unesp UNIVERSIDADE ESTADUAL PAULISTA CÂMPUS UNIVERSITÁRIO DE BAURU FACULDADE DE CIÊNCIAS Alice Assis LEITURA, ARGUMENTAÇÃO E ENSINO DE FÍSICA: ANÁLISE D A UTILIZAÇÃO DE UM TEXTO PARADIDÁTICO EM SALA DE AULA Bauru 2005 ALICE ASSIS LEITURA, ARGUMENTAÇÃO E ENSINO DE FÍSICA: ANÁLISE D A UTILIZAÇÃO DE UM TEXTO PARADIDÁTICO EM SALA DE AULA Tese apresentada ao Programa de Pós-Graduação em Educação para a Ciência, da Área de Concentração em Ensino de Ciências, da Faculdade de Ciências da UNESP/Câmpus de Bauru, como requisito à obtenção do título de Doutor em Educação para a Ciência, sob a orientação da Profa. Dra. Odete Pacubi Baierl Teixeira. Bauru 2005 Ficha catalográfica elaborada por DIVISÃO TÉCNICA DE BIBLIOTECA E DOCUMENTAÇÃO UNESP - Bauru Assis, Alice. Leitura, argumentação e ensino de física: análise da utilização de um texto paradidático em sala de aula / Alice Assis. - - Bauru : [s.n.], 2005. 286 f. Orientador: Odete Pacubi Baierl Teixeira. Tese (Doutorado) – Universidade Estadual Paulista. Faculdade de Ciências, 2005. 1. Física – estudo e ensino. 2. Leitura. 3. Textos alternativos. 4. Argumentações discentes e docentes. I – Universidade Estadual Paulista. Faculdade de Ciências. II - Título. AGRADECIMENTOS Gostaria de agradecer primeiramente a Deus pela oportunidade de ter vencido mais essa etapa da minha vida. Meus agradecimentos, pelas considerações relevantes tecidas na qualificação e na defesa, aos membros da Comissão Examinadora: Profa. Dra. Maria Lúcia Vital dos Santos Abib; Prof. Dr. Marcelo Carbone Carneiro; Prof. Dr. Dirceu da Silva; Prof. Dr. Renato Eugenio da Silva Diniz. Manifesto especial gratidão: à Profa. Dra. Odete Pacubi Baierl Teixeira pela orientação e dedicação; ao Prof. Dr. Eder Pires de Camargo pela colaboração e apoio para a realização deste trabalho; ao Prof. Dr. Washington Luiz Pacheco de Carvalho pelas orientações tecidas no ano de 2003; à Profa. Dra. Ana Maria de Andrade Caldeira pela compreensão demonstrada nos momentos de dificuldades; aos meus filhos, Gustavo e Natália, pelo amor e apoio em todos os momentos que precisei; à Adriana Oshiro, pela tradução para o inglês do resumo desta tese; à minha família, por me apoiar sempre. Agradeço ainda aqueles que, direta ou indiretamente contribuíram para a realização deste trabalho de pesquisa. Enfim, à inesquecível Profa. Dra. Aiako Okada (em memória), pelo incentivo inicial que me levou a trilhar este caminho, minha eterna gratidão. ASSIS, A. Leitura, argumentação e ensino de física: análise da utilização de um texto paradidático em sala de aula. 2005. 286f. Tese (Doutorado em Educação para a Ciência, Área de Concentração: Ensino de Ciênicas) – Faculdade de Ciências, Câmpus de Bauru, Universidade Estadual paulista “Júlio de Mesquita Filho”. 2005. RESUMO Esta pesquisa analisou o uso de um texto paradidático, intitulado “Nosso Universo”, em aulas de Física em uma sala de 3ª série de educação para jovens e adultos, com o objetivo de avaliar as relações dialógicas entre professor e alunos mediadas pela utilização do referido texto. Assim, utilizamos como objeto de análise da presente pesquisa o discurso do professor enquanto mediador da interação alunos-texto, o discurso do aluno enquanto participante de um espaço dialógico de ensino-aprendizagem e a interação entre o professor, os alunos e o texto. Para tal, foram elaboradas duas categorias de análise visando a classificação das argumentações discentes e da intervenção docente provenientes desse contexto específico de sala de aula. A partir dessa classificação foi analisada a dinâmica estabelecida no decorrer da atividade enfocando-se a relação triádica professor/texto/aluno. Os resultados desta pesquisa demonstraram que a relação triádica viabilizou que fossem trabalhados muitos conteúdos de forma contextualizada, bem como a interação entre diversos conceitos científicos, o que propiciou a aprendizagem significativa crítica por parte dos alunos. A atividade mediou ainda a articulação entre os aspectos científicos, tecnológicos, ambientais e sociais, oferecendo condições para que o aluno possa atuar de forma crítica e reflexiva em seu meio social. Palavras-chave: Leitura e ensino de Física; textos alternativos; argumentações discentes e docentes. ASSIS, A. Reading, discourse and physics teaching: analysis of using a paradidactical text in classroom. 2005. 286p. Tese (Doutorado em Educação para a Ciência, Área de Concentração: Ensino de Ciênicas) – Faculdade de Ciências, Câmpus de Bauru, Universidade Estadual paulista “Júlio de Mesquita Filho”. ABSTRACT This is a study about a analysis of using a paradidactical text denominated “Our Universe” in Physics classes for young and adults, objecting to evaluate dialogical relations between teachers and students mediated by the text utilization. Thus, the analysis objects are the professor discourse that works as a mediator of student-book interaction, the student discourse while participating of a dialogical teaching-learning space and the interaction among the teacher, the students and the text. Two analysis categories were elaborated objecting to understand the students argumentation characteristics and the teacher intervention that occurs during a class and the dynamic established during the activities (classes) was analysed, focusing the interaction teacher/text/student. The results showed that this interaction possibilities to work many subjects in a contextualized and interacted way and a better critical apprenticeship for students. Scientific, technological, environmental and sociological aspects were articulated, offering conditions for a critical and reflexive actuation of the students in society. Keywords: Physics reading and teaching; alternative texts; students and teacher’s discourse. SUMÁRIO AGRADECIMENTOS 05 RESUMO 06 ABSTRACT 07 LISTA DE ANEXOS 10 INTRODUÇÃO 11 1 O ENSINO DE FÍSICA 17 1.1. Alguns aspectos relacionados ao ensino de Física 17 1.2 Aprendizagem significativa 22 1.2.1 Contextualizando a aprendizagem significativa 23 1.2.2 Enfocando a aprendizagem significativa sobre um referencial crítico 25 1.2.3 A facilitação da aprendizagem significativa crítica em sala de aula: utilização de textos paradidáticos com a mediação do professor 29 2 O PROCESSO DISCURSIVO E A SALA DE AULA 33 2.1 Tecendo algumas considerações sobre o discurso 33 2.2 A prática discursiva em sala de aula 38 2.2.1 A argumentação como um recurso metodológico de mediação 40 2.2.2 Estabelecendo categorias para o processo interativo no contexto de sala de aula 47 3 TEXTO PARADIDÁTICO E ENSINO DE FÍSICA 54 3.1 Algumas considerações sobre a utilização de textos paradidáticos em sala de aula 54 3.2 O uso de textos de história da ciência no ensino de Física 61 3.3 Algumas considerações sobre a estrutura do texto paradidático utilizado em nossa pesquisa 69 4 A PESQUISA 77 4.1 A metodologia 79 4.2 Os sujeitos da pesquisa 81 4.3 Os instrumentos e os procedimentos utilizados para a constituição dos dados 82 4.4 O estabelecimento das categorias como instrumento para a análise dos dados 84 4.4.1 Caracterizando as argumentações discentes 85 4.4.2 Caracterizando as argumentações docentes 86 5 ANÁLISE DOS DADOS 88 5.1 Análise dos episódios de ensino referentes aos capítulos 89 5.1.1 Capítulo I 90 5.1.2 Capítulo IV 136 5.1.3 Capítulo V 174 5.2. Sistematização da análise dos episódios segundo as características das argumentações discentes e docente 196 5.2.1. Características das argumentações discentes 196 5.2.2. Características das argumentações docentes 200 5.3 Algumas considerações a respeito das relações que permearam as argumentações discentes e docente 204 5.4 Análise da avaliação dos alunos sobre a atividade 209 5.5 Análise das avaliações dos alunos 216 5.5.1 Análise das questões relativas ao Capítulo I 216 5.5.2 Análise das questões relativas ao Capítulo IV 223 5.5.3 Análise das questões relativas ao Capítulo V 225 5.5.4 Análise de uma questão da avaliação final relativa ao Capítulo V 229 6 ANÁLISE E DISCUSSÃO DOS DADOS 232 7 CONSIDERAÇÕES FINAIS 241 REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁGICAS 247 LISTA DE ANEXOS 1 TEXTO “NOSSO UNIVERSO” 1.1 Anexo I: Capítulo I: O SONHO DE ÍCARO 255 1.2 Anexo II: Capítulo II: O PESO DO CONHECIMENTO 262 1.3 Anexo III: Capítulo III: UNIVERSO É ASSIM... 267 1.4 Anexo IV: Capítulo IV: O SANTO INQUÉRITO 272 1.5 Anexo V: Capítulo V: O GRANDE “REI SOL” 282 11 INTRODUÇÃO O ensino de física tem se caracterizado por resoluções automáticas de equações desprovidas de significado conceitual para o estudante (ASSIS e TEIXEIRA, 2003a), dificultando o entendimento dos fenômenos físicos subjacentes. Um fato surpreendente foi constatado certa vez, quando estava ministrando uma aula sobre conteúdos relacionados à mecânica e coloquei a seguinte pergunta para os alunos: “Vocês acham importante estudar energia?”. Parte dos alunos respondeu que não, argumentando: “não tem nada a ver com a minha vida”, enquanto os outros alunos julgaram ser relevante em virtude de “cair no vestibular” (BENJAMIN, 2000, BENJAMIN e TEIXEIRA, 2001). Essas respostas me surpreenderam e me fizeram questionar a forma como são trabalhados normalmente os conteúdos relacionados à Física, sendo os mesmos reduzidos a um enfoque puramente algébrico, dificultando a compreensão de importantes conceitos no campo da Física. Reafirmando a consideração tecida nos Parâmetros Curriculares Nacionais para o Ensino Médio (BRASIL, 2000) no que tange aos conhecimentos de Física: é preciso rediscutir qual Física ensinar para possibilitar uma melhor compreensão do mundo e uma formação para a cidadania mais adequada (p.23), pois, espera-se que o ensino de Física, na escola média, contribua para a formação de uma cultura científica efetiva, que permita ao indivíduo a interpretação dos fatos, fenômenos e processos naturais, situando e dimensionando a interação do ser humano com a natureza como parte da própria natureza em transformação (p. 22). Mediante essa premissa, busquei uma forma de trabalhar o conteúdo energia de modo contextualizado, articulando os aspectos científicos, sociais, tecnológicos e ambientais relacionados a esse conteúdo. Coincidentemente, eu havia assistido a uma palestra ministrada pelo biólogo e professor titular da USP, Samuel Murgel Branco, autor do livro “Energia e Meio Ambiente”, uma vez que eu era integrante do curso de “Capacitação de professores de Física representantes de DRE’S”, realizado em São Paulo, promovido pela Fundação para o Desenvolvimento da Educação (FDE), cujo objetivo era o de preparar docentes para a realização de orientações técnicas para professores de Física da DRE (Delegacia Regional de Ensino) da rede estadual de ensino. Nesse livro, o autor faz um balanço da disponibilidade energética e das várias alternativas para o seu aproveitamento, ressaltando os problemas sociais, ambientais, científicos e tecnológicos relacionados à energia, bom como propõe soluções simples e de 12 baixo custo para esses problemas. Desse modo, resolvi trabalhar o conteúdo energia, a partir da leitura do referido livro pelos alunos, para que os mesmos pudessem articular esse conteúdo com o seu cotidiano, buscando ainda a formação dos alunos “para a cidadania mais adequada” (BRASIL, 2000, p.23). Percebendo a conscientização e o envolvimento dos alunos a partir dessa minha experiência vivenciada em sala de aula, optei por realizar o meu trabalho de pesquisa de mestrado, utilizando o referido texto paradidático sobre energia e meio ambiente (BENJAMIN, 2000), em que foram avaliados os resultados da leitura do livro paradidático Energia e Meio Ambiente (BRANCO, 1990), por alunos da 1ª série do Ensino Médio. Essa pesquisa teve como objetivo avaliar os efeitos da leitura com relação às noções de energia consideradas fundamentais, bem como à conscientização dos problemas ambientais, sociais, econômicos, científicos e tecnológicos relacionados à energia. Embora, nessa pesquisa, tenha ocorrido apenas a interação entre aluno e texto, uma vez que o objetivo da mesma foi o de avaliar os efeitos dessa interação sem a mediação do professor, os resultados foram considerados satisfatórios, pois mostraram avanços nas noções dos alunos relativas aos referidos aspectos, especialmente no que diz respeito à conscientização dos problemas ambientais ligados à energia. Desse modo, os resultados do trabalho desenvolvido no meu mestrado mostraram que os textos informativos podem viabilizar a articulação entre os aspectos científicos, tecnológicos, sociais e ambientais, bem como o estabelecimento da articulação entre diferentes e importantes temas relacionados à Física. Além disso, determinados textos possibilitam a inter-relação entre conteúdos de várias disciplinas, o que os tornam elementos didáticos mediadores da interdisciplinaridade (BENJAMIN, 2000). Tendo como pano de fundo a minha pesquisa de mestrado (BENJAMIN, 2000), sob a coordenação de um docente da Unesp (Câmpus de Guaratinguetá), foi elaborado um projeto inserido no Programa de Pesquisa Aplicada para a Melhoria do Ensino Público no Estado de São Paulo (Fapesp) intitulado “A Leitura como Veiculo Promotor da Aprendizagem em Conteúdos de Física” (TEIXEIRA, 2002), que teve como objetivo a introdução da leitura como um aprimoramento didático-pedagógico em aulas de Física. Envolveram-se no projeto seis professores de Física do ensino médio, que elaboraram o texto denominado “Nosso Universo”, que apresenta uma estrutura não linear, articulando vários conteúdos, dando margem para que sejam discutidos muitos conceitos da Física, de modo que muitos deles não constam em livros didáticos, mas são alvos de questionamentos, despertando assim interesse e curiosidade nos alunos. Articula ainda 13 conteúdos de várias disciplinas, utilizando a história da ciência para mostrar o caráter dinâmico e provisório dos conhecimentos científicos. Outro fator que o caracteriza, é que o mesmo viabiliza a articulação entre os aspectos científicos, tecnológicos, sociais, históricos e ambientais. Esse texto é constituído por cinco capítulos, apresentando um apêndice ao final de cada um desses capítulos, em que constam informações adicionais sobre alguns conceitos abordados, bem como sugestões de pesquisas em sites, filmes e leituras de livros. A partir dessas características, supõe-se, a priori que, se o referido texto for trabalhado de acordo com uma perspectiva dialógica, pode-se recuperar na escola e particularmente nas aulas de física o interesse por parte dos alunos em conhecer, bem como, produzir contextos de aprendizagem. Mediante as considerações traçadas anteriormente, acredita-se que a possibilidade da utilização de textos com abordagens que articulem os conteúdos de Física com o cotidiano do aluno possa viabilizar o tratamento interdisciplinar, bem como a formação do aluno, motivando-o a refletir, criar, imaginar e entender melhor os conceitos trabalhados. Esses textos podem se converter em um material bastante rico podendo propiciar a articulação entre os aspectos científicos, tecnológicos e sociais, bem como o estabelecimento da inter-relação entre diferentes e importantes temas relacionados à Física. Além disso, determinados textos fazem a articulação entre conteúdos de várias disciplinas, o que os tornam elementos didáticos mediadores da interdisciplinaridade (BENJAMIN, 2000). Nesse sentido, acreditamos que os textos informativos podem se converter em uma ferramenta didática capaz de viabilizar a compreensão do aluno acerca dos conceitos apresentados, produzindo com isso contextos de aprendizagem, bem como instrumentalizar o estudante, a fim de que o mesmo possa interagir reflexiva e criticamente com o seu meio social, desenvolvendo e vivenciando a sua cidadania. Muitos autores (AZEVEDO, 1999; TERRAZZAN, 2000; ALMEIDA, BABICHAK e SILVA, 2000; RICON e ALMEIDA, 1991; GERALDI, 1984) defendem a utilização de textos paradidáticos em aulas de física no sentido de promover uma relação mais dialógica em sala de aula e, com isso, viabilizar a aprendizagem significativa por parte do aluno. Entretanto, a construção de um espaço dialógico em sala de aula requer uma mudança de postura do professor superando o discurso autoritário, normalmente utilizado em aulas tradicionais. Vários trabalhos (CAPECCHI E CARVALHO, 2000; DUSCHL, 1998; SARDÁ y SANMARTÍ, 2000; MORTIMER e SCOTT, 2002; COMPIANI, 1996; BOULTER e GILBERT, 1995; MONTEIRO, 2002; MONTEIRO e TEIXEIRA, 2003; SANTOS e 14 MORTIMER, 2003; SMOLKA, 1991; GOULART et al, 2000; PENTEADO, 2000; MERCER, 1987; AZEVEDO, 1999, ORLANDI, 2002a) tratam do discurso, analisando as diferentes relações interativas em sala de aula. Pretendemos assim desenvolver uma análise da dimensão da comunicação considerando a interação professor-aluno-texto, a partir desses marcos referenciais. Embora, segundo Orlandi (2001), o discurso pedagógico seja um discurso institucional e, como tal, reflete a ordem social na qual está inserido, em que se mostra autoritário se as relações sociais são autoritárias, a autora sugere a superação desse autoritarismo propondo ao professor que deixe um espaço para o ouvinte em seu discurso, construindo a possibilidade de ele mesmo colocar-se como ouvinte “do próprio texto e do outro” (p.32). Propõe ao aluno “uma maneira de instaurar o polêmico e exercer sua capacidade de discordância”, não aceitando o que “o texto propõe e o garante em seu valor social: é a capacidade do aluno de se constituir ouvinte e se construir como autor na dinâmica da interlocução”, não aceitando o que é dito como verdade inquestionável, bem como a estagnação no seu papel enquanto ouvinte. (p.33) Desse modo, não só o professor, mas também os alunos devem atuar como “produtores da instância de interlocução”, interagindo simultaneamente, de modo que cada um possa se colocar como sujeito crítico, “mergulhado no social que o envolve”, estabelecendo-se assim, uma relação dialógica em sala de aula. Para tal, é fundamental que haja espaço para que os estudantes exponham as suas idéias, formulem perguntas e trabalhem diferentes pontos de vista. Segundo Mercer (1987, p.14), a educação “é um processo discursivo sócio- histórico no qual os resultados, do ponto de vista da aprendizagem, são determinados conjuntamente pelos esforços de professores e alunos”. Assim, o papel do professor em sala de aula é fundamental no sentido de introduzir “o aluno no contexto cultural, a partir de um processo de mediação entre as idéias e as concepções do aluno e o saber formal” (MONTEIRO, 2002, p.54). Segundo Sardà e Sanmartí (2000, p.407), por meio de seus argumentos, o professor pode levar o aluno a compreender os conceitos científicos, a racionalidade da ciência através de seu processo de evolução, bem como formar um indivíduo crítico e reflexivo, capaz de optar entre as argumentações que lhes são apresentadas. Mas é importante salientar que, para tal, não se aplica o discurso autoritário, mas sim o diálogo, “partindo-se da fala e do conhecimento do aluno” (AZEVEDO, 1999, p. 21), de modo que ele seja levado à reflexão por meio de experiências significativas. Dessa forma, 15 é fundamental o modo como o professor administra esse processo através de seus argumentos, a fim de dar suporte para que o aluno construa o conhecimento. Sendo assim, é imprescindível que o professor atue como coordenador, organizando “atividades de aprendizagem apoiadas em situações-problema criadas por ele, professor, e cuja resolução pelos alunos será realizada em condições escolares administradas pelo docente, de tal forma a propiciar aos alunos um atuar com o saber” (PENTEADO, 2000, p.79). Nesse contexto, apresenta-se o seguinte problema para a presente pesquisa: Como o uso de textos paradidáticos em aulas de Física, com a mediação do professor pode favorecer a construção de um espaço dialógico em sala de aula que contribua para a compreensão dos alunos tanto dos conceitos físicos, como de outros conhecimentos que possam vir à tona mediante essa interação? Assim, será objeto de análise da presente pesquisa o discurso do professor enquanto mediador da interação entre aluno-texto, o discurso do aluno enquanto participante de um espaço dialógico de ensino-aprendizagem, bem como a interação professor/alunos/texto. Em síntese, o enfoque da nossa pesquisa estará voltado para a relação do tripé professor/texto/aluno no sentido de analisar as relações dialógicas ocorridas numa situação de ensino de Física específica entre professor e alunos mediada pela utilização do texto paradidático “Nosso Universo”. Para tanto estruturamos o desenvolvimento desta pesquisa da seguinte maneira: No capítulo 1 tecemos algumas considerações acerca do ensino de Física, destacando a relevância de que os conhecimentos relativos à física sejam tratados de modo a enfocar os seus significados no sentido de transcender a sua dimensão pragmática, inserido em um contexto mais amplo, o que pode viabilizar a formação do aluno enquanto indivíduo crítico e reflexivo. Abordamos ainda, neste capítulo, acerca do papel da linguagem matemática como agente estruturador das teorias científicas. A seguir, destacamos algumas características da aprendizagem significativa crítica, apontando os princípios que viabilizam a facilitação dessa aprendizagem. No capítulo 2 abordamos alguns aspectos relativos ao processo discursivo, apresentando, em princípio, a relação entre discurso, linguagem e sociedade, destacando a não neutralidade do discurso em virtude da ideologia a ele associada. Abordamos, ainda, as implicações provocadas na análise do discurso, a partir da concepção de sujeito social interpelado pela ideologia, bem como as significações que se fundamentam nas relações 16 discursivas, destacando algumas formas de discurso que podem ocorrer em uma sala de aula. Por fim, discutimos alguns modelos de discurso que foram utilizados como fundamentos para a elaboração das categorias de análise desta pesquisa. No capítulo 3 tecemos algumas considerações acerca da utilização de textos paradidáticos em sala de aula, destacando alguns aspectos que exercem influência no modo de leitura de cada sujeito, bem como os elementos que viabilizam o uso dos referidos textos em aulas de Física. A seguir, abordamos alguns argumentos favoráveis sobre o uso de textos históricos no ensino de Física. Destacamos, ainda, algumas implicações pedagógicas relativas ao uso de textos em aulas de Física. Por fim, tecemos algumas considerações sobre a estrutura do texto paradidático “Nosso Universo”, utilizado na presente pesquisa. A seguir, no capítulo 4, abordamos os aspectos relacionados a nossa pesquisa, destacando que o enfoque da mesma é centrado no tripé professor-aluno-texto, de modo que será analisada essa interação levando-se em conta como o professor e os alunos, mediados pelo recurso envolvendo o texto paradidático “Nosso Universo”, se utilizam do discurso para estruturarem as suas idéias. No capítulo 5, primeiramente selecionamos, para a análise, alguns episódios de ensino referentes aos capítulos I, IV e V do referido texto. Esses episódios foram escolhidos em virtude dos diferentes domínios trabalhados nos mesmos, ou seja, domínios relacionados aos conteúdos científicos, à história da ciência e à relação entre ciência, tecnologia, sociedade e ambiente, respectivamente. Para tal, estabelecemos duas categorias como instrumentos de classificação das argumentações discentes e docentes, respectivamente. Analisamos também a dinâmica das relações decorrentes da interação entre professor, alunos e texto, no decorrer dos referidos episódios, a fim de avaliarmos se a mesma viabiliza a ocorrência de aprendizagem significativa crítica (compreensão) por parte dos alunos a respeito dos conteúdos trabalhados. A seguir, analisamos as avaliações dos alunos no sentido de verificarmos se a metodologia utilizada, correspondente ao uso do texto “Nosso Universo” como ferramenta de ensino, com a mediação do professor, pode propiciar contextos de aprendizagem significativa crítica, contribuindo para a compreensão dos conceitos trabalhados no decorrer da atividade, bem como viabilizar que o aluno desenvolva e vivencie a sua cidadania. Por fim, analisamos os comentários dos alunos em suas avaliações escritas sobre a atividade, visando o levantamento dos pontos positivos e negativos da mesma. Finalmente, no sétimo e último capítulo tecemos as considerações finais a respeito da presente pesquisa. 