UNIVERSIDADE ESTADUAL PAULISTA “JÚLIO DE MESQUITA FILHO” FACULDADE DE CIÊNCIAS – CAMPUS DE BAURU Pós-graduação em Psicologia do Desenvolvimento e Aprendizagem ARIELA CURSINO LANFRANCHI O DISTÚRBIO PSICOSSOMÁTICO EM WINNICOTT BAURU 2025 ARIELA CURSINO LANFRANCHI O Distúrbio Psicossomático em Winnicott Dissertação apresentada como requisito para obtenção do título de Mestre à Universidade Estadual Paulista “Júlio de Mesquita Filho” - Programa de Pós-Graduação em Psicologia do Desenvolvimento e Aprendizagem. Área de concentração Desenvolvimento: Comportamento e Saúde, sob a orientação da Prof.ª Dr.ª Patrícia Porchat Pereira da Silva Knudsen e Co-orientação da Prof.ª Drª. Josiane Cristina Bocchi. BAURU 2025 ​ AGRADECIMENTOS Gostaria de agradecer a todos que fizeram parte da construção deste trabalho, direta ou indiretamente. Em primeiro lugar, agradeço à minha base, à minha família pelo cuidado, pelo incentivo ao estudo e por possibilitarem com que eu chegasse aqui hoje. Palmira, Lourenço, Matheus e Lucca, sem vocês, nada disso seria possível. Agradeço ao meu companheiro Matheus, por me ouvir, pela paciência e pela vida compartilhada. Agradeço também aos amigos: Nathalie, Rafaela, Amanda, Victoria, Caique, Pedro, Adele, Rogério, Djalma, Jeniffer, Ana Flávia, Camila, Mariana, Anna, Thais, Yasmin, Larissa, entre outros tão importantes. Obrigada por todo o acolhimento e encorajamento, vocês dão mais cor à vida! Agradeço às minhas orientadoras que se disponibilizaram a enfrentar esse desafio de estudar uma teoria tão complexa. Professora Patricia, obrigada por me ajudar a crescer tanto nesses últimos anos. Professora Josiane, obrigada pelo acompanhamento cauteloso desde a iniciação científica. Também agradeço à Unesp, pela oportunidade de fazer mestrado numa universidade pública, e aos professores que me permitiram trilhar um caminho no espaço entre saberes. Obrigada professor Érico, por estar presente em momentos de crise com a teoria psicanalítica, desde os meus primeiros anos na graduação. Obrigada professor Hugo, pela permissão de trazer a dança para a psicologia, e professor Edson, por me iniciar na trajetória acadêmica. Por fim, agradeço à minha analista Kele, que, em momentos difíceis, me ajudou a resgatar o sentido da pesquisa acadêmica. Assim como Winnicott propõe, acredito que o nosso caminho na vida é marcado por fases e estágios do amadurecimento. Esse trabalho só pôde tomar forma após meu aprendizado pessoal, profissional e acadêmico acompanhado de pessoas importantes e queridas. Obrigada a todos vocês por tanto! O presente trabalho foi realizado com o apoio da Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior – Brasil (CAPES) – Código de financiamento 001. “O que faz com que eu experimente uma grande dor é possuir um corpo. Se não tivesse corpo, que dor poderia experimentar?” Lao Tsé LANFRANCHI, Ariela Cursino. O distúrbio psicossomático em Winnicott. 2025. 108f. Dissertação (Mestre em Psicologia, área de Desenvolvimento e Aprendizagem) - UNESP, Faculdade de Ciências, Bauru, 2025. RESUMO O distúrbio psicossomático representa um desafio na clínica psicanalítica por situar-se numa área de intersecção entre saberes e devido às características dos pacientes que dificultam o manejo clínico do caso, como a incapacidade de simbolização, o distanciamento afetivo e a negação da relação entre estados emocionais e doenças biológicas. Winnicott diferencia o verdadeiro distúrbio psicossomático dos fenômenos psicossomáticos, ao defini-lo como um sistema defensivo, decorrente da não conquista da integração psicossomática, formado por cisões e dissociações. O objetivo geral deste trabalho foi investigar a etiologia do distúrbio psicossomático em Winnicott e suas manifestações clínicas. De modo específico, objetivou-se compreender a diferença entre existência psicossomática e integração psicossomática para o distúrbio psicossomático, além de discutir as noções de cisão e dissociação presentes nesse quadro. Tratou-se de uma pesquisa teórica de cunho conceitual, guiada pela hermenêutica psicanalítica. Através de vinhetas clínicas e de uma análise interpretativa dos textos de Winnicott e dos seus comentadores, os resultados apontaram que a etiologia do distúrbio psicossomático está relacionada ao cuidado insuficiente na fase de dependência absoluta. Falhas recorrentes nas funções maternas de holding e handling comprometem a boa fruição da existência psicossomática, dificultando a transição entre os estados tranquilos e excitados e impedindo a passagem da não-integração para a integração psicossomática. Diante dessas falhas ambientais, o bebê é confrontado com ansiedades inimagináveis e o medo da aniquilação, não conseguindo alcançar a integração psicossomática. Nesse contexto, a desintegração emerge como uma defesa, acompanhada pelos mecanismos da cisão e da dissociação. A cisão atua como um mecanismo de defesa primitivo que segrega o conteúdo traumático sem representação psíquica, podendo gerar uma ruptura entre psique e soma ou entre a mente e o psicossoma. Já a dissociação resulta da manutenção da cisão em um ambiente continuamente falho, favorecendo: a construção do falso self, os estados de despersonalização em que a pessoa sente não habitar o próprio corpo, o distanciamento entre a percepção do corpo anatômico e os estados emocionais, a formação da psique-mente e a disseminação dos agentes responsáveis. Concluiu-se que é possível derivar do estudo da etiologia do distúrbio psicossomático, em Winnicott, contribuições para o manejo clínico desses casos, evidenciando o aspecto positivo da patologia, aprimorando a técnica psicanalítica e ampliando o diálogo entre a psicossomática e a teoria winnicottiana. Palavras-chave: Psicossomática. Winnicott. Psicanálise. LANFRANCHI, Ariela Cursino. The Psychosomatic Disorder in Winnicott. 2025. 108f. Dissertation (Master’s in Psychology of Development and Learning) - UNESP, Faculdade de Ciências, Bauru, 2024. ABSTRACT The psychosomatic disorder presents a challenge in psychoanalytic practice due to its position at the intersection of different fields of knowledge and because of the characteristics of the patients, which complicate clinical management, such as the inability to symbolize, emotional detachment, and the denial of the relationship between emotional states and biological illnesses. Winnicott differentiates true psychosomatic disorder from psychosomatic phenomena by defining it as a defensive system, resulting from the failure to achieve psychosomatic integration, formed by splits and dissociations. The general objective of this study was to investigate the etiology of psychosomatic disorder in Winnicott and its clinical manifestations. Specifically, it aimed to understand the difference between psychosomatic existence and psychosomatic integration regarding psychosomatic disorder, as well as to discuss the notions of splitting and dissociation present in this condition. This was a theoretical, conceptual research guided by psychoanalytic hermeneutics. Through clinical vignettes and an interpretative analysis of Winnicott's texts and those of his commentators, the results indicated that the etiology of psychosomatic disorder is related to insufficient care during the stage of absolute dependence. Recurrent failures in the maternal functions of holding and handling compromise the healthy unfolding of psychosomatic existence, making it difficult for the infant to transition between calm and excited states and preventing the shift from non-integration to psychosomatic integration. In the face of these environmental failures, the baby is confronted with unthinkable anxieties and the fear of annihilation, thus failing to achieve psychosomatic integration. In this context, disintegration emerges as a defense, accompanied by the mechanisms of splitting and dissociation. Splitting acts as a primitive defense mechanism that segregates traumatic content without psychic representation, potentially generating a rupture between psyche and soma or between the mind and the psychosoma. Dissociation, in turn, results from the maintenance of splitting in a continuously failing environment, leading to: the construction of the false self, states of depersonalization in which the person feels detached from their own body, the distancing between the perception of the anatomical body and emotional states, the formation of the psyche-mind, and the dispersion of responsible agents. It was concluded that the study of the etiology of psychosomatic disorder in Winnicott offers contributions to the clinical management of these cases, highlighting the positive aspect of the pathology, enhancing psychoanalytic technique, and expanding the dialogue between psychosomatics and Winnicottian theory. Keywords: Psychosomatics. Winnicott. Psychoanalysis. SUMÁRIO APRESENTAÇÃO………………………………………………………..