UNIVERSIDADE ESTADUAL PAULISTA “JÚLIO DE MESQUITA FILHO” FACULDADE DE CIÊNCIAS HUMANAS E SOCIAIS PRISCILA ALVARENGA CARDOSO GIMENES NAS TRAMAS DA EDUCAÇÃO INCLUSIVA: CONSIDERAÇÕES SOBRE AS POLÍTICAS PÚBLICAS EDUCACIONAIS PARA A INCLUSÃO FRANCA 2012 PRISCILA ALVARENGA CARDOSO GIMENES NAS TRAMAS DA EDUCAÇÃO INCLUSIVA: CONSIDERAÇÕES SOBRE AS POLÍTICAS PÚBLICAS EDUCACIONAIS PARA A INCLUSÃO Dissertação apresentada à Faculdade de Ciências Humanas e Sociais, Universidade Estadual Paulista “Júlio de Mesquita Filho”, como pré-requisito para obtenção do Título de Mestre em Serviço Social. Área de Concentração: Trabalho e Sociedade. Orientadora: Profa. Dra. Djanira Soares de Oliveira e Almeida FRANCA 2012 Gimenes, Priscila Alvarenga Cardoso Nas tramas da educação inclusiva: considerações sobre as po- líticas públicas educacionais para a inclusão / Priscila Alvarenga Cardoso Gimenes. – Franca : [s.n.], 2012 136 f. Dissertação (Mestrado em Serviço Social). Universidade Esta- dual Paulista. Faculdade de Ciências Humanas e Sociais. Orientador: Djanira Soares de Oliveira e Almeida 1. Serviço Social – Política educacional. 2. Políticas públicas e sociais – Educação inclusiva – Franca (SP). 3. Educação – Pessoas com deficiência – Brasil. I. Título. CDD – 362.3 PRISCILA ALVARENGA CARDOSO GIMENES NAS TRAMAS DA EDUCAÇÃO INCLUSIVA: CONSIDERAÇÕES SOBRE AS POLÍTICAS PÚBLICAS EDUCACIONAIS PARA A INCLUSÃO Dissertação apresentada à Faculdade de Ciências Humanas e Sociais, Universidade Estadual Paulista "Júlio de Mesquita Filho", como pré-requisito para obtenção do título de Mestre em Serviço Social. Área de Concentração: Trabalho e Sociedade. BANCA EXAMINADORA Presidente:________________________________________________________________ Profa. Dra. Djanira Soares de Oliveira e Almeida 1º Examinador:____________________________________________________________ 2º Examinador: ___________________________________________________________ Franca, 17 de setembro de 2012. Dedico a todos os deficientes. AGRADECIMENTOS Agradeço... A Deus. A todos que direta ou indiretamente contribuíram para a realização deste trabalho: Meus pais, meu esposo, minha filha; Meus familiares e amigos; Minha orientadora e todos os professores que fizeram parte da minha trajetória escolar e acadêmica; À Prefeitura Municipal de Franca, aos alunos e familiares que participaram da pesquisa; À Faculdade de Ciências Humanas e Sociais, UNESP Franca, em especial, ao Programa de Pós-Graduação em Serviço Social. “A educação, é também, onde decidimos se amamos nossas crianças o bastante para não expulsá-las de nosso mundo e abandoná-las a seus próprios recursos, e tampouco arrancar de suas mãos a oportunidade de empreender alguma coisa nova e imprevista para nós, preparando-as em vez disso com antecedência para a tarefa de renovar um mundo comum.” Hannah Arendt GIMENES, Priscila Alvarenga Cardoso. Nas tramas da educação inclusiva: considerações sobre as políticas públicas educacionais para a inclusão. 2012. 136 f. Dissertação (Mestrado em Serviço Social) Faculdade de Ciências Humanas e Sociais, Universidade Estadual Paulista “Júlio de Mesquita Filho”, Franca, 2012. RESUMO A Educação Inclusiva tem sido tema de diversos debates e de reivindicações no cenário nacional e mundial, em que diversos representantes das pessoas com deficiência buscam o direito de acesso ao ensino regular e, com isso, a garantia das mesmas oportunidades de desenvolvimento. Neste sentido, o presente trabalho tem como objetivo discutir as principais propostas da Política Nacional de Educação Especial na perspectiva da Educação Inclusiva e verificar como essas propostas têm sido implantadas na rede municipal de educação de Franca. Busca-se constatar, por meio de amostra, como os alunos com deficiência e seus responsáveis têm avaliado a implantação dessa proposta e se essa atende seus interesses, aspirações e necessidades. Para tanto, inicialmente foi realizada uma pesquisa bibliográfica com o intuito de verificar como os deficientes foram tratados ao longo da história da humanidade, bem como delinear qual é o lugar ocupado pelo deficiente na contemporaneidade. Em seguida, buscou-se junto aos documentos legais, traçar o percurso das políticas públicas educacionais em relação à educação do deficiente ao longo da história da educação no país, com enfoque maior nas últimas décadas. A pesquisa de campo foi realizada com quatro alunos com deficiência intelectual, que frequentam as escolas da rede municipal de educação e trazem em seu histórico a passagem pela escola especial, e com seus representantes. Foi realizada uma análise do conteúdo das informações levantadas na pesquisa e verificado que a maioria dos entrevistados aprova as propostas da rede municipal e avalia como positivo o processo de inclusão, apontando apenas a necessidade de maior investimento na oferta de atendimentos clínico-terapêuticos na rede pública. Afinal, com a transferência da escola especial para a escola regular, os alunos perderam os atendimentos antes disponibilizados na APAE (Associação de Pais e Amigos do Excepcional de Franca). É valido ressaltar também que no município foi realizada uma adequação à referida Política, pois, ao invés de se transformar em centro de atendimento educacional especializado, a escola especial permanece com os atendimentos escolares. Partindo destes resultados é possível compreender que, embora ainda careça de muitos investimentos para que haja uma consolidação das propostas, a Política Nacional de Educação Especial na perspectiva da Educação Inclusiva em relação à rede municipal de educação de Franca vem alcançando resultados positivos. Palavras-chave: políticas públicas educacionais. educação inclusiva. Secretaria Municipal de Educação de Franca. GIMENES, Priscila Alvarenga Cardoso. Nas tramas da educação inclusiva: considerações sobre as políticas públicas educacionais para a inclusão. 2012. 136 f. Dissertação (Mestrado em Serviço Social) Faculdade de Ciências Humanas e Sociais, Universidade Estadual Paulista “Júlio de Mesquita Filho”, Franca, 2012. ABSTRACT Inclusive Education has been subject of several debates and claims in international and national scenery, in which many guardians of people with disabilities search for the right of access in a public education and, thus, the guarantee of opportunities of development. In this way, the present research aims to discuss the main proposals of National Politics of Special Education in the view of Inclusive Education and, to verify how these proposals have been set in municipal education in a city called Franca/Brazil. We try to confirm, by samples, how students with disability and their guardians have evaluated the introduction of this proposal and if this proposal meets the interest, aspirations and needs. For this, firstly we carried out a bibliographic search in order to verify how disabilities were treated during the History of humanity, as well as outlining the place occupied by disabilities in contemporaneousness. Then, together with some documents, we try to draw the route of educational public politics regarding disabilities education during the history of education in Brazil, focusing the last decades. Field research was carried out with four students, with intellectual disability that attend municipal schools and bring with then the fact of have studied in special schools and, with their guardians. We carried out an analysis of the content of information gathered in the research and we verify that the greater part of the respondent approve the proposals of municipal education and assess the process of inclusion as positive, showing just the need of more investment in clinical and therapeutic care in public services, since with the change of special school to regular school, students lost the treatment provided by APAE (Associação de Pais e Amigos dos Excepcionais de Franca). We observed that in Franca was performed an adequacy to the mentioned Politics because instead of turns a center of educational specialized attendance, special school maintains school attendance. Starting from these results it is possible to understand that, although there is a need of more investments to the consolidation of the proposals, National Politics of Special Education in the view of Inclusive Education regarding municipal education of Franca has achieved positive results. Keywords: educational public politics. inclusive education. Municipal Bureau of Education of Franca. LISTA DE TABELAS TABELA 1 - Apresentação comparativa da evolução da quantidade de matrículas na Educação Infantil e Ensino Fundamental da Rede Municipal de Educação de Franca 2007 e 2012 ...................................................................................... 94 TABELA 2 - Demanda dos casos de Inclusão da rede municipal de educação de Franca em 2012, por tipo de deficiência ............................................................................. 97 LISTA DE QUADROS QUADRO 1 - Quadro comparativo do número de matrículas na Educação Especial nas etapas de Educação Infantil, Ensino Fundamental, Ensino Médio, Educação de Jovens e Adultos e Educação Profissional ................................................... 73 QUADRO 2 - Perfil dos alunos que participaram da entrevista, quanto ao tipo de deficiência e a região em que residem .............................................................. 92 QUADRO 3 - Caracterização dos sujeitos da pesquisa / alunos com deficiência ................. 101 QUADRO 4 - Quadro com as questões da entrevista direcionadas aos alunos e a especificação de cada pergunta ........................................................................... 104 QUADRO 5- Quadro com as questões da entrevista direcionadas aos responsáveis e a especificação de cada pergunta ....................................................................... 105 QUADRO 6- Quadro com as principais respostas dos alunos .............................................. 106 QUADRO 7- Categorias de análise das questões direcionadas aos alunos ........................... 107 QUADRO 8- Quadro com as principais respostas dos responsáveis .................................... 114 QUADRO 9- Categorias de análise das questões direcionadas aos responsáveis ................. 116 LISTA DE GRÁFICOS GRÁFICO 1 - Quantidade de alunos com deficiência matriculados em escolas especializadas ou classes especiais e em escolas regulares de 2001 a 2008 ....... 70 GRÁFICO 2 - Gráfico comparativo do número de matrículas na Educação Especial nas etapas de Educação Infantil, Ensino Fundamental, Ensino Médio, Educação de Jovens e Adultos e Educação Profissional de 2007 a 2011 ........... 73 GRÁFICO 3 - Evolução da quantidade de alunos com deficiência matriculados nas escolas municipais de Franca, de 2008 a 2012 .............................................. 96 GRÁFICO 4 - Demanda dos casos de Inclusão da rede municipal de educação de Franca em 2012, por tipo de deficiência .................................................................... 97 LISTA DE FIGURAS FIGURA 1 – Diagrama que ilustra os momentos históricos que marcaram as ações do sistema escolar, para aproximar os alunos com deficiência das classes regulares ............................................................................................................. 