RESSALVA Atendendo solicitação do(a) autor(a), o texto completo desta dissertação será disponibilizado somente a partir de 22/11/2020. UNIVERSIDADE ESTADUAL PAULISTA “JÚLIO DE MESQUITA FILHO” FACULDADE DE CIÊNCIAS HUMANAS E SOCIAIS ADRIELLI DE SOUZA COSTA LUIZ GAMA: UMA PERSPECTIVA DO BRASIL OITOCENTISTA (1848 - 1882) FRANCA 2018 ADRIELLI DE SOUZA COSTA LUIZ GAMA: UMA PERSPECTIVA DO BRASIL OITOCENTISTA (1848 - 1882) Dissertação apresentada ao Programa de Pós- Graduação em História da Faculdade de Ciências Humanas e Sociais da Universidade Estadual Paulista “Júlio de Mesquita Filho”, como pré-requisito para a obtenção do título de Mestre em História. Área de concentração: História e Cultura Social. Orientador: Prof. Dr. Ricardo Alexandre Ferreira FRANCA 2018 C837l Costa, Adrielli de Souza LUIZ GAMA: UMA PERSPECTIVA DO BRASIL OITOCENTISTA (1848 - 1882) / Adrielli de Souza Costa. -- Franca, 2018 133 f. Dissertação (mestrado) - Universidade Estadual Paulista (Unesp), Faculdade de Ciências Humanas e Sociais, Franca Orientador: Ricardo Alexandre Ferreira 1. Luiz Gama. 2. Abolicionismo. 3. Brasil Império. I. Título. Sistema de geração automática de fichas catalográficas da Unesp. Biblioteca da Faculdade de Ciências Humanas e Sociais, Franca. Dados fornecidos pelo autor(a). Essa ficha não pode ser modificada. ADRIELLI DE SOUZA COSTA LUIZ GAMA: UMA PERSPECTIVA DO BRASIL OITOCENTISTA (1848 - 1882) Dissertação apresentada ao Programa de Pós-Graduação em História da Faculdade de Ciências Humanas e Sociais da Universidade Estadual Paulista “Júlio de Mesquita Filho”, como pré-requisito para a obtenção do título de Mestre em História. BANCA EXAMINADORA Presidente:________________________________________________________________ Dr. Ricardo Alexandre Ferreira, UNESP-Franca 1º Examinador:____________________________________________________________ Márcia Regina Capelari Naxara, UNESP-Franca 2º Examinador:____________________________________________________________ Lígia Fonseca Ferreira, UNIFESP Franca, 22 de novembro de 2018. AGRADECIMENTOS Ao Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico – Brasil (CNPq) pelo auxilio concedido, sem o qual não seria possível efetivar esse trabalho. Ao Prof. Dr. Ricardo Alexandre Ferreira pela imensa paciência, dedicação, compreensão e, sobretudo, confiança despendidas ao longo dessa pesquisa. Às professoras Márcia Regina Capelari Naxara e Lígia Fonseca Ferreira pelas leituras atentas, comentários e contribuições na banca de defesa desse trabalho. Aos amigos e colegas que integram o Grupo Escritos sobre os Novos Mundos. Aos meus familiares, amigos, colegas e todos que, de algum modo, me apoiaram nessa empreitada acadêmica. “Diversamente do que se dá com outros homens ilustres, fez da obscuridade o seu valor e da modéstia a sua grandeza. Soube-se da sua glória, quando ele morreu; exatamente como o esplendor sereno do firmamento, que se conhece quando o dia acaba.” (Raul Pompéia) COSTA, Adrielli de Souza. LUIZ GAMA: UMA PERSPECTIVA DO BRASIL OITOCENTISTA (1848 - 1882). 2018. 145 f. Dissertação de Mestrado (título em História) – Faculdade de Ciências Humanas e Sociais, Universidade Estadual Paulista “Júlio Mesquita Filho”, Franca, 2018. RESUMO A presente pesquisa tem como objetivo principal perscrutar a trajetória de Luiz Gonzaga Pinto da Gama (1830-1882) a fim de perceber como o literato posicionou-se frente aos diferentes debates dos quais participou. O estudo ora proposto parte da premissa de que a trajetória de vida de Gama pode iluminar aspectos decisivos da época em que viveu, tais como sua infância em cativeiro, sua alfabetização tardia seguida da conquista do posto de rábula, um autodidata em assuntos jurídicos que se notabilizou por militar na causa da libertação dos escravos ao mesmo tempo em que se encarregou de construir sua própria história como um percurso entre a escravidão e o exercício pleno da liberdade e da cidadania. Nesse sentido, a investigação partirá das várias inserções profissionais, institucionais e políticas de Luiz Gama para analisar seus posicionamentos em relação a questões fundamentais de sua época, com especial ênfase nos assuntos relativos ao cativeiro de africanos e descendentes no Brasil. A investigação terá como baliza temporal inicial o ano de 1848, momento em que Luiz Gama alcança a liberdade após passar parte da infância em cativeiro, e, como marco final, 1882, o ano de sua morte. Na composição do corpus documental investigado na pesquisa, além das principais obras de Gama, são considerados artigos de jornais da época que mencionam o literato, artigos assinados por Gama, além de cartas deste trocadas com amigos e pessoas próximas a ele. Palavras-chave: Luiz Gama. Abolicionismo. Brasil Império ABSTRACT The main objective of this research is to peer through the trajectory of Luiz Gonzaga Pinto do Gama (1830-1882) in order to understand how the literate has placed himself in front of the different debates he took part. The study proposed part of the premise that the trajectory of Gama life can illuminate decisive aspects of the time in which he lived, such as his childhood in captivity, his late literacy followed by the conquest of the post of shyster, a self-taught in subjects, like legal subjects, he was notable by military in the cause of the liberation of slaves at the same time he took care of creating his own history as a pathway between slavery and the full exercise of freedom and citizenship. Therefore, the research will be based on the various professional, institutional and political inserts of Luiz Gama to analyze his positioning in relation to fundamental issues of his time, with special emphasis on matters related to the captivity of Africans and descendants in Brazil. The investigation will have as begining the year 1848, when Luiz Gama reached freedom after spending part of childhood in captivity, and it will end in 1882, the year of his death. In the composition of the documentary corpus investigated in the research, in addition to the main works of Gama, are considered newspaper articles from the time that he mentions them, articles that belonged to Gama, and letters he exchanged with friends and people close to Him. Keywords: Luiz Gama, Abolicionism, Brazil Empire SUMÁRIO INTRODUÇÃO .................................................................................................. 8 PARTE 1: DE ESCRAVO A RÁBULA ........................................................... 17 1. A carta e suas diversas interpretações .................................................. 17 2. Luiza Mahin .......................................................................................... 21 3. Primeiros versos, primeiras possibilidades .......................................... 31 4. Expansão das atividades e novas manifestações ................................. 39 5. Atuações como Rábula ......................................................................... 46 PARTE 2: “SEM REI E SEM ESCRAVOS”: LUIZ GAMA E OS “ESTADOS UNIDOS DO BRASIL” .......................................................................................... 57 1. O Club Radical ...................................................................................... 58 2. A Instrução Popular e a divergência de Luiz Gama com os republicanos ................................................................................................................ 70 3. A temática abolicionista nos escritos de Luiz Gama ............................ 84 a. Mudanças de abordagem ........................................................... 85 4. A propaganda abolicionista ................................................................ 104 CONSIDERAÇÕES FINAIS ......................................................................... 111 FONTES E REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS ...................................... 114 ANEXOS ........................................................................................................ 121 1. ENSAIO BIOGRÁFICO DE LUIZ GAMA POR LÚCIO DE MENDONÇA ...................................................................................... 122 2. CARTA DE LUIZ GAMA A LÚCIO DE MENDONÇA PUBLICADA EM ARTIGO NO JORNAL O ESTADO DE SÃO PAULO ............... 129 8 INTRODUÇÃO Depois de um período de produção acadêmica menos numerosa, mas não sem a presença de obras fundamentais para a interpretação do Brasil que tenham tocado diretamente no tema da transição para o trabalho livre, foi a partir das comemorações do centenário da abolição, celebrado em 1988, e com a multiplicação dos programas de pós-graduação em História no país, que o tema do abolicionismo no Brasil passou a ser mais detidamente revisitado pelos pesquisadores. Identificado, via de regra, não obstante as pressões internacionais, como um movimento de ataque ao status quo que sustentava a sociedade imperial do Oitocentos, o abolicionismo foi analisado a partir de diferentes vieses que vão da experiência cotidiana dos cativos e do ativismo político de alguns contemporâneos até análises que escrutinaram o tema a partir das questões das histórias comparada, política e intelectual renovadas. Em outras palavras, e guardadas as especificidades teórico-metodológicas1, a historiografia tem se empenhado em tornar mais complexa a leitura das iniciativas contrárias à manutenção do 1 Entre os anos de 1950 e1960, a maioria das obras apresentam uma leitura do abolicionismo como um movimento revolucionário contra um sistema escravista cruel. O economicismo permeava as análises e, para esses autores, vários fatores influenciaram na emergência do abolicionismo brasileiro: expansão da Revolução Industrial em um nível internacional, o desenvolvimento do capitalismo e da industrialização, a urbanização, o começo da industrialização em alguns lugares do Brasil, sendo o abolicionismo muito mais um “reflexo das mudanças inevitáveis” do que um movimento forte com capacidade de resultar em mudanças efetivas. Os escravos, por sua vez, teriam meramente seguido os planos abolicionistas em favor de suas sortes, isso porque essa corrente não enxergava o cativo como indivíduo consciente de suas ações ou capaz de agir em favor de sua própria sorte. Podemos citar COSTA, Emilia V. da. Da senzala à colônia. 