17 1. O ENSINO DE FÍSICA O presente capítulo tece algumas considerações sobre o ensino de Física, destacando a relevância de que os conhecimentos relativos à física sejam tratados e entendidos como instrumentos para a compreensão do mundo, de forma que os seus conteúdos possam ser trabalhados de modo a enfocar os seus significados no sentido de transcender a sua dimensão pragmática, assumindo, com isso, uma postura decorrente da concepção humanista abrangente (BRASIL, 2000) com o objetivo de preparar o estudante para lidar com as situações que vivencia ou mesmo que possa vir a vivenciar. Esse enfoque, inserido em um contexto mais amplo, pode viabilizar a formação do aluno enquanto indivíduo crítico e reflexivo. A seguir, são abordadas algumas características acerca da “aprendizagem significativa como um conceito subjacente às teorias construtivistas”, sejam de caráter cognitivistas ou humanistas. Na seqüência, é trabalhada a aprendizagem significativa crítica, destacando-se os oito princípios estabelecidos por Moreira (2000) que fundamentam a facilitação dessa aprendizagem. Os elementos destacados neste capítulo irão nortear a análise das dinâmicas de sala de aula desta pesquisa. 1.1. Alguns aspectos relacionados ao ensino de Física A busca da superação de um ensino de Física pautado em resoluções automáticas de equações desprovidas de significado conceitual para os estudantes é crescente. Atualmente, tem sido enfatizada a função social do ensino de física, de modo a propiciar “a formação de um cidadão contemporâneo, atuante e solidário, com instrumentos para compreender, intervir e participar na realidade” (BRASIL, 2002, p.59). Assim, a busca de um ensino de Física “dentro de uma concepção humanista abrangente, tão abrangente quanto o perfil do cidadão que se quer ajudar a construir” (p.61), pode subsidiar ao estudante que o mesmo compreenda e participe do mundo em que vive mesmo após ter concluído o ensino médio. A Física deve apresentar-se, portanto, como um conjunto de competências específicas que permitam perceber e lidar com os fenômenos naturais e tecnológicos, presentes tanto no cotidiano mais imediato quanto na compreensão do universo distante, a partir de princípios, leis e modelos por ela construídos. Isso implica, também, a introdução à linguagem própria da Física, que faz uso de conceitos e terminologia bem definidos, além de suas formas de expressão que envolvem, muitas vezes, tabelas, gráficos ou relações matemáticas. (BRASIL, 2002, p.59) Assim, o ensino de Física deve viabilizar aos alunos o acesso aos conceitos e leis que proporcionem a compreensão dos conteúdos de forma contextualizada, o que pode fundamentar a formação de um indivíduo crítico e reflexivo. Para tal, se faz necessário que o 18 professor propicie o entendimento dos conceitos físicos, por meio de discussões acerca dos conteúdos em questão, de modo a instrumentalizar os alunos para que os mesmos possam atuar criticamente em seu meio social. De acordo com os PCNEM (BRASIL, 2002), as competências para lidar com o mundo físico deveriam ser construídas de forma contextualizada, ou seja, articuladas com competências de outras áreas de conhecimento, bem como com o saber do aluno. Para Carvalho Junior (2002, p.57)), No campo da análise de conceitos, leis e hipóteses e de todas as relações decorrentes, a construção dos conhecimentos deve ser feita mediante um diálogo constante entre todos os atores da prática educativa. Essa concepção de ensino entende o professor como mediador entre os vários saberes estabelecidos, cada qual com suas particularidades, fundamentações e campos de validade. São eles: saber do aluno (conceitos prévios), científico, escolar e social. Em se tratando do saber cientifico, e mais especificamente, da “Física do físico” (HALBWACHS, 1987), pode-se dizer que a física, em sua forma acabada, apresenta-se como um sistema de natureza teórica, “que se procede transformando proposições de acordo com regras determinadas”, de modo que só é possível “operar essas transformações de forma completa e rigorosa, operando sobre um sistema de noções (ou conceitos) definidas axiomaticamente” (p.78). Esses conceitos são fundamentados em axiomas já constituídos, sendo denominados de modelos teóricos. “O modelo nos permite manejar e modificar a situação de acordo com uma finalidade determinada” (p.78). A realidade a que pertencem as situações físicas é inesgotável, mais complexa e mais rica do que os modelos teóricos dela decorrentes. Segundo Cudmani e Sandoval (1991), é comum que alguns professores e estudantes não compreendam que as teorias científicas são referentes à “modelos que se constroem sobre a realidade, e não à própria realidade” (p.193). Os autores destacam que nenhuma teoria científica analisa a todas as variáveis que intervém um fenômeno, por mais simples que seja. Entretanto, mesmo que as teorias científicas não sejam “representações icônicas da realidade”, essas são construídas com o objetivo de “predizer, interpretar e explicar” essa realidade, que é “complexa e dinâmica”. Mas, ao se passar da teoria para os fatos, ou dos fatos aos conceitos, necessita-se não somente da segurança que oferecem as interconexões do sistema do conhecimento físico, mas também, além disso, de guias quantitativos que reforcem o grau de objetividade e exatidão neste salto. A análise dos erros que podem introduzir suposições, métodos de medição, etc, é um critério científico que serve de fundamento epistemológico à adequação quantitativa entre as conceituações teóricas e as situações problemáticas reais que se enfrentam. Esta exatidão e precisão nos ajustes 19 quantitativos não implica, em absoluto, uma contradição com o caráter perfectível e em permanente desenvolvimento e aperfeiçoamento da ciência (p.194). Assim, em decorrência da necessidade de uma adequação entre as teorias científicas e as questões empíricas enfrentadas em uma situação concreta, de modo a elaborar explicações mais complexas da realidade, ocorre uma freqüente “revisão e crescimento” dessas teorias. A compreensão dessa relação é de suma importância no ensino, a fim de que os alunos possam compreender “o verdadeiro sentido do conhecimento que a Física tem alcançado sobre o mundo natural” (CUDMANI e SANDOVAL, 1991, p.194). Com isso, considera-se que o papel do professor no ensino seja o de levar os alunos a essa compreensão, viabilizando aos mesmos o entendimento dos conceitos relativos à Física dentro de uma abordagem abrangente, de modo que os mesmos além de compreenderem esses conceitos, possam compreender os modos pelos quais os mesmos têm se constituído historicamente. Essa abordagem, aliada a uma prática docente que propicie ao estudante a articulação entre o conhecimento de várias áreas, dentro de um contexto dialógico, pode propiciar a formação do mesmo enquanto cidadão capaz de atuar reflexiva e criticamente frente a uma realidade complexa e dinâmica. Além disso, segundo Carvalho Junior (2002, p.54,55), cabe ao professor de Ciências Naturais também propiciar a construção de valores éticos, promovendo a articulação com “toda a dimensão sócio-política, pois a capacidade técnica é indissociável do desenvolvimento da sensibilidade de se aplicar ou não uma determinada tecnologia que, de alguma forma, pode ser nociva à natureza”. No que diz respeito à prática docente, Halbwachs (1987) destaca que, o aluno, além de ser considerado um “sujeito social”, deve também ser encarado como um “sujeito psicológico”, com um nível intelectual que funciona de modo peculiar. Assim, o ensino de física “deve ter como finalidade a realidade do aluno tal como é e como se desenvolve” (p.80), considerando-se as motivações psicológicas do mesmo, os problemas físicos que podem suscitar ao aluno a partir de suas idéias iniciais, bem como a formação do aluno inserido em seu meio social, cercado de elementos tecnológicos determinados pela cultura científica aliada a sua realidade. Com relação a esse aspecto “cultural”, o autor afirma, partindo do princípio de que a maioria dos alunos não manifesta aptidões ou interesse especial pela física, que o conhecimento a ser adquirido no ensino médio deve promover a preparação do aluno para uma profissão, mas com um “objetivo de consumo, que condiciona as atitudes dos futuros adultos, a fim de enriquecer sua vida pessoal e social” (p.81), de modo a levá-lo à compreensão dos aspectos materiais e sociais relacionados ao seu cotidiano. 20 Delizoicov, Angotti e Pernambuco (2002) destacam a relevância de que o ensino de ciências seja iniciado por meio de uma abordagem que trate de temas significativos para os estudantes, apresentando a construção do conhecimento dentro de um processo histórico e cultural. Esses autores afirmam ainda que, Uma vez que o ponto de partida e de chegada é o mundo em que a vida se dá, o conhecimento científico aparece como uma das formas – nem a única nem a mais importante, mas indispensável na atualidade – de atuar e explicar criticamente. Só faz sentido em sua relação com os conhecimentos tanto da cultura prevalente como das outras disciplinas escolares. Para Cudmani e Sandoval (1991), “a prática docente que promova a análise crítica da construção conceitual da Física” pode funcionar como “ferramenta importante para a compreensão, a valorização e o desenvolvimento de hábitos científicos autênticos nos estudantes” (p.201). Considera-se, assim, que a articulação entre os saberes do aluno, científico, escolar e social, pode propiciar a compreensão dos conceitos de forma contextualizada, de modo a instrumentalizar o estudante para que o mesmo possa interagir com a sua realidade, de maneira a compreender os fenômenos físicos vivenciados pelo mesmo, relacionando-os com os aspectos sociais, tecnológicos e ambientais. Mediante essa perspectiva, considera-se fundamental que sejam privilegiados espaços em sala de aula, que possibilitem a discussão dos conceitos físicos, de modo a viabilizar ao aluno o desenvolvimento de competências que promovam o sentido crítico, bem como abstrações essenciais ao pensamento científico e à vida (BRASIL, 2002). Segundo Matthews (2002), o ensino de ciências, mais do que ser uma educação em ciência (ou treino em ciência), deveria ser uma “educação sobre a ciência” (p.20), argumentando que O desafio é formar o cidadão de modo que ele possa ter uma relação crítica com a ciência; nem temor infundado nem idolatria, mas relação crítica com algo