45 LISTA DE SIGLAS ABNT Associação Brasileira de Normas Técnicas AEE Atendimento Educacional Especializado APAE Associação dos pais e Amigos dos Excepcionais BPC Benefício de Prestação Continuada CENESP Centro Nacional de Educação Especial DF Deficiência Física DI Deficiência Intelectual DM Deficiência Múltipla DV Deficiência Visual ECA Estatuto da Criança e do Adolescente EI Educação Inclusiva EMEB Escola Municipal de Educação Básica IBC Instituto Benjamin Constant IBGE Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística INEP Instituto Nacional de Estudos e Pesquisas Educacionais Anísio Teixeira INES Instituto Nacional da Educação dos Surdos LDB Lei de Diretrizes e Bases da Educação MEC Ministério da Educação e da Cultura PAC Distúrbio do Processamento Auditivo PDE Plano de Desenvolvimento da Educação PNE Plano Nacional de Educação SESPE Secretaria de Educação Especial TDAH Transtorno do Déficit de Atenção e Hiperatividade TGD Transtornos Globais do Desenvolvimento UNESCO United Nations Educational, Scientific and Cultural Organization (Organização das Nações Unidas para a Educação, a Ciência e a Cultura) SUMÁRIO INTRODUÇÃO ...................................................................................................................... 15 CAPÍTULO 1 DA CONDENAÇÃO Á PARTICIPAÇÃO ................................................. 19 1.1 A trajetória das pessoas com deficiência ao longo da história da humanidade: alguns apontamentos ....................................................................................................... 19 1.2 O lugar do diferente na contemporaneidade ................................................................. 32 1.3 A contrariedade e a complexidade da inclusão .............................................................. 40 CAPÍTULO 2 TRAJETÓRIA DAS PESSOAS DEFICIENTES NO CONTEXTO EDUCACIONAL BRASILEIRO ................................................................ 51 2.1 Educação Especial no Brasil: histórico e marcos legais da Educação Inclusiva no Brasil ................................................................................................................................. 52 2.2 A política educacional para a inclusão de alunos com deficiência na rede regular de ensino: apontando forças e fraquezas ....................................................................... 72 CAPÍTULO 3 A INCLUSÃO DE ALUNOS COM DEFICIÊNCIA NA REDE MUNICIPAL DE EDUCAÇÃO DE FRANCA ......................................... 87 3.1 Em busca de pontos e contrapontos no entrelaçado dos fios: o caminho da pesquisa ............................................................................................................................ 88 3.2 Rede municipal de educação de Franca ......................................................................... 95 3.3 Fatos e falas... Como os alunos com deficiência e seus familiares avaliam a Política Nacional de Educação Especial na Perspectiva da Educação Inclusiva ................... 100 CONSIDERAÇÕES FINAIS ............................................................................................... 124 REFERÊNCIAS ................................................................................................................... 128 APÊNDICES APÊNDICE A - Roteiro da Entrevista ............................................................................... 136 15 INTRODUÇÃO Nas últimas décadas, diversos profissionais da educação no município de Franca têm recebido em suas salas de aula alunos com deficiência1, o que tem desencadeado sentimentos diversos, visto que em muitos casos, os docentes sentem-se inseguros, despreparados e frustrados, pois julgam não ter realizado um bom trabalho. Esta situação, nova, para muitos profissionais que se dedicam à escola regular, é resultado de um movimento mundial que, aos poucos vem conquistando maior amplitude e tem como objetivo assegurar às pessoas com deficiência a igualdade de oportunidades e a possibilidade de participar dignamente da vida em sociedade. Entretanto, para melhor compreender este processo, atualmente denominado como Inclusão Escolar, é necessário remeter a diversos fatores, campos do conhecimento e perspectivas, visto que abordar a questão do deficiente ao longo da história e na atualidade é como percorrer os fios de uma trama2, trançada por várias mãos, de diversas formas e com diferentes intenções. Este trabalho representa alguns dos vários caminhos trilhados em busca desta compreensão, pois teve como objetivo averiguar como os alunos com deficiência e seus familiares avaliam as políticas públicas de inclusão3 implantadas no município de Franca – SP após a proposta da Política Nacional da Educação Especial na Perspectiva da Educação Inclusiva (BRASIL, 2008) e se estas estão atendendo suas necessidades, interesses e aspirações. Para tanto se almejou visualizar a realidade educacional dos alunos com deficiência que frequentaram a escola especial e atualmente encontram-se matriculados na rede regular de ensino da cidade de Franca e constatar se os argumentos utilizados pelos defensores da manutenção das escolas especiais condizem com a realidade local. Para tanto optou-se por buscar amparo tanto no campo da Educação, quanto do Serviço Social, visto que este trabalho visa dar voz ao usuário das políticas públicas educacionais, ou seja, os alunos com deficiência que frequentam as escolas municipais de 1 Ao longo deste trabalho, será utilizada a terminologia 'pessoa ou aluno com deficiência', visto que atualmente, de acordo com os autores da área, é o termo que melhor representa a pessoa com deficiência intelectual ou sensorial. É válido pontuar que nas citações aparecerão outras terminologias, isso deve-se ao fato de que no decorrer dos anos houve diferentes formas de compreender o deficiente e, portanto, de nomeá-lo. 2 A palavra 'trama' é compreendida como o resultado do trabalho de um tecelão ao entrelaçar os fios. Este termo tem sido utilizado por vários autores para referir-se aos diversos aspectos que se entrelaçam para que seja construída uma sociedade inclusiva e mais especificamente , seja consolidada a Educação Inclusiva. 3 É importante salientar que o vocábulo 'inclusão' é utilizado neste trabalho para designar o movimento internacional que afirma a importância dos alunos com deficiência frequentarem as escolas regulares, ao invés de serem atendidos em espaços segregados. No primeiro capítulo será tecida uma breve discussão acerca deste assunto. 16 Franca e seus familiares, nesta perspectiva, considerar o construto conceitual desta relevante área do conhecimento, aliada a educação, é fundamental. Este trabalho contou com o embasamento teórico de diversos pesquisadores que se debruçam a compreender melhor a condição atual dos deficientes, dentre eles é válido destacar: Bianchetti (1995; 1998), Pessoti (1984), Mendes (2010a, 2010b), Aranha (1995), Amaral (1994), Silva (2011), Larrosa e Skliar (2011), Skliar (2006), Pierucci (1999), Tomasini (1998), Duschatzky e Skliar (2011), Sawaia (2008), Pacheco (2007), Díez (2010), Rodrigues (2006), Oliveira (2007), Jannuzzi (1992; 2004), Mazzotta (1996; 2010), Bueno (1993), Almeida (2007), Mantoan (2006a e 2006b), entre outros. Para entender o atual estágio das discussões acerca da Educação Inclusiva, é interessante retomar que há mais de 60 anos, a humanidade chegou a um entendimento sobre como organizar a sociedade a partir do reconhecimento do outro e de seus direitos, com a proclamação da Declaração Universal dos Direitos Humanos, pela Assembleia Geral das Nações Unidas. A partir de então, as nações do mundo tem incorporado seus ideais aos princípios constitucionais e, vagarosamente, vêm buscando a construção de culturas sociais inclusivas que garantam a conquista e a preservação dos direitos de todos, independentemente de suas características, possibilidades e necessidades, pois a ideia de sociedade inclusiva se fundamenta em uma filosofia que reconhece e valoriza a diversidade como característica inerente à constituição de qualquer sociedade. A partir deste princípio, é válido considerar que o atendimento educacional oferecido às pessoas com deficiência tem sido tema de debates e discussões, dadas divergências de visões e de propósitos a ele atribuídos. Para compreender a amplitude desta discussão, é importante conhecer como o homem vem, ao longo do tempo, atendendo às suas necessidades. Neste sentido, é válido refletir sobre a relação e o papel da Assistência Social e da Educação Especial, pois ambas foram criadas com o intuito de garantir o provimento das necessidades básicas da população que, com o desenvolvimento das sociedades, foram colocadas à margem do sistema. Atualmente, no que tange ao processo educacional das pessoas com deficiência, alguns teóricos desta temática defendem a urgência da inclusão total na rede regular de ensino, ou seja, que todos os alunos, independentemente de suas condições ou limitações frequentem regularmente as turmas, de acordo com suas faixas etárias, nas escolas comuns. Em contrapartida, outros apontam para a necessidade de um atendimento educacional que propicie a equiparação de oportunidades, o que não implica necessariamente na igualdade de atendimentos ofertados e defendem a importância da Educação Especial. Tais debates 17 apresentam em seu cerne a forma como a sociedade atual se organiza para atender às necessidades das pessoas com deficiência e, principalmente como estas pessoas são consideradas em suas limitações e em suas potencialidades. Estas discussões instigam a refletir sobre como a pessoa com deficiência tem sido atendida em suas necessidades e qual a postura do Estado frente a esta demanda, visto que ao longo de processos sócio-históricos de formação e desenvolvimento, as sociedades têm buscado respostas e soluções para problemáticas existentes na constituição da vida em suas relações sociais, econômicas, políticas e culturais. Esta busca é regida por interesses e ideologias que ora representam a maioria (o povo), ora legitimam as perspectivas de uma minoria (classe dominante), em tramas resilientes de conflito e poder. É fato que independentemente da nação, salvo suas particularidades, sempre existiram temáticas que estiveram em pauta, requisitando a atenção das autoridades no seu trato. Dentre elas encontram-se a pobreza material da população e as minorias sociais como crianças abandonadas, pessoas deficientes, estrangeiros, idosos, dentre outras. Para melhor compreender como se estabelecem as relações de forças e interesses no direcionamento das problemáticas sociais na contemporaneidade, bem como situar a pessoa com deficiência neste contexto, no primeiro capítulo será realizada uma retrospectiva histórica, identificando os condicionantes e os ideais em que se baseavam as relações estabelecidas entre a sociedade e as pessoas com deficiência nos diversos momentos históricos. Em seguida, ainda buscando maior compreensão, serão discutidos alguns conceitos como a diferença, exclusão e inclusão, comumente utilizados nos discursos sobre a Educação Inclusiva. No segundo capítulo serão abordados aspectos relacionados à trajetória educacional dos deficientes no Brasil, buscando para isso embasamento nas leis e decretos e documentos que regulamentam a educação no país. Ainda neste capítulo será discutido o texto da Política Nacional de Educação Especial, na perspectiva da Educação Inclusiva e seus desdobramentos no panorama nacional. E no terceiro capítulo, serão apresentados alguns aspectos referentes ao contexto educacional do município de Franca, apontando como têm sido concretizadas as propostas da Política Nacional de Educação Especial, na perspectiva da Educação Inclusiva, bem como serão expostos os resultados da pesquisa de campo realizada com os alunos com deficiência e seus familiares, que teve como foco identificar qual a avaliação das políticas educacionais para inclusão de alunos com deficiência na rede regular de educação municipal implantadas no município de Franca. 18 Desta forma, buscará conhecer se os alunos com deficiência que frequentam a Rede Municipal de Educação, bem como seus familiares avaliam estas propostas como positivas, bem como, averiguar se a Prefeitura Municipal de Franca têm atendido e respeitado os direitos de seus cidadãos deficientes com a dignidade que merecem. 