…………………11 INTRODUÇÃO…………………………………………………………….………………..14 1. CAPÍTULO 1: Existência psicossomática……………………………………….............22 1.1 Psique, soma, mente e psicossoma………………………………………………………..25 1.2 A elaboração imaginativa das funções corpóreas…………………………..………….…27 1.3 A existência psicossomática na clínica pediátrica….……………………………….……30 1.4 A teoria do desenvolvimento emocional de Winnicott…………………………………...35 1.5 As fases do desenvolvimento………………………………………………….………….39 1.6 A mãe suficientemente boa……………………………………………………….………40 1.7 O cuidado e os estágios do desenvolvimento………………………………………..……42 1.8 As funções maternas: rumo à integração psicossomática………………………………...44 2. CAPÍTULO 2: Integração psicossomática……………………………….…………...….46 2.1 Integração, não-integração e desintegração………………………………………………50 2.2 A relação entre as funções maternas e as tarefas fundamentais…………………………..53 2.3 Estados tranquilos e estados excitados……………………………………….…………...58 2.4 Espontaneidade x reatividade…………………………………………………..…………61 2.5 As falhas na integração…………………………………………………………………...64 2.5.1 Falso self …………………………………………………………………….……...….64 2.5.2 As ansiedades inimagináveis……………………………………………………...……66 3. CAPÍTULO 3: Distúrbio psicossomático………………………………………………...69 3.1 A dissociação e a disseminação dos agentes responsáveis ….…………………………...73 3.2 O cuidado insuficiente…………………………………………………………………....75 3.3 Cisão e dissociação……………………………………………………………………….78 3.4 O distúrbio psicossomático com o negativo de uma tendência positiva………………….85 3.5 A técnica anlítica na clínica do distúrbio psicossomático………………………………...87 4. CONSIDERAÇÕES FINAIS…………………………………………………..……...…98 5. REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS…………………………………………………102 11 APRESENTAÇÃO O interesse por este trabalho surgiu do contato que sempre tive com o entrelaçamento entre diferentes saberes. Enquanto analista em construção, minha formação como profissional e pesquisadora não se deu apenas através da graduação de psicologia e atuação com a clínica psicanalítica. Sempre tive um contato íntimo com as artes e ciências do corpo e acredito que esse interesse particular guiou minha trajetória pelo caminho do entre saberes. A identificação com a psicossomática, logo na graduação, veio da tentativa de equilibrar meus trabalhos corporais com estudos psicanalíticos. Obviamente, para mim, era impossível dissociar mente de corpo, psique de soma, pois meu olhar estava demasiadamente influenciado pelas vivências de um corpo que já fora morada de professora de dança, yoga e práticas corporais terapêuticas. Talvez, na minha pele, meu corpo me leve rapidamente para caminhos, que só depois sou capaz de entender racionalmente, mas desde o início estavam emocionalmente implicados no meu desejo. Minha trajetória acadêmica no estudo do corpo na psicanálise começou em 2019, impulsionada pelo desejo de compreender como as práticas corporais poderiam auxiliar no tratamento de adoecimentos que não possuem explicações exclusivamente biológicas. No entanto, percebi que, antes de avançar nessa questão, era essencial dar um passo atrás e entender, primeiramente, o que eram os adoecimentos psicossomáticos. Foi a partir desse impulso que fui pesquisar psicossomática na graduação e me deparei, pela primeira vez, com as chamadas “somatizações”. Iniciei minha trajetória na pesquisa acadêmica por meio de uma iniciação científica financiada pelo PIBIC, na qual investiguei as contribuições de Joyce McDougall para a psicossomática psicanalítica (Lanfranchi; Bocchi, 2020). Meu primeiro contato com a psicossomática me apresentou autores como Pierre Marty, Christian Dejours e Michel Fain, mas foi na obra de McDougall que encontrei uma teoria singular e instigante, com a qual me identifiquei. Seu uso da metáfora do teatro para abordar as somatizações, especialmente nos livros Teatros do Eu: ilusão e verdade na cena psicanalítica e Teatros do Corpo: o psicossoma em psicanálise, me cativou profundamente. A relação entre corpo, cena e expressão ressoou com minha vivência artística, marcada pela dança, pela música e pelo teatro. 12 Compreendi que o adoecimento somático, na perspectiva dessa autora, se configura como um distúrbio na economia afetiva, cuja principal característica é a carência na capacidade de simbolização. Essa falta de simbolização surge como consequência da intolerância afetiva, tanto para afetos positivos quanto negativos, que McDougall chamou de desafetação. A incapacidade de sentir, de afetar-se, conduz a um funcionamento psíquico excessivamente mental e operatório, associado não apenas ao desencadeamento de doenças físicas desprovidas de significado, mas também a adicções. Anos depois, na atuação em um centro de reabilitação para pessoas com deficiência, me vi trabalhando com inúmeros casos de patologias que apareciam no corpo e apresentavam uma facilidade para serem ditas (em relação ao estigma, à condição limitadora, por exemplo), mas que, por outro lado, escondiam um grande não dito - o significado, sua gênese e as limitações em termos de expressividade. Muitas das crianças atendidas no serviço eram diagnosticadas com autismo, TDAH e transtornos de aprendizagem. Embora esses diagnósticos fossem relativos ao funcionamento psíquico e cognitivo, todos os casos apresentavam questões psicossomáticas que demandavam uma abordagem interdisciplinar. Além disso, alguns pacientes permaneciam sem um diagnóstico específico, apresentando sintomas diversos que se manifestavam tanto em demandas corporais quanto psíquicas. Encontrei nesses casos uma característica comum: doenças crônicas e manifestações físicas que pareciam empobrecidas de significado simbólico, configurando um desafio para os profissionais que se frustravam ao tentar elaborar planos terapêuticos que acabavam falhando. A ausência de uma hipótese diagnóstica clara e os esforços de intervenção sem resultados palpáveis tornavam o tratamento desses casos especialmente difícil. Busquei entender as aparições corporais aparentemente esvaziadas de significado, distanciadas de seu simbolismo e me vi novamente trilhando um caminho no campo de estudos da psicossomática para tentar compreender esses fenômenos que acometem o corpo na expressão de suas potencialidades existenciais. A pesquisa anterior, na graduação, havia deixado uma questão em aberto: a busca por uma teoria do desenvolvimento que contemplasse uma perspectiva psicossomática e fornecesse uma origem para a intolerância afetiva que poderia desencadear a dificuldade de simbolização, doenças fisiológicas e adicções. McDougall e outros autores do campo da psicossomática psicanalítica apontavam para uma mesma direção no que dizia respeito à etiologia do adoecimento psicossomático: a teoria 13 winnicottiana. Ao perceber a influência da teoria winnicottiana em suas proposições, senti a necessidade de aprofundar-me na obra de Donald Winnicott e investigar como suas contribuições poderiam dialogar com a compreensão daquilo que eu chamara inicialmente de adoecimentos psicossomáticos e que ainda apontam para um desafio na clínica psicanalítica contemporânea. A leitura de Winnicott teve um impacto profundo tanto no meu gosto pela pesquisa quanto na minha prática clínica. A cada conceito descoberto, surgia um novo interesse, levando-me de um artigo a um livro, de um caso clínico a uma nova questão teórica. Aos poucos, fui sendo fisgada por uma psicanálise que coloca o corpo no centro da constituição do ser e do manejo terapêutico. A escrita de Winnicott e sua forma original de pensar a experiência psicossomática tornaram-se um solo fértil para minha investigação sobre o distúrbio psicossomático, dando origem a este trabalho. Encontrei em Winnicott uma psicanálise psicossomática - que parte do corpo para o entendimento do psiquismo, pensando a inter-relação entre psique e soma - e vi a possibilidade de percorrer um caminho no entre, através de um autor relatado como um analista que “prestava atenção com o corpo todo”, no qual “psique e soma encontravam-se em perpétuo diálogo” (Khan , 1978/2021, p. 11). 