que é parte intrínseca do processo de humanização e civilização, mas cuja função e papel precisam se tornar parte das preocupações comuns aos humanos (...). (p.20) Daí a necessidade de uma abordagem metodológica que priorize a compreensão da natureza do conhecimento científico, uma vez que um enfoque histórico, de acordo com os objetivos didáticos, pode favorecer uma base epistemológica mais sólida e coerente para a compreensão do funcionamento da física (ADÚRIZ-BRAVO e MORALES, 2002), bem como dos conceitos e teorias relativos à disciplina (MATTHEWS, 2002). Assim, a compreensão da maneira pela qual o conhecimento científico tem sido historicamente construído parece ser tão importante quanto os conteúdos em si. Desse modo, não é suficiente “ao estudante dominar o 21 manejo dos conteúdos científicos sem ter uma clara idéia dos seus pressupostos e dos seus limites de validade revelados pelo contexto histórico no qual os mesmos tenham sido desenvolvidos” (MEDEIROS, 1999, apud MEDEIROS, 2000, p.108). Isso pode levar o aluno a perceber o caráter dinâmico da ciência, deixando de encará-la como um dogma inquestionável, bem como adquirir uma “visão de ciência como um produto coletivo e não exclusivamente como produtos de desenvolvimentos individuais” (MEDEIROS, 2000, p.116). Especificamente com relação às teorias que fundamentam os conhecimentos relativos à Física, é imprescindível que o professor torne claro para os alunos que, segundo Cudmani e Sandoval (1991, p.201) A Física estrutura seu conhecimento em sistemas conceituais cujos referenciais são modelos simplificados da realidade. O caráter sistêmico de tal elaboração permite a avaliação cruzada de suas proposições, dando lugar a uma rede de interconexões que lhe ourtoga, ao mesmo tempo, dinamismo e firmeza. Segundo Carvalho Junior (2002, p.54), “os métodos que os cientistas utilizam para a obtenção e o tratamento de resultados são rigorosos e os mecanismos de controle de experiências permitem uma reprodução das mesmas em qualquer parte do mundo”. Pode-se dizer, com isso, que a maior consistência das explicações científicas comparadas ao conhecimento do senso comum, ocorre porque as representações simbólicas decorrentes da busca do conhecimento científico apresentam uma coerência, assegurando-lhe, mesmo que provisoriamente, uma visão inteligível do mundo (PATY, 2002). Desse modo, trata-se de o professor mostrar aos estudantes, que a construção das teorias científicas, ou seja, da ciência é “marcada por sua aproximação da verdade, obtida a partir do rigor do método científico, que a ‘retira’ dos fatos científicos indubitáveis e dos experimentos decisivos” (Villani, 1986, p.51). Essa postura do professor pode mediar a superação do conceito de que as teorias científicas correspondem a verdades absolutas (dogmas). Embora seja imprescindível que os alunos superem essa visão, há necessidade de que o professor promova discussões sobre os modelos científicos aceitos atualmente pela comunidade científica, acerca de um determinado assunto. Ressalta-se ainda que, embora seja importante que se estabeleça um diálogo em sala de aula, instigando os alunos a colocarem as suas idéias, acredita-se ser imprescindível que o professor argumente com os alunos que os conhecimentos físicos defendidos atualmente pela comunidade científica se fundamentam a partir de um rigor metodológico, enquanto que o conhecimento espontâneo do aluno (senso comum) não apresenta esse mesmo rigor. Com isso, de acordo com Carvalho Junior (2002), consideramos que o ensino de Física deve propiciar aos alunos, por meio das atividades realizadas no decorrer das aulas, o 22 acesso aos “conceitos, leis, modelos e teorias que expliquem satisfatoriamente o mundo em que vivem”, levando-os à compreensão de “questões fundamentais como a disponibilidade de recursos naturais e os riscos de se utilizar uma determinada tecnologia que poderia ser nociva a algum ecossistema” (p.55). Segundo o autor, o trabalho crítico do professor pode levar o aluno à construção de uma mentalidade crítica e questionadora. Com relação às formalizações matemáticas, cabe ressaltar que, segundo Villani (1986, p.30), uma análise detalhada da história revela que “o papel da matemática ultrapassa o da tradução fiel dos conteúdos científicos da experiência”. Esse autor destaca três contribuições da matemática à física: - a primeira refere-se a “possibilidade de introduzir uma estrutura adicional não somente nos dados experimentais que, sendo singulares, não podem apresentar continuidade, mas também nas próprias idéias físicas, às vezes mais fracas do que suas expressões matemáticas.” (p.47). - a segunda corresponde a “introdução de novas entidades matemáticas que puderam ter uma interpretação física realista anteriormente desconhecida” (p.48). - a terceira é relativa à “introdução da linguagem não-linear com sua bagagem de soluções singulares, estranhas e imprevisíveis, a partir de condições de contorno adequadas” (p.48-9). Isso implica em “abandonar a idéia de que o comportamento de um fenômeno complexo é previsível a partir do comportamento de seus elementos parciais, individuais” (p.49), bem como em “olhar para as condições físicas particulares para obter sugestões de comportamento global” (p.49). Essas considerações sugerem que não é suficiente que o aluno conheça a matemática enquanto ferramenta para a compreensão dos conceitos científicos, uma vez que a manipulação de equações sem significado conceitual para o aluno, ou, em outras palavras, a falta de articulação das equações com as teorias que as fundamentam, não abre espaço para que ocorram argumentações e discussões em nível conceitual. 1.2. Aprendizagem significativa Embora existam diferentes enfoques teóricos comumente chamados de teorias de aprendizagem, tais como: a teoria behaviorista de Skinner; a teoria do desenvolvimento cognitivo de Piaget; a teoria da mediação de Vygotsky; a psicologia dos construtos pessoais de Kelly; a teoria da aprendizagem significativa de Ausubel; a teoria de educação de Novak e o modelo de ensino-aprendizagem de Gowin; a teoria dos modelos mentais de Johnson-Laird, entre outras, adotamos como referencial teórico para a presente pesquisa a aprendizagem significativa. 23 Destacamos que, essa escolha se deu em virtude da possibilidade de se tratar a aprendizagem significativa em “distintos referenciais teóricos construtivistas” (MOREIRA, 1997). Segundo esse autor, há sentido em se falar de aprendizagem significativa de acordo com a construção cognitiva em termos dos subsunçores de Ausubel, dos esquemas de (ação) assimilação de Piaget, da internalização de instrumentos e signos de Vygotsky, dos construtos pessoais de Kelly ou dos modelos mentais de Johnson-Laird (p.14). O ponto destacado por Moreira a fim de justificar a sua afirmação, é que todas essas “teorias são construtivistas e a aprendizagem significativa subjaz à construção humana” (p.14), afirmando ainda que é possível “considerar a aprendizagem significativa como um conceito subjacente, subentendido, nas teorias construtivistas, sejam elas cognitivistas ou humanistas”. Para que ocorra a aprendizagem significativa, o fator mais importante é o conhecimento prévio do aluno, bem como que o mesmo apresente uma “predisposição para relacionar de maneira não arbitrária e não literal o novo conhecimento com o conhecimento prévio” (MOREIRA, 2000, p.12). Entretanto, para o autor, isso não basta, argumentando ser necessário promover ao aluno a “aprendizagem significativa crítica”, que pode viabilizar ao aluno fazer parte de sua cultura e, ao mesmo tempo, estar fora dela, manejar a informação, criticamente, sem sentir-se impotente frente a ela; usufruir a tecnologia sem idolatrá- la; mudar sem ser dominado pela mudança; conviver com a incerteza, a relatividade, a causalidade múltipla, a construção metafórica do conhecimento, a probabilidade das coisas, a não dicotomização das diferenças, a recursividade das representações mentais; rejeitar as verdades fixas, as certezas, as definições absolutas, as entidades isoladas. (p.13) Assim, consideramos para a nossa pesquisa a aprendizagem significativa dentro de uma perspectiva crítica, a fim de formar um aluno que saiba lidar com os elementos culturais, sociais e tecnológicos que o rodeiam, reflexiva e criticamente, de modo a não ser subjugado pelos mitos e ideologias presentes em seu meio social. 1.2.1. Contextualizando a aprendizagem significativa Atualmente, como indica Moreira (1997), pouco se fala sobre estímulo, resposta, reforço positivo, objetivos operacionais, instrução programada e tecnologia educacional no contexto educativo (visão comportamentalista-behaviorista de ensino-aprendizagem). Os referidos conceitos fazem parte de uma época na qual o ensino e a aprendizagem eram enfocados em termos de estímulos, respostas e reforços, não de significados. Hoje em dia 24 defende-se com muita freqüência a seguinte idéia: um bom ensino deve ser construtivista, promover a mudança conceitual e facilitar a aprendizagem significativa (MOREIRA, 1997). Segundo Ausubel (1963), a aprendizagem significativa é o processo através do qual uma nova informação (um novo conhecimento) se relaciona de maneira não arbitrária e substantiva (não-literal) à estrutura cognitiva do aprendiz. Nesse contexto entende-se que o fator que mais influencia a aprendizagem é o que o aprendiz já sabe, ou seja, o seu conhecimento prévio, e isso parece ser um consenso entre a maioria das teorias de ensino/aprendizagem. É o conhecimento que o aluno possui que determina em grande parte o quanto ele pode aprender (MOREIRA, 1997). Retomando, aprender significativamente um determinado conteúdo se caracteriza pela interação entre conhecimentos novos e prévios. Em tal interação, o novo conhecimento deve relacionar-se de maneira não arbitrária e substantiva (de modo não literal) com aquilo que o aprendiz já sabe, e esse, por sua vez, deve apresentar uma pré-disposição (intencionalidade) para aprender. A "não arbitrariedade" representa que o relacionamento entre o novo conhecimento e o conhecimento prévio não está relacionado a qualquer aspecto da estrutura cognitiva, mas sim com conhecimentos especificamente relevantes, denominados por Ausubel (1963) de "subsunçores". Subsunçor se origina da palavra subsumir, o que significa: incluir-se num todo mais amplo (MOREIRA, 1997). A "substantividade" está relacionada ao fato de que a aprendizagem significativa não ocorre de maneira literal, "ao pé da letra". Substantividade significa que “o que é incorporado à estrutura cognitiva é a substância do novo conhecimento, das novas idéias, e não as palavras precisas usadas para expressá-las" (MOREIRA, 1997). Como aponta Moreira (1997), a questão da subjetividade refere-se à essência do conhecimento aprendido, isto é, quando um indivíduo aprende de maneira significativa, o mesmo não internaliza o conhecimento novo de modo literal, idêntico. Em sua estrutura cognitiva ele vai colocar também os seus significados, as suas interpretações. Três outras características acerca da aprendizagem significativa a serem ressaltadas são as seguintes (MOREIRA, 1997). (1) Aprender significativamente um determinado conteúdo, não implica necessariamente em aprender corretamente de acordo com um determinado referencial esse conteúdo. (2) Aprender significativamente um determinado conteúdo, não implica em adquirir um conhecimento que nunca será esquecido. 