19 CAPÍTULO 1 DA CONDENAÇÃO À PARTICIPAÇÃO "É no ciclo cotidiano de enfrentamento das restrições à sua aceitação social que o indivíduo constrói a sua história" (TOMASINI, 1998) O atendimento educacional oferecido às pessoas com deficiência tem sido tema de debates e discussões, dadas as divergências de visões e de propósitos a ele atribuídos. Para compreender a amplitude desta discussão é necessário recorrer a passagens históricas que evidenciam os condicionantes e os ideais que fundamentavam a relação dos deficientes com os demais membros das sociedades, desde a antiguidade aos dias atuais. É válido também destacar quais eram as intervenções e os atendimentos a elas prestados, tanto no que se refere a aspectos médicos, educacionais e sociais, a fim de possibilitar o provimento das necessidades básicas desta população que, com o desenvolvimento das sociedades, foi colocada à margem do sistema. A partir deste resgate histórico serão salientadas as concepções contemporâneas acerca da deficiência, bem como quais são as atitudes predominantes das sociedades atuais para com os deficientes, nas diversas esferas sociais, com foco no contexto educacional e nos direitos conquistados por esta parcela da população até o presente momento. Ao final deste capítulo serão abordadas as discussões recentes que perpassam o conceito de inclusão, com o intuito de significar o termo à luz das conceituações presentes na literatura selecionada para esta pesquisa. 1.1 A trajetória das pessoas com deficiência ao longo da história da humanidade: alguns apontamentos Ao longo da história da humanidade, as pessoas com deficiência foram vistos e tratadas de diversas maneiras, pois em cada período histórico a relação estabelecida entre esta parcela da população e os demais membros da sociedade/comunidade, foi marcada e condicionada por concepções, ideais e paradigmas, característicos de cada época, que determinavam a participação das pessoas com deficiência na vida social. Para o embasamento desta retrospectiva histórica serão utilizados os apontamentos realizados por Bianchetti (1995; 1998), Pessoti (1984), Mendes (2010a), Aranha (1995), 20 Amaral (1994), entre outros, que embora com algumas diferenças de nomenclatura e classificação do período histórico, ressaltam desde a antiguidade, como eram concebidas as pessoas que não correspondiam aos padrões aceitos ou desejados em cada época. Neste sentido serão destacados alguns momentos, nos períodos históricos clássicos4, que ilustram e exemplificam a concepção de deficiência e a forma como a sociedade se organizava para atender às necessidades desta população. São eles: as sociedades primitivas, o período escravista, o advento do cristianismo, a dominação do capitalismo e a conjuntura atual. As sociedades primitivas5 se organizavam em torno da caça e da pesca, não contavam com abrigo fixo, sendo o ambiente hostil caracterizado pelo clima desfavorável e condições ambientais que comprometiam a sobrevivência dos indivíduos. Embora não existam registros sobre como estas comunidades pré-históricas lidavam com as pessoas com deficiência, os autores concluem que dada a seleção natural ocasionada pelas condições ambientais e a preocupação dos grupos em manter a segurança e a saúde dos seus integrantes, os deficientes, em sua maioria, eram extintos. A respeito deste período, Bianchetti (1998, p. 28) descreve que: Uma das características básicas destes povos era o nomadismo, sendo que os atendimentos das suas necessidades estavam totalmente na dependência do que a natureza lhes proporcionava, como por exemplo, a caça e a pesca, no tocante à alimentação e as cavernas para se abrigar. Ora, em virtude da característica cíclica da natureza, totalmente fora do controle dos homens, os deslocamentos eram constantes, razão pela qual é indispensável que cada um se baste por si e ainda colabore com o grupo. É evidente que alguém que não se enquadra no padrão social e historicamente considerado normal, quer seja decorrente de seu processo de concepção e nascimento ou impingido na luta pela sobrevivência, acaba se tornando um empecilho, um peso morto, fato que o leva a ser relegado, abandonado, sem que isso cause os sentimentos de culpa característicos da nossa fase. O autor aponta ainda que apenas os mais fortes tinham chances de sobreviver a esta seleção natural e que este fato era visto com naturalidade pelo grupo. O início da agricultura, da pecuária e o estabelecimento das comunidades em locais fixos acarretaram grandes mudanças no modo de vida das pessoas, visto que com a possibilidade de produzir o próprio sustento, os grupos puderam escolher locais propícios para residirem, que contavam com recursos naturais adequados e que de certa forma os 4 O embasamento histórico fará referência a aspectos da história ocidental, devido à abordagem proposta pelos autores utilizados na pesquisa bibliográfica. 5 Este momento se refere ao período clássico da Pré-história e início da Antiguidade. 21 protegeriam das intempéries climáticas. Este fato desencadeou apropriação de terras, ou seja, o surgimento da propriedade, inicialmente de posse grupal e tempos depois a privada e legitimou a divisão social do trabalho. Também contribuiu com a origem da constituição familiar. Entretanto, para as comunidades desta época, as pessoas com deficiência continuaram a ser um 'peso morto', como afirmou Bianchetti (1998, p. 28) e, portanto, eram exterminados. De acordo com Aranha (1995, online), “A deficiência, nessa época, inexistia enquanto problema, sendo que as crianças portadoras de deficiências imediatamente detectáveis, a atitude adotada era a da 'exposição', ou seja, o abandono ao relento, até a morte.” Nas sociedades antigas6, ou período denominado escravista, com exceção dos egípcios, que de acordo com os registros arqueológicos, possibilitavam a integração das pessoas com deficiência, o extermínio de crianças deficientes era comum, pois se buscava uma forma de eugenia. Deste procedimento livravam-se apenas alguns nobres e pessoas mais abastadas e os deficientes intelectuais, não identificados logo após o nascimento. Bianchetti (1998, p. 29, grifo do autor), ao se referir à sociedade espartana, afirma que: Na medida em esses gregos se dedicavam predominantemente à guerra, valorizando a ginástica, a dança, a estética, a perfeição do corpo, a beleza e a força, acabaram se transformando num grande objetivo. Se, ao nascer, a criança apresentasse qualquer manifestação que pudesse atentar contra o ideal prevalecente, era eliminada. Praticava-se, assim, uma eugenia radical, na fonte. A eliminação dava-se porque a criança não se encaixava no leito de Procrusto 7 dos espartanos. Pessoti (1984, p. 3), ao se referir à cultura espartana, descreve que as crianças com deficiência eram consideradas sub-humanas, "[...] o que legitimava sua eliminação ou abandono, prática perfeitamente coerente com os ideais atléticos e clássicos, além de classistas, que serviam de base à organização sociocultural de Esparta e da Magna Grécia." O autor acrescenta que a exposição era praticada indistintamente e aceita por toda a sociedade e cita que Aristóteles indicava aos pais a exposição de filhos normais excedentes, com o intuito de garantir o equilíbrio demográfico. Neste sentido é compreensível que o destino dos deficientes não fosse diferente. 6 Este período compreende do século XII A.C. até aproximadamente o século IV da Era Cristã e caracteriza-se pela formação das cidades, pelo estabelecimento de relações escravistas e pelo surgimento da escrita. 7 Mito grego que narra a história de um salteador que além de assaltar os viajantes, os colocava em uma cama que tinha como objetivo deixar todos com a mesma estatura, sendo que aqueles que por ventura fossem maiores do que a medida da cama tinham parte de suas pernas cortadas e os que apresentavam estatura inferior à medida eram esticados até atingirem o padrão. 22 Amaral (apud SILVA; CASTRO; CASTELO BRANCO, 2006, p. 6) afirma que: A concepção filosófica dos greco-romanos legalizava a marginalização das pessoas com deficiência, à medida que o próprio Estado tinha o direito de não permitir que cidadãos “disformes ou monstruosos” vivessem e, assim sendo, ordenava que o pai matasse o filho que nasceu nestas condições. A respeito das demais regiões europeias Pessoti, (1984, p. 3) salienta ainda que, de modo geral, "a sorte" dos deficientes é a mesma, ou seja, o abandono ou a eliminação era prática recorrente, o que para o autor, não é de se surpreender, pois para estas sociedades, "[...] até a mulher normal só adquire status de pessoa, no plano civil, a alma no plano teológico, após a difusão europeia da ética cristã." Este entendimento só difere em Esparta, pois para os espartanos, a mulher bela e forte era a condição para gerar um bom guerreiro. Amaral (1994) distingue nas sociedades antigas, duas formas contraditórias de conceber o deficiente, pois, ao recorrer à figura mitológica ao oráculo cego8, aponta uma entidade supra-humana, a ser venerada, em que a deficiência visual não é motivo para retirar o poder, a sabedoria e a divindade. Esta posição diverge completamente das pessoas deficientes, que eram tidas como sub-humanas e devido a sua animalidade, deveriam ser banidas da humanidade. Com o tempo, as sociedades viram-se obrigadas a criar mecanismos para atender as necessidades dos seus integrantes adultos, que por si só não conseguiam sobreviver, pois devido ao modo de vida e costumes da época, diversas pessoas sofriam mutilações ou tornavam-se deficientes em decorrência de doenças. Este fato possibilitou que algumas sociedades compreendessem que não se tratava de uma questão pessoal, mas sim social e, portanto, a comunidade precisaria contribuir para a sobrevivência destes indivíduos. Nesta perspectiva, as pessoas necessitadas de indulgência foram classificadas como “válidos” e “inválidos” para o trabalho. As pessoas com deficiência constituíam o grupo dos inválidos, pois, eram considerados impotentes para o trabalho, logo, merecedores da caridade, ofertada por iniciativas privadas e grupos filantrópicos. A partir da ascensão do Cristianismo9, iniciou-se um período marcado pela mudança na forma de conceber e agir frente às pessoas com deficiência, visto que foram difundidos novos valores, sendo principalmente: todas as pessoas são filhas de Deus; todas são 8 Tirésias, o grande vidente cego da tragédia grega Édipo Rei. 9 Este período estendeu-se por aproximadamente dez séculos (V ao XV), sendo denominado de Idade Média e também período feudal. 23 constituídas de corpo e de alma; a deficiência está relacionada ao pecado; e a caridade é uma virtude apreciada por Deus. Ao se referir aos novos paradigmas apresentados pelo Cristianismo, Bianchetti (1995, online) afirma que: “O deficiente deixa de ser morto ao nascer, porém, passa a ser estigmatizado, pois, para o moralismo cristão/católico, deficiência passa a ser sinônimo de pecado.” De acordo com Silva e Dessen (2001, p. 133), Na Idade Média, a deficiência era concebida como um fenômeno metafísico e espiritual devido à influência da Igreja; à deficiência era atribuído um caráter "divino" ou "demoníaco" e esta concepção, de certa forma, conduzia o modo de tratamento das pessoas deficientes. Com a influência da doutrina cristã, os deficientes começaram a ser vistos como possuindo uma alma e, portanto, eram filhos de Deus. Desta forma, não eram mais abandonados, mas, sim, acolhidos por instituições de caridade. Com estas novas visões, ser deficiente, ou ter um filho deficiente passa a significar para a sociedade, que a família ou a pessoa cometeu um pecado grave, ou estava sob o domínio do demônio. Esta concepção desencadeou um processo de segregação e estigmatização, visto que a grande maioria das famílias escondiam as pessoas com deficiência ou os abandonavam. Diversos autores, como Bianchetti (1998, p. 31-33) citam em seus trabalhos os milagres realizados por Jesus, narrados pelos evangelistas na Bíblia10, que descrevem as curas e libertações envolvendo deficientes, sendo que em todos os casos a deficiência estava relacionada ao pecado perdoado ou à possessão demoníaca. A difusão destes relatos propagou também a segregação de muitos deficientes que, de acordo com os textos bíblicos, não podiam frequentar as cidades, sequer ter contato com as demais pessoas, como os leprosos, ou mendigavam nas ruas, sobrevivendo com a caridade daqueles que queriam agradar a Deus. Pessoti (1984, p. 4) afirma que: Graças à doutrina cristã, os deficientes começaram a escapar do abandono ou da "exposição", uma vez que, donos de uma alma, tornaram-se pessoas e filhos de Deus, como os demais seres humanos. É assim que passam a ser, ao longo da Idade Média, "les enfants du bon Dieu", numa expressão que tanto implica a tolerância e a aceitação caritativa quanto encobre a omissão e o desencanto de quem delega à divindade a responsabilidade de prover e manter suas criaturas "deficitárias". 