5ª Ed. – São Paulo: Editora UNESP, 2010 como uma obra que se classifica por esse movimento. Nos anos de 1970, e mais efetivamente a partir dos anos 1980, percebe- se uma mudança nas abordagens historiográficas do tema escravidão, especialmente por se tratar da década em que se comemoraria o Centenário da Abolição. Essas pesquisas procuraram aprofundar os estudos acerca do cativeiro africano no Brasil para além do estruturalismo e das classificações em esquemas rígidos. O foco das análises passou a ser especificamente o escravo como sujeito da ação. Os autores filiados a essa matriz interpretativa foram influenciados pela Nova História francesa, principalmente pelo neo-marxismo do inglês Edward Thompson autor de A formação da classe operária inglesa. (3 volumes). Nesta vertente, podemos destacar autores que desenvolveram estudos que apontam a Abolição no Brasil como resultado efetivo das ações dos escravos, resistência representada por ações judiciais, revoltas, fugas em massa, etc.: AZEVEDO, Celia Maria Marinho de. Onda negra, medo branco: o negro no imaginário das elites, século XIX - Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1987; CHALHOUB, Sidney. Visões da liberdade: uma história das últimas décadas da escravidão na Corte. São Paulo: Companhia das Letras, 1990; MACHADO, Maria Helena. O plano e o pânico: os movimentos sociais na década da Abolição - São Paulo: EDUSP, 1994 e MATTOS, Hebe M. Das cores do silêncio: os significados da liberdade no sudeste escravista. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1998. Em Abolicionismo: Estados Unidos e Brasil, uma história comparada (século XIX) – São Paulo: Annablume, 2003, Célia Maria de Azevedo, apesar de não ter se desvinculado da vertente norteada pelo escravo como sujeito da ação, chama atenção para a importância de novos estudos se debruçarem em análises que combinem a ação dos abolicionistas e dos escravos a favor do fim do cativeiro africano no Brasil. A autora responde a características próprias da análise comparada da historiografia. Esse movimento já foi criticado pela historiografia sob o argumento de que de tais estudos não eram viáveis pela sua característica generalizante. Porém, a partir dos anos 2000 na esteira de novos questionamentos acerca do tema da escravidão, tais como os porquês de o sistema escravista ter sobrevivido por tantos séculos e em qual momento este deixa de ser apoiado socialmente, os estudos de perspectivas mais amplas como os comparativos, os estudos de longa duração e os de história global, ganharam espaço por sua maior capacidade de abranger tais questões. Nessas classificações podemos citar DRESCHER, Seymour. Abolição :uma história da escravidão e do antiescravismo; tradução Antonio Penalves Rocha - São Paulo: Editora da UNESP, 2011. 9 cativeiro de africanos e descendentes no Brasil oitocentista, uma vez que o abolicionismo foi, muitas vezes, visto como um movimento uníssono, coeso e, até mesmo, homogêneo. Com o objetivo de compreender os principais elementos que nortearam a desintegração do sistema escravista brasileiro, Emilia Viotti da Costa, ainda na década de 1960, sublinhou a crítica ao abolicionismo como um processo resultante de um contexto mais amplo de mudanças sociais, influenciado por elementos nacionais2 e internacionais3, ocorridos, sobretudo, a partir da segunda metade do século XIX. Viotti da Costa credita ao que denominou “condições estruturais” o eixo da crítica que se edificou contra a escravidão no Brasil. Isso porque sua perspectiva de análise busca demonstrar como esse pano de fundo internacional possibilitou a emergência de uma preocupação então nova na sociedade brasileira, a qual, aos poucos, passou a enxergar no sistema escravista um impedimento ao desenvolvimento industrial do país. A estudiosa conclui que, de maneira geral, o abolicionismo era composto por “categorias não comprometidas com o sistema” e por “elementos urbanos” que acreditavam dever a questão da escravidão ser resolvida pela nação, a partir de ações parlamentares capazes de mobilizar a, ainda, incipiente opinião pública do país.4 A partir da premissa de que as atuações dos escravos foram os elementos norteadores da efetiva abolição do cativeiro no Brasil, Célia Maria Azevedo desenvolve um estudo em que analisa diversas ações de resistência dos cativos dentro do sistema escravista. De acordo com a estudiosa, no Brasil, no lugar de uma reforma que visasse modernizar o país, o abolicionismo nada mais foi do que um conjunto de medidas destinadas a conter as revoltas escravas, ainda sob o espírito do antigo desejo de que se estabelecesse uma extinção gradual do cativeiro que não comprometesse a ordem imperial.5 Em outro estudo, produzido com o objetivo de desmistificar a leitura de um sistema escravista brando no caso brasileiro e cruel no caso norte 2 COSTA, Emilia V. da. Da senzala à colônia. 5ª Ed. – São Paulo: Editora UNESP, 2010. Ao longo dos capítulos da obra, Viotti da Costa demonstra as ações políticas que se seguiram no sentido de demonstrar as vantagens do trabalho livre em comparação com o escravo, ações expressas, sobretudo, nas campanhas públicas de imigração europeia como alternativa para a demanda de mão de obra assalariada. Aponta, também, que, a partir da extinção do tráfico de africanos para o Brasil, houve um movimento de modernização no sentido de estimular o desenvolvimento industrial do país. Cita a implantação de estradas ferroviárias e a urbanização como resultantes deste processo. 3 A autora discute o tema abolicionismo ao longo de todo o capítulo 3. COSTA, Emilia V. da. Da senzala à colônia. 5ª Ed. – São Paulo: Editora UNESP, 2010, pp. 475 – 502. Viotti da Costa aponta acontecimentos como o desenvolvimento do capitalismo resultante da expansão da Revolução Industrial e a Abolição da escravidão norteamericana ocasionada pela Guerra Civil do país como elementos internacionais importantes na derrubada das bases do sistema escravista, o que, para a autora, influenciou no processo abolicionista brasileiro. 4 COSTA, Emilia V. da. Da senzala à colônia. 5ª Ed. – São Paulo: Editora UNESP, 2010, p.485. A autora afirma que os abolicionistas conquistaram o apoio da “opinião pública” através da imprensa, organizando associações, grêmios e lojas maçônicas para compra de alforria. Esse apoio representou uma força importante na pressão para que argumentos dos abolicionistas fossem levados em consideração nas discussões parlamentares. 5 AZEVEDO, Celia Maria Marinho de. Onda negra, medo branco: o negro no imaginário das elites, século XIX - Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1987. 10 americano, Azevedo se debruça sobre as bases dos argumentos dos abolicionistas destes dois países.6 Sua análise parte da ideia de que o abolicionismo brasileiro desenvolveu-se na esteira de outros movimentos reformadores do século XIX.7 Azevedo assevera que os argumentos contra a escravidão no país tinham como base aspectos da filosofia iluminista que pregavam ser a sociedade regida por diferentes estágios de evolução. Assim, políticos e intelectuais envolvidos no combate ao cativeiro acabavam acreditando que a capacidade de identificar o momento da mudança social os municiava com as ferramentas necessárias ao convencimento dos habitantes do país.8 O caminho para tal convencimento devia ser trilhado a partir da produção de leis que contribuíssem com a superação do escravismo e promovessem o equilíbrio social.9 A autora ressalta que o abolicionismo brasileiro era composto, em sua maioria, por indivíduos provenientes das elites, que, portanto, direcionavam seus argumentos para seus iguais, de modo a que fossem persuadidos da necessidade de mudança no status quo.10 Além disso, e na direção das preocupações desta dissertação, Azevedo afirma haver pouco ou nenhum contato intelectual entre abolicionistas e negros livres e libertos, um cenário que fazia de Luiz Gama um caso específico, visto que a maioria dos abolicionistas negros enxergavam os escravos com “olhos estrangeiros”.11 Com algumas exceções, de certa forma, a historiografia da escravidão tomou como verdade norteadora os apontamentos de Joaquim Nabuco sobre o abolicionismo no Brasil. Os estudos apresentavam o processo abolicionista como resultado das ações de uma elite ilustrada que tinha como missão guiar ações dos oprimidos e os inconscientes para as mudanças sociais, políticas e culturais de modo a alcançar o progresso da civilização. Assim, se tornou recorrente ler o abolicionismo brasileiro como ações de base iluminista, positivista, compartilhadas pelos coevos que apoiavam o fim da escravidão no Brasil. Porém, em sua obra dos anos 90,12 Maria Helena Machado já havia apontado a possibilidade de leitura do processo abolicionista brasileiro sobre a perspectiva de movimentos sociais. Assim, chamava atenção para diversos 6 AZEVEDO, Celia M. M. de. Abolicionismo: Estados Unidos e Brasil, uma história comparada (século XIX) – São Paulo: Annablume, 2003. 7 Ibid., Célia Azevedo apontou que entre 1860 e 1870 os “futuros abolicionistas” estavam engajados em outras lutas políticas (reformas políticas, separação do Estado e igreja, apoiaram a imigração), discursando suas críticas sobre o estado social e político do país em jornais. Utiliza-se dessa informação para enfatizar que o abolicionismo era um movimento que veio na esteira de outros movimentos reformadores da época. 8 Ibid., p. 44 9 Ibid., p. 50 10 Ibid., pp. 102-104 11 Ibid., p. 119-123. Ao longo dessas páginas, Azevedo faz um exercício de reflexão analisando a realidade dos abolicionistas da elite brasileira, tentando demonstrar que não havia possibilidade de eles apresentarem outro tipo de comportamento em relação a esse tema. 12 MACHADO, Maria Helena. O plano e o pânico: os movimentos sociais na década da Abolição - São Paulo: EDUSP, 1994. 11 projetos sociais e atuações dentro do que se convencionou chamar de movimento abolicionista. Nesse sentido, a autora problematizou a perspectiva que apontava uma elite organizada e líder de um movimento, pois levou em consideração a participação de personagens de diversos setores sociais com propostas que nada se comprometiam com projetos liberalistas ou outras visões políticas. Com a proposta de resgatar a importância do movimento abolicionista brasileiro como elemento principal na conquista da Lei Áurea, Ângela Alonso parte da leitura do abolicionismo brasileiro como o primeiro movimento social nacional.13 Apesar de suas colocações apontarem para a mesma premissa apontada por Machado,14 é importante salientar que esta só considera o abolicionismo brasileiro válido como objeto de estudo caso esteja atrelado a outros movimentos sociais. Em outras palavras, o abolicionismo só pode ser lido como movimento social caso se leve em consideração sua ligação com a atuação popular, com as ações dos escravos no meio rural e nas senzalas, e com a circulação de ideias longe das elites da imprensa e do Parlamento. A análise é feita sob a perspectiva da sociologia política. Desta maneira, sua tese se configura a partir da identificação do desenvolvimento abolicionista com um movimento social organizado, como uma resposta suscitada pelas ações das instituições políticas da época e como um contramovimento configurado pelos escravistas politicamente organizados. Para Angela Alonso, um movimento social tem o objetivo de pressionar o governo em favor de sua causa e essa é a característica fundamental do abolicionismo brasileiro, o que o classifica como movimento social. Este se caracteriza por sua heterogeneidade, é composto por pessoas de diversos campos da sociedade, que se unem em favor de uma causa de maneira coletiva, em razão de não identificarem uma representação política que os apoie.15 A autora acrescenta que o contexto político da época é importante como chave de leitura do movimento, pois foi esse jogo de ação e reação contra os governos, ora liberal, ora conservador, que conferiu base para as escolhas de ações e manifestações a favor da abolição da escravidão.16 13 ALONSO, Angela. Flores, votos e balas: o movimento abolicionista brasileiro (1868-1888). 