1 1 Psicanalista que acompanhou o trabalho de Winnicott ao longo de 20 anos e que também fora seu analisando. 14 INTRODUÇÃO As manifestações de adoecimentos psicossomáticos apresentam um desafio significativo no campo da saúde, exigindo uma abordagem aprofundada por parte de profissionais e pesquisadores para compreender as complexas ramificações dessa condição. Na literatura médica e psicológica, observa-se uma diversidade de nomenclaturas utilizadas para descrever esses fenômenos. Bombana (2006) reúne alguns dos termos mais comumente empregados, tais como: somatização, adoecimento somático, distúrbio psicossomático, fenômenos psicossomáticos, transtorno somatoforme e transtorno de sintomas somáticos. Essa pluralidade terminológica reflete não apenas a dificuldade em se delimitar a condição, mas também as diferenças significativas nos sintomas e nas queixas dos pacientes acometidos por esse tipo de sofrimento. A problemática do adoecimento psicossomático também se destaca no contexto social, pelo impacto nos serviços de saúde. Segundo Abud (2011), em 2005, 16% dos gastos médicos nos Estados Unidos foram atribuídos a pacientes somatizadores, número duas vezes maior que os gastos com diabetes. Além disso, o estudo aponta que, quando tratados por psiquiatras, psicólogos ou psicanalistas, esses pacientes têm seus custos reduzidos em até 50%. Apesar dessa relevância, há escassez de estudos epidemiológicos brasileiros sobre os adoecimentos psicossomáticos. Essa lacuna reflete os desafios encontrados por profissionais que lidam com tais pacientes, uma vez que a psicossomática se encontra em uma zona de interseção entre saberes, exigindo uma interdisciplinaridade que contemple tanto a psique quanto o soma. Condições que afetam o corpo sem apresentar explicações exclusivamente biológicas levam pacientes a buscar alívio em diversas especialidades médicas, com queixas relacionadas a diagnósticos como gastrite, fibromialgia, cefaleia e ansiedade. Ao não encontrarem uma causa definitiva para seus sintomas, muitos restringem suas atividades cotidianas, tornando-se doentes crônicos. Um aspecto marcante desses pacientes é a confusão que fazem entre dores físicas e emoções, como angústia e tristeza, indicando uma dificuldade em reconhecer a relação entre corpo e afetividade. Assim, o funcionamento psíquico desses indivíduos tende a ser pragmático e racional, dificultando a aceitação de que seus sintomas podem ter origem psíquica. 15 Adoecimentos psicossomáticos constituem uma das queixas mais frequentes na escuta clínica (Silva, 2012). No setting psicanalítico, o corpo tem importância na expressão do mal-estar e pode aparecer como a única forma de comunicar o indizível do excesso traumático que corroborou para a instauração de um rígido sistema defensivo, tal qual o distúrbio psicossomático. Galván (2007), Dias (2008) e Silva; Pinheiro (2010) discutem que as queixas psicossomáticas podem levar o analista a sentir confusão e dúvida a respeito de determinado caso clínico. Winnicott (1966/1994) apresenta contribuições a respeito dos adoecimentos psicossomáticos ao fazer uma distinção entre fenômenos psicossomáticos e o verdadeiro distúrbio psicossomático. O verdadeiro distúrbio psicossomático não se define apenas pelos sintomas físicos isolados (como asma, fibromialgia, enxaqueca e dermatite, por exemplo), mas por um poderoso sistema defensivo que se dá através da “persistência de uma cisão na organização do ego do paciente, ou de dissociações múltiplas” (Winnicott, 1966/1994, p. 82). Embora a diversidade de sintomas seja um aspecto importante dessa enfermidade, Winnicott pensa o distúrbio psicossomático a partir da sua teoria do desenvolvimento emocional primitivo, entendendo-o como uma ruptura no desenvolvimento. Apesar de o termo Psychosomatic Disorder (Winnicott, 1966/1994) ter sido traduzido para Transtorno Psicossomático (Winnicott, 1966/1994), escolhemos tratar do tema através da terminologia distúrbio psicossomático, assim como fizeram Loparic (2000), Galván (2007), Dias (2012), Faria (2012), Dias (2014), Laurentiis (2016), Corrêa (2019) e Machado (2020). Há alguns motivos para isso. Neste trabalho, adotamos distúrbio em detrimento de transtorno com base em uma reflexão sobre o significado de cada um desses termos. A noção de transtorno, em psiquiatria, foi introduzida como uma alternativa ao termo doença, sendo amplamente difundida pelo Diagnostic and Statistical Manual of Mental Disorders (DSM). Em inglês, disorder refere-se a algo fora de ordem, sugerindo uma classificação de comportamentos desviantes, sem um compromisso com a etiologia (Dunker, 2014). Em português, disorder pode ser traduzido tanto como transtorno quanto distúrbio. No entanto, ao optar pelo termo transtorno, o DSM adota uma perspectiva classificatória e descritiva, desde sua terceira edição, distanciada da abordagem psicanalítica. Portanto, a escolha pelo termo distúrbio visa sublinhar uma distinção teórica e metodológica, alinhada à proposta winnicottiana de considerar a transformação de conflitos psíquicos que afetam o corpo. 16 Dentre os estudiosos da obra de Winnicott que se dedicam à psicossomática, foi encontrada uma divergência quanto à tradução brasileira de Psychosomatic Disorder. Alguns comentadores optam pela terminologia Transtorno Psicossomático, como fazem Soto (2006), Ferreira (2010), Silva; Pinheiro (2010) e Hammoud (2015). Enquanto outros autores, citados no parágrafo anterior, recorrem ao termo Distúrbio Psicossomático. Não há uma discussão amplamente difundida sobre a diferença de tradução da patologia e os impactos que a utilização do termo distúrbio ou transtorno podem trazer para a temática em questão. Apenas em Laurentiis (2016), a autora cita em uma nota de rodapé que entende que a tradução do texto Psychosomatic Disorder (Winnicott, 1966/1994) para Transtorno Psicossomático (Winnicott, 1966/1994) foi feita erroneamente. Ao abordar o verdadeiro distúrbio psicossomático, Winnicott (1966/1994) abre possibilidades para pensarmos que existiria um suposto distúrbio psicossomático falso, que o autor denomina de fenômenos psicossomáticos. Tais fenômenos correspondem às aparições corporais que fazem parte do viver e comunicam sobre a existência psicossomática do ser humano. Como exemplo, podemos pensar em uma dor de cabeça no final de um dia de trabalho estressante, em um enjoo ao ter que fazer uma apresentação importante, e nas borboletas no estômago ou chamado “frio na barriga” que acompanha os apaixonamentos. Esses fenômenos psicossomáticos podem confundir o profissional que atende pacientes com queixas somáticas ou que adoecem repetitivamente. No entanto, a diferença central entre os fenômenos psicossomáticos e o verdadeiro distúrbio psicossomático corresponde à presença de uma cisão entre psique e soma, presente no distúrbio, e ausente nos fenômenos psicossomáticos. Afinal, para Winnicott, a existência humana é psicossomática, ou seja, existe uma inter-relação entre psique e soma que é inata e o corpo expressa o que acontece na vida psíquica. O que ocorre nos casos de distúrbio psicossomático é que a relação entre psique e soma é enfraquecida, ou até mesmo rompida. Como situar essas questões dentro da teoria do desenvolvimento emocional de Winnicott e, a partir delas, pensar em uma etiologia do distúrbio psicossomático? A cisão na organização do ego, a ruptura no desenvolvimento e o enfraquecimento ou rompimento da relação entre psique e soma são aspectos centrais dessa problemática. Além disso, se o próprio distúrbio psicossomático é compreendido por Winnicott como um sistema defensivo, o que essa definição nos permite apreender sobre sua função e dinâmica? 