10 O autor relata que dos vinte e dois milagres com curas e exorcismos realizados por Jesus, oito referem-se a cura de cegos, surdos, mudos e gagos, sendo que os outros relacionam-se a paralisias e possessões. 24 A grande quantidade de crianças com deficiência abandonadas levou a Igreja a fundar instituições, conventos ou centros responsáveis pela assistência, pelos cuidados e pela sobrevivência destas crianças, sendo esta ação de cunho caritativo e assistencialista, ou seja, tinha como objetivo apenas sobrevivência, enquanto possíve, daqueles que também eram 'filhos do bom Deus'. Tais instituições, geralmente contavam com o trabalho e administração de pessoas relacionadas à Igreja e com o apoio das famílias solidárias e caridosas. Neste sentido, é preponderante a influência que a Igreja Católica, enquanto instituição aliada ao Estado na relação de poder, exercida mediante a propagação de conhecimentos e ideologias. Tal aproximação condicionava as ações desempenhadas em prol dos “necessitados”, incluindo os pobres, as crianças abandonadas, as viúvas e os deficientes, ao âmbito da caridade, sob a responsabilidade exclusiva da Igreja e não do Estado. A Igreja representava a interligação entre Estado e sociedade, e sob esta ótica mantinha-se sobre uma estrutura humana de intelectuais, bem como uma estrutura física com instituições religiosas. A grande tarefa em questão era manter, através de intervenções junto aos pobres e deficientes, a ordem social e não a garantia dos seus direitos enquanto sujeitos de uma conjuntura social, uma vez que esta hipótese não era concebida, ou seja, por muitos séculos o atendimento ao deficiente visava a ordem e de acordo com Amaral (1994) atendia ao desejo da população de que estas pessoas ficassem convenientemente confinadas em instituições, logo, longe da vida social, pois, ainda eram tidas como empecilho, motivo de vergonha ou desonra. A este respeito Pessoti (1998, p. 4) declara que: Como para a mulher e o escravo, o cristianismo modifica o status do deficiente, que desde os primeiros séculos da propagação do cristianismo na Europa, passa de coisa a pessoa. Mas a igualdade de status moral ou teológico não corresponderá, até a época do iluminismo, a uma igualdade civil, de direitos. Dotado de alma e beneficiado pela redenção do Cristo, o deficiente passa a ser acolhido caritativamente em conventos ou igrejas, onde ganha a sobrevivência, possivelmente em troca de pequenos serviços à instituição ou à pessoa "benemérita" que o abriga. Os ingleses a partir do Século XIV, por visualizarem que a Igreja através de suas ações paliativas e caritativas espontâneas não estava suprindo as necessidades de contenção das camadas pobres, imperando uma possibilidade de desordem, advinda da lenta substituição da organização feudal pela capitalista, instauraram a Leis dos Pobres (Poor Law), com o intuito de regulamentar as ações desenvolvidas em relação à demanda. O Estado passa a assumir que a questão da pobreza e outras mazelas sociais como a questão da deficiência, extrapolam a 25 dimensão individual de casos isolados e assumem uma conotação pública, gradativamente crescente. Apesar de ser o Estado o responsável por direcionar as propostas em atenção aos pobres, o processo de implementação e execução de toda a regulamentação ainda continuava nas mãos da Igreja. Embora ainda tímida, esta é uma das primeiras ações do Estado que tem como foco o atendimento do deficiente, mesmo que não diretamente. Neste mesmo período, de acordo com Pessoti (1984, p. 5), foi criada "[...] a primeira legislação sobre os cuidados a tomar com a sobrevivência e, sobretudo, com os bens dos deficientes mentais." O autor pontua ainda que com esta legislação Eduardo II da Inglaterra queria proteger os direitos e as propriedades dos deficientes, pois o rei se apropriava de parte de seus bens para custear as despesas com os cuidados dispensados a eles. Não havia assim uma preocupação direta com as condições de vida dos deficientes, mas apenas com os bens que seriam revertidos à coroa. A transição da ordem feudal para a capitalista pressionou os países a se mobilizarem frente à necessidade de contenção da visível e crescente miséria da população, geralmente acometidas por doenças e epidemias. De acordo com Pereira (2009), a Grã-Bretanha no ano 1351 criou o Statute of Labourers (Lei dos Trabalhadores) e em 1388 a Poor Law Act (Leis dos Pobres). Assim, Pereira (2009, p. 62) afirma: Essa lei, conforme Fraser (1984), não apenas procurava fixar salários, mas também evitar que a mobilidade dos trabalhadores entre as Paróquias propiciasse a elevação dos mesmos. Dessa forma, as regulamentações contra a perambulância de pessoas em busca de melhores ocupações, ou a chamada “vagabundagem”, constituíram a origem da assistência social institucional. A Revolução burguesa iniciada no final do Século XV, e com ela a dominação do capitalismo11, provocou a mudança na concepção de homem e de sociedade, considerada por muitos como um divisor de águas na história da humanidade, pois, garantiu o domínio do homem sobre a natureza, a possibilidade de acumulação, o avanço das ciências, das pesquisas na área da medicina. Culminando também em alterações na concepção de deficiência, segundo Silva e Dessen (2001), esta deixou de vincular-se ao pecado e a questões espirituais para ser compreendida a partir do sistema econômico vigente e relacionada à questão médica e orgânica, dado o avanço da medicina. 11 Esse período refere-se aos período clássicos denominados Idade Moderna (que se iniciou em 1453 com a queda de Constantinopla) e parte de Idade Contemporânea (que se iniciou em 1789 com a Revolução Francesa). 26 Bianchetti (1998, p. 36) aponta que as descobertas científicas, principalmente de Copérnico e de Galileu Galilei foram preponderantes para que outros estudiosos ampliassem sua visão do mundo e do homem, desta forma, relata que: Com Isaac Newton (1642 - 1727), impõe-se a visão mecanicista do universo, criando nova linguagem em que as metáforas são utilizadas para definir as partes do corpo humano: o coração passou a ser chamado de bomba, o rim de filtro, o pulmão de fole. Mais recentemente, o cérebro passa a ser compreendido como o protótipo do computador perfeito. Portanto, o corpo passou a ser definido e visto como uma máquina em funcionamento. Dessa visão vai emergir um resultado desastroso para a questão da diferença: se o corpo é uma máquina, a excepcionalidade ou qualquer diferença, nada mais é do que a disfunção de alguma peça da máquina. Ou seja, se, na Idade Média a diferença estava associada a pecado, agora passa a ser relacionada à disfuncionalidade. A nova compreensão da deficiência e a necessidade de manter a ordem social acarretaram a disseminação de instituições que segregavam os deficientes, para que estes fossem retirados da convivência social, recebessem a assistência necessária e o tratamento médico. Nestas instituições, a palavra de ordem era curar o deficiente, visto que se considerava que alguma 'peça' precisava de reparos para voltar a funcionar normalmente, como os demais indivíduos da sociedade. Para tanto, em nome da ciência, buscavam-se métodos de tratamento e era realizada a testagem de diversos medicamentos, pois nesta época a alquimia passa a exercer influência na medicina. Estas pesquisas custaram a vida de muitas pessoas com deficiência, que foram utilizadas como cobaias nas mais diversas experiências. Neste momento inexistia a preocupação com aspectos educacionais, visto que o objetivo era a cura, uma vez que a deficiência, nesta concepção, relacionava-se à doença. Tais investigações, entretanto, instigaram diversos estudiosos a observar as características das pessoas com deficiência, o que desencadeou avanço em relação à descrição das deficiências e à classificação dos quadros apresentados, chegado a compreensão, por exemplo, da diferença entre a deficiência intelectual12 - imbecilidade e a doença mental13 - loucura. É válido pontuar que, embora seja considerado um avanço em relação ao tratamento dado as pessoas com deficiência sob a influência do cristianismo, a mesma arbitrariedade com 12 Deficiência Intelectual: refere-se a um funcionamento intelectual diferenciado, significativamente inferior à média, acompanhado de limitações significativas no funcionamento adaptativo. 13 Ou também denominados transtornos mentais, estão relacionados a variações na percepção da realidade e causam alterações de humor, do bom senso, entre outros, são classificadas em neuroses (ansiedade e medo exagerados) e psicoses (fenômenos psíquicos como delírios, perseguição e confusão mental). 27 que o clero julgava o deficiente, passa a ser utilizada pela medicina de então, pré-científica. De acordo com Pessoti (1984, p. 68) "O médico é o novo árbitro do destino do deficiente. Ele julga, ele salva, ele condena." Concomitantemente às instituições médico-terapêuticas, lentamente, foram surgindo iniciativas privadas, isoladas e focais, de cunho educacional, para o atendimento de pessoas com deficiência, pois, algumas instituições, percebendo a ineficácia dos tratamentos disponíveis, passaram a investir na possibilidade de melhorar a qualidade de vida das pessoas com deficiência, empenhando-se em medidas educacionais. Estas ações visavam, em sua maioria, garantir maior autonomia e ampliar as possibilidades de desenvolvimento dos deficientes. Também foram realizadas as primeiras impressões de livros sobre a educação de deficientes. Mendes (2010a, p. 11) afirma que: A história da Educação Especial começou a ser traçada no Século XVI, com médicos e pedagogos, que desafiando os conceitos vigentes até então, passaram a acreditar nas possibilidades educacionais de indivíduos que eram considerados ineducáveis. A Educação Especial nasceu, portanto, com uma ênfase no ensino especial, ou em seu aspecto pedagógico, numa sociedade em que a educação formal era ainda direito de poucos. A autora pontua, ainda, que o acesso à educação, por parte das pessoas com deficiência, foi ampliado na medida em que se expandiram as oportunidades educacionais para toda a população, pois neste momento histórico, as escolas eram escassas e destinadas principalmente aos nobres, às famílias ricas e a alguns burgueses. O atendimento médico-terapêutico e educacional existente, também era direcionado especialmente aos deficientes oriundos de famílias abastadas, sendo que a maioria era, ainda, atendida nas Poor Houses (Casas dos Pobres) ou em asilos. Em 1601 uma Nova Poor Law Act (Lei dos Pobres) foi instaurada, com base na reedição de Leis anteriores, entretanto não foram alteradas as formas de atendimento dos deficientes. Fiedlander (1973, p. 18, apud PEREIRA, 2009, p. 64, grifo do autor), aponta que: [...] no 43º ano de reinado da rainha Elizabeth (a primeira), na qual, para além da mera repressão, já se observava uma tentativa de gestão administrativa dos grupos a serem atendidos, com