ativas no combate às desigualdades sociais contemporâneas. 44 Referências Bibliográficas ARENDT, Hannah. Origens do Totalitarismo. Tradução de Roberto Raposo. Companhia das Letras. São Paulo, 2012. FERNANDES, Mateus Braga. Contra a democracia? A Teoria da Ação de Hannah Arendt à luz do Pensamento Político Contemporâneo. Tese (Doutorado em Ciência Política) - Universidade de Brasília, 2016. FRASER, Nancy. Da redistribuição ao reconhecimento? Dilemas da justiça numa era “pós-socialista”. Tradução de Júlio Assis Simões. Cadernos de campo, São Paulo, n. 14/15, p. 231-239, novembro de 2006. ______________ Reconhecimento sem ética? Tradução de Ana Carolina Freitas Lima Ogando e Mariana Prandini Fraga Assis. Lua Nova, São Paulo, n. 70, p. 101-138, 2007. ______________ Reenquadrando a justiça em um mundo globalizado. Tradução de Ana Carolina Freitas Lima Ogando e Mariana Prandini Fraga Assis. Lua Nova, São Paulo, n. 77, p. 11-39, 2009. ______________ Repensando o reconhecimento. Tradução de Edna Velloso de Luna. Revista Enfoques: revista semestral eletrônica dos alunos do Programa de Pós-graduação em Sociologia e Antropologia da UFRJ, Rio de Janeiro, v. 9, n. 1, p. 114-128, agosto de 2010. Em http://enfoques.ifcs.ufrj.br ______________ Scales of Justice. Reimagining Political Space in Globalizing World. Columbia University Press. New York, 2010. HONNETH, Axel. Luta por reconhecimento: a gramática moral dos conflitos sociais. Tradução de Luiz Repa. Editora 34. São Paulo, 2003. LAFER, Celso. Experiência, ação e narrativa: reflexões sobre um curso de Hannah Arendt. Estudos Avançados 21 (60), p. 289-304, 2007. 45 RAMOS, Flamarion Caldeira. MELO, Rúrion. FRATESCHI, Yara. Manual de filosofia política: para os cursos de teoria do Estado e ciência política, filosofia e ciências sociais. Editora Saraiva. São Paulo, 2012.