1ª Ed. São Paulo: Companhia das Letras. 2015 14 Maria Helena Machado é um dos nomes à frente de uma obra organizada em 2015 que, já nas primeiras páginas, reitera o lugar da historiografia que ocupam os textos ali apresentados. O elemento comum dos textos é a forma como a liberdade foi alcançada e/ou limitada por diversos personagens inseridos no sistema escravista, no pré e no pós-abolição. A preocupação central da organização é demonstrar as contribuições dos novos estudos que ainda trazem como foco os negros, cativos, livres e libertos, como sujeitos da ação, conscientes da resistência que norteavam suas ações a favor da liberdade. CASTILHO, Celso Thomas; MACHADO, Maria Helena P.T. (orgs.). Tornando-se livre: Agentes históricos e lutas sociais no processo de abolição. São Paulo, Editora da Universidade de São Paulo, 2015. 15 ALONSO, Angela. Flores, votos e balas: o movimento abolicionista brasileiro (1868-1888). 1ª Ed. São Paulo: Companhia das Letras. 2015. p 352. 16 ALONSO, Angela. Flores, votos e balas: o movimento abolicionista brasileiro (1868-1888). 1ª Ed. São Paulo: Companhia das Letras. 2015, pp 17-18. 12 Através das trajetórias e ações de figuras como Abílio Borges, Luiz Gama, Joaquim Nabuco, José do Patrocínio e André Rebouças, Ângela Alonso reconstrói o movimento abolicionista apontando a importância das ações individuais de tais personagens, mas, com foco, principalmente, nas ações conjuntas que resultaram no alcance da abolição efetiva em 13 de maio 1888. Em tópicos específicos de sua argumentação, a autora apresenta brevemente a trajetória de tais líderes abolicionistas, comentando as ações de cada um deles de modo a especificar sua importância nos diversos meios de discussão da temática abolicionista: parlamento, comícios, imprensa, tribunais, teatros, etc. Em outras palavras, a autora identifica singularidades nas ações dessas figuras e atribui o extenso alcance do movimento exatamente à heterogeneidade de seus elementos.17 Longe de negar a importância e a contribuição de tal estudo para a historiografia brasileira, acreditamos haver problemas em interpretar eventos ocorridos nas décadas mais importantes para a abolição do cativeiro no Brasil com base em um pressuposto sociológico estruturado após tais episódios. Dito em outras palavras, a onda revisionista da década de 1980 já havia chamado atenção para a limitação que a aplicação de hipóteses oriundas da junção entre estruturalismo e marxismo, desdobradas em estudos desenvolvidos ao longo do século XX, apresentava para as análises do processo abolicionista no Brasil, além de demonstrarem que uma chave de leitura dada a priori acabava ignorando as possibilidades de os próprios escravos compreenderem o mundo que os incluía e agirem, no cotidiano, como sujeitos de suas próprias histórias. Alonso chega a apontar para a existência de diversidades de pontos de vistas entre os personagens que participaram de tal processo, porém a autora entende tais especificidades como elementos norteadores da expansão do movimento para um âmbito nacional, ou seja, vê, mesmo nas ações e opções individuais, partes de um movimento social de grandes proporções. O historiador norte-americano Seymour Drescher, em Abolição: uma história da escravidão e do antiescravismo, propõe explicar como o abolicionismo se desenvolveu através da história. Sua perspectiva de leitura aponta para o escravismo como um sistema que se transforma a partir da ação das pessoas nele envolvidas. Drescher18 mapeia o abolicionismo como uma nova forma de fazer política que se desenvolve com mais expressividade em sociedades nas quais os indivíduos se mostram mais favoráveis a fundar novos pactos de 17 ALONSO, Angela. Flores, votos e balas: o movimento abolicionista brasileiro (1868-1888). 1ª Ed. São Paulo: Companhia das Letras. 2015, pp 347 – 357. No tópico intitulado O Retorno das Flores, Angela Alonso faz uma análise combinando os dados discutidos ao longo da obra demonstrando que em meados da década 1880 as atuações singulares dos objetos por ela expostos confluíram para uma nacionalização do movimento, bem como na influenciaram na rapidez dos tramites legais que resultaram na promulgação da Lei Áurea. 18 DRESCHER, Seymour. Abolição: uma história da escravidão e do antiescravismo; tradução Antonio Penalves Rocha. - São Paulo: Editora da UNESP, 2011. 13 verdade e, desta maneira, afirma que o nascimento do pensamento abolicionista na Grã Bretanha teve lugar em razão de haver naquele lugar e naquele momento justamente uma conjunção favorável de elementos. Quando foca sua análise no movimento abolicionista brasileiro, Drescher opta por restringir sua argumentação às mudanças ocorridas nos fins da década de 1880. Isso porque, em sua perspectiva de leitura, antes disso não havia ações políticas efetivas a favor da abolição, e as ações populares estavam longe de resultar em uma influência expressiva nas discussões parlamentares. Nesse ambiente de renovação das perspectivas de análise, Luiz Gama, também teve sua trajetória revisitada, sobressaindo-se, no âmbito das diferentes interrogações propostas, questionamentos acerca das ações que, ao longo de uma vida, conduziram o menino negro da escravidão aos braços de uma multidão que disputou com afinco o direito de, por pelo menos alguns momentos, segurar as alças de seu caixão.19 Ao analisar A trajetória de Luiz Gama na imperial cidade de São Paulo, Elciene Azevedo compõe a biografia mais importante sobre a personagem escrita no âmbito dos estudos historiográficos.20 Azevedo procura demonstrar a trajetória de Gama de forma minuciosa, baseada em documentos escritos pelo próprio personagem, analisando suas ações e objetivos. O objetivo central de Azevedo é apresentar fatos da vida de Luiz Gama fundamentando-se em documentação, para se diferenciar de autores que, em sua visão, falam de si mesmos ao analisarem a imagem do Patrono da Abolição.21 Para a autora, o abolicionista norteou a construção de sua própria imagem, ele mesmo a edificou ou “manipulou” cuidadosamente. Azevedo conclui que, durante toda sua vida, Luiz Gama tentou construir a imagem de “homem letrado, advogado, integrado ao mundo dos cidadãos brancos, 19 Para citar algumas obras: AZEVEDO, Elciene. Orfeu de Carapinha. A trajetória de Luiz Gama na Imperial cidade de São Paulo. Campinas, SP: Editora da Unicamp, 1999. AZEVEDO, Celia M. M. de. Abolicionismo: Estados Unidos e Brasil, uma história comparada (século XIX) – São Paulo: Annablume, 2003. ALONSO, Angela. Flores, votos e balas: o movimento abolicionista brasileiro (1868-1888). 1ª Ed. São Paulo: Companhia das Letras. 2015. 20 Por ocasião da morte de Luiz Gama, em 1882, dois amigos publicaram artigos em sua homenagem. Um era composto de uma carta de Luiz Gama para Lucio de Mendonça e outro escrito por Raul Pompeia descrevendo a trajetória de vida de Gama. Até o século XX, essas eram as obras mais expressivas de caráter biográfico sobre o abolicionista. Em 1938 Sud Mennucci publicou a obra O precursor do abolicionismo no Brasil: Luiz Gama, o que se configurou como o primeiro estudo com maior embasamento documental sobre o tema, porém ainda carregando o caráter de exaltação das duas primeiras obras sobre o tema. Mennucci ao ocupar a cadeira da Academia Paulista de Letras, foi convidado a redigir uma biografia sobre seu patrono Luiz Gama, com o objetivo de ganhar mais conhecimento sobre ele e demonstrar sua importância para a história do Brasil. Daí o caráter superlativo e de exaltação que acompanha toda a obra. 21 AZEVEDO, Elciene. Orfeu de Carapinha. A trajetória de Luiz Gama na Imperial cidade de São Paulo. Campinas, SP: Editora da Unicamp, 1999. Disponível em < http://www.bibliotecadigital.unicamp.br/document/?code=000114891&opt=4 > acessado em setembro de 2015 p. 15 14 mas que não deixava ninguém esquecer que havia sido escravo, e fazia absoluta questão de afirmar-se negro”.22 Ligia Fonseca Ferreira23 é, atualmente, um dos nomes mais importantes no estudo dos escritos de Luiz Gama. Sua obra mais recente, publicada em 2011, Com a palavra, Luiz Gama – poemas, artigos, cartas e máximas, consiste em uma compilação abrangente dos escritos desta figura emblemática. Os textos de Luiz Gama são organizados em capítulos introduzidos por Ligia com o contexto em que tais foram produzidos ou, quando necessária, com uma breve explicação dos escritos. Analisando os artigos24 da estudiosa, percebe-se que o tema identidade é o que prevalece, isso porque Ligia Ferreira prioriza o estudo da negritude de Luiz Gama e como esta identidade foi construída, reconstruída, autoafirmada e influenciada intelectualmente25 por ele mesmo durante sua trajetória. A presente dissertação visa apontar, por meio da análise de jornais publicados no Brasil oitocentista, elementos que contribuíram para a construção de um espaço de fala do ex-escravo, merecedor de “estima não só em São Paulo como em todo o país”, segundo Rangel Pestana.26 Por mais que esteja entre os nomes mais lembrados quando se trata do tema do abolicionismo brasileiro, reconhecido em 2018 como Patrono da Abolição da Escravidão no Brasil,27 poucas são as linhas que dispõem sobre os argumentos abolicionistas de Luiz Gama. Embora existam trabalhos que se detiveram sobre as ações de Gama nos tribunais em favor da liberdade de cativos no Brasil, ainda falta, ao nosso ver, um esforço mais concentrado de mapeamento do que Gama escreveu sobre essa temática e quais suas justificativas para criticar o cativeiro de africanos e seus descendentes na segunda metade do XIX. 22 AZEVEDO, Elciene. Orfeu de Carapinha. A trajetória de Luiz Gama na Imperial cidade de São Paulo. Campinas, SP: Editora da Unicamp, 1999. Disponível em < http://www.bibliotecadigital.unicamp.br/document/?code=000114891&opt=4 > acessado em setembro de 2015. p.210 23 Lígia Fonseca Ferreira alcançou seu doutoramento em 2011 com estudo da vida e obra de Luiz Gama, Luiz Gama (1830-1882): Étude sur la vie et l´oeuvre d´un Noir citoyen. Apesar de tal obra ainda não ter sido publicada no Brasil, pois a estudiosa concluiu seus estudos na Université Sorbonne Nouvelle, Paris – parte de seu conteúdo está disponível em diversos artigos: FERREIRA, Ligia Fonseca. O sonho sublime de um ex-escravo. Revista de História (Rio de Janeiro), v. 9, p. 66-68, 2013. ___________. Ethos, poética e política nos escritos de Luiz Gama. Revista Crioula (USP), v. 1, p. 1-20, 2012. ___________. Luiz Gama por Luiz Gama: a carta a Lúcio de Mendonça. Teresa (USP), v. 8/9, p. 300-321, 2008. ___________. Luiz Gama: um abolicionista leitor de Renan. Estudos Avançados (USP. Impresso), v. 21, p. 271-288, 2007. 