base na seguinte classificação: pobres impotentes (idosos, enfermos crônicos, cegos e doentes mentais), que deveriam ser alojados nas Poor Houses ou almshouses (asilos ou hospícios); pobres capazes para o trabalho, ou mendigos fortes, que deveriam ser postos a trabalhar nas Workhouses; e os capazes para o trabalho, mas que se recusavam a fazê-lo (os corruptos), que deveriam ser encaminhados para reformatórios ou casas de correção. Além destes, havia crianças dependentes (órfãs ou abandonadas), que eram entregues a qualquer 28 habitante que quisesse empregá-las em serviços domésticos ou não cobrasse nada (ou muito pouco) pelo seu sustento. No que tange especificamente ao atendimento das pessoas com deficiência, os séculos XVII e XVIII foram marcados pela multiplicidade de concepções, provenientes das áreas médicas e educacionais, o que culminou na diversidade de atitudes, que provocaram tanto a expansão de asilos e hospícios quanto de instituições educacionais. Nesse momento há também iniciativas de assistência, em algumas localidades, direcionadas exclusivamente aos deficientes, por parte do Estado, fato que não ocorreu em momentos anteriores, pois, até então, as propostas de assistência abrangiam os necessitados e dentre estes figuravam os deficientes. Entretanto estes não eram considerados em suas especificidades e continuavam sendo tratados apenas como inválidos. Contexto este em que o termo inválido passa a ter um sentido mais restrito, pois, com a expansão do capitalismo e com a crescente preocupação com o trabalho e os meios de produção, os deficientes passam a ser inválidos para o trabalho. No início do século XIX, em decorrência da Revolução Industrial e da transferência das grandes massas do meio rural para as cidades, em busca de melhores condições de vida, várias situações emergem e passam a se expressar na conjuntura social das cidades, principalmente dos grandes centros urbanos, dentre elas o empobrecimento da população pela ausência, precariedade e exploração dos postos de trabalho, falta de moradia, dentre outros. A respeito deste período, Aranha (1995, online) pontua que: [...] o modo de produção capitalista continua a se fortalecer, mantendo o sistema de valores e de normas sociais. Torna-se necessária a estruturação de sistemas nacionais de ensino e de escolarização para todos, com o objetivo de formar cidadãos produtivos e a mão de obra necessária para a produção. A atitude de responsabilidade pública pelas necessidades do deficiente começa a se desenvolver, embora existisse ainda a tendência de se manter a instituição fora do setor público, sob a iniciativa e sustentação do setor privado. A valorização, pela população da educação sistematizada, vista como possibilidade de ascensão social, melhores condições de trabalho e consequentemente de vida e a crescente democratização da escola pública, dada a necessidade de mão de obra capacitada, possibilitou que fossem pensadas ações educacionais direcionadas aos deficientes, nas instituições especializadas, pois não era concebida até então, a presença dos deficientes nas escolas comuns, tampouco nos demais espaços sociais, permanecendo o costume de mantê-los 29 escondidos nos lares ou interná-los em asilos e instituições. Apenas aos cegos e deficientes auditivos era concedido o acesso aos espaços sociais. Somente em 1886, diante do acirramento das problemáticas sociais, é que se começa a discutir a pobreza como inerente ao modo de produção capitalista, expressa por meio da questão social14. A Revolução Industrial e as mobilizações sociais decorrentes do período impulsionaram a materialidade do Estado de Bem-estar15, que surge para corresponder às exigências de direitos sociais, políticos e civis de um período que com a Revolução Industrial observava alterações na organização da vida em sociedade e com estas o aumento das camadas populares e da pobreza. A assistência passa a ser pensada e exigida enquanto direito do cidadão, o que representa uma avanço em relação às medidas implementadas e as ações direcionadas às pessoas com deficiência, pois o cuidado, a assistência e a educação passam a ser dever do Estado, não configurando apenas ações de cunho caritativo realizadas por grupos filantrópicos. Entretanto, na prática, o Estado ainda se esquivava da oferta do atendimento específico ao deficiente, uma vez que este atendimento era, em sua maioria, oferecido nas instituições particulares ou filantrópicas. Este período também é marcado pela consolidação da visão científica da deficiência, a partir das constatações de Pinel, Itard, Esquirol, Seguim, Morel, Down, entre outros que se dedicaram ao estudo sistemático e científico de cada deficiência. Estes estudos representaram grande avanço em relação ao atendimento clínico e educacional oferecido às pessoas com deficiência, pois embora datem do século XVI os primeiros registros sobre os estudos e pesquisas envolvendo essa camada da população, devido à precariedade das condições e dos conhecimentos disponíveis na época e as restritas possibilidades de comunicação, diversos estudos não foram divulgados enquanto outros foram considerados pouco consistentes. As novas descobertas científicas e as conquistas sociais das minorias levaram muitos familiares e pessoas solidárias a se mobilizarem em prol do reconhecimento do deficiente enquanto cidadão de direitos e da ampliação da oferta de atendimentos clínicos, terapêuticos e educacionais, via intervenção do Estado. Estas mobilizações assinalam a importante mudança na concepção do deficiente, enquanto sujeito de possibilidades, dando início a um período marcado pela busca da integração social das pessoas com deficiência. 14 Questão social apreendida como "[...] o conjunto das expressões das desigualdades da sociedade capitalista madura, que tem uma raiz comum: a produção social é cada vez mais coletiva, o trabalho torna-se mais amplamente social, enquanto a apropriação dos seus frutos mantém-se privada, monopolizada por uma parte da sociedade." (IAMAMOTO, 1999, p. 27). 15 Organização política e econômica que nomeia o Estado como agente de promoção social e organizador da economia, a ele cabe regulamentar a vida e a saúde social, política e econômica e garantir os serviços públicos de apoio à população, tais como educação, assistência médica, auxílio desemprego, garantia de uma renda mínima, entre outros direitos que assegurassem ao cidadão uma vida digna e com qualidade. 30 Essas ações impeliram o Estado a reconhecer sua responsabilidade no cuidado com o deficiente, nos aspectos educacionais e de treinamento e a sociedade a conceber o deficiente como alguém capaz de produzir e de se inserir na vida social. Tal mudança ocorreu principalmente devido ao contingente de pessoas deficientes, frutos das duas grandes guerras mundiais. Aranha (1995, online), utilizando o exemplo americano, afirma que “Fortaleceu-se a convicção de que as pessoas deficientes podiam trabalhar, trabalhariam e que queriam uma oportunidade de ter voz ativa na sociedade.” Entretanto, para que isso acontecesse, era imprescindível pensar na educação voltada para essa nova demanda. Nesta perspectiva, Mendes (2010a, p. 12) salienta que: [...] foi só na metade do Século XX que surgiu uma resposta mais ampla da sociedade para os problemas da educação das crianças e jovens com deficiências, com a consolidação dos principais componentes da Educação especial, que seriam um corpo teórico-conceitual de conhecimento científico, um conjunto de propostas pedagógicas e políticas para a organização de serviços educacionais. Embora seja notável a ampliação das políticas sociais neste contexto, as mesmas ainda se expressavam sob uma ótica clientelista, de apadrinhamento e favores, não sendo incorporadas enquanto direito pela população, que historicamente foi condicionada a receber as intervenções e benefícios estatais de forma caridosa e benevolente. A atuação dos grupos que defendiam os direitos das pessoas com deficiência e de alguns profissionais do Serviço Social foi crucial para a ampliação das classes e escolas especiais, como modalidade alternativa às instituições residenciais, entretanto, Mendes (2010a, p. 13) afirma que: Os movimentos sociais pelos direitos humanos, um reflexo da democratização crescente das sociedades e que se intensificou bastante na década de 60, concretizou e sensibilizou a sociedade sobre os prejuízos da segregação e da marginalização de indivíduos pertinentes a grupos com status minoritários. Tal movimento de certa forma alicerçou uma espécie de base moral para a proposta de integração, a partir do argumento irrefutável de que todas as crianças com deficiências teriam o direito inalienável de participar de todos os programas e atividades cotidianas acessíveis para as demais crianças. Neste sentido, a segregação escolar sistemática de qualquer grupo passou a ser uma prática intolerável, e o pressuposto de que a integração era a coisa certa a ser feita passou a imperar. 31 De acordo com a mesma autora, esta nova forma de propor o atendimento educacional às pessoas com deficiência propiciou o surgimento da filosofia da normalização16 e a integração escolar, que se tornou ideologia dominante, nos países desenvolvidos, no que tange ao atendimento educacional. Diversas mudanças aconteceram também na forma como a sociedade passou a conceber a pessoa com deficiência, pois foi possibilitada a sua participação na vida social, o que desencadeou maior visibilidade e a crença nas suas possibilidades de desenvolvimento e de participação cada vez mais ampla nas esferas sociais. Como apontado por Mendes (2010 a), a Declaração Universal dos Direitos Humanos adotada e proclamada pela Assembleia Geral das Nações Unidas em 1948 e seus desdobramentos foram de grande importância para que as sociedades repensassem suas ações frente ao diferente e aos poucos propusessem novas formas de agir a fim de garantir os direitos apresentados pela declaração, da qual foram signatários mais de uma centena de países. As décadas de 80 e 90, do século passado, foram marcadas por alterações na concepção de educação para as pessoas com deficiência. Vários tratados e declarações firmadas mundialmente17 levaram diversos países a adotar a proposta da inclusão escolar, que prevê que os sistemas de ensino devem responsabilizar-se por criar condições com vistas a promover uma educação de qualidade para todos os alunos e realizar adequações que atendam às necessidades educacionais dos alunos com deficiência. Nas sociedades contemporâneas18, embora haja alguns princípios e concepções comuns, cada país tem se organizado para promover a participação das pessoas com deficiência na vida social, em suas diversas esferas, sendo que na maior parte dos países, é assegurada ao deficiente a possibilidade de estudo, de trabalho, além de todos os direitos civis. Neste sentido percebe-se uma mudança radical na forma como as sociedades tratam o deficiente, desde a antiguidade aos dias atuais, visto que a princípio eles eram extintos e atualmente existe uma preocupação cada vez maior em garantir sua participação na sociedade. Embora esta preocupação seja latente em diversos países, ainda há muito que se refletir sobre a forma como a sociedade contemporânea concebe as pessoas com deficiência e o diferente, 16 De acordo com Glat (2006, p.12) "[...] esse modelo parte da premissa que todas as pessoas portadoras de deficiências têm o direito de usufruir de condições de vida o mais comuns ou normais possíveis na comunidade onde vivem, ou seja, devem participar das mesmas atividades sociais, educacionais e recreativas frequentadas por grupos da mesma idade." 17 Tais como a Declaração Mundial de Educação para Todos - Declaração de Jomtien (1990), Declaração de Salamanca (1994), Convenção de Guatemala (2001) 18 Este período diz respeitos aos tempos recentes e compreende as últimas décadas do século XX até os dias atuais. 