25 (3) Existe uma crença ingênua que afirma que um determinado conteúdo só será aprendido significativamente se for o conteúdo que o aprendiz mais gosta. Como aponta Moreira (2000), é da interação entre o conhecimento novo e o conhecimento prévio que emergem, para o aprendiz, os significados dos materiais potencialmente significativos (ou seja, suficientemente não arbitrários e relacionáveis de maneira não-arbitrária e substantiva a sua estrutura cognitiva), e é também nessa interação que o conhecimento prévio se modifica pela aquisição de novos significados. A aprendizagem é dita mecânica ou automática quando o material de aprendizagem é relacionável à estrutura cognitiva somente de maneira arbitrária e literal (MOREIRA, 1997). Como exemplo pode-se considerar a memorização sem reflexões, sem significados e sem interação com a estrutura cognitiva como um todo. Em outras palavras, memorização de fórmulas, textos, questões etc, sem reflexão, sem contextualização. Portanto, a diferença básica entre aprendizagem significativa e aprendizagem mecânica está na relacionabilidade à estrutura cognitiva: não arbitrária e substantiva versus arbitrária e literal (MOREIRA, 1997). Nesse contexto, há necessidade de que sejam desfeitos alguns mitos relacionados a uma certa dicotomia entre exposição de conteúdos e aprendizagem significativa. Por exemplo, a aprendizagem receptiva é aquela que ocorre através do processo pelo qual o conteúdo que vai ser aprendido é entregue ao aprendiz em sua forma final. Nesse tipo de aprendizagem o sujeito não tem que fazer descobertas, ele tem que usar o conhecimento prévio e fazer a interação entre o conhecimento prévio com o conhecimento novo que pode, por meio de exposições, estar chegando a ele da maneira mais motivadora possível. Em outras palavras, a exposição de explicações acerca de determinados conceitos pode motivar os alunos a aprenderem e se eles estiverem motivados no sentido de dar significados e possuem um conhecimento prévio acerca do conceito exposto, não há problemas em se utilizar exposições como um instrumento de mediação entre os conhecimentos prévios e novos. Buscando uma síntese, para que ocorra aprendizagem significativa duas condições devem ser consideradas: 1) O material de ensino deve ser potencialmente significativo, o que implica dizer que o sujeito deve ter um conhecimento prévio adequado para aprender o conteúdo específico. 2) O sujeito deve apresentar predisposição em aprender, o que implica dizer que ele deve estar motivado para aprender, e isso, bem explicado, relaciona-se com o ato de querer e não com o ato de gostar. 1.2.2. Enfocando a aprendizagem significativa sobre um referencial crítico 26 Para Moreira (2000) abordar a aprendizagem significativa sobre um referencial crítico representa compreendê-la como uma aprendizagem que permite ao sujeito “fazer parte de sua cultura, e ao mesmo tempo, não ser subjugado por ela, por seus ritos, mitos e ideologias” (p,4). Por meio da aprendizagem significativa crítica, o sujeito pode manejar as informações criticamente, sem sentir-se impotente frente às mesmas. Para tanto, Moreira (2000) aponta oito princípios que seriam necessários para a facilitação da referida abordagem de aprendizagem significativa: 1) Princípio da interação social e do questionamento: Ensinar/aprender perguntas ao invés de respostas (p.5). Para a consumação de um episódio de ensino, Moreira (2000) aponta que a interação social é um fator indispensável. Esse episódio se dá “quando professor e aluno compartilham significados em relação aos materiais educativos do currículo” (GOWIN, 1981, apud MOREIRA, 2000, p.5). Da negociação de significados acerca dos materiais educativos do currículo entre aluno e professor resulta o compartilhar significados e, como aponta Moreira (2000), tal negociação deve ser representada por uma constante troca de perguntas ao invés de respostas. Para Moreira (2000, p.5), “quando o aluno formula uma pergunta relevante, apropriada e substantiva, ele utiliza seu conhecimento prévio de maneira não-arbitrária e não- literal, e isso é evidência de aprendizagem significativa”. 2) Princípio da não centralidade do livro texto: É importante aprender a partir de distintos materiais educativos (documentos, artigos, textos paradidáticos, etc), pois é necessário buscar vários referenciais para o tratamento do conteúdo, evitando-se dessa forma, o surgimento de visões relacionadas ao livro texto como armazenador de todo conhecimento. Como aponta Moreira (2000, p.6), a “ utilização de materiais diversificados e cuidadosamente selecionados, ao invés da “centralização” em livros texto, é também um princípio facilitador da aprendizagem significativa”. Não se trata, porém de excluir o livro didático, mas é importante a utilização de outros materiais, a fim da superação da visão do referido livro como o transmissor de verdades e certezas, em capítulos. 3) Princípio do aprendiz como perceptor/representador: Neste princípio, a questão central é que o aluno deve ser tratado como um perceptor e representador do mundo, ou seja, implica que o mesmo percebe e representa o mundo de acordo com o que o mundo lhe parece ser, isto é, de acordo como ele percebe o mundo. Assim, como as percepções dos alunos se originam de suas percepções prévias, que são únicas, cada um percebe de modo único o que lhe é ensinado (Moreira, 2000, p.7). Segundo Benjamin (2000), é importante que o professor se conscientize que as “interpretações 27 ou atribuição de significados” por parte dos alunos “não são uniformes”, pois, de modo geral, o mesmo acredita que “todos os estudantes vão interpretá-lo da mesma maneira, o que na realidade não acontece, uma vez que, cada aluno atribui significados de acordo com a sua história de vida” (p.57). Além disso, considerando-se o fato de que o professor também é “um perceptor e o que ensina é fruto de suas percepções” (MOREIRA, 2000, p.7), a comunicação entre aluno e professor só é possível na medida em que esses dois perceptores busquem a percepção dos materiais do currículo de modo semelhante. Para Moreira (2000, p.7) A aprendizagem significativa crítica implica a percepção crítica e só pode ser facilitada se o aluno for, de fato, tratado como um perceptor do mundo e, portanto, do que lhe for ensinado, e a partir daí um representador do mundo, e do que lhe ensinamos. 4) Princípio do conhecimento como linguagem: É importante perceber que a linguagem não é neutra, expressando e refletindo o pensamento, estando totalmente implicada em qualquer e em todas as tentativas humanas de perceber a realidade (POSTMAN e WEINGARTNER, 1969, apud MOREIRA, 2000). No presente contexto, aprender significativamente a ciência, “implica aprender sua linguagem e, em conseqüência, falar e pensar diferentemente sobre o mundo” (MOREIRA, 2000, p.8). 5) Princípio da consciência semântica: Esse princípio implica em perceber que o significado está nas pessoas e não nas palavras. O significado de cada palavra é dado pelas pessoas. Quando se fala em "cadeira" cada indivíduo tem sua representação e o seu significado para essa palavra. Destaca-se novamente a partir da presente discussão a importância do conhecimento prévio na aquisição de novos significados. Como aponta Moreira (2000, p.9), durante o processo que caracteriza a aprendizagem significativa “professor e aluno devem ter consciência semântica, (i.é., o significado está nas pessoas, as palavras significam as coisas em distintos níveis de abstração, o significado tem direção, há significados conotativos e denotativos, os significados mudam)”. A condição para a aprendizagem significativa é que ocorra a “atribuição de significados conotativos, idiossincráticos (é isso que significa incorporação não-literal do novo conhecimento à estrutura cognitiva)” (p.9). A partir do desenvolvimento da chamada “consciência semântica”, a aprendizagem pode ser significativa e crítica, uma vez que o aluno não cairá na armadilha da causalidade simples, não acreditará que as respostas têm que ser necessariamente certas ou erradas, ou que as decisões são sempre do tipo sim ou não. Ao contrário, o indivíduo que aprendeu significativamente dessa maneira, pensará em escolhas ao invés de decisões dicotômicas, em complexidade de causas ao 28 invés de supersimplificações, em graus de certeza ao invés de certo ou errado. (MOREIRA, 2000, p.9) 6) Princípio da aprendizagem pelo erro: Neste princípio, Moreira (2000) destaca que o homem aprende corrigindo seus erros, que o que era correto anteriormente não necessariamente precisa ser hoje, que a ciência trabalha com modelos e não com verdades, que tais modelos podem ser questionados, podem mudar, podem voltar a ser defendidos posteriormente. Em outras palavras, é preciso, aos professores, o abandono do estigma da resposta certa, e aos alunos a coragem para errar, ou seja, assumir riscos sem medos. Como aponta Moreira (2000, p.10), a escola “pune o erro e busca promover a aprendizagem de fatos, leis, conceitos, teorias, como verdades duradouras. (Professores e livros de texto ajudam muito nessa tarefa)”. Ao fazer isso, a escola “dá ao aluno a idéia de que o conhecimento que é correto ou definitivo é o conhecimento que temos hoje do mundo real, quando, na verdade, ele é provisório, ou seja, errado”. Para Moreira (2000) seria mais conveniente a existência de professores detectores de erros, na tentativa de ajudar o aluno “a reduzir erros em seus conhecimentos e habilidades”, buscando levá-lo a também atuar como detector de erros. Essa postura remete ao conceito de aprendizagem significativa crítica, uma vez que “buscar sistematicamente o erro é pensar criticamente, é aprender a aprender, é aprender criticamente rejeitando certezas, encarando o erro como natural e aprendendo através de sua superação” (p.10). 7) Princípio da desaprendizagem: Este princípio aponta para a importância da percepção de que, para que algumas informações sejam compreendidas é necessário que outras não sejam utilizadas. Exemplo: Para a aprendizagem de fenômenos relacionados à mecânica quântica, conceitos centrados à mecânica clássica devem ser deixados à parte. Em outras palavras, para casos como o citado, o subsunçor de mecânica clássica poderia representar um obstáculo à compreensão de fenômenos quânticos, e, portanto, deveria não ser utilizado pelo aprendiz. Para Moreira (2000, p.11), é preciso não usar “conceitos e estratégias que são irrelevantes para a sobrevivência em um mundo em transformação, não só porque são irrelevantes, mas porque podem se constituir, eles mesmos, em ameaça à sobrevivência". Assim, é necessário “aprender a distinguir entre o relevante e o irrelevante, i.é, desaprendê-lo”, o que implica em aprendizagem significativa crítica. A facilitação de tal aprendizagem, de acordo com Moreira (2000), deveria ser função da escola na sociedade tecnológica contemporânea. 