17 Uma das inovações teóricas de Winnicott no campo psicanalítico foi sua capacidade de entender o adoecimento físico à luz de sua teoria do desenvolvimento emocional primitivo (Winnicott, 1945/2021). Essa teoria se fundamenta na premissa de que todos os indivíduos têm uma tendência inata ao amadurecimento. Amadurecer significa se tornar uma unidade psicossomática, o que só pode ocorrer com a presença de cuidados ambientais suficientemente bons. O desenvolvimento emocional é dividido em três fases principais, todas marcadas pela dependência ambiental: a dependência absoluta, a dependência relativa e a independência relativa. Na primeira fase, os cuidados são predominantemente corporais, necessitando da presença constante e estável de um cuidador que possa integrar psique e soma como um conjunto indissociável. É na segunda fase, na transição da dependência absoluta para a relativa, que as tarefas fundamentais do amadurecimento podem ser alcançadas, como a integração psicossomática (também denominada de personalização). Já na terceira fase, o indivíduo é capaz de diferenciar o eu do não-eu, constituindo-se como uma unidade psicossomática. Assim, a teoria do desenvolvimento emocional primitivo aponta para a integração psicossomática enquanto uma conquista que deve ser facilitada pelos cuidados ambientais suficientemente bons. A partir disso, onde se situa a possibilidade de ocorrência do distúrbio psicossomático? Apesar de suas contribuições terem sido desenvolvidas na década de 1960, o conceito de distúrbio psicossomático de Winnicott continua a ser relevante na psicanálise contemporânea ao ser discutido por psicanalistas e clínicos que aplicam as ideias winnicottianas a novas questões - como as somatizações em doenças psicossomáticas modernas ou o impacto de questões culturais e sociais sobre a psique e o soma. Vemos que o distúrbio psicossomático em Winnicott é discutido por: Loparic (2000), Soto (2006), Laurentiis (2007), Galván (2007), Dias (2008), Ferreira (2010), Silva; Pinheiro (2010), Dias (2012), Faria (2012), Silva (2012), Hammoud (2015), Laurentiis (2016), Corrêa (2019) e Machado (2020). Esses autores discutem a integração psicossomática dentro da teoria do desenvolvimento emocional primitivo, a fim de compreender a despersonalização (desintegração entre psique e soma), característica do distúrbio psicossomático. Alguns trabalhos se aprofundam em discutir a teoria winnicottiana do desenvolvimento para a compreensão do distúrbio psicossomático, como Loparic (2000), Soto (2006), Laurentiis 18 (2007), Dias (2008), Ferreira (2010), Dias (2012), Faria (2012), Hammoud (2015) e Laurentiis (2016). Outros trabalhos passam de forma mais breve sobre o amadurecimento, suas tarefas e conquistas, a fim de adentrar na temática que se propõem a discutir, como a exploração de casos clínicos - Galván (2007), Corrêa (2019) e Machado (2020) - e a comparação entre a teoria winnicottiana e teorias de outros autores sobre o distúrbio psicossomático - Silva; Pinheiro (2010) e Silva (2012). Uma leitura atenta dos textos winnicottianos e também de seus comentadores, que ora focam em um aspecto do distúrbio psicossomático, ora em outro, revelou um espaço entre, a sugestão de que parecia haver ali algo a mais. Foi a partir deste espaço entre as contribuições e as lacunas de cada texto que construímos esta investigação. O estado da arte em relação ao distúrbio psicossomático apontou para uma complexidade na compreensão deste conceito. Para descrever essa complexidade, arriscamos usar a imagem da dissociação em Winnicott, ou seja, a manutenção de uma cisão de conteúdos que não obtiveram representação psíquica. Percebemos que cada comentador da obra recolhe, traz e apresenta um aspecto diferente do distúrbio psicossomático. Tivemos a impressão de que, na literatura revisada, os conteúdos de cada texto aparentam certa separação, como se não tivesse sido feita ainda uma integração do que propõem, mantendo-se eles mesmos dissociados. A psicossomática winnicottiana parece emergir de uma tensão fundamental: embora Winnicott partisse do pressuposto de que a existência humana é psicossomática, sua prática clínica revelava pacientes com uma cisão entre psique e soma. Essa ruptura se manifestava em estados de despersonalização, caracterizados pela sensação de não habitar o próprio corpo, pelo surgimento de doenças graves sem origem exclusivamente biológica, por dissociações e por um funcionamento mental excessivo. Ora, a obra de Winnicott e os trabalhos de seus comentadores em relação ao distúrbio psicossomático não permitiram facilmente distinguir a diferença entre existência psicossomática e integração psicossomática, no que constitui a despersonalização e o que seriam os mecanismos de cisão e dissociação. Estabelecer com rigor esses conceitos se mostrou fundamental para avançar na compreensão do distúrbio psicossomático. Como numa montagem de um quebra cabeça, encontramos diversas peças que nos demos o trabalho de juntar. Agora, apresentaremos a forma tomada pela articulação das peças encontradas. 19 Com base no que foi apresentado, esta dissertação objetiva: Investigar a etiologia do distúrbio psicossomático no pensamento de Winnicott e suas manifestações clínicas. De maneira específica, objetiva-se: (1) compreender a diferença entre existência psicossomática e integração psicossomática para o distúrbio psicossomático; (2) compreender as noções de cisão e dissociação presentes no distúrbio psicossomático. Para cumprirmos com os objetivos propostos, a metodologia adotada se configura como uma pesquisa teórica conceitual, guiada pela hermenêutica, fundamentada em: Campos (2021), Campos e Coelho Junior. (2010) e Laurenti et al. (2016). Entendemos o distúrbio psicossomático, objeto de estudo deste trabalho, como uma patologia correspondente a um fenômeno que requer a compreensão de determinadas noções e conceitos inseridos na teoria do desenvolvimento emocional primitivo de Winnicott. Realizamos um levantamento bibliográfico na obra de Winnicott em busca da noção de distúrbio psicossomático e dos principais conceitos relacionados a este distúrbio - como existência psicossomática, integração psicossomática, cisão e dissociação. Nesse sentido, o presente trabalho se enquadra enquanto uma pesquisa sobre psicanálise, que se refere ao método que envolve os estudos teóricos que abordam a epistemologia das ideias psicanalíticas, tal como proposto por Campos (2021). A hermenêutica utilizada seguiu as polaridades ideais deste método, segundo Campos e Coelho Junior (2010), como: a interpretação reprodutiva do texto e a interpretação criativa. Nesta dissertação, isso ocorreu por meio da leitura e análise de textos da bibliografia, tanto pela reprodução das ideias originais de Winnicott a respeito do distúrbio psicossomático, como também pela apresentação das contribuições publicadas por comentadores. Esta forma de interpretação reprodutiva se deu nas citações originais encontradas ao longo do texto e também da apresentação da teoria winnicottiana. No entanto, também trouxemos a nossa leitura, única e singular, da bibliografia em questão. Assim, a interpretação criativa também está presente neste trabalho e aparece através das nossas percepções do texto, das relações feitas com outros autores e com a arte - por meio de trechos de literatura, de música e de poesia, que nos auxiliaram a compreender melhor a temática estudada e suas nuances. O material utilizado foi dividido em bibliografia principal e de apoio. A bibliografia principal contém os textos winnicottianos que abordam diretamente a noção de distúrbio psicossomático, bem como textos que abordam