24 Trata-se dos artigos referenciados na nota anterior. 25 FERREIRA, Ligia Fonseca. Luiz Gama: um abolicionista leitor de Renan. Estudos Avançados (USP. Impresso), v. 21, p. 271-288, 2007. 26 Rangel Pestana, "LUIZ GAMA" (editorial), A província de São Paulo, 25 de agosto de 1882 in GAMA, Luiz. Com a palavra, Luiz Gama poemas, artigos, cartas, máximas. Apresentação e notas de Lígia Fonseca Ferreira. São Paulo Imprensa Oficial 2011, p. 219. 27 LEI Nº 13.629, DE 16 DE JANEIRO DE 2018 - Declara o advogado Luiz Gama Patrono da Abolição da Escravidão do Brasil. Disponível em: . Acesso em: outubro de 2018. 15 Tal estudo se deterá entre os anos 1848 e 1882, ano de seu falecimento. Iniciar-se-á a pesquisa no ano de 1848, momento em que Luiz Gama alcança a liberdade após passar parte da infância em cativeiro, a fim de investigar as possibilidades que a ele se apresentaram, possibilidades essas que resultariam na efetiva publicação da obra de maior fôlego de Gama, a coletânea poética Primeiras Trovas Burlescas de Getulino. Neste período, também foram consultados registros de e sobre Gama em processos judiciários e em missivas que trocou com colegas e amigos até o fim da vida. Visando alcançar os objetivos acima descritos, a dissertação foi organizada em duas partes. A primeira foi estruturada a partir da preocupação de que, apesar de Luiz Gama ser objeto central ou coadjuvante de muitos estudos ao longo da história, é possível afirmar que ainda há pontos de sua trajetória que podem ser vistos com mais detalhe, sobretudo a partir de novas interrogações. Sendo assim, os tópicos ora expostos retomaram os anos iniciais da trajetória de Luiz Gama, buscando combinar tanto as informações constantes em diferentes estudos sobre a vida do letrado quanto aquelas oriundas da principal fonte sobre o tema, uma carta destinada ao amigo Lúcio de Mendonça. O cruzamento de fontes possibilitou recolocar a questão sobre sua origem e apontar elementos conhecidos da trajetória do autor que precisam de matização, principalmente em razão de terem surgido de deduções dos biógrafos e não propriamente da interpretação da documentação disponível. Findadas as discussões em torno das informações que podem ser tiradas da mencionada carta, os tópicos caminham para a análise dos primeiros passos de Luiz Gama como homem livre, após fugir do cativeiro, a fim de perceber até que ponto as relações por ele travadas naquele momento influenciaram seus posicionamentos futuros manifestados em seus poemas e artigos de jornais. E ainda, identificar quais foram as oportunidades que Luiz Gama teve de se expressar através dos escritos, tais como: a publicação de seus versos em Primeiras Trovas Burlescas de Getulino e a veiculação de suas críticas contra o regime monárquico nos jornais em que colaborou. A delimitação temporal da parte inicia no ano de 1848, quando Luiz Gama foge do cativeiro e trava suas primeiras relações na sociedade paulistana oitocentista, e 1869, período em que Gama expressa abertamente seu posicionamento político quando se insere no debate das eleições de 1867, e se vê demitido do cargo político que ocupava por conta, segundo ele, de sua participação no Partido Liberal. O objetivo final desta parte é esclarecer de que maneira Luiz Gama se inseriu nos debates que, mais tarde, seriam melhor discutidos tanto em seus poemas, quanto em suas atividades como republicano, rábula, jornalista e maçom. Após sua inserção inicial na vida política da capital paulista do oitocentos, Luiz Gama se defronta com a necessidade de colocar em prática algumas de suas ideias. É precisamente 16 nesse embate com as limitações e desafios do cotidiano que a segunda parte desse trabalho se insere. Neste sentido, serão analisadas as ações de Gama em prol da instrução popular, empreendimento iniciado por um grupo maçom do qual era membro. Como será possível observar ao longo da primeira parte da dissertação, as convicções políticas de Luiz Gama foram fortemente estruturadas em seus primeiros tempos de atividade na imprensa paulista. Porém, não há, entre os especialistas, consenso acerca de suas atividades políticas dentro do Partido Republicano Paulista,28 agremiação que teve Gama entre seus membros fundadores. Sendo assim, o tópico abordará os escritos de Gama relativos a essa temática, buscando, na medida do possível, perceber como o pertencimento e a posterior ruptura com o partido ligavam-se às causas por ele abraçadas. Teria Gama se desligado do partido em razão de assumir publicamente um posicionamento gradualista em relação à extinção da escravidão? Na medida do possível, o tópico também busca investigar as relações entre os ideais abolicionistas e republicanos de Luiz Gama. A década de 1870 se configurou como o momento de maior atividade de Luiz Gama. Pouco mais de uma década mais tarde, no entanto, em 1882 a vida de Luiz Gama foi interrompida pelo diabetes. Entretanto, por mais que sua saúde estivesse debilitada nos primeiros anos de 1880, o jornalista se manteve ativo com publicações nos periódicos da época. Data deste período um conjunto de cartas destinadas ao amigo Ferreira de Menezes que foram publicadas no jornal Gazeta da Tarde. Dentro da temática abolicionista, Luiz Gama comentou crimes contra escravos, aludiu a violações contra a Lei do Ventre Livre no que, para ele, era uma tentativa de favorecer senhores, além de manter sua pena ativa ao criticar homens que se manifestavam favoravelmente à continuidade do sistema escravista no país. Nesse sentido, com base nas temáticas discutidas nas cartas, e o jornal em que estão inseridas – jornal de cunho abolicionista – os tópicos finais da dissertação buscarão responder aos seguintes questionamentos: pode-se dizer que os argumentos por ele manejados estavam contemplados em um modelo de propaganda abolicionista? Em caso afirmativo, tal modelo de propaganda era uma recorrência nesse periódico? Há outros abolicionistas que contribuíam com publicações no jornal como uma maneira de comentar assuntos de outras regiões a fim de ilustrar as ações abolicionistas fora da corte? Como Luiz Gama posicionou-se sobre as temáticas que sempre lhe foram caras ao final da vida? É possível identificar certa coerência entre os ideais por ele expressos nessa época com os manifestados em momentos anteriores? 28 FERREIRA, Lígia Fonseca. Luiz Gama por Luiz Gama: carta a Lúcio de Mendonça. Teresa - Revista de Literatura Brasileira da USP, São Paulo, v. 8/9, p. 300-321, 2008. Lígia Ferreira afirma que Luiz Gama se desligou do Partido “praticamente no ato de sua criação, em 1873”, p. 303. 111 CONSIDERAÇÕES FINAIS Num primeiro momento, em 1867, Luiz Gama havia declarado insatisfação com os partidos políticos do Império, caracterizados por ele como oligarquias políticas409. Assim, não surpreende encontrar o nome de Gama entre os fundadores da nova agremiação partidária da Província de São Paulo, o Club Radical Paulistano, poucos anos depois. No período compreendido entre fins de 1860 e os primeiros anos de 1870,410 os escritos de Luiz Gama tiveram como temática principal a explanação acerca das resoluções jurídicas das ações de liberdades empreendidas por ele em favor dos cativos. Por essa razão, interpretamos nesse trabalho que o posicionamento político de Gama era o mesmo manifestado pelo Club Radical através do periódico Radical Paulistano. Isso porque é possível identificar certa congruência entre os argumentos manifestados por Luiz Gama, em 1867, e o posicionamento oficial dos Radicais. A saber: a relação entre a extinção do Poder Moderador e a abolição da escravidão no Brasil, numa interpretação de que o Imperador representava o “maior elemento servil” vigente no país e, apenas após a extinção desse poder Imperial é que seria possível eleger o Brasil como emancipador e abolir o cativeiro de africanos e seus descendentes no país. Entretanto, com a fundação do Partido Republicano Paulista, em 1873, os Republicanos se eximiram da responsabilidade que envolvia a abolição da escravidão no Brasil. Em meio às divergências com os membros do Partido Republicano Luiz Gama não deixou de lado suas ações em prol do tão sonhado Brasil “sem senhores e sem escravos”. Deu continuidades às suas ações judiciais com o intuito de alcançar a liberdade dos escravos e participou das iniciativas em favor da instrução popular. E nos anos de 1880, desiludido com o Partido Republicano, muito provavelmente, certo de que não seria através das ações daquele determinado grupo que conseguiria conquistar a emancipação total do Brasil, Luiz Gama, aparentemente, muda de estratégia. Foi nos anos finais de sua vida que Gama escreveu mais especificamente acerca de sua crítica ao Elemento Servil no Brasil. Provavelmente, numa tentativa de se manter coerente ao posicionamento que desde os anos 1850 havia explorado, a saber, uma defesa irrestrita das leis Imperiais, Luiz Gama tenha se privado de manifestar qualquer argumento que não seguisse nessa linha. É verdade que os artigos assinados por Luiz Gama nos anos 1880 ainda eram 409 Correio Paulistano, São Paulo, 29 jan. 1867. A Pedido, p. 4. Disponível em: < http://memoria.bn.br/pdf/090972/per090972_1867_03203.pdf >. Acesso em agosto de 2017. 410 Sendo esse recorte entendido como um momento anterior à fundação do Partido Republicano Paulista e, portanto, anterior às divergências políticas entre Luiz Gama e seus companheiros de partido. 112 carregados pelo pano de fundo jurídico, em que o abolicionista chamava atenção para os descumprimentos das regulamentações Imperiais. Mas também é verdade que seu posicionamento foi muito mais no sentido de tentar incutir certa empatia na opinião pública para com os escravos. Nesse sentido, se, em 1869, a questão da escravidão, para Luiz Gama, estava indiscutivelmente relacionado ao Poder Moderador e ao partido conservador, pois nada faziam para resolver o problema do Elemento Servil;411 nos anos 1880 Gama estava mais preocupado em reportar exemplos que demonstrassem a corrupção moral que a escravidão trazia para o Brasil e, assim, demonstrar a urgência em aboli-la. Corrupção essa exposta ora através das denúncias de descumprimentos das legislações Imperiais, ora pelos atos violentos dos escravos contra senhores. Porém, é interessante perceber que mesmo sendo possível verificar alguma mudança de abordagem no que respeita à crítica empreendida por Luiz Gama contra a escravidão no Brasil, é preciso dizer que entre 1850 e 1880 suas convicções não foram abaladas. Desde seus versos em Primeiras Trovas Burlescas de Getulino, o rábula fazia críticas aos juízes que pervertiam suas decisões nos tribunais por colocarem em primeiro plano seus interesses pessoais: Se a justiça, por ter olhos vendados, É vendida, por certos Magistrados, Que o pudor aferrando na gaveta, Sustentam - que o Direito é pura peta412;413 Desde o, que se julgou ser, seu primeiro artigo no jornal, em 1864, Gama havia se atribuído o dever de ajudar os, por ele caracterizados como, “irmãos desvalidos”.414 Luiz Gama, então, no seu otimismo, a despeito de todo o preconceito que nos anos 1850 havia denunciado em suas Primeiras Trovas, acreditava que, instaurada a República e finda a escravidão, todos os homens, independente de cor, seriam cidadãos reconhecidos, “nivelados pelo trabalho, pela honra, pela dignidade, pelo direito, pela liberdade”.415 É possível admitir que Luiz Gama, no auge de suas esperanças mais sinceras, quisesse acreditar que, alcançada a República, não teria mais lugar para a corrupção dos representantes 411 Isso porque havia uma expectativa, por parte daqueles que criticavam a escravidão, de que a discussão em torno do Elemento Servil teria continuidade nos anos que sucederam a Fala do Trono de 1867 e a iniciativa imperial de discutir a questão em 1868, questão repelida pelo Conselho de Estado. 