8) Princípio da incerteza do conhecimento: 29 De acordo com esse princípio, é preciso aprender que as perguntas são instrumentos de percepção e que as definições e metáforas são instrumentos para pensar. Segundo Moreira (2000), o presente princípio é fundamentalmente síntese dos princípios relacionados com a linguagem. Baseia-se no fato de que “Definições, perguntas e metáforas são três dos mais potentes elementos com os quais a linguagem humana constrói uma visão de mundo” (POSTMAN, 1996, apud MOREIRA, 2000, p.11). Seria adequado que o aluno aprendesse que “as definições são invenções ou criações humanas, que tudo o que sabemos tem origem em perguntas e que todo nosso conhecimento é metafórico” (MOREIRA 2000, p.11). Perguntas são instrumentos de percepção, ou seja, a natureza de uma pergunta determina a natureza da resposta. Definições são instrumentos do pensamento sem autoridade fora do contexto para o qual foram inventadas. As metáforas são, da mesma forma, instrumentos utilizados para pensar. Entretanto, os alunos não são ensinados de modo a perceber isso. Em sua formação escolar, os alunos trabalham com definições como se fizessem parte do mundo natural. Para aprender criticamente alguma definição de maneira significativa, além de lhe atribuir significado por meio da interação com um determinado subsunçor, é preciso percebê-la como uma definição que foi criada para um determinado fim, o que não impede que as definições alternativas também sirvam ao mesmo fim (POSTMAN, 1996, apud MOREIRA, 2000). Na perspectiva descrita, o conhecimento produzido por meio de perguntas e expresso através de definições e metáforas deveria ser encarado como incerto, já que poderia ser diferente se os elementos considerados (perguntas, definições e metáforas) não fossem os mesmos ou surgissem em contextos distintos. Assim, A nossa visão de mundo é construída primordialmente com as definições que criamos, com as perguntas que formulamos e com as metáforas que utilizamos. Naturalmente, esses três elementos estão inter-relacionados na linguagem humana. (p.12). Na seqüência, serão discutidas as condições para a facilitação da aprendizagem significativa em sala de aula na perspectiva da utilização de textos paradidáticos com a mediação do professor. 1.2.3. A facilitação da aprendizagem significativa crítica em sala de aula: utilização de textos paradidáticos com a mediação do professor Para abordar acerca da facilitação da aprendizagem significativa crítica, considera- se fundamental destacar que, segundo Novak (apud MOREIRA, 1997), “a aprendizagem significativa subjaz à construção do conhecimento humano e o faz integrando positivamente pensamentos, sentimentos e ações, conduzindo ao engrandecimento pessoal” (p.14). 30 Essa abordagem fundamenta-se em dois pressupostos: (1) o conhecimento é construído na interação entre homem e objeto; (2) nesse processo de construção do conhecimento o homem é ativo. Em outras palavras, pode-se afirmar que a construção do conhecimento humano se dá por meio da indissociável interação entre a experiência sensorial e o raciocínio, ou seja, o conhecimento somente pode ocorrer a partir da experiência sensorial e da elaboração interna. Esse referencial de construção do conhecimento humano mantém estreitas relações com o conceito de aprendizagem significativa, que afirma que a mesma se dá na relação entre conhecimentos novos e prévios, por meio da disposição do indivíduo em atribuir significados. De acordo com o modelo de ensino de Gowin (1981, apud MOREIRA, 1997), há uma "relação triádica entre professor, materiais educativos e aprendiz" (MOREIRA, 1997, p.16). Para ele, o compartilhar significados entre professor e alunos acerca de um determinado objeto, caracteriza um episódio de ensino e aprendizagem. Assim, em um episódio de ensino, por meio de materiais educativos, o professor atua intencionalmente a fim de modificar significados da experiência do aluno. Desse modo, o mesmo apresenta ao aluno os significados já compartilhados pela comunidade, como por exemplo, a científica, que por sua vez, mediante uma disposição em aprender, também atua intencionalmente no sentido de compreender esses significados. Se o aluno não alcançar essa compreensão, o professor deve, mais uma vez, apresentar, de uma outra maneira, os referidos significados. O episódio de ensino é consumado na medida em que professor e aluno compartilham os significados. Desse modo, segundo Moreira (1997, p.16), Se é alcançado o compartilhar significados, o aluno está pronto para decidir se quer aprender significativamente ou não. O ensino requer reciprocidade de responsabilidades, porém aprender de maneira significativa é uma responsabilidade do aluno que não pode ser compartilhada pelo professor. Assim, como mencionado anteriormente, para aprender significativamente, o aluno tem que manifestar uma disposição para relacionar, de maneira não-arbitrária e não-literal (substantiva), à sua estrutura cognitiva, os significados que capta a respeito dos materiais educativos, potencialmente significativos, do currículo. (MOREIRA, 1997, p.16) Nesse sentido pretende-se, neste trabalho, analisar se os conhecimentos veiculados no texto "Nosso Universo", com a mediação do professor, proporcionam situações de ensino que levem à aprendizagem significativa. Assim, apresenta-se a seguinte questão sintética que procura explicitar o objetivo central do presente trabalho no referencial de aprendizagem 31 significativa, já discutido: A utilização de textos paradidáticos, com a mediação do professor, pode facilitar a ocorrência de episódios de ensino e de aprendizagem significativa? Mediante esses pressupostos teóricos, ressaltamos alguns aspectos relacionados à aprendizagem significativa que levaremos em consideração para a análise da dinâmica das interações estabelecidas no decorrer da atividade relativa à presente pesquisa. Assim, será considerado que aprender significativamente um determinado conteúdo se caracteriza pela interação entre conhecimentos novos e prévios (MOREIRA, 1997). Nessa interação, o conhecimento novo adquire significados para o aluno e o conhecimento prévio é enriquecido, tornando-se mais elaborado em termos de significados, bem como mais estável (MOREIRA, 2000). Nesse processo os seguintes aspectos são fundamentais para que ocorra a aprendizagem significativa: - A aprendizagem significativa se dá quando o novo conhecimento ancora-se em conceitos já existentes na estrutura cognitiva do aluno (MOREIRA, 1995); - O novo conhecimento se relaciona de forma não arbitrária e substantiva à estrutura cognitiva do aluno (MOREIRA, 1997). - Para que ocorra aprendizagem significativa, é necessário que o material utilizado, no caso o texto “Nosso Universo”, seja potencialmente significativo para o aluno, ou seja, que o mesmo possa ser incorporado à estrutura cognitiva do aluno de modo não arbitrário e não literal. Isso implica “não só que o material seja suficientemente não arbitrário em si, de modo que possa ser aprendido, mas também que o aprendiz tenha disponível em sua estrutura cognitiva os subsunçores adequados” (MOREIRA, 1995, p.6). Assim, o aluno deve ter um conhecimento prévio adequado para aprender o conteúdo específico. - Para que ocorra aprendizagem significativa o aluno deve apresentar uma pré- disposição (intencionalidade) para aprender, ou seja, “uma disposição para relacionar de maneira substantiva e não arbitrária o novo material, potencialmente significativo, a sua estrutura cognitiva” (MOREIRA, 1995, p.6). Para tal, é necessário que o aluno esteja motivado para aprender, o que está vinculado ao ato de querer aprender. - Aprender significativamente um determinado conteúdo, não implica necessariamente em aprender corretamente de acordo com um determinado referencial esse conteúdo. - Aprender significativamente um determinado conteúdo, não implica em adquirir um conhecimento que nunca será esquecido. 32 Mediante os referidos aspectos e características, pode-se dizer que é da interação entre o conhecimento novo e o conhecimento prévio que emergem, para o aprendiz, os significados dos materiais potencialmente significativos, bem como que o conhecimento prévio se modifica pela aquisição de novos significados, ocorrendo assim uma aprendizagem significativa. Entretanto, se o material de aprendizagem for relacionável à estrutura cognitiva apenas de maneira arbitrária e literal, a aprendizagem é dita mecânica, ocorrendo memorizações sem reflexões, significados e interação com a estrutura cognitiva (Moreira, 2000). Na medida em que o nosso trabalho está relacionado à utilização de um recurso metodológico relacionado à leitura do texto paradidático intitulado “Nosso Universo” nas aulas de física, no sentido de analisarmos os resultados decorrentes da relação triádica entre o professor, os alunos e o referido texto, optamos por avaliar a compreensão dos alunos a partir da referida interação, sob a ótica da aprendizagem significativa crítica (MOREIRA, 2000). Assim, será analisado se a postura do professor aliada à utilização do texto “Nosso Universo” pode mediar a facilitação da referida aprendizagem por parte do aluno fundamentada nos oito princípios anteriormente destacados, no presente capítulo, por Moreira (2000). Com isso, a partir dos argumentos dos alunos, procuraremos identificar se os mesmos demonstram que da interação entre os conhecimentos prévios e os novos, abordados no texto e emergentes das discussões mediadas pelo professor, constituem-se novos significados para os estudantes, de modo que os novos conhecimentos passam a ser significativos para os mesmos e os prévios são enriquecidos, tornando-se mais elaborados em termos de significados, bem como mais estáveis. Desse modo, a partir do momento em que o aluno estabelecer a articulação entre o novo conhecimento e o seu conhecimento prévio, consideraremos a ocorrência de aprendizagem significativa por parte do mesmo. Entretanto, é importante destacar que o resultado dessa relação pode ser diferente para cada um, uma vez que a atribuição de significados depende diretamente da maneira como cada aluno estabelece a referida articulação. Assim, destacamos que nem sempre a compreensão do aluno acerca de um determinado conceito, decorrente da relação entre as idéias prévias e o novo conhecimento, por ele estabelecida, corresponde à compreensão do conceito de forma coerente com as explicações atualmente aceitas pela comunidade científica. 33 2. O PROCESSO DISCURSIVO E A SALA DE AULA O presente capítulo destaca alguns aspectos relacionados ao processo discursivo, abordando inicialmente as relações entre discurso, linguagem e sociedade, explicitando as manifestações ideológicas associadas à linguagem e por conseqüência a sua não neutralidade. Discute, ainda, as implicações que a concepção de sujeito social interpelado pela ideologia provoca na análise de discurso, como se dá a formação da linguagem para a referida concepção de sujeito e a interpretação de significação que se fundamenta nas relações discursivas, apresentando algumas formas discursivas que podem se enquadrar em uma sala de aula. A seguir são discutidos os modelos de análise de discurso que servirão de subsídios para a elaboração das categorias de análise referentes à presente pesquisa. 2.1. Tecendo algumas considerações sobre o discurso Segundo Orlandi (2002a), embora a análise do discurso tenha interesse tanto pela língua quanto pela gramática, trata do discurso, cuja palavra apresenta a idéia de curso, percurso, palavra em movimento, de modo a compreender a língua como “parte do trabalho social geral, constitutivo do homem e da sua história” (p.15). Na análise do discurso, a linguagem é mediadora entre o homem e a sua “realidade natural e social” (p.15), tratando a língua como um sistema material, com modos de significação, considerando assim, os “processos e as condições de produção da linguagem” (p.16), ou seja, a linguagem enquanto discurso, segundo Brandão (2002), não é neutra, inocente ou natural, mas “um modo de produção social” (p.12), privilegiando assim, a “manifestação da ideologia”. Segundo Pêcheux (1997), “a língua se traduz pelo fato de que todo processo discursivo se inscreve numa relação ideológica de classes” (p.92). Para Bakhtin (1995), a língua, como todo signo, é determinada pela ideologia, que é “reflexo das estruturas sociais” (p.15), correspondendo a um “fato social, cuja existência se funda nas necessidades da comunicação” (p.14). Um dos elementos essenciais da comunicação é a linguagem, sendo a palavra um “fenômeno ideológico por excelência” (p.36). Oliveira (2003) afirma que a análise do discurso entende que o sentido não é dado a priori, mas constituído no discurso e considerado em “relação a”, pois as palavras mudam de sentido conforme a posição de quem as emprega, isto é, tomam sentido em referência às formações ideológicas. 