noções de fundamental importância para a 20 compreensão do distúrbio em questão, dos quais destacamos: Psiquiatria infantil: o corpo enquanto afetado por fatores psicológicos (Winnicott, 1931/1997); Desenvolvimento emocional primitivo (Winnicott, 1945/2021); A mente e sua relação com o psicossoma (Winnicott, 1949/2021); Transtorno psicossomático (Winnicott, 1966/1994); O brincar e a realidade (Winnicott, 1971/1975); Os bebês e suas mães (Winnicott 1987/2012) e Natureza Humana (Winnicott 1988/1990). A bibliografia de apoio, por sua vez foi composta de obras de alguns comentadores reconhecidos por dedicarem suas produções científicas ao estudo da obra winnicottiana, sendo eles: Margareth Spelman e Jan Abram, no cenário internacional, e Leopoldo Fulgencio, Zeljko Loparic, Elsa Dias e Vera Laurentiis, no cenário nacional. ​ Esta dissertação conta com três capítulos. No capítulo 1, discutimos a noção de existência psicossomática em Winnicott, como o alicerce da vida humana baseado na inter-relação entre psique e soma. Para a apreensão desta noção, definimos os conceitos de soma, psique, psicossoma e mente, fundamentais para o entendimento da psicossomática winnicottiana. Em seguida, fazemos uma exposição dos principais pressupostos da teoria do desenvolvimento emocional primitivo que permitem a compreensão da existência psicossomática enquanto uma noção distinta de integração psicossomática, tais como: a elaboração imaginativa das funções corpóreas, a mãe suficientemente boa, preocupação materna primária, o mundo subjetivo e as funções maternas. ​ No capítulo 2, discutimos a noção de integração psicossomática enquanto uma das tarefas fundamentais do desenvolvimento emocional primitivo, relativa ao alojamento da psique no soma. Diferenciamos esta noção da de existência psicossomática ao introduzir o que Winnicott entende por integração, não-integração e desintegração. A seguir, relacionamos as tarefas fundamentais do amadurecimento com as funções maternas e abordamos alguns aspectos do bebê nas fases de dependência que podem favorecer ou não a integração, sendo eles: os estados tranquilos e os estados excitados; a espontaneidade e a reatividade. Ao final do capítulo, apontamos para as falhas da integração destacando o falso self e as ansiedades inimagináveis. Durante este capítulo, apresentamos o caso de Jorge - atendido pela pesquisadora, para trazer um exemplo clínico que parece apontar para a não conquista da integração psicossomática. ​ Por fim, no capítulo 3, investigamos a noção de distúrbio psicossomático enquanto uma falha na integração psicossomática com exemplos de casos clínicos atendidos por 21 Winnicott. Apresentamos a definição winnicottiana de distúrbio psicossomático enquanto um poderoso sistema defensivo formado de cisões e dissociações e investigamos a sua etiologia ao mergulharmos nas nuances do que chamamos de cuidado insuficiente, para entendermos como os mecanismos de defesa da cisão e da dissociação são formados. Destacamos a disseminação dos agentes responsáveis como um fenômeno característico da patologia, que reflete a dissociação interna do paciente na realidade externa. Definimos o que Winnicott entende por cisão e dissociação e apontamos a patologia como o negativo de um positivo, conforme a perspectiva do autor. Ao final do capítulo, abordamos a técnica analítica na clínica do distúrbio psicossomático, evidenciando a técnica de Winnicott e abrindo discussão para a ampliação da técnica do autor de acordo com os comentadores. Acreditamos que, a partir das contribuições winnicottianas, seja possível lançar novas luzes sobre os desafios impostos pelo distúrbio psicossomático, ampliando o entendimento da relação entre psique e soma em um diálogo constante. 22 Capítulo 1 Existência psicossomática a psicossomática não nos permite presumir um relacionamento intenso entre a psique e o soma. Na psicossomática, é preciso considerar os estados tão comuns e importantes em que a relação entre a psique e o soma é enfraquecida, ou mesmo rompida (Winnicott, 1988/1990, p. 45)​ Ao nos debruçarmos sobre o distúrbio psicossomático na obra de Winnicott, percebemos a importância de reconhecer uma noção que antecede o entendimento do distúrbio propriamente dito: a existência psicossomática. Apesar de encontrarmos menções a esta noção em certos textos da obra winnicottiana, dos quais destacamos: A mente e sua relação com o psicossoma (Winnicott, 1949/2021); Transtorno psicossomático (Winnicott, 1966/1994); Os bebês e suas mães (Winnicott 1987/2012) e Natureza Humana (Winnicott 1988/1990), sua compreensão não é simples. Alguns comentadores (Loparic, 2000; Laurentiis, 2007; Dias, 2008; Silva e Pinheiro, 2008; Ferreira, 2010; Loparic, 2010; Dias 2012; Hammoud, 2015; Laurentiis, 2016; Corrêa, 2019; Ceron, 2020; Fulgencio, 2020) retomam esta noção em seus trabalhos, no entanto, como pretendemos demonstrar, acreditamos que a compreensão da noção de existência psicossomática, em Winnicott, não é tão evidente. Pensamos que isso se deve ao fato de a existência psicossomática ser apresentada de diferentes formas ao longo dos textos winnicottianos: em alguns momentos, o autor a apresenta como correspondente à integração psicossomática e, em outros momentos, ele 2 aponta a existência psicossomática como uma condição prévia à integração. Mesmo assim, uma definição que se mantém e que percorre todo o pensamento do autor acerca da existência psicossomática é que esta se refere à inter-relação da psique e do soma (Winnicott, 1988/1990). Percebemos uma dificuldade, na literatura, em compreender as duas noções de 2 É preciso lembrarmos que a integração psicossomática, em Winnicott, corresponde à personalização. Esses dois termos podem ser utilizados como sinônimos para fazer menção à tarefa fundamental do amadurecimento que remete à conquista do alojamento da psique no soma. Ao longo deste trabalho, utilizaremos os dois termos como sinônimos, assim como fez Winnicott. No entanto, para fins organizativos, optamos por utilizar, majoritariamente, o termo “integração psicossomática” neste trabalho, pensando num diálogo com a “existência psicossomática” e com outros termos que serão discutidos adiante, como “integração”, “não-integração” e “desintegração”. 23 maneira distinta, mas objetivamos traçar este percurso, de entender a noção de existência psicossomática separadamente, para fins didáticos, no sentido de demonstrar o destaque que ela tem para a compreensão do distúrbio psicossomático. ​ ​ Winnicott apresenta a existência psicossomática, muitas vezes, nas entrelinhas de seus textos, como vemos em Winnicott (1949/2021), Winnicott (1966/1994) e Winnicott (1988/1990). Em contrapartida, ele apresenta algumas definições do termo, em outros momentos, que podem deixar o leitor em dúvida sobre a precisão desta noção, como podemos observar em Winnicott (1987/2012). Em Winnicott (1949/2021; 1966/1994; 1988/1990), o autor aborda a noção de existência psicossomática como a inter-relação entre psique e soma que marca a existência humana. Já em Winnicott (1987/2012), o autor aponta esta noção como uma realização, ou seja, como uma conquista: Não é possível ter a certeza de que a psique do bebê irá formar-se de modo satisfatório juntamente com o soma, isto é, com o corpo e seu funcionamento. A existência psicossomática é uma realização e, embora sua base seja uma tendência hereditária de desenvolvimento, ela não pode tornar-se um fato sem a participação ativa de um ser humano que segure o bebê e cuide dele. Um colapso nesta área tem a ver com todas as dificuldades que afetam a saúde do corpo, que realmente se originam na indefinição da estrutura da personalidade. (Winnicott, 1987/2012, p. 10) Na citação, o autor apresenta a existência psicossomática como tendo o caráter de um processo, algo que se realiza a partir de uma tendência hereditária, mas que, no entanto, é incerta, uma vez que é contingente a este acontecimento externo, qual seja, “ela não pode tornar-se fato sem a participação ativa de um ser humano que segure o bebê e cuide dele.” (Winnicott, 