32 haja vista que esta concepção embasa e direciona as ações da sociedade para com esta importante parcela da população. 1.2 O lugar do diferente na contemporaneidade Discorrer sobre a deficiência ao longo da história, das diversas formas como as pessoas com deficiência foram concebidas e tratadas, qual é a compreensão contemporânea de seu papel na sociedade e de como são estabelecidas as relações entre estes indivíduos e as demais pessoas, remete a investigar como, no decorrer do processo civilizatório a humanidade construiu as identidades e quais foram as balizas para o estabelecimento das diferenças. Desta forma para que não seja utilizado um jogo de palavras, a fim de camuflar e simplificar esta questão, serão abordadas algumas ideias que possibilitam clarear e melhor compreender este tema e estes conceitos, que estão intimamente relacionados ao processo educacional das pessoas com deficiência nas escolas regulares. A respeito destes conceitos e de forma crítica, Larrosa e Skliar (2011, p. 11) discorrem que: [...] as palavras ambíguas, cada uma delas com sua parte de verdade e sua parte de manipulação, são democracia, comunidade, coesão, diálogo... e outras palavras relacionadas, como diversidade, tolerância, pluralidade, inclusão, reconhecimento, respeito. E são estas palavras que soam como falsas quando as ouvimos no interior de muitos dos discursos dominantes no campo político, educativo, cultural, ético, estético ou, inclusive, empresarial. São palavras cada vez mais vazias e esvaziadas que significam, ao mesmo tempo, tudo e nada: marcas, clichês, etiquetas de consumo, mercadorias que se avaliam bem no mercado com a alta da boa consciência: palavras que mascaram a obsessiva afirmação das leis e da excessiva ignorância dos sentidos; palavras que permitem ocultar-nos atrás de nós mesmos e, ao mesmo tempo representar uma mímica da alteridade que nos livra da presença inquietante de tudo aquilo que deve ter um nome e um lugar para ser incluído, excluído, comunicado e, de novo ignorado; palavras para ensurdecer os ouvidos e nos tornar insensíveis às diferenças, pra continuarmos sendo nós mesmos, com a mesma roupagem, a mesma arrogância, a mesma violência, o mesmo medo de nos abandonarmos, de nos sentirmos, de nos percebermos ou de sermos outro /s e em trânsito. Com o intuito de não permitir que as palavras identidade, diferença e deficiência, soem como falsas, como demagogia, ou mesmo como senso comum, serão discutidas e apresentadas com base nos estudos de Silva (2011), Larrosa e Skliar (2011), Skliar (2006), Pierucci (1999), Tomasini (1998), entre outros. 33 Inicialmente é válido considerar que o conceito de identidade, diferença, normalidade, e inclusive o de deficiência, é resultado de uma construção social e cultural, portanto, sofre alterações no decorrer do tempo e também diverge de interpretações entre as sociedades. Silva (2011) afirma que a construção da identidade está relacionada à marcação da diferença, ao ser e ao não ser, ou seja, a identidade é relacional e sustentada pela exclusão, uma vez que ao identificar um indivíduo como homem, concomitantemente está-se afirmando que esta pessoa não é uma mulher. Esta construção também é marcada por símbolos, ou seja, a identidade de uma pessoa é pautada nos objetos que usa, na sua aparência, na forma como se comunica, nos assuntos que aprecia, nas suas preferências, enfim, a construção da identidade é tanto simbólica quanto social. Silva (2011, p. 40, grifo do autor) pontua que: As identidades são fabricadas por meio da marcação da diferença. Essa marcação da diferença ocorre tanto por meio de sistemas simbólicos de representação quanto por meio de formas de exclusão social. A identidade, pois, não é o oposto da diferença: a identidade depende da diferença. Nas relações sociais, essas formas de diferença - a simbólica e a social - são estabelecidas, ao menos em parte, por meio de sistemas classificatórios. Um sistema classificatório aplica um princípio de diferença a uma população de uma forma tal que seja capaz de dividi-la (e a todas as suas características) em ao menos dois grupos opostos - nós/eles [...] eu/outro. Ao nascer, a criança é apresentada a um mundo que já dispõe de normas, valores, signos e significados construídos pelos seres que a precederam. O primeiro indício de pertencimento, de igualdade e de identificação desta criança para com seu grupo e do grupo para com mais o novo integrante são as características físicas, ou seja, a cor da pele, os traços do rosto e a integridade do corpo. Na antiguidade, esta primeira identificação levava as crianças deficientes à exposição, pois logo que se identificava a deficiência, entendia-se que o ser não era como os demais, portanto não lhes pertencia e não deveria ser cuidado. É interessante observar que nesse momento histórico as diferenças estavam marcadas predominantemente no corpo e as referências disponíveis para a construção da identidade eram os componentes do grupo, visto que havia uma identidade grupal. Com o estabelecimento dos grupos em locais fixos, a criação das organizações familiares e a diferenciação entre a vida social e a vida privada possibilitou a ampliação dos modelos e das referências para a construção das identidades, que foram expandidas ainda mais com o desenvolvimento das sociedades, as marcações de divisões de classes, a igreja, entre outros. A ampliação nas possibilidades de ancoragem das identidades desencadeou uma multiplicidade e diversidade nos padrões de identidade, embora seja possível observar que até 34 a modernidade as pessoas eram caracterizadas com alguns atributos que lhes garantiam a identidade, por exemplo: ser escravo, ser burguês, ser mulher, dado que estas classificações traziam em seu bojo um conjunto de especificidades comuns a todos aqueles que se identificavam ou eram classificados por dado modelo. O advento da modernidade desencadeou uma brusca mudança nas possibilidades de estabelecimento de identidades, visto que a família, o agrupamento social e a igreja não bastavam mais para o estabelecimento da identidade, chegando a ser apontado por diversos autores como um momento de crise. A este respeito Silva (2011, p. 21) afirma que: [...] as "crises de identidade" são características da modernidade tardia e que sua centralidade atual só faz sentido quando vistas no contexto das transformações globais que tem sido definidas como características da vida contemporânea (GIDDENS, 1990). Kevin Robins, por exemplo, argumenta que o fenômeno da globalização envolve uma extraordinária transformação. Segundo ele, as velhas estruturas dos estados e das comunidades nacionais entram em colapso, cedendo lugar a uma crescente "transnacionalização da vida econômica e cultural" (ROBINS, 1997). A globalização envolve uma interação entre fatores econômicos e culturais, causando mudanças nos padrões de produção e consumo, as quais por sua vez, produzem identidades novas e globalizadas. Tellez (2011) relata que um dos princípios da modernidade é justamente esta identidade global, o cidadão do mundo, ou como apontado por Pierucci (1999) o homem universal. Esta proposta oriunda do capitalismo, graças à possibilidade da circulação de mercadorias serviços e o avanço nos meios de comunicação, visa ditar as características, os padrões e as novas identidades a serem seguidas por todos os cidadãos da "aldeia global". Ideal este que ganhou força com as distorções dos discursos pela igualdade. Entretanto é importante observar que esses padrões apontados como ideais, portanto, universalmente aceitos e desejados, referem-se a realidades e padrões propostos pelas classes dominantes e estão relacionados à igualdade de consumo. A partir dessa nova visão de identidade, dificilmente as pessoas com deficiência poderiam conquistar seu espaço, ao contrário, na sua maioria sentiam-se mais alheios a esta sociedade, principalmente os deficientes físicos, ou aqueles que trazem marcas visíveis de sua condição. Entretanto, esse projeto da modernidade não obteve o sucesso esperado, pois, ao invés da igualdade, atualmente, observa-se a ampliação das desigualdades, tanto sociais, como econômicas, o que incentivou diversos grupos, dentre eles os deficientes, a se organizar para exigir seus direitos, o reconhecimento e a valorização de suas características, de suas 35 diferenças. Isso ocorreu, pois houve a compreensão de que ao se exigir a igualdade, havia um prejuízo para muitos, pois a igualdade estava baseada nas classes dominantes. Como exemplo dessa visão, podem ser apresentados os movimentos feministas, que inicialmente, ou seja, na primeira onda, defendiam a igualdade em relação aos homens, entretanto, com o crescimento do movimento e com as conquistas desencadeadas a partir da mudança de concepções de parte da sociedade, compreendeu-se que ao buscar a igualdade, a mulher havia perdido sua especificidade, ou seja, as características que a diferem do homem, sendo esta a grande característica da contemporaneidade. A esse respeito Pierucci (1999, p. 31), que defende o argumento público da igualdade, alerta para o fato de que pleitear o direito à diferença não pode ser confundido com "abrir mão da igualdade", pois, as diferenças estão intimamente relacionadas a juízos de valor e aponta que: Diferenças coletivas: traços distintivos reais ou inventados, herdados ou adquiridos, genéticos ou ambientais, naturais ou construídos, partilhados vitalícia ou temporariamente por determinados indivíduos com outros determinados indivíduos, desenhando nesta partilha de caracteres comuns, comuns a eles, mas não a todos os humanos, grupos de pertença ao longo de linhas demarcatórias de raça, cor, etnia e procedência, habilidade e deficiência, sexo e gênero, idade e geração, nacionalidade e região, linhas que sempre falam de superioridade e inferioridade, de inclusão e exclusão, algumas delas muito fortes, sublinhadas, outras mais tênues, quem dera invisíveis, atributos que quase sempre se acham fora do controle dos próprios indivíduos por eles identificados, mais ainda cujo significado positivo ou negativo também escapa do controle individual apesar do eventual empenho em afastar a valoração negativa aderida ao traço coletivamente partilhado, marca, o mais das vezes visível, de uma diferença significativa (PIERUCCI, 1999, p. 104 -105, grifo do autor). O autor prossegue discorrendo que uma diferença, ao ser percebida, é imediatamente valorizada ou depreciada, e alega que as diferenças são operadas pelo valor, o que desencadeia a hierarquização da sociedade por meio dos valores atribuídos às diferenças. A esse respeito Silva (2011, p. 82) afirma que "[...] a identidade e a diferença estão estreitamente relacionadas às formas pelas quais a sociedade produz e utiliza classificações. As classificações são sempre feitas a partir do ponto de vista da identidade. [...] Dividir e classificar significa também hierarquizar." De acordo com Pierucci (1999), é importante considerar que nem todas as diferenças são hierarquizantes, entretanto a maioria delas desencadeiam classificações, principalmente 36 quando se trata de diferenças definidoras de coletividade e de categorias sociais que vivenciam relações conflitantes em sociedades altamente diferenciadas. Para o autor: A diversidade é algo vivido, experimentado e percebido, gozado ou sofrido na vida cotidiana: na imediatez do dado sensível, ao mesmo tempo que mediante códigos de diferenciação que implicam classificações, organizam avaliações, secretam hierarquizações, desencadeiam subordinações. A tal ponto, que querer defender as diferenças sobre uma base igualitária acaba sendo tarefa dificílima, em termos práticos, ainda que aparentemente menos difícil em termos teóricos (PIERUCCI, 1999, p. 33). Embora Pierucci (1999) seja favorável à defesa da igualdade, alegando que na história da humanidade, as marcações e classificações sempre ocorreram e desencadearam reações extremistas, guerras e massacres, e que reafirmar a diferença é um discurso politicamente de direita, do qual, com nova roupagem foi assumido por uma ala da esquerda, o autor defende que: Tratar as pessoas diferentemente e, assim fazendo, enfatizar suas diferenças pode muito bem estigmatizá-las (e então barrá-las em matéria de emprego, educação, benefícios e outras oportunidades na sociedade), do mesmo modo tratar de modo igual os diferentes pode nos deixar insensíveis às suas diferenças, e isto uma vez mais termina por estigmatizá-los e, do mesmo modo, barrá-los socialmente num mundo que foi feito apenas a favor de certos grupos e não de outros. Ser diferente é um risco de qualquer maneira (PIERUCCI, 1999, p.106). Estas discussões e estes apontamentos possibilitam compreender melhor a condição do deficiente na sociedade contemporânea, bem como o motivo que leva alguns grupos de deficientes reafirmarem suas diferenças perante os demais deficientes e pleitear ações diferenciadas no que tange a políticas públicas, como ocorre com os surdos e com a comunidade surda19. Skliar (2006, p. 23) propõe que para melhor elucidar esta discussão é imprescindível empreender uma diferenciação entre os termos diferença e diferente, visto que para este autor, como para outros citados anteriormente, "os 'diferentes' respondem a uma construção, uma invenção, quer dizer, são reflexos de um 'diferencialismo'", o que para ele, diz respeito a uma atitude de "categorização, separação e diminuição de algumas marcas, de algumas identidades, de alguns sujeitos, em relação ao vasto e por demais caótico conjunto das diferenças humanas." 