34 É importante ressaltar que as noções de ideologia consideradas em questão correspondem às explicitadas por Brandão (2002, p.26,27): De um lado, temos uma concepção de ideologia geralmente ligada à tradição marxista, que apresenta o fenômeno ideológico de maneira mais restrita e particular, entendendo-o como o mecanismo que leva ao escamoteamento da realidade social, apagando as contradições que lhes são inerentes. Esse tipo de discurso, denominado ideológico, é utilizado para legitimar e perpetuar o poder de uma determinada classe (dominante) ou grupo social. De outro lado, temos uma noção mais ampla de ideologia que é definida como uma visão, uma concepção de mundo de uma determinada comunidade social numa determinada circunstância histórica. Essa noção mais abrangente de ideologia leva à vinculação entre linguagem (signo) e ideologia (sentido), uma vez que “a primeira é uma das instâncias mais significativas em que a segunda se materializa” (p.27). A segunda noção de ideologia leva à compreensão de que a linguagem é o lugar em que a mesma se manifesta concretamente, ou seja, a partir da idéia de que “a materialidade específica da ideologia é o discurso e a materialidade específica do discurso é a língua”, a análise do discurso “trabalha a relação língua-discurso-ideologia” (ORLANDI, 2002a, p.17). Essa relação pode ser complementada pelo fato de que o sentido de um discurso “é determinado pelas posições ideológicas que estão em jogo no processo sócio-histórico” (PÊCHEUX, 1997, p.160) em que o sujeito está inserido. Esse caráter material do sentido se constitui na sua dependência do que Pêcheux (1997) denomina “o todo complexo das formações ideológicas” (p.160), especificando essa dependência por meio das seguintes teses: 1) O significado de uma palavra, expressão, etc, “é determinado pelas posições ideológicas que estão em jogo no processo sócio-histórico” (p.160) em que as mesmas são produzidas, ou seja, o sentido dessas palavras, expressões etc, variam de acordo com as “posições sustentadas” por quem as utilizam, adquirindo um “sentido de referência” determinado pelas “formações ideológicas” em que essas posições estão inscritas. Pêcheux chama de “formação discursiva” o que, mediante uma dada formação ideológica, determina o que pode ser dito. 2) “Toda formação discursiva dissimula, pela transparência do sentido que nela se constitui sua dependência” com relação ao interdiscurso (“todo complexo com dominante”), que corresponde a todo o conjunto de formulações já produzidas e esquecidas que determinam o que se diz. Isso significa que toda “formação discursiva” dissimula a objetividade material do 35 interdiscurso, “que reside no fato de que ‘algo fala’ sempre ‘antes, em outro lugar e independentemente’, isto é, sob a dominação do complexo das formações ideológicas”. Desse modo, “o funcionamento da ideologia em geral como interpelação dos indivíduos em sujeitos” de seu discurso realiza-se por meio do “complexo das formações ideológicas”, fornecendo “‘a cada sujeito’ sua ‘realidade’, enquanto sistema de evidências e de significações percebidas – aceitas – experimentadas” (p.162). Sendo assim, a análise do discurso corresponde a um efeito de sentidos produzidos em determinadas condições, havendo uma relação entre a linguagem e o contexto de sua produção. Segundo Orlandi (2001), a análise do discurso corresponde a uma “teoria crítica que trata da determinação histórica dos processos de significação” (p.12), trabalhando assim, “os processos e as condições de produção de linguagem”. Brandão (2002, p.89) propõe, a partir das idéias de Courtine (1981) e Pêcheux (1997), a seguinte definição para as condições de produção de linguagem: “constituem a instância verbal de produção do discurso: o contexto histórico-social, os interlocutores, o lugar de onde falam, a imagem que fazem de si e do outro e do referente”. A análise do discurso prioriza a compreensão do processo discursivo, problematizando a atribuição de sentidos, buscando expor a materialidade dos sentidos, bem como os processos de constituição dos sujeitos que instituem o funcionamento discursivo do texto (ORLANDI, 2001, p.13). Na análise do discurso, a concepção de sujeito deixa de ser imanente, de modo que o sujeito da linguagem não é o sujeito em si, mas o sujeito social, “interpelado pela ideologia”. Desse modo, não corresponde à fonte absoluta do sentido, pois “na sua fala outras falas se dizem” (BRANDÃO, 2002, p.92). Essa noção de sujeito denota que para que seja possível a realização da análise do discurso, torna-se necessário a superação da ilusão de ser o sujeito, a fonte, a origem de seu discurso. Segundo Orlandi (2002a, p.35): embora se realizem em nós, os sentidos apenas se representam como originando-se em nós: eles são determinados pela maneira como nos inscrevemos na língua e na história e é por isso que significam e não pela nossa vontade. Quando nascemos os discursos já estão em processo e nós é que entramos nesse processo. Eles não são origem em nós. Segundo Lemke (1997, p.112), quando um sujeito constrói “um significado ou uma relação de significados entre itens temáticos utilizando a linguagem”, está simplesmente “reconstruindo” fundamentado num modelo que alguém construiu antes dele. Ele pode não usar exatamente as mesmas palavras, mas produz o “mesmo padrão de significado”. 36 A ilusão de o sujeito ser a fonte do sentido é superada mediante a percepção de que qualquer formação discursiva pertence a uma determinada formação ideológica, formação essa que determina o que pode e deve ser dito a partir das convenções sociais particulares dentro de uma dada conjuntura. No entanto, essa ilusão, ou esse esquecimento involuntário é necessário para que a linguagem funcione no sujeito e na atribuição de significados. O esquecimento (do que já foi dito) ocorre para que o sujeito se identifique com o que diz e assim, se constitua em sujeito (ORLANDI, 2002a). Assim, na formação discursiva da linguagem, “a relação entre as condições sócio-históricas e as significações de um texto é constitutiva e não secundária” (ORLANDI, 2001, p.27). Desse modo, essa formação da linguagem se dá mediante a articulação (tensão) entre os processos parafrásicos e polissêmicos (ORLANDI, 2001, p.27), em que o primeiro é aquele no qual em todo o dizer existe algo que se mantém (a memória), constituindo-se a partir do retorno constante a um “mesmo dizer sedimentado”, enquanto o segundo aponta para o rompimento dos processos de significação, constituindo a “força na linguagem que desloca o mesmo, o garantido, o sedimentado”, o que gera a “tensão entre o texto e o contexto histórico social” (p.27). É nessa tensão entre os processos parafrásicos e polissêmicos, entre o retorno ao já dito e seu deslocamento (entre o mesmo e o diferente) que sujeitos e significados se movimentam, de modo que nem os sujeitos nem os significados já estão prontos, acabados, havendo sim um movimento contínuo, o que faz com que tanto o sujeito quanto o sentido possam sofrer mudanças. Mediante esse jogo entre paráfrase e polissemia é que, na análise do discurso, se faz a distinção entre produtividade e criatividade, sendo a primeira regida pelo processo parafrásico, mantendo o sujeito num retorno contínuo ao “mesmo espaço dizível”, enquanto na segunda ocorre o rompimento do “processo de produção da linguagem”, a partir do “deslocamento das regras”, da produção de movimentos que interferem na relação entre sujeitos e sentidos e a história e a língua, o que leva à mudança na produção de sentidos. Mas para que haja a criatividade, é necessário o conflito entre o que já existe e o que vai se instituir (ORLANDI, 2002a). Para Foucault (1972), pode-se tratar o conjunto de discursos tentando-se encontrar, “além dos próprios enunciados, a intenção do sujeito falante, sua atividade consciente, o que ele quis dizer, ou ainda o jogo inconsciente que veio à luz, apesar dele, no que disse ou na quase imperceptível fratura de suas palavras manifestas”, ou ainda, “trata-se de reconstituir um outro discurso (...)” (p.39). 37 Assim, para a elaboração da análise discursiva torna-se necessária a compreensão do enunciado “na estreiteza e singularidade” em que o mesmo acontece, determinando as condições de sua existência, fixando seus limites, estabelecendo suas relações com outros enunciados e destacando as formas de enunciação que são excluídas (FOUCAULT, 1972). Mediante essas colocações, pode-se dizer que as significações se dão a partir de relações o que resulta no fato de que todo discurso aponta para outros que o sustentam, de modo que “todo discurso é visto como um estado de um processo discursivo mais amplo, contínuo” (ORLANDI, 2002a, p.39), não havendo começo ou fim para um discurso. Assim, como afirma Bakhtin (1995), a “língua constitui um processo de evolução ininterrupto, que se realiza através da interação verbal social dos locutores” (p.127), não podendo, o discurso ser considerado como uma simples transmissão de informação, mas sim como um “efeito de sentidos entre locutores” como parte do funcionamento social (ORLANDI, 2001, p.26), que se dá por meio da interação entre esses locutores. Bakhtin (1995) afirma que o ato de fala, ou mais especificamente, o seu produto, a enunciação, não pode ser considerada individual, pois, pelo fato de ser de natureza social, constitui-se a partir da interação entre “indivíduos socialmente organizados” (p.112), ou da interação entre locutor e ouvinte, comportando assim duas faces. A palavra é uma espécie de ponte lançada entre mim e os outros. Se ela se apóia sobre mim numa extremidade, na outra apóia-se sobre o meu interlocutor. A palavra é o território comum do locutor e do interlocutor. (Bakhtin, 1995, p.113) A estrutura, ou ainda, a forma e o estilo da enunciação são determinados pela situação social e pelos participantes mais imediatos, de modo que a interação entre os interlocutores é marcada pelas condições de produção do discurso, que implicam em considerar a materialidade da língua, a formação social em questão (contexto) e o “mecanismo imaginário”, que é responsável pela formação das imagens dos sujeitos envolvidos no processo discursivo, bem como do objeto do discurso. Dessa forma tem-se a imagem do sujeito locutor, do sujeito interlocutor e do objeto do discurso (do que se fala), formando-se assim um “jogo imaginário que preside a troca de palavras” (ORLANDI, 2002a, p.40). Assim, na relação discursiva são as imagens que constituem as diferentes posições. Nesse jogo de imagens inclui- se a antecipação que consiste na “imagem que o locutor faz da imagem que seu interlocutor faz dele, a imagem que o interlocutor faz da imagem que ele faz do objeto do discurso e assim por diante” (p.40). Esse jogo de imagens pode influenciar no tipo de discurso utilizado nessa interação. Orlandi (2001, p.15) classifica os discursos em: lúdico, polêmico e autoritário, de modo que a distinção entre eles é explicitada por meio das condições de produção do discurso, ou seja, 38 explicita-se na relação entre os interlocutores e o objeto do discurso. Um outro critério de distinção entre eles é a reversibilidade. - Discurso lúdico: o objeto do discurso (referente) se “mantém presente enquanto tal e os interlocutores se expõem a essa presença”, o que resulta numa “polissemia aberta”, mantendo-se por meio da reversibilidade. - Discurso polêmico: a presença do objeto de discurso se mantém, mas os interlocutores não se expõem a essa presença, mas, ao invés disso, “procuram dominar o seu referente, dando-lhe uma direção, indicando perspectivas particularizantes pelas quais se o olha e se o diz, o que resulta na polissemia controlada”, de modo que a reversibilidade se faz sob condições determinadas. - Discurso autoritário: “o referente está ‘ausente’, oculto pelo dizer; não há realmente interlocutores, mas um agente exclusivo, o que resulta na polissemia contida”, de modo que há um estancamento da reversibilidade. 