1987/2012, p. 10). Essa é a condição principal do desenvolvimento psíquico saudável para Winnicott, ou seja, lograr o êxito de ter um outro humano que o receba em seus braços, acalente-o e lhe apresente o mundo, fazendo essa mediação da melhor maneira possível para aquele adulto e aquela criança. Assim, caso não haja a presença de um cuidador que adapte o ambiente às necessidades da criança pequena, pode haver um colapso na existência psicossomática do bebê. Esse colapso traria consequências para a saúde do corpo e na estrutura da personalidade, ou seja, na personalização. Nesse sentido, entendemos que um distúrbio psicossomático poderia ser desencadeado por um colapso na existência psicossomática. Apesar deste entendimento, vemos que a proposta da existência psicossomática, enquanto uma estrutura 24 psicossomática para a continuidade do ser , é predominante no pensamento do autor 3 (Winnicott, 1949/2021; 1966/1994; 1988/1990). Comentadores como Loparic (2000), Laurentiis (2007), Silva; Pinheiro (2008), Loparic (2010), Dias (2012), Hammoud (2015) e Ceron (2020) retomam esta noção, que, assim como vemos na obra winnicottiana, aparece de diferentes formas na literatura. Loparic (2000), Laurentiis (2007), Loparic (2010), Dias (2012) e Hammoud (2015) enxergam a noção de existência psicossomática em Winnicott como a totalidade do ser, pensado na sua história. Para estes autores, a existência psicossomática seria uma noção diferente de integração psicossomática. Por outro lado, Silva; Pinheiro (2008) e Ceron (2020) apontam a existência psicossomática como uma conquista do amadurecimento. Assim, para estes trabalhos, a existência psicossomática seria uma noção correspondente à integração psicossomática. Alguns trabalhos como Galván (2007) e Silva; Pinheiro (2010) não chegam a citar o termo “existência psicossomática” em seus trabalhos, apesar de tratarem do distúrbio psicossomático. Pensamos que essa divergência se deve pela proximidade entre os conceitos de existência psicossomática e integração psicossomática, o que dificulta uma distinção clara entre eles. Para fins didáticos, propomos abordar a existência psicossomática de forma isolada, mesmo entendendo que esta noção tangencia a noção de integração psicossomática. Em linhas gerais, entendemos que a existência psicossomática se refere ao inter-relacionamento inicial e contínuo entre psique e soma, presente desde o nascimento e constituindo a base factual da experiência humana. Segundo Winnicott: “A base para a psicossomática é a anatomia do que é vivo, que chamamos de fisiologia. Os tecidos estão vivos e fazem parte do animal como um todo, e são afetados pelos estados variáveis da psique daquele animal” (Winnicott, 1988/1990, p. 44). O autor propõe que, ao observarmos o corpo humano, a psique e o soma não devem ser distinguidos um do outro e, gradualmente, os aspectos psíquico e somático do sujeito em crescimento envolvem-se num processo de inter-relacionamento mútuo. Assim, mudanças físicas podem ser provocadas por fatores emocionais, e vice-versa, tendo em vista que o ser humano é entendido como um conjunto psicossomático que existe e adoece a partir da relação entre o psíquico e o somático. 3 A menção winnicottiana à continuidade do ser (continuity of being) refere-se à saúde. Para Winnicott, não é a definição do que é o ser que interessa, mas sim a experiência que o indivíduo tem de ser e continuar sendo. Esta noção será retomada algumas vezes durante a dissertação, sempre no sentido comentado nesta nota de rodapé. 25 1.1 Psique, soma, mente e psicossoma O tema da psicossomática em Winnicott exige a consideração de quatro conceitos fundamentais: psique, soma, psicossoma e mente . Como já comentamos, a existência 4 psicossomática refere-se ao inter-relacionamento entre a esfera psíquica e a somática ao longo da vida. Esse inter-relacionamento é dinâmico e significa que mudanças físicas podem ser provocadas por fatores emocionais, assim como estados psíquicos podem ser influenciados pelo corpo. O termo psicossoma define a relação entre soma e psique na existência humana, e a noção de existência psicossomática nos convida a abandonar a oposição entre corpo e mente, priorizando o estudo da unidade psicossomática (Winnicott, 1949/2021). Como afirma Winnicott: “Não iremos cair na armadilha que nos é preparada pelo uso popular de ‘mental’ e ‘físico’” (Winnicott, 1988/1990, p. 29). Para ele, a mente não é sinônimo de psique, e o soma não é apenas o corpo. O soma constitui a base do existir, enquanto a psique emerge como elaboração imaginativa das funções somáticas, conferindo sentido às experiências corporais. Dessa forma, em Winnicott, a psique surge da necessidade de dar sentido às funções do corpo vivo e a mente (também chamada de intelecto) corresponde a uma das funções possíveis do psique. Algumas das funções da psique seriam: elaborar, simbolizar, fantasiar e também mentalizar - que ocorre na medida em que o bebê começa a fazer relações entre a experiência de ter suas necessidades atendidas e a capacidade de fazer previsões ambientais, a partir de falhas toleráveis no ambiente (Winnicott, 1949/2021). O autor sintetiza essas ideias na seguinte passagem do livro Natureza Humana (Winnicott, 1988/1990): Ao dissecar a personalidade, faço uso do termo psicossoma com a intenção de preservar o relacionamento fundamental que, na saúde, se estabelece e se mantém entre corpo e psique. Existe também a mente, uma parte especializada da psique que não está necessariamente ligada ao corpo, embora dependa, evidentemente, do funcionamento cerebral. Damo-nos ao luxo de fantasiar um local, que chamamos mente, onde trabalha o intelecto, e cada indivíduo localiza a mente em algum lugar, onde ele sente um esforço muscular ou uma congestão vascular no momento em que tenta pensar. (Winnicott, 1988/1990, p. 71) Entendemos que Winnicott enfatiza que a mente é uma parte especializada da psique, mas não se confunde com ela. Ao contrário da psique, que emerge da experiência corporal e do processo de simbolização, a mente pode se desconectar do soma, operando de maneira 4 Como evidenciaram Loparic (2000), Laurentiis (2007) e Ferreira (2010). 26 independente. Essa independência relativa está ligada ao funcionamento cerebral, mas também pode resultar de uma defesa contra experiências emocionais intensas. A tendência de localizar a mente em um ponto específico do corpo, como descrito por Winnicott, evidencia a relação entre o esforço mental e sensações corporais, reforçando a ideia de que, mesmo quando a mente se afasta da experiência somática, ela não deixa de depender da base psicossomática que sustenta a existência. A noção de existência psicossomática em Winnicott foi abordada por diferentes autores, que enfatizam sua centralidade na experiência humana. Fulgencio (2020) destaca a factualidade da teoria winnicottiana, descrevendo-a como uma forma de entender como o ser humano se integra no espaço, no tempo e em seu próprio corpo a partir de uma base factual. Laurentiis (2007) complementa essa visão ao afirmar que a psicanálise winnicottiana é encarnada, pois trata da existência psicossomática em sua concretude, e não como um modelo teórico abstrato. Nessa mesma direção, Dias (2012) ressalta que o ser humano deve ser compreendido como uma totalidade, sem a fragmentação cartesiana entre corpo e mente. Esse ponto é essencial para a compreensão da mente em Winnicott: longe de ser reduzida ao funcionamento cerebral, ela emerge da relação entre psique e soma. O próprio Winnicott (1949/2021) ilustra essa ideia ao afirmar que o esquema corporal orienta a percepção do self, mas não contém, em seu interior, um local óbvio para a mente. O desenvolvimento saudável do psicossoma depende de um ambiente suficientemente adaptado às necessidades do bebê, garantindo a continuidade do ser (Winnicott, 1949/2021). No entanto, falhas ambientais excessivas podem levar a uma dissociação entre a mente e as demais funções psicossomáticas, fazendo com que a mente atue defensivamente, deslocando-se da experiência