412 mentira 413 “Sortimento de gorras para a gente do grande tom” in: GAMA, Luiz. Com a palavra, Luiz Gama poemas, artigos, cartas, máximas. Apresentação e notas de Lígia Fonseca Ferreira. São Paulo Imprensa Oficial 2011, p. 70. 414 Correio Paulistano, São Paulo, 26 ago. 1864. A Pedido, p. 3. Disponível em: < http://memoria.bn.br/pdf/090972/per090972_1864_02481.pdf >. Acesso em agosto de 2017. 415 TRECHOS DE UMA CARTA. Gazeta da Tarde, Rio de Janeiro, 28 dez. 1880. Noticiário, p.1. 113 do Governo, visto que, ao longo de seus escritos, deixava claro que, para ele, a corrupção no Brasil era resultado da instituição servil que assolava o país. Como justificativa para essa interpretação, podemos citar, por exemplo, a crítica de Luiz Gama acerca da Lei do Ventre Livre, cuja promulgação, em sua visão, fora uma “imposição egoísta de um partido para lisonjear imposições privadas”. E, nesse sentido, dá-se razão para Gama, igualmente, em acreditar que apenas com a queda do poder Imperial, e com ele toda aquela estrutura política corrompida pelos “interesses servis”, é que se poderia, finalmente, alcançar a abolição do cativeiro de africanos e seus descendentes no Brasil. Guardadas as, possíveis, discordâncias acerca dos argumentos abolicionistas veiculados nos anos 1880, Gama se manteve íntegro até o fim da vida à causa dos “desvalidos”. Por mais que proclamasse ter pouco para viver, como asseverou na carta biográfica ao amigo Lúcio de Mendonça e,416 em outra carta, ao filho, não deixou de contribuir em dinheiro para a libertação de escravos. E terminou seus dias, mesmo doente, trabalhando “em prol dessa raça desgraçada”.417 416 GAMA, Luiz. Carta a Lúcio de Mendonça, 25/07/1880 in GAMA, Luiz. Com a palavra, Luiz Gama poemas, artigos, cartas, máximas. Apresentação e notas de Lígia Fonseca Ferreira. São Paulo Imprensa Oficial 2011; “Carta ao filho, Benedito Graco Pinto da Gama, 23 set. 1870. in GAMA, Luiz. op. cit. 417 Gazeta da Tarde, Rio de Janeiro, 13 dez. 1880. Noticiário, p. 2. 114 FONTES E REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS 1. Fontes a. Almanaques Almanaque Literário de São Paulo para o ano de 1881. São Paulo: Tipografia da “Província”, 1880. b. Periódicos Correio nacional, Rio de Janeiro: 1869. Correio Paulistano, São Paulo: anos 1867 – 1881. Diabo Coxo. Redigido por Luiz Gama; ilustrado por Ângelo Agostini São Paulo, 1864 – 1865. Diário de São Paulo, São Paulo: anos 1865 – 1883. Gazeta da Tarde, Rio de Janeiro: anos 1883 – 1888. O Polichinello, São Paulo: 1876. O Ypiranga, São Paulo: 1869. Radical Paulistano, São Paulo: 1869. c. Impressas 115 COLEÇÃO DAS LEIS DO IMPÉRIO DO BRASIL, 1815 COLEÇÃO DAS LEIS DO IMPÉRIO DO BRASIL, 1817 COLEÇÃO DAS LEIS DO IMPÉRIO DO BRASIL, 1824 COLEÇÃO DAS LEIS DO IMPÉRIO DO BRASIL, 1826 COLEÇÃO DAS LEIS DO IMPÉRIO DO BRASIL, 1831 COLEÇÃO DAS LEIS DO IMPÉRIO DO BRASIL, 1835 COLEÇÃO DAS LEIS DO IMPÉRIO DO BRASIL, 1846 Legislação disponível em: < http://www2.camara.leg.br/atividade- legislativa/legislacao/publicacoes/doimperio> Acesso em: agosto de 2017 GAMA, Luiz. Primeiras trovas burlescas & outros poemas Luiz Gama; edição preparada por Ligia Fonseca Ferreira. São Paulo Martins Fontes 2000. GAMA, Luiz. Com a palavra, Luiz Gama poemas, artigos, cartas, máximas. Apresentação e notas de Lígia Fonseca Ferreira. São Paulo Imprensa Oficial 2011. NOGUEIRA, Octaciano. Coleção Constituições brasileiras – 1824, v. 1. 3. ed. – Brasília: Senado Federal, Subsecretaria de Edições Técnicas, 2012. POMPEIA, Raul. Obras. Organização de Afrânio Coutinho e assistência de Eduardo de Faria Coutinho. Rio de Janeiro MEC, FENAME, Oficina Literária Afrânio Coutinho Editora Civilização Brasileira 1981-<1983>. Volume 2. ROMERO, Silvio. História da Literatura Brasileira. Tomo segundo. Rio de Janeiro: H. Garnier, Livreiro – Editor, 1903. SENADO FEDERAL. A abolição no parlamento: 65 anos de lutas (1823-1888), Brasília: Senado Federal, 2012, 2v. 2. Bibliografia ALENCASTRO, Luiz F.; NOVAIS Fernando A. (orgs.). História da vida privada no Brasil. v. 2. – São Paulo: Companhia das Letras, 1997 ALENCASTRO, Luiz Felipe de. O trato dos viventes: formação do Brasil no Atlântico Sul, séculos XVI e XVII. São Paulo: Companhia das Letras, 2000. ALMEIDA, José Ricardo P. de. História da Instrução Pública no Brasil, 1500 a 1889. Tradução Antonio Chizzotti – São Paulo: EDUC, 1989 116 ALONSO, Angela. Flores, votos e balas: o movimento abolicionista brasileiro (1868-1888). 1ª Ed. São Paulo: Companhia das Letras. 2015. ARAÚJO, Mariele S. Luiza Mahim – uma “princeza” negra na Bahia dos anos 30: discursos de cultura e raça no romance histórico de Pedro Calmon, Malês – A insurreição das Senzalas (1933). 2003. Monografia (Especialização em História Social e Educação) – Universidade Católica do Salvador, Salvador, 2003. AZEVEDO, Elciene. Orfeu de Carapinha. A trajetória de Luiz Gama na Imperial cidade de São Paulo. Campinas, SP: Editora da Unicamp, 1999. ___________. O direito dos escravos: lutas jurídicas e abolicionismo na província de São Paulo. Campinas: Ed. da UNICAMP, 2010. AZEVEDO, Celia M. M. de. Onda negra, medo branco: o negro no imaginário das elites, século XIX. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1987. ___________. Abolicionismo. Estados Unidos e Brasil, uma história comparada (século XIX). São Paulo: Annablume, 2003. ___________. Maçonaria, anti-racismo e cidadania: uma história de lutas e debates transnacionais. – São Paulo: Annablume, 2010 ___________. Etíope resgatado: abolicionismo e suas conexões internacionais – São Paulo: Annablume, 2016. BARATA, Alexandre Mansur. Luzes e sombras: A ação da Maçonaria brasileira (1870- 1910). – Campinas, SP: Editora da Unicamp, Centro de Memória – Unicamp, 1999, pp. 138- 139. BORON, Atilio. A. “Alexis de Tocqueville, a democracia e o estatismo da sociedade burguesa”. In: _____. Estado, capitalismo e democracia na América Latina. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1994. BRETAS, Marcos Luiz; ROSEMBERG, André. A história da polícia no Brasil: balanço e perspectivas. Topoi, Rio de Janeiro, v. 14, n. 26, p. 162-173, 2013. CALMON, Pedro. Malês, a insurreição das senzalas. 2. ed. Salvador: Assembleia Legislativa do Estado da Bahia; Academia de Letras da Bahia, 2002. CARVALHO. José Murilo de. A construção da ordem: a elite política imperial. Teatro das Sombras: a política imperial. 4ª ed. – Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2008. 117 CASTRO, Hileia Araujo de Castro. Esaú e Jacó ou Luiz Gama e André Rebouças: um estudo sobre a negritude no Brasil imperial. 1999. 171 f. Dissertação (Mestrado em História) – Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas, Universidade de São Paulo, São Paulo. CASTILHO, Celso Thomas & MACHADO, Maria Helena P.T. (orgs.). Tornando-se livre: Agentes históricos e lutas sociais no processo de abolição. São Paulo, Editora da Universidade de São Paulo, 2015. CHALHOUB, Sidney. Visões da liberdade: uma história das últimas décadas da escravidão na Corte. São Paulo: Companhia das Letras, 1990. CONRAD, Robert E. Tumbeiros. O tráfico de escravos para o Brasil. São Paulo: Brasiliense, 1985 COSTA, Emilia V. da. A abolição. São Paulo: Global Ed., 1982. ___________. Da senzala à colônia. 5ª Ed. – São Paulo: Editora UNESP, 2010. CUNHA, Luiz Antônio. O ensino de ofícios artesanais e manufatureiros no Brasil escravocrata – 2ed. – São Paulo: Editora UNEP, 2005. CUNHA, Manuela Carneiro da. Negros estrangeiros: os escravos libertos e sua volta à África. São Paulo: Brasiliense, 1985. DAVIS, David Brion. O problema da escravidão na cultura ocidental. Tradução de Wanda Caldeira Brant - Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2001. 118 DRESCHER, Seymour. Abolição: uma história da escravidão e do antiescravismo; tradução Antonio Penalves Rocha. São Paulo: Ed. UNESP, 2011. FERREIRA, Ligia Fonseca. Luiz Gama (1830-1882): étude sur la vie et l’oeuvre d’un noir citoyen, poète et militant de la cause antiesclavagiste au Brésil. 2001. Tese (Doutorado em Estudos portugueses e brasileiros) - Paris: Université Paris III – Sorbonne. ___________. Luiz Gama: um abolicionista leitor de Renan. Estudos Avançados (USP. Impresso), v. 21, p. 271-288, 2007. ___________. Luiz Gama por Luiz Gama: carta a Lúcio de Mendonça. Teresa - Revista de Literatura Brasileira da USP, São Paulo, v. 8/9, p. 300-321, 2008. ______________. Ethos, poética e política nos escritos de Luiz Gama. Revista Crioula (USP), v. 1, p. 1-20, 2012. ______________. O sonho sublime de um ex-escravo. Revista de História (Rio de Janeiro), v. 9, p. 66-68, 2013. FERREIRA, Ricardo Alexandre. Crimes em comum: Escravidão e liberdade sob a pena do Estado imperial brasileiro (1830-1888). São Paulo: Editora UNESP, 2011. ______________. “A párabola do bom senhor: escravidão, fé e martírio”. In: Harriet Beecher Stowe. A Cabana do Pai Tomás. 1ed. Barueri: Manole, 2016, v. 1, p. 5-25. FLORENTINO, Manolo. Em costas negras: uma história do tráfico de escravos entre a África e o Rio de Janeiro (séculos XVIII e XIX) – São Paulo: Companhia das Letras, 1997 GOMES, Flávio dos Santos. A hidra e os pântanos: mocambos, quilombos e comunidades de fugitivos no Brasil (séculos XVII-XIX). São Paulo: Ed. UNESP: Ed. Polis, 2005. GONÇALVES, Aline. N. S. Luiza Mahin: uma rainha africana no Brasil. 1. ed. Rio de Janeiro: CEAP, 2011. GONÇALVES, Ana Maria. Um defeito de cor (romance). Rio de Janeiro: Record, 2006. GRINBERG, Keila. Liberata: a lei da ambigüidade: as ações de liberdade da Corte de Apelação do Rio de Janeiro no século XIX. Rio de Janeiro: Relume-Dumará, 1994. ___________. O fiador dos brasileiros :cidadania, escravidão e direito civil no tempo de Antonio Pereira Rebouças. – Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2002. ___________; SALLES, Ricardo. (orgs.). O Brasil Imperial, volume II: 1831-1870. – Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2009. GRINBERG, Keila; SALLES, Ricardo. (orgs.). O Brasil Imperial, volume III: 1870-1889. – Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2009. 