2.2. A prática discursiva em sala de aula Orlandi (2001) classifica o discurso pedagógico, na forma como se apresenta hoje, como autoritário, portanto, sem neutralidade alguma, podendo ser denominado de “discurso do poder” em que a estratégia utilizada é a do “esmagamento do outro”. Define esse discurso como circular, ou seja, “um dizer institucionalizado, sobre as coisas, que se garante, garantindo a instituição em que se origina e para a qual tende: a escola” (p.28), que é tratada como sede da reprodução cultural, e o sistema de ensino como sendo a solução mais dissimulada para o problema da transmissão de poder, ao contribuir para a reprodução da estrutura das relações de classe mascarando sob a aparência da neutralidade o cumprimento dessa função. (BOURDIEU, apud ORLANDI, 2001, p.28) Como discurso autoritário, as formações imaginárias se dão de modo que a imagem social do aluno é a de que nada sabe e está na escola para aprender (tutelado), enquanto a imagem social do professor é daquele que possui o conhecimento e está na escola para ensinar, de modo que a imagem que o aluno tem do professor é de autoridade, podendo chegar ao que a autora denomina de “hipertrofia da autoridade” em que o professor tem essa imagem de si próprio. Essas características levam a um discurso individualizado e de “perguntas diretas e sócio-cêntricas: “Não é verdade?”, “Percebem?”, “Certo?”, etc” (ORLANDI, 2001, p.17). No discurso pedagógico, ensinar significa “inculcar”, o que pode se caracterizar por meio de vários fatores relativos ao discurso que pertencem a “ordem social” em que o sujeito 39 está inserido, tais como as seguintes leis gerais do discurso (DUCROT, 1972, apud ORLANDI, 2001, p.17): - lei da informatividade: para que seja passada uma informação, é necessário que o ouvinte desconheça a informação; - lei do interesse: só se pode falar legitimamente a alguém sobre o que lhe interessa; - lei da utilidade: relaciona-se à noção utilitarista da linguagem, em que se fala porque há uma utilidade nesse falar. Além dessas leis, existe uma “regulamentação para cada categoria de atos de fala” em que, por exemplo, o ato de ordenar e de interrogar exige uma “relação hierárquica entre quem ordena e quem obedece” (p.18). A autora afirma que, no discurso pedagógico, embora seja mantida a regulamentação em que o professor enquanto autoridade ordena e interroga, há um “mascaramento” das leis gerais de interesse e de utilidade por meio da “legitimidade do conhecimento escolar” e da “motivação pedagógica” (p.31), cujo papel é o de criar o “interesse” e a “visão de utilidade”. A cientificidade se estabelece segundo dois aspectos: o sistema de ensino autoriza o professor, atribuindo-lhe a posse da metalinguagem; a apropriação do cientista pelo professor confundindo-se com ele, ao invés de atuar como mediador. Nesses aspectos ocorre o mascaramento relativo à lei da informatividade, ocorrendo um apagamento na forma pela qual o professor se apropria do “conhecimento do cientista, tornando-se ele próprio possuidor daquele conhecimento”. Desse modo, “a voz do saber fala no professor” (p.21). E assim resolve-se a questão das três leis gerais do discurso: o professor “informa”, surgindo assim o “interesse” e a “utilidade”, pois se a autoridade falou, então é importante, tornando-se interessante e útil. Embora o discurso pedagógico seja um discurso institucional e, como tal, reflete a ordem social na qual está inserido, em que se mostra autoritário se as relações sociais são autoritárias, Orlandi (2001) sugere a superação desse autoritarismo propondo ao professor que assuma uma postura polêmica, construindo “seu texto, seu discurso, de maneira a expor-se a efeitos de sentidos possíveis”, deixando um espaço para o ouvinte em seu discurso, construindo a possibilidade de ele mesmo colocar-se como ouvinte “do próprio texto e do outro” (p.32). Propõe ao aluno “uma maneira de instaurar o polêmico e exercer sua capacidade de discordância”, não aceitando o que “o texto propõe e o garante em seu valor social: é a capacidade do aluno de se constituir ouvinte e se construir como autor na dinâmica da interlocução”, não aceitando o que é dito como verdade inquestionável, bem como a estagnação no seu papel enquanto ouvinte (p.33). Desse modo, tanto professor, quanto alunos atuam como “produtores da instância de interlocução”, interagindo simultaneamente, de modo que cada um possa se colocar como sujeito crítico, “mergulhado no social que o envolve”, estabelecendo-se assim, uma relação 40 menos hierarquizada entre os mesmos, propondo então que se busque um discurso pedagógico que seja, no mínimo, polêmico. Como exemplo de um discurso polêmico, destaca-se a estrutura de atividade dialógica em sala de aula corresponde ao “diálogo triádico” (LEMKE, 1997), cuja estratégia principal de desenvolvimento é a seqüência de perguntas colocadas pelo professor. Essas perguntas são inter-relacionadas tematicamente e, como um todo, “constroem um conjunto de vínculos semânticos importantes para a estrutura do tema em discussão” (p.114). Com isso, o professor controla o desenvolvimento temático por meio de suas ações e perguntas, de modo que sempre que os alunos fornecem as “respostas tematicamente corretas, o diálogo triádico proporciona uma exposição eficiente das relações temáticas” (p.115). No entanto, Lemke destaca que, algumas vezes, quando os alunos não fornecem a resposta esperada pelo professor, o mesmo pode escutar várias repostas e eleger, por meio de repetição, a que se encaixa no padrão temático que ele pretende desenvolver. Essa estratégia parece estar mais relacionada ao discurso autoritário. 2.2.1. A argumentação como um recurso metodológico de mediação Os PCNEM (BRASIL, 2002) apontam para a necessidade de se promover um ensino de ciências de modo a viabilizar ao aluno o desenvolvimento de competências que contribuam para o seu desenvolvimento em nível pessoal e como agente transformador da sociedade. Para tal, é necessária a utilização de metodologias que priorizem a utilização de estratégias que têm como pano de fundo a argumentação, a fim de subsidiar o desenvolvimento da criatividade e do senso crítico. Leitão (2003) define a argumentação como uma atividade no campo do discurso que se dá mediante a justificativa de pontos de vista, considerando-se que os mesmos podem estar sujeitos a objeções, com o objetivo de convencer os oponentes da viabilidade desses pontos de vista. Assim, para que a argumentação se sustente, é necessária a pluralidade de pontos de vista sobre temas polêmicos, sendo fundamental que o proponente de um ponto de vista esteja em condições de defendê-lo por meio de justificativas convincentes dirigidas aos oponentes que contra-argumentaram as colocações iniciais do proponente. A existência da argumentação pressupõe uma perspectiva dialógica que se institui mediante a relação mundo-pensamento-linguagem, uma vez que a característica humana de pensamento, conhecimento e funcionamento psicológico, expressa em suas atividades, é mediada pela linguagem e tem a gênese na dimensão sócio-histórica. 41 Além disso, a argumentação concebida enquanto atividade dialógica tem o seu funcionamento e sua estrutura dependentes também dos objetivos do proponente, do tipo de público interlocutor, da natureza do conteúdo em questão etc (LEITÃO, 2003). Compreende-se assim a argumentação como um recurso metodológico de mediação que viabiliza a construção do conhecimento por meio da elaboração e reelaboração de perspectivas sobre o objeto discutido, o que lhe confere uma dimensão epistêmica. Em outras palavras, na medida em que o sujeito faz enunciações sobre o objeto de estudo, ocorre a construção do conhecimento, o que implica no fato de que qualquer estratégia metodológica, utilizada em sala de aula, institui uma relação de dependência entre construção do conhecimento acerca do conteúdo trabalhado, do pensamento e da linguagem. Para a produção do conhecimento não basta a interação entre sujeito/objeto e o desenvolvimento das estruturas mentais do mesmo. O que compele o sujeito ao conhecimento é o ato de falar sobre o objeto, de modo que o objeto é constituído pelo sujeito na sua relação com o outro. Essa relação dialógica sugere que os “Interlocutores compartilhem conhecimentos, representações, atitudes, percepções (...)” (COSTA, 2003). Na medida em que o sujeito faz enunciações sobre o objeto de estudo, ocorre a construção do conhecimento. O objeto do conhecimento se constitui mediante o seu significado atribuído pelo sujeito inserido em um contexto no qual estão estabelecidas normas sociais caracterizadas pela cultura e pela ideologia. Assim, mediante essa premissa, o foco de interesse em sala de aula de ciências é conferido ao processo de produção do discurso, às condições nas quais esse discurso é produzido e seus efeitos. Todo discurso é sustentado pela intenção do seu autor e pelo conjunto de hipóteses que comportam tanto o conteúdo das premissas escolhidas quanto “as ligações particulares utilizadas para organizar as premissas e ainda o modo de se servir dessas ligações” (COSTA, 2003). O modo pelo qual esse autor escolhe essas premissas resulta da representação que o mesmo tem de seus interlocutores e tem como ponto de partida as hipóteses do locutor. Na perspectiva do professor, a retórica de seu discurso “constitui-se das escolhas nas quais ele se engaja para desenvolver seu raciocínio argumentativo” (COSTA, 2003). Essa retórica relaciona-se ao poder de persuasão desse discurso, o que corresponde ao cerne do problema educativo. É necessário que o professor organize o trabalho em sala de aula de modo a estabelecer um ambiente favorável ao diálogo, levando os alunos a elaborarem perguntas que gerem idéias, levando-os a novos questionamentos e à reelaboração de significados. 42 Mediante as conjecturas traçadas anteriormente, considera-se que para a realização da análise do discurso argumentativo em sala de aula deve-se contemplar a dinâmica do processo discursivo, enfocando o modo como as argumentações levam os alunos à reflexão, favorecendo a construção de significados e a transformação de suas perspectivas iniciais. Desse modo, o reconhecimento do papel da linguagem e das interações discursivas, como elementos mediadores da elaboração dos conhecimentos científicos em aulas de ciências, é fundamental. Assim, a análise da dimensão discursiva do processo de ensino e aprendizagem em aulas de ciências visa à investigação de como os significados são gerados e desenvolvidos por meio da utilização da linguagem. Essa investigação tem como pano de fundo a forma como esses significados são construídos no contexto social da sala de aula. Nesse contexto o caráter dialógico da linguagem é essencial (BAKHTIN, apud VILLANI e NASCIMENTO, 2003), uma vez que um enunciado não existe de forma isolada, correspondendo a um elemento de ligação entre um enunciado precedente e outr