19 A comunidade surda tem se organizado e realizado diversas manifestações, com o intuito de reivindicar o direito de serem respeitados em sua condição, que difere do ouvinte. 37 O autor afirma ainda que: A meu ver, as diferenças não podem ser apresentadas nem descritas em termos de melhor e/ou pior, bem e/ou mal, superior e/ou inferior, positivas e/ou negativas, maioria e/ou minoria etc. São simplesmente - porém não simplificadamente -, diferenças. Mas o fato de traduzir algumas dessas diferenças como "diferentes" - e já não simplesmente como diferenças - volta a se posicionar essas marcas, essas identidades, esse "ser diferença" como contrárias, como opostas e negativas à ideia de "norma", do "normal" e, então, daquilo que é pensado e fabricado como o "correto", o "positivo", o "melhor", etc (SKLIAR, 2006, p. 23). Ao abordar esta questão, Tomasini (1998, p. 114) aponta que aqueles que não se adéquam no padrão social vigente, são diferentes e "[...] não há limite para os rótulos: o pobre, o defeituoso, o louco, o ridículo, o velho etc." Neste sentido, quando os indivíduos, em decorrência de suas características, se isolam do grupo que é considerado como norma, como normal, passam a ser "uma espécie de negação da ordem social". O grupo por sua vez tende a ter comportamentos ou criar mecanismos que visam à correção de suas diferenças. Refletir sobre as pessoas com deficiência ou o diferente na sociedade contemporânea sinaliza a necessidade de pensar no estigma, no rótulo, pois, embora haja um discurso politicamente correto de aceitação ou respeito às diferenças, a designação da diferença no contexto cultural atual ainda desencadeia um processo de discriminação do diferente, do desviante do não normal. Para Tomasini (1998, p. 117): O estigma tem como efeito uma perigosa redução da identidade social do indivíduo baseada em um atributo indesejável. Tendemos a inferir uma série de imperfeições partindo da imperfeição original. O atributo que o tornou diferente dos outros faz do indivíduo um ser reduzido àquela imperfeição. Ele é um aleijado, um louco, um deficiente e nada mais. Um indivíduo estigmatizado pode ter reduzidas suas chances de convivência social: ele é de tal modo discriminado que isso poderá reduzi-lo a escolher relacionar-se somente com seus iguais, ou com pessoas que, de uma certa forma, compreendem seu problema e o aceitam. O fato é que muitas pessoas que se relacionam com indivíduos ditos diferentes não conseguem dar o devido crédito e respeito aos outros aspectos de sua identidade social. A autora assinala que o modo como a sociedade se relaciona com as pessoas com deficiência, ou seja, o estigma a ela atribuído estende-se para aqueles que se relacionam com ele, o que desencadeia que familiares, por exemplo, compartilhem o descrédito com que um filho deficiente é tratado. Tomasini (1998, p. 118) afirma que "É no ciclo cotidiano de 38 enfrentamento das restrições à sua aceitação social que o indivíduo constrói sua história", neste sentido, o fracasso ou o sucesso apresentam um efeito direto sobre sua "integridade psicológica", visto que as normas e os valores apreciados em uma sociedade influenciarão em todas as relações estabelecidas entre os indivíduos. Para a autora: No "cerimonial" das interações, a identidade pessoal de um indivíduo marcada pelos sinais evidentes que expõe à percepção dos demais sua diferença, entra em confronto com um elaborado modelo de normalidade. É nesse campo de forças que ele elabora a imagem que tem de si mesmo e adquire uma identidade social construída com base nos interesses e nas definições de outras pessoas. [...] Um indivíduo apontado como diferente vive as suas situações: uma em que é considerado como aquele que não cumpre de maneira adequada e eficiente as exigências e regras de convivência em sociedade; outra em que não tem direito ao livre exercício de suas diferenças. (TOMASINI, 1988, p. 118-119). É possível constatar que gradativamente as sociedades vêm buscando formas de melhor lidar com o diferente, por meio da veiculação de campanhas publicitárias, da implantação de programas governamentais de incentivo ao respeito às diferenças, sejam elas étnicas, raciais, sociais, culturais, religiosas, entre outras, pois muitos autores têm defendido que é necessário valorizar o direito à diferença, ressaltando que diferença, neste caso, não está relacionada à desigualdade, à hierarquização, mas sim no reconhecimento de que embora com diferenças, todos devem ser respeitados, como aponta Santos (2003, p. 458): Temos o direito a sermos iguais quando a diferença nos inferioriza. Temos o direito a sermos diferentes quando a igualdade nos descaracteriza. As pessoas querem ser iguais, mas querem respeitadas suas diferenças. Ou seja, querem participar, mas querem também que suas diferenças sejam reconhecidas e respeitadas. A concretização desta ideia ainda soa como uma quimera, dada sua complexidade e principalmente porque durante séculos, foi difundida a concepção de que a diferença é algo pejorativo, desvalorizado, como apontado anteriormente, desta forma ainda serão necessários muitos anos para que os indivíduos consigam se relacionar uns com os outros de forma igualitária, não como pregam os desgastados discursos politicamente corretos, que se esvaziam de sentido, mas sim partindo de uma compreensão do outro, como outro coletivo, que possibilita a construção da identidade individual. Isso só será possível a partir de uma mudança radical na forma como a sociedade lida com a diferença, visto que a construção das identidades e da visão do diferente está estritamente relacionada a essa questão. 39 Neste sentido, pensar no diferente na contemporaneidade, ainda é caminhar por um terreno incerto, inseguro e instável, pois ao passo que alguns segmentos da sociedade, buscam empreender mudanças em seus paradigmas e trabalhar para que todos tenham oportunidades semelhantes, outros reforçam as diferenças e as utilizam como explicação para os conflitos e para aumento da desigualdade. A escola, considerada por muitos autores como reprodutora das desigualdades e instrumento de manutenção das ideias e concepções dominantes, tem buscado contribuir com a reflexão sobre a diferença, pois, embora de forma tímida e inconsistente, temas como a pluralidade cultural, valorização da cultura regional e da vivência dos alunos, entre outros, compõe os currículos escolares e estão constantemente em pauta das discussões. Entretanto, as mudanças somente se efetivarão em longo prazo, pois apesar dessas questões estarem presentes no universo escolar, muitos educadores e muitos familiares dos alunos ainda embasam suas ações em concepções discriminatórias. A mesma divergência é observada em relação às pessoas com deficiência, que por força legal, devem frequentar a escola regular e ter garantidos seus direitos de plena participação, o que nem sempre ocorre20. Mas, no que tange a esta parcela da população, tem- se observado um movimento mundial que busca implementar mudanças na sociedade, com o objetivo de assegurar aos deficientes acesso e participação em todas as esferas sociais. Estas mudanças são observadas em diversos segmentos, como, por exemplo, na arquitetura, em que leis e decretos determinam que os espaços públicos devam estar de acordo com os princípios do desenho universal que visam possibilitar a mobilidade de todas as pessoas e para isso devem contar com rampas, piso tátil, marcações em Braille, barras, banheiros adaptados, entre outros; nos meios de transporte públicos, em que estes devem contar com recursos acessíveis; nos diversos recursos tecnológicos, que trazem funções específicas que possibilitam a sua utilização por pessoas com limitações sensoriais e físicas, entre outros. As propostas e determinações legais que indicam a frequência de alunos com deficiência na rede regular de ensino têm sido denominadas de inclusão escolar. Entretanto há se refletir sobre a o sentido do termo inclusão e quais os significados têm sido atribuídos a ele, tanto no que se refere à questão educacional, quanto social. 20 Esta questão será retomada no decorrer do trabalho. 40 1.3 A contrariedade e a complexidade da inclusão e da Educação Inclusiva. O termo inclusão vem sido utilizado por diversas frentes e de forma ampla, o que suscita a necessidade e a importância de discorrer sobre alguns aspectos que permeiam esta terminologia, para que haja uma ampliação em seu entendimento. Rodrigues (2006, p. 300-301) aponta que: O termo "inclusão" tem sido tão intensamente usado que se banalizou de forma encontramos o seu uso indiscriminado no discurso político nacional e setorial, nos programas de lazer, de saúde, de educação etc. [...] Não se sabe bem o que todos esses discursos querem dizer com inclusão, e é legítimo pensar que muitos significados se ocultam por trás de uma palavra-chave que todos usam e se tornou aparentemente tão obvia que parece não admitir qualquer polissemia. Abordar o termo inclusão conduz necessariamente a refletir sobre a exclusão e a retomar a discussão a respeito das identidades e das diferenças, visto que ao declarar quem pertence e quem não pertence a determinado grupo, inevitavelmente está se afirmando que está incluído e que está excluído. Esta determinação está pautada em classificações que envolvem relações de poder. Silva (2011, p. 82 -83) aponta que: "A mais importante forma de classificação é aquela que se estrutura em torno de oposições binárias, isto é, em torno de duas classes polarizadas" e citando o filósofo francês Jacques Derrida, pontua que as oposições binárias não expressam apenas a divisão do mundo em duas classes simétricas, mas ao contrário, um dos termos recebe o valor positivo, enquanto o outro o negativo. Duschatzky e Skliar (2011, p. 123) discorrem que: A modernidade inventou e se serviu de uma lógica binária, a partir da qual denominou de diferentes modos o componente negativo da relação cultural: marginal, indigente, louco, deficiente, drogadinho, homossexual, estrangeiro etc. Essas oposições binárias sugerem sempre o privilégio do primeiro termo e o outro, secundário nessa dependência hierárquica, não existe fora do primeiro, mas dentro dele, como imagem velada, como