119 HOLANDA, Sérgio Buarque de. (Dir.). História geral da civilização brasileira; t. 2; v.5. O Brasil Monárquico: reações e transações. Por Francisco Iglésias; introdução geral de Sérgio Buarque de Holanda. – 8ª ed. – Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 2004. ___________. (Dir.). História geral da civilização brasileira; t. 2; v. 7. O Brasil monárquico: do Império à República. por Sérgio Buarque de Holanda; introdução geral de Sérgio Buarque de Holanda. – 7ª ed. – Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 2005. KARASCH, Mary C. A vida dos escravos no Rio de Janeiro (1805-1850). São Paulo: Companhia das Letras, 2000. LEWKOWICZ, Ida. Herança e relações familiares: os pretos forros nas Minas Gerais do século XVIII. Revista Brasileira de História. São Paulo, 9(17), pp. 101-114, setembro de 1988/ fevereiro de 1989. MACHADO, Maria Helena. O plano e o pânico: os movimentos sociais na década da Abolição. São Paulo: EDUSP, 1994. MALHEIRO, Agostinho Marques Perdigão, A escravidão no Brasil: ensaio histórico, jurídico, social; introdução de Edison Carneiro. - Petrópolis: Vozes, 1976. MAMIGONIAN, Beatriz G. Africanos livres: a abolição do tráfico de escravos no Brasil. 1ª Ed. São Paulo: Companhia das Letras, 2017. MATTOS, Hebe M. Das cores do silêncio: os significados da liberdade no sudeste escravista. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1998. MATTOSO, Kátia de Queirós. Ser escravo no Brasil; tradução: James Amado. - São Paulo: Brasiliense, 1982 MENNUCCI, Sud. O precursor do abolicionismo no Brasil. Luiz Gama. São Paulo: Nacional, 1938. Disponível em: < http://www.brasiliana.com.br/obras/o-precursor-do-abolicionismo-no- brasil-luis-gama > acesso em agosto de 2017. OLIVEIRA, Maria Inês Cortês de. O liberto: o seu mundo e os outros. São Paulo: Corrupio, 1988. OLIVEIRA, Silvio R. S. Gamacopéia: ficções sobre o poeta Luiz Gama. 2004. 255 f. Tese (Doutorado em Teoria e História Literária) - Instituto de Estudos da Linguagem, Universidade Estadual de Campinas, Campinas. PAIVA, Eduardo França. Escravos e libertos nas Minas Gerais do século XVIII: estratégias de resistência através dos testamentos. São Paulo: Annablume, 1995. PENA, Eduardo S. Pajens da cada imperial – jurisconsultos, escravidão e a lei de 1871. Campinas, SP: Editora da UNICAMP, Centro de Pesquisa em História Social da Cultura, 2001. 120 PIROLA, Ricardo Figueiredo. Escravos e rebeldes nos tribunais do Império: uma história social da lei de 10 de junho de 1835. Rio de Janeiro: Arquivo Nacional, 2015. REIS, João José. Rebelião escrava no Brasil: a história do levante dos malês em 1835. São Paulo: Companhia das Letras, 2003. RUSSELL-WOOD, A. J. R. Escravos e libertos no Brasil colonial. – Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2005. SANTOS, José Maria dos. Os Republicanos paulistas e a abolição. São Paulo: Livraria Martins, 1942 SCHWARTZ, Lília Moritz. Retrato em branco e negro: jornais, escravos e cidadãos em São Paulo no final do século XIX. São Paulo: Companhia das Letras, 1987. ___________.; GOMES, Flávio dos Santos. (org.). Dicionário da Escravidão e Liberdade. São Paulo: Companhia das Letras, 2018. SILVA, J. Romão da. Luiz Gama e suas poesias satíricas. Rio de Janeiro: Casa do Estudante, 1954. SODRÉ, Nelson Werneck. História da Imprensa no Brasil. 2ªed. Rio de Janeiro, Edições Graal, 1977. STUMPF, Lúcia Klück; VELLOZO, Júlio César de Oliveira. "Um retumbante Orfeu de Carapinha" no centro de São Paulo: a luta pela construção do monumento a Luiz Gama. Estud. av., São Paulo, v. 32, n. 92, p.167-191 THOMPSON, Edward P. A formação da classe operária inglesa. (3 volumes). Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1987. ___________. Senhores e caçadores: a origem da Lei Negra. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1987. ___________. Costumes em comum. São Paulo: Companhia das Letras, 1998. VAMPRÉ, Spencer. Memórias para a história da Academia de São Paulo. São Paulo: Saraiva, 1924. 121 ANEXOS 122 1. ENSAIO BIOGRÁFICO DE LUIZ GAMA POR LÚCIO DE MENDONÇA418 Os republicanos brasileiros, a toda a hora abocanhados pela recordação injuriosa de meia dúzia de apostasias, das que negrejam na crônica de todos os partidos, se quiserem com um nome só, que é um alto exemplo de honrada perseverança, tapar a boca aos detratores, podia lançar-lhes o belo e puro nome que coroa esta página. Quantos outros iguais oferecem porventura, desde o começo de sua existência, os nossos velhos partidos monárquicos? Faz-se em duas palavras o elogio deste homem verdadeiramente grande, grande neste tempo em que só o podem ser os amigos da humanidade; nascido e criado escravo até a primeira juventude, tem depois alcançado a liberdade a mais de quinhentos escravos! A nobre província de S. Paulo, que hoje o estima entre os seus melhores cidadãos, e que ele presa com o entusiasmo que lhe inspiram todas as grandezas democráticas, presumo que há de ser grato ler, em um livro que é particularmente seu, a biografia, já hoje gloriosa, deste bom republicano. Se chegar a cumprir-se, como eu espero e desejo, o seu elevado destino, possam ser listas linhas obscuras, fiel subsidio para cronistas de melhores dias. Nasceu Luiz Gonzaga Pinto da Gama a cidade de S. Salvador da Bahia, a rua do Bangla, em 21 de junho de 1830, pelas 7 horas da manhã; e foi batizado, oito anos depois, na igreja matriz do Sacramento, da cidade de Itaparica. É filho natural de uma negra, africana livre, da costa de Mina, da nação Nagô, de nome Luiza Mahin, pagã; recusou esta sempre batizar-se e de modo algum converter-se ao cristianismo. Era mulher baixa de estatura, magra, bonita, de um preto retinto e sem lustro; tinha os dentes alvíssimos; era imperiosa, de gênio violento, insofrida e vingativa; de .....olhos negros, altivos, ....................................... No gesto grave e sombria Era quitandeira, muito laboriosa. Mais de uma vez, na Bahia, foi presa, por suspeita de envolver-se em planos de insurreições de escravos que não tiveram efeito. Em 1837, depois da revolução do dr. Sabino, naquela província, veio ao Rio de Janeiro, e nunca mais voltou. Procurou-a, sem que a pudesse encontrar; em 1862 soube, por uns pretos minas, que a conheciam e dela dera sinais certos, que, apanhada com malungos desordeiros, em uma casa de 418 Esse artigo assinado por Lúcio de Mendonça pode ser lido em: MENDONÇA, Lúcio de. “Luiz Gama”. Gazeta da Tarde, Rio de Janeiro, 15 dez. 1880. Folhetim, pp. 1-2; MENDONÇA, Lúcio de. “Luiz Gama”. In: Almanaque Literário de São Paulo para o ano de 1881. São Paulo: Tipografia da “Província”, 1880, pp. 50-62 e MENDONÇA, Lúcio de. “Luiz Gama”. In: GAMA, Luiz. Com a palavra, Luiz Gama poemas, artigos, cartas, máximas. Apresentação e notas de Lígia Fonseca Ferreira. São Paulo Imprensa Oficial 2011, pp. 263-270. 123 dar fortuna, em 1838, fora posta em prisão, e que tanto ela como os companheiros desapareceram. Era opinião dos informantes que os amotinadores houvessem sido deportados pelo governo, que nesse tempo tratava rigorosamente os africanos livres, tidos como provocadores. Nada mais, até hoje, pôde Luiz alcançar a respeito de sua mãe. Naquele mesmo ano de 1864, voltando a S. Paulo, e estando em comissão do governo, na então vila de Caçapava, consagrou à mãe perdida os saudosos versos que se leem, como nota de sentimentalismo dissonante, no risonho livro das Trovas Burlescas, que deu a lume com o pseudônimo de Getulino. Vê-se que é hereditário em Luiz Gama o profundo sentimento de insurreição e liberdade. Abençoado sejas, nobre ventre africano, que deste ao mundo um filho predestinado, em quem transfundiste, com o teu sangue selvagem, a energia indômita que havia de libertar centenas de cativos! O pai de Luiz – outra analogia deste com Spartacus – era nobre, fidalgo, de uma das principais famílias baianas, de origem portuguesa. Foi rico, e, nesse tempo, extremoso para o filho; criou-o nos braços. Foi revolucionário em 1837. Era apaixonado pela pesca e pela caça; gostava dos bons cavalos; jogava bem as armar, e melhor as cartas; comprazia-se em folguedos e orgias; esbanjou uma boa herança, havida de uma tia em 1836. Reduzido a pobreza extrema, em 10 de novembro de 1840, em companhia de Luiz Candido Quintella, seu amigo inseparável, que vivia dos proventos de uma casa de tavolagem na Bahia, vendeu o filho como seu escravo, a bordo do patacho Saraiva! Remetido, dias depois para o Rio de Janeiro, no mesmo navio, que partiu carregado de escravos, foi Luiz, com muitos outros, para a casa de um cereeiro português, de nome Vieira, estabelecido com loja de velas a Rua da Candelaria, esquina da do Sabão. Era um negociante de estatura baixa, circunspecto e enérgico, que recebia escravos da Bahia à comissão. Tinha, além de um filho peralta que estudava em colégio, umas filhas já crescidas, muito compassivas e meigas; a senhora de Vieira era uma perfeita matrona, cheia de piedade. Tinha então Luiz 10 anos. Todas as mulheres da casa se lhe afeiçoaram imediatamente. Eram 5 horas da tarde quando lhes entrou em casa; madaram-o lavar; vestiram-lhe uma camisa e uma saia da filha mais nova, deram-lhe de ceiar, e mandaram-o dormir em boa cama. Ainda hoje Luiz Gama, que é um dos melhores corações que eu conheço. Lembra-se comovido daquela boa gente que o recebeu com tanto afago. Mas foi por poucos dias; dali saiu logo depois, chorando amargamente e deixando as suas boas amigas chorosas também de o verem ir. 124 Era em 1840; foi vendido, naquela casa, a negociante e contrabandista alferes Antonio Pereira Cardoso, o mesmo que, há oito ou dez anos, sendo fazendeiro no município de Lorena, da província de S. Paulo, no ato de o prenderem, por haver matado a fome alguns dos escravos em cárcere privado, já velho de setenta anos, suicidou-se, atravessando o crânio com uma bala de pistola. A alferes Cardoso comprou Luiz em um lote de cento e tantos escravos, e levou-os todos, pois tal era o seu comercio, a vender para a província de S. Paulo. A pé, com 10 anos de idade, fez Luiz toda a viagem de Santos até Campinas. Escravo, saído de uma infância trágica, descalço, desamparado, faminto, subiu entre um bando de escravos aquela áspera serra de Cubatão, por onde, anos depois, não há muitos anos, lembra- me que passamos juntos os dois, eu estudante voltava para as aulas, ele advogado que voltava da Corte, abastado, jovial e forte, com um cesto de frutas para a família, repotreado no assento macio de um dos ricos vagões da companhia inglesa. Foi escolhido por muitos compradores, na capital paulista, em Jundiai, em Campinas, e por todos rejeitado, como se rejeitam as coisas ruins, pela circunstância de ser baiano. O último que o enjeitou, foi o responsável ancião Francisco Egydio de Souza Aranha, pai do sr. conde de Três Rios. Depois de o haver escolhido, afagou-o, dizendo: -Está um bom pajem para os meus pequenos. E perguntou-lhe: -Onde nasceste? -Na Bahia. -Baiano!... exclamou, admirado, o excelente velho. Nem de graça! Já não foi por bom que o venderam tão pequeno! O sr. conde de Três Rios, que esteve a ponto de ter Luiz para pajem, tem-no hoje como um de seus amigos mais considerados. Enjeitado como refugo, com outro escravo baiano, de nome José, sapateiro, voltou para a cara de Cardoso, na cidade de S. Paulo, a rua do Comércio n.2, sobrado, perto da igreja da Misericórdia. Ali aprendeu a copeiro, a sapateiro, a lavar, a engomar, e a costura. Em 1847, tinha Luiz 17 anos, quando para a casa de Cardoso veio morar como hóspede, para estudar humanidades, o menino Antonio Rodrigues do Prado Junior, hoje doutor em direito, o qual já foi magistrado de muito mérito, e reside agora em Mogy-guassú, onde é fazendeiro. 