corporal. Como alerta Winnicott (1949/2021), uma das raízes da mente está justamente nesse funcionamento instável do psicossoma, constantemente ameaçado em sua continuidade. Laurentiis (2007) aponta que, ao romper com a dualidade cartesiana, Winnicott propõe uma interação dinâmica entre psique e soma, onde a mente não é uma entidade separada, mas uma função emergente dessa relação. Dias (2012) reforça essa perspectiva integrativa, enquanto Ferreira (2010) adverte sobre o risco de uma mente dissociada da existência psicossomática, o que pode levar à alienação da experiência corporal autêntica. Assim, os comentadores evidenciam a importância dos conceitos de psique, soma, 27 psicossoma e mente para a compreensão da complexidade da existência psicossomática em Winnicott. ​ 1.2 A elaboração imaginativa das funções corpóreas Observamos também que uma noção importante ao pensar a existência psicossomática é a de elaboração imaginativa das funções corpóreas. Entendemos essa noção como o modo humano de dar sentido e valor aos acontecimentos, pela memória ou pela organização pessoal das relações interpessoais. Ela é, de início, uma capacidade inata (desde que exista um bom funcionamento cerebral e fisiológico que sustente a sua realização) que registra, diferencia e organiza o que acontece com o copo. Com base nessa elaboração inicial, surge a psique. A princípio, a elaboração imaginativa trata de necessidades corporais, que com o tempo, vão se tornando necessidades do ego, e assim emerge uma psicologia. No bebê e na criança há uma elaboração imaginativa de todas as funções corporais (desde que exista um cérebro em funcionamento) (...). Ao estudarmos a excitação instintiva, é bom levar em conta a função corporal mais intensamente envolvida. A parte excitada pode ser a boca, o ânus, o trato urinário, a pele, uma ou mais partes do aparelho genital (...), a musculatura em geral, ou as axilas e virilhas, suscetíveis a cócegas. A excitação pode ser local ou geral, e a excitação generalizada tanto pode contribuir para que o bebê se sinta um ser total, quanto ser resultante do estágio de integração alcançado no percurso do desenvolvimento. (Winnicott, 1988/1990, p. 58) ​ É através da elaboração das funções corporais que o bebê pode ir se tornando gradualmente uma pessoa, um ser total e integrado. Ao longo do amadurecimento, a elaboração imaginativa também se desenvolve. Assim, a partir da elaboração imaginativa de uma sensação corporal, é possível que elaborações mais complexas surjam. No texto O primeiro ano de vida (Winnicott, 1958/2001, p. 10), Winnicott classifica o que faz a elaboração imaginativa para dar sentido e valor ao mundo e ao si mesmo no mundo ao longo do desenvolvimento: 1) Simples elaboração da função, 2) Discriminação entre antecipação, experiência e memória, 3) Experiência em termos da memória da experiência, 4) Localização da fantasia dentro ou fora de si mesmo com intercâmbios e constante enriquecimento entre ambos, 5) Construção de um mundo interno, ou pessoal, com um sentido de responsabilidade pelo que existe e ocorre dentro dele, 6) Separação entre consciência e inconsciente. Podemos perceber que a elaboração imaginativa vai se tornando mais complexa com o 28 amadurecimento, percorrendo desde a simples elaboração da função corpórea propriamente dita, até a chegada da construção de um mundo interno dotado de consciência e inconsciente. Alguns comentadores (Loparic, 2000; Dias, 2003/2017; Laurentiis, 2007; Ferreira, 2010; Dias 2012; Laurentiis, 2016; Ceron, 2020; Fulgencio, 2020) apontam a importância da elaboração imaginativa para o desenvolvimento psicossomático e reconhecem a necessidade do entendimento dessa complexa noção para o estudioso da teoria winnicottiana. Ferreira (2010) interpreta que Winnicott considera o corpo na sua condição real, e não na sua condição representativa para pensar o desenvolvimento humano. Para esta autora, é a partir do corpo real que o desenvolvimento é possível, através da elaboração imaginativa das funções corpóreas, “a qual está, por sua vez, intimamente relacionada à integração psicossomática.” (Ferreira, 2010, p. 71). Entendemos que Dias (2003/2017) concorda com este pensamento, na medida em que afirma que, no início da vida, tudo é experienciado no corpo e personalizado pela elaboração imaginativa. Assim, na vida primitiva, o corpo elaborado imaginativamente é o corpo que respira, se move, busca algo, mama, esperneia, chupa o polegar, descansa, é acalentado e trocado. Fulgencio (2020) vai mais além, no sentido do desenvolvimento humano, ao afirmar que acontecimentos existenciais como desejar, sonhar, devanear, criar, brincar e reagir aos problemas podem ser considerados como elaborações imaginativas. Dar sentido aos acontecimentos corporais, fantasiar, desejar, criar e encontrar a si mesmo e ao outro, bem como projetar, introjetar, identificar, amar, odiar, criar, desejar e ter um lugar para viver são todos modos de elaboração imaginativa do existir humano, expressões da tendência inata à integração, o exercício da necessidade de ser e continuar sendo, ou seja, do modo de ser do ser humano (Fulgencio, 2020, p. 202) ​ A citação acima nos faz refletir sobre a importância que a elaboração imaginativa carrega para a existência psicossomática, pois, na saúde, ela possibilita um intercâmbio de informações plural entre psique e soma que torna a inter-relação entre o aspecto psíquico e somático cada vez mais conectada. Essa visão é complementada por Laurentiis (2016), que entende a elaboração imaginativa como uma apreensão criativa da própria vitalidade que enreda o sentir-se vivo e real. ​ Até agora, nosso objetivo foi discutir a noção da existência psicossomática em Winnicott, apontada aqui como o alicerce da vida humana baseado na inter-relação entre psique e soma. No entanto, percebemos que alguns autores entendem a existência psicossomática como sinônimo de integração psicossomática, o que deixa um impasse quanto 29 à precisão da primeira noção. Ceron (2020) propõe que a existência psicossomática ocorre com o alojamento da psique no soma, por meio de experiências percebidas e sentidas com o estado de integração. Para esta autora, “a palavra-chave para entender a psicossomática é integração” (Ceron, 2020, p. 130), restringindo a ela a compreensão da existência psicossomática. No entanto, nos parece que a existência psicossomática é anterior à possibilidade de integração do ser. Vejamos as percepções de outros autores: ​ Para Dias (2012) a existência psicossomática é uma realização, ou seja, algo a ser adquirido, conquistado na medida em que exista a participação ativa de um ser humano que cuide do bebê. Mas notamos que esta autora discute a existência psicossomática de uma forma mais ampla do que Ceron (2020), na medida em que expande essa noção para a totalidade humana, a partir da existência de psique e soma inter-relacionados, mas não se restringindo a isso. Ferreira (2010) concorda com Dias (2012), apresentando a existência humana como essencialmente psicossomática e discutindo esta noção em relação à integração psicossomática. Para Ferreira (2010), a partir da conquista da integração, o bebê pode sedimentar uma base para uma vida saudável e para a boa fruição da existência psicossomática. Esta autora também enxerga a existência psicossomática enquanto uma realização, embora sua base seja uma tendência hereditária de desenvolvimento que não pode se tornar real sem a participação de um ser humano que segure o bebê. Já Fulgencio (2020) pensa a existência humana a partir da necessidade de ser, recorrendo à filosofia, à fenomenologia e ao existencialismo. Este autor reconhece a existência psicossomática apontada na inter-relação entre psique e soma como base para o ser. Fulgencio aborda a integração psicossomática, não a limitando à existência psicossomática, como vemos em Ceron (2020), mas sim como uma tarefa do desenvolvimento emocional primitivo. Percebemos nesses comentadores de Winnicott, que a noção de existência psicossomática não é o foco principal de suas discussões, com exceção do texto de Dias (2012), deixando menos precisa a compreensão que possuem dessa noção. Apesar de entendermos que na teoria winnicottiana pode ser difícil tratar de determinadas noções ou conceitos isoladamente, acreditamos ser importante dar destaque para a noção de existência psicossomática, sem necessariamente relacioná-la à integração psicossomática. Afinal, no caso do distúrbio psicossomático em Winnicott, como teremos a ocasião de discutir, 30 considera-se que não houve integração psicossomática, não se percebe a existência psicossomática, mas isso não significa que ela não exista. Ao longo desta dissertação, faremos o exercício de entender as noções citadas separadamente, não as tomando como sinônimos, mas enxergando-as como noções que se complementam para o entendimento do distúrbio psicossomático. 