sua inversão negativa. Com vistas a ampliar a discussão sobre a inclusão e a exclusão para o panorama social, estes termos e conceitos serão discutidos com base nos pressupostos de Sawaia (2008) que inicia afirmando que como ocorre com o termo inclusão, a exclusão também vem sendo utilizada de forma indiscriminada e pontua que: 41 Exclusão é tema da atualidade, usado hegemonicamente nas diferentes áreas do conhecimento, mas pouco preciso e dúbio do ponto de vista ideológico. Conceito que permite usos retóricos de diferentes qualidades, desde a concepção de desigualdade como resultante de deficiência ou inadaptação individual, falta de qualquer coisa, um sinônimo do sufixo sem (less), até a de injustiça e exploração social. Um "conceito mala ou bonde", como falam Morin e Castel, que carrega qualquer fenômeno social e que provoca consensos, sem que se saiba ao certo o significado que está em jogo (SAWAIA, 2008, p. 7). O autor afirma ser o caráter ambíguo atribuído ao conceito de exclusão devido à complexidade e a contraditoriedade que constituem o processo de exclusão social, bem como sua transmutação em inclusão social, pois a sociedade exclui para incluir, sendo esta a condição para a ordem social desigual e que de acordo com ele implica no caráter ilusório da inclusão, pois de uma forma ou de outra, todos os indivíduos estão inseridos no sistema produtivo e econômico, entretanto, a maioria das pessoas estão inseridas por meio de insuficiências e privações que extrapolam a esfera econômica. Neste sentido pontua que ao invés de se utilizar o termo exclusão, o indicado é referir-se aos processos de exclusão social como a "dialética exclusão/inclusão", visto que desta forma abarcam também a compreensão da ética e da subjetividade na análise sociológica da desigualdade, de modo que exclusão passa a ser compreendida como a falta de compromisso político para com o sofrimento do outro. A partir destas considerações, Sawaia (2008, p. 9) conceitua a exclusão como: [...] a exclusão é processo complexo e multifacetado, uma configuração de dimensões materiais, políticas, relacionais e subjetivas. É processo sutil e dialético, pois só existe em relação à inclusão como parte constitutiva dela. Não é uma coisa ou um estado, é processo que envolve o homem por inteiro e suas relações com os outros. Não tem uma única forma e não é uma falha do sistema, devendo ser combatida como algo que perturba a ordem social, ao contrário, ele é produto do funcionamento do sistema. Wanderley (2008) afirma que, para abordar concretamente a questão da exclusão, é necessário contextualizar o tempo e o espaço ao qual o fenômeno se refere, pois existem diferentes compreensões sobre sua ocorrência, no decorrer do tempo e de sua abrangência. A partir da compreensão do conceito de inclusão e de exclusão para os autores que abordam a questão social, é possível identificar algumas diferenças em relação aos autores que se dedicam ao estudo da inserção dos alunos com deficiência nas redes regulares de ensino. 42 Na abordagem social, os termos são utilizados de forma mais ampla e complexa, como afirma Pacheco (2007, p. 16): "A inclusão social tem um valor político mais amplo do que a educação inclusiva", visto que nesta, o aluno com deficiência é referenciado a partir de uma compreensão histórica do contexto educacional, no qual por séculos a escola foi destinada apenas a uma pequena parcela da sociedade. Entretanto Díez (2010, p. 17) afirma que: Indevidamente falar de inclusão supõe fazer referência à exclusão. Aqueles sistemas de educação que estão avançando para práticas de educação inclusiva foram eliminando barreiras que conduzem a processos de exclusão. Em um contexto mais amplo, dos trabalhos sobre exclusão social aprendemos que se trata de um processo estrutural e não conjuntural (Witcher, 2003), pelo qual a determinados cidadãos é negado o direito a participar das estruturas sociais, políticas, econômicas, trabalhistas e também educativas de um contexto concreto. [...] Neste terreno existe um acordo generalizado ao assinalar o caráter multidimensional da exclusão social. Pode ser entendido, além disso, como um fenômeno que supõe a interação de diversos fatores de risco que marcam os itinerários das pessoas. A pesquisa atual, além disso, permite estabelecer uma estreita relação entre exclusão social e educativa, sendo a primeira mais geral e a segunda mais específica. De fato, autores como Slee e Allan (2005) afirmaram que a escola inclusiva é um movimento social contra a exclusão educativa, sendo o âmbito educativo um dos fatores geradores de exclusão mais potente. Neste sentido, o presente trabalho buscará deste ponto em diante discorrer sobre o conceito de inclusão e exclusão com base em autores que abordam a inserção do aluno com deficiência na rede regular de ensino, ou seja, o recorte terá como base a inclusão escolar do deficiente. Para tanto, serão utilizadas as contribuições de Rodrigues (2006), Pacheco (2007), Díez (2010), Oliveira (2007), Mendes (2010a), entre outros. De acordo com Rodrigues (2006, p. 301): O conceito de inclusão no âmbito específico da educação implica, antes de mais, rejeitar, por princípio, a exclusão (presencial ou acadêmica) de qualquer aluno da comunidade escolar. Para isso, a escola que pretende seguir uma política de educação inclusiva desenvolve políticas, cultura e práticas que valorizam a contribuição ativa de cada aluno para a formação de um conhecimento constituído e partilhado - e, desta forma, atinge a qualidade acadêmica e sociocultural sem discriminação. Dessa forma a Educação Inclusiva soa como um ideal, uma proposta a ser compreendida e almejada, visto que se relaciona à aspiração da educação para todos, aos princípios de uma escola que seja capaz de promover aprendizagens significativas, independentemente das condições, das características, das possibilidades e das limitações do 43 seu alunado. Para tanto, é valido compreender os aspectos conceituais e filosóficos que permeiam a Educação Inclusiva, bem como quais são os desafios enfrentados na contemporaneidade, para que esta finalidade seja concretizada. Mendes (2010a, p. 22) apresenta que: O termo "educação inclusiva" foi uma proposta de aplicação prática ao campo da educação de um movimento mundial, denominado "Inclusão Social", que é posto como um novo paradigma, que implicaria na construção de um processo bilateral no qual as pessoas excluídas e a sociedade buscam , em parceria, efetivar a equiparação de oportunidades para todos. O movimento pela inclusão social, está atrelado à construção de uma sociedade democrática, na qual todos deverão conquistar sua cidadania, na qual a diversidade será respeitada e haverá aceitação e o reconhecimento político das diferenças. Trata-se em suma de um movimento de resistência contra a exclusão social que historicamente vem afetando grupos minoritários e que é caracterizado por movimentos sociais que visam à conquista do exercício do direito ao acesso a recursos e serviços da sociedade. A autora relata também que a Educação Inclusiva tem um papel de fundamental importância para o desenvolvimento e manutenção de um estado democrático, visto que as relações estabelecidas na escola se estendem para a sociedade e vice-versa, em que uma contribui com a outra no sentido de impulsionar e trabalhar para a construção de uma sociedade inclusiva. Pacheco (2007, p. 14), ao buscar uma conceituação de Educação Inclusiva, pontua que "O termo ‘educação Inclusiva’ cobre várias tentativas de atender à diversidade total das necessidades educacionais dos alunos nas escolas de um bairro" e afirma: A educação inclusiva tem sido discutida em termos de justiça social, pedagogia, reforma escolar e melhorias nos programas. No que tange à justiça social, ela se relaciona aos valores de igualdade e aceitação. As práticas pedagógicas em uma escola inclusiva precisam refletir uma abordagem mais diversificada, flexível e colaborativa do que em uma escola tradicional. A inclusão pressupõe que a escola se ajuste a todas crianças que desejam matricular-se em sua localidade, em vez de esperar que uma determinada criança com necessidades especiais se ajuste à escola (integração) (PACHECO, 2007, p. 15). Oliveira (2007, p. 32) discorre que: A política inclusiva objetiva oportunizar a educação democrática para todos, considerando ser o acesso ao ensino público de qualidade e o exercício da cidadania um direito de todos; viabilizar a prática escolar da convivência com a diversidade e diferenças culturais e individuais, e incluir o educando 44 com necessidades educacionais especiais no ensino regular comum. Essa política de educação inclusiva aponta para a democratização do espaço escolar, com a superação da exclusão de pessoas apresentam necessidades especiais e da dicotomia existente entre o ensino comum e a educação especial por meio de suas classes especiais. A autora afirma ainda que a efetivação da inclusão escolar será possível mediante mudanças estruturais na escola, que viabilizem às pessoas deficientes condições e oportunidades de aprendizagem. Para tanto, salienta que é necessário investir em práticas pedagógicas que valorizem a aprendizagem a partir das interações e as potencialidades dos alunos. E ainda, para corroborar com as conceituações apontadas até o momento, é válido discorrer sobre o conceito apresentado por Díez (2010, p. 17) que se embasa em Moriña (2004) para afirmar que: A inclusão pode ser definida como um modelo de educação que propões escolas onde todos possam participar e sejam recebidos como membros valiosos delas. Trata-se de uma filosofia e prática educativa que pretende melhorar a aprendizagem e participação ativa de todo o alunado em um contexto educativo comum. A educação inclusiva se concebe como um processo inacabado que desafia a qualquer situação de exclusão, procurando mecanismos para eliminar as barreiras que obstaculizam uma educação para todos. A partir dos conceitos apresentados anteriormente é válido ressaltar que a Educação Inclusiva está fundamentada em uma concepção de educação para todos, ou seja em uma escola que garanta possibilidades igualitárias de aprendizagem a todos os alunos, independentemente de suas possibilidades ou limitações. É interessante acrescentar que de acordo com Mendes (2010a), mundialmente, o paradigma da inclusão social, bem como seus fundamentos e suas concepções, tornaram-se palavra de ordem em praticamente todas as ciências humanas, no final do século XX e segundo a autora: "[...] muito embora, no contexto desse movimento, o debate sobre a Educação Inclusiva se refira a uma população mais ampla, ele se aplica também à população da Educação Especial, que historicamente vem sendo excluída da escola e da sociedade." (MENDES, 2010a, p. 22-23). Em relação à amplitude do movimento pela inclusão de alunos com deficiência na rede regular, Díez (2010, p. 16-17) discorre que embora com algumas diferenciações, vem ocorrendo em diversos países e descreve que: 45 A educação inclusiva não está sendo desenvolvida da mesma maneira em todos os países. Em alguns, a inclusão passa por desafiar aos sistemas de educação com o fim de garantir a escolarização de todos os meninos e meninas. Em outros, o objetivo está em combater situações onde a escola para determinados estudantes representa medidas de atenção à diversidade segregadoras e o estabelecimento de vias paralelas. E também há outros países os quais aparentemente suas políticas de educação refletem os princípios de uma educação inclusiva, mas que na prática estão sendo desenvolvidas propostas pseudo-inclusivas. Pacheco (2007) também relata que a Educação Inclusiva tornou-se uma política reconhecida internacionalmente, como resposta à diversidade dos alunos. Este fato deve-se a iniciativas feitas pela Organização das Nações Unidas para a Educação, a Ciência e a Cultura (UNESCO), União Europeia, N