125 Travaram amizade estreita, de irmãos, e com o estudante entrou Luiz a aprender as primeiras letras. Em 1848, sabendo ler, escrever e contar alguma coisa, e havendo obtido ardilosa e secretamente provas inconcussas de sua liberdade, retirou-se, fugido, da casa do alferes Cardoso, que aliás o tinha na maior estuma, e foi assentar praça. Serviu como soldado até 1854, seis anos; chegou a cabo de esquadra graduado, e teve baixa do serviço, depois de responder a conselho, por atos de suposta insubordinação, quando limitara-se a ameaçar um oficial insolente, que o insultara, e que soube conter-se. Esteve preso o cabo de esquadra Luiz Gama, de 1º de julho a 9 de agosto, trinta e nove dias, que passou em leitura constante. Durante o seu tempo de praça, nas horas vagas, fez-se copista; escrevia para o cartório do escrivão major Benedicto Antonio Coelho Netto, que se tornou seu amigo; e daí, sem dúvida, lhe nasceu a inclinação para o foro. Serviu também como amanuense no gabinete do conselheiro Francisco Maria de Souza Furtado de Mendonça, que por longos anos exerceu na capital de S. Paulo altos cargos administrativos, e é ainda hoje catedrático na Faculdade de Direito. Luiz foi sempre seu ordenança, e pelo seu vivo talento, pela sua atividade e bom proceder, mereceu-lhe toda a estima e proteção, e dele recebeu proveitosas lições de letras. Em 1856, depois haver servido com escrivão perante diversas autoridades policiais, foi nomeado amanuense da secretaria de polícia, onde esteve até 1868, época em que, por turbulento e sedicioso, foi demitido, a bem do serviço público, pela reação conservadora. A portaria da demissão foi lavrada pelo dr. Antonio Manoel dos Reis, seu dedicado amigo e ainda mais dedicado católico, então secretário da polícia, e assinada pelo dr. Vicente Ferreira da Silva Bueno, que por este e semelhantes atos, foi escolhido desembargador da Relação da Corte. A turbulência de Luiz Gama consistia em ser liberal exaltado e militante, em promover pelos meios judiciais a liberdade de pessoas livres reduzidas a criminoso cativeiro, e auxiliar alforrias de escravos, na medida de suas posses, e, às vezes, além delas, na medida de sua dedicação a causa santa dos oprimidos. Nesse ano de 1868, conheci Luiz Gama. Vi-o, se bem me lembra, a primeira vez, na tipografia do diário liberal O Ypiranga, de propriedade e redação de meu irmão Salvador de Mendonça e do dr. José Maria de Andrade. Ali era eu revisor de provas, e empregava os ocios do estudo em aprender a arte-tipográfica; também Luiz Gama era aprendiz de compositor, praticante do foro, e colaborador da folha, onde assinava com pseudônimo Afro. No ano seguinte, lembro-me dele entre os redatores do Radical Paulistano, que eram Rui Barbosa, Bernardo Pamplona de Menezes, o dr. Eloy Ottoni e outros, e entre os oradores 126 do Club Radical. Foi aplaudidíssima uma conferência sua no salão Joaquim Elias, a rua Nova de S. José. Os radicais foram, nos nossos últimos anos políticos, os precursores dos republicanos. A exceção de meia dúzia de estacionário ou retrógrados, entre os quais Silveira Martins, Silveira de Motta e Rui Barbosa em fins de 1879 e começo de 1871, os radicais declararam abertamente pela república. Por esse tempo, ou aproximadamente, fazia Luiz Gama a todo transe a propaganda abolicionista; a sua advocacia era o terror dos senhores de escravos. Sei que teve a cabeça posta a prêmio por fazendeiros de S. Paulo, e tempo houve em que não poderia ir da capital a Campinas sem risco de vida. Há 8 ou 10 anos, foi Luiz Gama à barra do júri de S. Paulo, processado por crime de injurias contra uma autoridade judiciaria; teve de referir grande parte de sua vida passada; a sala do tribuna, apinhada de assistentes, onde estava quase toda a mocidade da Academia de Direito, a todo o momento cobria de aplausos a voz do réu, a despeito da campanha do presidente; o júri o absolveu por voto unanime, e foi Luiz levado em triunfo até a casa. Como defensor de escravos perante o júri, foi mais de uma vez chamado à ordem pelo presidente do tribunal, por pregar francamente o direito de insurreição: - Todo escravo que mata o senhor, afirmava Luiz Gama, seja em que circunstâncias for, mata em legitima defesa! Em uma causa celebre no foro de Santos, em que o advogado contrário era ninguém menos que o seu grande amigo José Bonifácio, ganhou Luiz Gama a liberdade de mais de cem escravos. Recordo-me, como testemunha presencial, de outra solene ocasião em que o nobre vulto de Luiz Gama destacou-se a toda a luz. Estava reunido em S. Paulo, num palacete de rua de Miguel Carlos, em 2 de julho de 1873, o primeiro congresso republicano da província, presidido pelo austero cidadão dr. Americo Braziliense. Era uma assembleia impotente. Verificados os poderes na sessão da véspera, estavam presentes vinte e sete representantes de municípios – Agricultores, advogados, jornalistas, um engenheiro, todos os membros do congresso, moços pela maior parte, compenetrados da alta significação do mandato que cumpriam, tinham na sociedade do discurso e na gravidade do aspecto, a circunspecção de um senado romano. Lidas, discutidas e aprovados as bases oficiais pela Convenção de Itu para a constituição do congresso, e depois de outros trabalhos, foi por alguns representantes, submetido ao congresso, e afinal aprovado, um manifesto à província relativamente à questão do estado servil. No manifesto, em que se atendia mais às conveniências políticas do partido do que a pureza de 127 seus princípios, anunciava-se que, se tal problema fosse entregue à deliberação dos republicanos, estes resolveriam que cada província da União Brasileira realizaria a reforma de acordo com seus interesses peculiares mais ou menos lentamente, conforme a maior ou menor facilidade na substituição do trabalho escravo pelo trabalho livre; e que, em respeito aos direitos adquiridos e para conciliar a propriedade de fato com princípio da liberdade, a reforma se faria tendo por base a indenização e o resgate. Posto em discussão o manifesto, tomou a palavra Luiz Gama, representante do município de S. José dos Campos. Protestou contra as ideias do manifesto, contra as concessões que nele se faziam à opressão e ao crime; propugnava ousadamente pela abolição completa, imediata e incondicional do elemento servil. Crescia na tribuna o vulto do orador; o gesto, a princípio frouxo, alargava-se, acentuava- se, enérgico e inspirado; estava quebrada a calma serenidade da sessão; os representantes, quase todos de pé, mas dominados e mudos, ouviam a palavra fogosa, vingadora e formidável do tribuno negro. Não era já um homem, era um princípio que falava... digo mal, não era um princípio, era uma paixão absoluta, era a paixão da igualdade que rugia! Ali estava na tribuna, envergonhando os tímidos, verberando os prudentes, ali estava, na rude explosão da natureza primitiva, o neto d’África, o filho de Luiza Mahin! A sua opinião caiu vencida e única; mas não houve também ali um coração que se não alvoroçasse de entusiasmo pelo defensor dos escravos. Dir-te-hei sempre, meu nobre amigo, que não estas isolado, no partido republicano, na absoluta afirmação da liberdade humana. Também como tu, eu proclamo que não há condições para a reivindicação deste imortal princípio, que não há contra ele nem direitos nem fatos que se respeitem. Pereat mundus, fiat justitia! E é ignorar essencialmente a natureza das leis da instituição, querer que elas respeitem direitos adquiridos. Não é para Victor Hugo nem para Castellar que apelamos: é para Savigny, o histórico. Aí está, em meia dúzia de pálidos traços, o perfil do grande homem que se chama Luiz Gama. Filho de uma província que, com razão ou sem ela, não é simpática aos brasileiros do sul; emancipador tenaz, violento, inconciliável, numa província inundada de escravos; sem outra família a não ser a que constituiu por si; sem outros elementos que não fossem o seu forte caráter e o seu grande talento; atirado só a todas as vicissitudes do destino, ignorante, pobre, perseguido, vendido como escravo por seu próprio pai, enjeitado pelos próprios compradores de negros, Luiz Gama é hoje em S. Paulo um advogado de muito credito e um cidadão estimadíssimo. É mais do que isso: é um nome de que se ufana a democracia brasileira. 128 O seu passado é, como se viu, dos mais interessantes; o seu futuro, se se der em vida sua o grande momento político desta terra, há de ter-se – sem a menor dúvida o vaticino – nas laudas da nossa história. Seja como for, e ainda que mais não faça, é já um nome que merece um lugar, na gratidão humana, entre Spastacus e John Brown. Lúcio de Mendonça. S. Gonçalo, Minas, 21 de agosto de 1880. 129 1. CARTA DE LUIZ GAMA A LÚCIO DE MENDONÇA PUBLICADA EM ARTIGO NO JORNAL O ESTADO DE SÃO PAULO419 TREZE DE MAIO LUIZ GAMA Muitos moços de hoje, já não sentem, nesta data, aquele nobre e saudável entusiasmo que inflamava a juventude de anos atrás. A escravidão que, há 21 anos, ainda nos envergonhava e que deixou na nossa sociedade sulcos infelizmente ainda não dissipados, parece, contudo, às gerações atuais, uma coisa fantástica ou por demais remota, uma lenda de muitos séculos. Por isso os nomes dos heróis do abolicionismo já não soam às multidões como *** de combate ou de triunfo e a sua efigie para muitos é desconhecida. Compete-nos, pois, recordar os grandes batalhadores da causa mais popular do Brasil e dentre eles escolhemos Luiz Gama, cujo retrato estampamos acima. Este negro admirável, que veio da humildade e conseguiu nessa capital uma popularidade ainda não excedida e conquistou a amizade dos principais homens da época, a ponto de se tornar o íntimo de todos os dias de José Bonifácio, o moço, é um modelo de energia e de civismo que bem mereceu a apoteose feita pela cidade de S. Paulo no dia de seu enterro. Se o meio lhe fosse propício, ele teria sido o nosso Booker Washington. Não teve a cultura superior deste, mas chegou a desempenhar brilhante papel na sociedade em que viveu. Quando tanto se tem falado em hermas na praça pública, admira que o seu nome ainda não fosse lembrado. A herma420 de Luiz Gama honraria a cidade de S. Paulo e mostraria à mocidade de agora e do futuro a fisionomia simpática de um dos mais puros e desinteressados *** da abolição. 419 LUIZ GAMA. O Estado de São Paulo, São Paulo, 13 mai. 1909. TREZE DE MAIO, p. 3. Disponível em: < https://acervo.estadao.com.br/pagina/#!/19090513-11111-nac-0003-999-3-not >. Acesso em agosto de 2018. O acesso integral à edição em questão é restrito aos assinantes do Estadão. 420 O busto de Luiz Gama localizado no Largo do Arouche no Centro de São Paulo foi inaugurado em 22 de novembro de 1931. O processo para a construção desse monumento foi objeto de análise no seguinte artigo: STUMPF, Lúcia Klück; VELLOZO, Júlio César de Oliveira. "Um retumbante Orfeu de Carapinha" no centro de São Paulo: a luta pela construção do monumento a Luiz Gama. Estud. av., São Paulo, v. 32, n. 92, p.167- 191, Apr. 2018. Disponível em: . Accesso em outubro de 2018. 130 O documento que em seguida publicanos tem uma eloquência que dispensa comentários. É uma carta dirigida por Luiz Gama ao dr. Lúcio de Mendonça; reproduzindo-a prestamos a melhor homenagem ao seu caráter e à sua memória. Eis a carta:421 “São Paulo, 25 de julho de 1880 Meu caro Lúcio, Recebi o teu cartão com a data de 28 de pretérito. Não me posso negar ao teu pedido, porque antes quero ser acoimado do ridículo, em razão de referir verdades pueris que me dizem respeito, do que vaidoso e fátuo, pelas ocultas, de envergonhado: aí tens os apontamentos que me pedes e que sempre eu os trouxe de memória. Nasci na cidade de S. Salvador, capital da província da Bahia, em um sobrado da rua do Bangla, formando ângulo interno, em a quebrada, lado direito de quem parte do adro da Palma, na Freguesia de Sant'Ana, a 21 de Junho de 1830, por as 7 horas da manhã, e fui batizado 8 anos depois, na igreja matriz do Sacramento, da cidade de Itaparica. Sou filho natural de uma negra, africana livre, da Costa Mina, (Nagô de Nação) de nome Luiza Mahin, pagã, que sempre recusou o batismo e a doutrina cristã. Minha mãe era baixa de estatura, magra, bonita, a cor era de um preto retinto e sem lustro, tinha os dentes alvíssimos como a neve, era muito altiva, geniosa, insofrida e vingativa. Dava-se ao comércio – era quitandeira, muito laboriosa, e mais de uma vez, na Bahia, foi presa como suspeita de envolver-se em planos de insurreições de escravos, que não tiveram efeito. Era dotada de atividade. Em 1837, depois da Revolução do dr. Sabino, na Bahia, veio ela ao Rio de Janeiro, e nunca mais voltou. Procurei-a em 1847, em 1856 e em 1861, na Corte, sem que a pudesse encontrar. Em 1862, soube, por uns pretos minas que conheciam-na e que deram-me sinais certos, que ela, acompanhada com malungos desordeiros, em uma "casa de dar fortuna", em 1838, fora posta em prisão; e que tanto ela como os seus companheiros desapareceram. Era opinião dos meus informantes que esses "amotinadores" fossem mandados pôr fora pelo governo, que, nesse tempo, tratava rigorosamente os africanos livres, tidos como provocadores. Nada mais pude alcançar a respeito dela. Nesse ano, 1861, voltando a S. Paulo, e estando em comissão do governo, na vila de Caçapava, dediquei-lhe os versos que com esta carta envio- te.Meu pai, não ouso afirmar que fosse branco, porque tais afirmativas neste país, constituem grave perigo perante a verdade, no que concerne à melindrosa presunção das cores humanas: era fidalgo; e pertencia a uma das principais famílias da Bahia, de origem portuguesa. 131 Devo poupar à sua infeliz memória uma injúria dolorosa, e o faço ocultando o seu nome. Ele foi rico; e, nesse tempo, muito extremoso para mim: criou-me em seus braços. Foi revolucionário em 1837. Era apaixonado por a diversão da pesca e da caça; muito apreciador de bons cavalos; jogava bem as armas, e muito melhor de baralho, amava as súcias e os divertimentos: esbanjou uma boa herança, obtida de uma tia em 1836; e, reduzido à pobreza extrema, a 10 de Novembro de 1840, em companhia de Luiz Candido Quintela, seu amigo inseparável e hospedeiro, que vivia dos proventos de uma casa de tavolagem na cidade da Bahia, estabelecida em um sobrado de quina, ao largo da praça, vendeu-me, como seu escravo, a bordo do patacho "Saraiva". Remetido para o Rio de Janeiro, nesse mesmo navio, dias depois, que partiu carregado de escravos, fui, com muitos outros, para a casa de um cerieiro português, de nome Vieira, dono de uma loja de velas, à rua da Candelária, canto da do Sabão. Era um negociante de estatura baixa, circunspecto e enérgico, que recebia escravos da Bahia, à comissão. Tinha um filho aperaltado, que estudava em colégio; e creio que três filhas já crescidas, muito bondosas, muito meigas e muito compassivas, principalmente a mais velha. A senhora Vieira era uma perfeita matrona: exemplo de candura e piedade. Tinha eu 10 anos. Ela e as filhas afeiçoaram-se de mim imediatamente. Eram 5 horas da tarde quando entrei em sua casa. Mandaram lavar-me; vestiram-me uma camisa e uma saia da filha mais nova, deram-me de ceiar e mandaram-me dormir com uma mulata de nome Felícia, que era mucama da casa. Sempre que me lembro desta boa senhora e de suas filhas, vêm-me as lágrimas aos olhos, porque tenho saudades do amor e dos cuidados com que me afagaram por alguns dias. Dali saí derramando copioso pranto, e também todas elas, sentidas de me verem partir. Oh! eu tenho lances doridos em minha vida, que valem mais do que as lendas sentidas da vida amargurada dos mártires. Nesta casa, em dezembro de 1840, fui vendido ao negociante e contrabandista alferes Antonio Pereira Cardoso, o mesmo que, há 8 ou 10 anos, sendo fazendeiro no município de Lorena, nesta Província, no ato de o prenderem por ter morto alguns escravos a fome, em cárcere privado, e já com idade maior de 60 a 70 anos, suicidou-se com um tiro de pistola, cuja bala atravessou-lhe o crânio. Este alferes Antonio Pereira Cardoso comprou-me em um lote de cento e tantos escravos; e trouxe-nos a todos, pois era este o seu negócio, para vender nesta Província. Como já disse, tinha eu apenas 10 anos; e, a pé, fiz toda viagem de Santos até Campinas. Fui escolhido por muitos compradores, nesta cidade, em Jundiaí e Campinas; e, por todos repelido, como se repelem coisas ruins, pelo simples fato de ser eu "baiano". 132 Valeu-me a pecha! O último recusante foi o venerando e simpático ancião Francisco Egidio de Souza Aranha, pai do exmo. Conde de Três Rios, meu respeitável amigo. Este, depois de haver-me escolhido, afagando-me disse: - Hás de ser um bom pajem para os meus meninos; dize-me: onde nasceste? - Na Bahia, respondi eu. - Baiano? - exclamou admirado o excelente velho. - Nem de graça o quero. Já não foi por bom que o venderam tão pequeno. Repelido como "refugo", com outro escravo da Bahia, de nome José, sapateiro, voltei para a casa do senhor Cardoso, nesta cidade, à rua do Comércio número 2, sobrado, perto da igreja da Misericórdia. Aí aprendi a copeiro, a sapateiro, a lavar e a engomar roupa e a costura. Em 1847, contava eu 17 anos, quando para a casa do senhor Cardoso veio morar, como hóspede, para estudar humanidades, tendo deixado a cidade de Campinas, onde morava, o menino Antonio Rodrigues do Prado Junior, hoje doutor em direito, ex-magistrado de elevados méritos, e residente em Mogi Guassú, onde hoje é fazendeiro. Fizemos amizade íntima, de irmãos diletos, e ele começou a ensinar-me as primeiras letras. Em 1848, sabendo eu ler e contar alguma cousa, e tendo obtido ardilosa e secretamente provas inconcussas de minha liberdade, retirei-me, fugindo, da casa do alferes Antonio Pereira Cardoso, que aliás votava-me a maior estima, e fui assentar praça. Servi até 1854, seis anos; cheguei a cabo de esquadra graduado, e tive baixa de serviço, depois de responder a conselho, por ato de suposta insubordinação, quando tinha-me limitado a ameaçar um oficial insolente, que me havia insultado e que soube conter-se. Estive, então, preso 39 dias, de 1 de julho a 9 de agosto. Passava os dias lendo e às noites, sofria de insônias; e, de contínuo, tinha diante dos olhos a imagem de minha querida mãe. Uma noite, eram mais de duas horas, eu dormitava; e, em sonho vi que a levavam presa. Pareceu-me ouvi-la distintamente que chamava por mim. Dei um grito, espavorido saltei fora da tarimba; os companheiros alvorotaram-se; corri à grade, enfiei a cabeça pelo xadrez. Era solitário e silencioso e longo e lôbrego o corredor da prisão, mal alumiado pela luz amarelenta de enfumaçada lanterna. 133 Voltei para a minha esteira, narrei a ocorrência aos curiosos colegas; eles narraram-me também fatos semelhantes; eu caí em nostalgia, chorei e dormi. Durante o meu tempo de praça, nas horas vagas, fiz-me copista; escrevia para o escritório do escrivão major Benedito Antonio Coelho Neto, que tornou-se meu amigo; e que hoje, pelo seu merecimento, desempenha o cargo de oficial-maior da Secretaria do Governo; e, como amanuense, no gabinete do exmo. Sr. Conselheiro Francisco Maria de Souza Furtado de Mendonça, que aqui exerceu, por muitos anos, com aplausos e admiração do público em geral, altos cargos na administração, polícia e judicatura, e que é catedrático da Faculdade de Direito, fui eu seu ordenança; por meu caráter, por minha atividade e por meu comportamento, conquistei a sua estima e a sua proteção; e as boas lições de letras e de civismo, que conservo com orgulho. Em 1856, depois de haver servido como escrivão perante diversas autoridades policiais, fui nomeado amanuense da Secretaria de Polícia, onde servi até 1868, época em que "por turbulento e sedicioso" fui demitido a "bem do serviço público", pelos conservadores, que então haviam subido ao poder. A portaria de demissão foi lavrada pelo dr. Antonio Manuel dos Reis, meu particular amigo, então secretário da polícia, e assinada pelo exmo. dr. Vicente Ferreira da Silva Bueno, que, por este e outros atos semelhantes, foi nomeado desembargador da relação da Corte. A turbulência consistia em fazer eu parte do Partido Liberal; e, pela imprensa e pelas urnas, pugnar pela vitória de minhas e suas ideias; e promover processos em favor de pessoas livres criminosamente escravizadas; e auxiliar licitamente, na medida de meus esforços, alforrias de escravos, porque detesto o cativeiro e todos os senhores, principalmente os Reis. Desde que fiz-me soldado, comecei a ser homem; porque até os 10 anos fui criança; dos 10 aos 18, fui soldado. Fiz versos; escrevi para muitos jornais; colaborei em outros literários e políticos, e redigi alguns. Agora chego ao período em que, meu caro Lucio, nos encontramos no Ipiranga, à rua do Carmo, tu, como tipógrafo, poeta, tradutor e folhetinista principiante; eu, como simples aprendiz-compositor, de onde saí para o foro e para a tribuna, onde ganho o pão para mim e para os meus, que são todos os pobres, todos os infelizes; e para os míseros escravos, que, em número superior a 500, tenho arrancado às garras do crime. Eis o que te posso dizer, às pressas, sem importância e sem valor; menos para ti, que me estimas deveras. Teu Luiz”