1.3 A existência psicossomática na clínica pediátrica Winnicott faz menção aos fenômenos psicossomáticos, que fazem parte do viver e apontam para a existência psicossomática, já na década de 1930, em textos como Psiquiatria infantil: o corpo enquanto afetado por fatores psicológicos (Winnicott, 1931/1997), Urticária papular e dinâmica da sensação cutânea (Winnicott, 1934/1997) e Contribuição para uma discussão sobre a enurese (Winnicott, 1935/1997). Nesse momento inicial de sua obra, o autor ainda não havia consolidado sua teoria do desenvolvimento emocional primitivo nem conceituado noções fundamentais para o entendimento psicossomático da existência humana, como a integração psicossomática enquanto tarefa fundamental do desenvolvimento emocional primitivo (publicada apenas em Winnicott, 1945/2021) e a diferenciação entre psique, soma e mente (publicada apenas em Winnicott, 1949/2021). No entanto, nos textos da década de 1930, o psicanalista já esboçava o que viria a se tornar uma teoria do desenvolvimento emocional primitivo e um pensamento sobre a existência psicossomática. Nos textos Urticária papular e dinâmica da sensação cutânea (Winnicott, 1934/1997) e Contribuição para uma discussão sobre a enurese (Winnicott, 1936/1997), Winnicott comenta como a psicanálise possibilitou uma compreensão dos adoecimentos corporais que vai além das condições anatômicas em si, abrindo caminho para um entendimento das comorbidades físicas, como a enurese e a urticária papular . Assim, ele analisa casos clínicos 5 pediátricos levando em consideração aspectos como: as fantasias inconscientes da criança, o estresse vivido pela criança e pela família e se a criança está conseguindo ou não descansar e dormir adequadamente. A partir dessa ótica, Winnicott observa que a apresentação de tais ideias provocaria reações intensas dos médicos de sua época, que ainda estavam habituados a compreender o adoecimento corporal exclusivamente pelo viés médico. Curiosamente, até 5 A urticária papular é uma condição comum de pele que ocorre nos bebês e que aparece e desaparece com rapidez. Winnicott enxerga que essa condição é associada a mudanças nos estados emocionais das crianças pequenas. 31 hoje encontramos uma dificuldade em discutir a ideia de fantasias inconscientes e a simbologia de manifestações corporais com a comunidade médica e, por vezes, até mesmo com a psicológica. Ao mencionar a urticária papular como uma aflição de seus pacientes, Winnicott (1936/1997) enxerga, nesses casos, a pele como o campo de batalha de uma luta, majoritariamente inconsciente, entre um impulso que exige gratificação e um sentimento de culpa que ameaça privar a criança de um sistema de prazer completo. É possível expandirmos essa noção para outras condições de pele que, na contemporaneidade, também chegam ao setting analítico, como as dermatites. No entanto, nem todos os casos de dermatite ou urticária papular correspondem a distúrbios psicossomáticos; essas manifestações corporais podem ser expressões psicossomáticas que revelam a inter-relação entre psique e soma, especialmente em contextos de estresse, privação de sono e conflitos interpessoais. Para aprofundar a discussão sobre a existência psicossomática e a emergência de fenômenos psicossomáticos, abordaremos alguns casos clínicos e exemplos descritos pelo próprio Winnicott. Para exemplificar o seu ponto de vista, Winnicott (1931/1997) utiliza um exemplo de crianças correndo até a escola, analisando como um mesmo fenômeno - correr até a escola - pode assumir diferentes significados dependendo de cada caso. Cada caso traz uma oportunidade para observar como fatores inconscientes e ambientais podem se traduzir em manifestações corporais, revelando a dimensão psicossomática que permeia a experiência humana. O exemplo é o seguinte: três crianças correm para a escola. Uma delas corre pois está ansiosa para chegar - ao chegar, ela quer começar logo e cumprimentar a professora. A segunda corre porque está atrasada - sua mãe atrasou para lhe dar o café da manhã, devido um acidente com seu outro filho. O objetivo desta criança é chegar na escola a tempo. A terceira corre pois se sente perseguida. Sua vida é dominada por perseguidores imaginários. Seu objetivo é chegar na escola e encontrar proteção em relação aos inimigos. Dado esse cenário hipotético, Winnicott afirma: Se tivéssemos os instrumentos delicados para nos dar um conhecimento exato, poderíamos facilmente compreender que a fisiologia dessas crianças ao chegar na escola apresentaria três variedades. A primeira, provavelmente, não teria sintomas corporais; a segunda, provavelmente, estaria cansada e se recuperaria numa meia hora, ou poderia desmaiar, ficar enjoada e depois se recuperar. A terceira, o menino perseguido, que de toda maneira não seria vigoroso, e não comeria bem, provavelmente se queixaria de dores internas, desconfortos ou de qualquer outra coisa. (Winnicott, 1931/1997) 32 Com esse exemplo, Winnicott ilustra como uma mesma atividade física - no caso, correr até a escola - pode gerar resultados corporais completamente distintos dependendo do estado emocional e do contexto individual de cada criança. Ele sugere que, se tivéssemos instrumentos suficientemente precisos, poderíamos captar nuances nas respostas fisiológicas que indicariam o impacto das experiências emocionais e das fantasias inconscientes em cada caso. Essa descrição, longe de esgotar o entendimento das possíveis manifestações psicossomáticas, busca demonstrar como fatores subjetivos, como a ansiedade, o estresse e o medo, podem transformar uma mesma ação cotidiana em vivências profundamente diferentes, cada qual marcada por sintomas e sensações corporais específicos. Assim, podemos enxergar a existência psicossomática nas três crianças: elas apresentam uma inter-relação entre psique e soma, sinalizada através das motivações inconscientes que levam aos efeitos corpóreos da corrida de cada uma. No primeiro e no segundo caso, os efeitos da corrida logo passam devido aos acontecimentos do dia. No entanto, no terceiro caso, a criança que se sente perseguida continua a sentir dores e desconfortos que não são decorrentes exclusivamente da corrida, mas sim de um estado paranoide. Esta seria uma condição mais complexa que indica a presença de um possível distúrbio, mas não retira a criança de sua existência psicossomática, seu corpo sente os efeitos de seus conflitos psíquicos e vice-versa. Vejamos algumas vinhetas clínicas apresentadas por Winnicott que apontam para a inter-relação entre psique e soma, em casos de crianças que adoecem corporalmente, sem causas exclusivamente biológicas. Em Urticária papular e dinâmica da sensação cutânea (Winnicott, 1934/1997), Winnicott oferece diversos exemplos de casos pediátricos dos quais escolhemos duas vinhetas para discutir neste capítulo. No “Caso 2” (Winnicott, 1934/1997, p. 150), que chamaremos de O filho que não pode ser alimentado pelo pai, um menino filho único de 14 meses de idade é acostumado a ser alimentado pela mãe. Um certo dia, o pai lhe deu peixe para comer. A mãe percebeu isso e discutiu com o pai na frente da criança. Naquela noite, a criança vomitou e, no dia seguinte, estava sem energia e sem vontade de fazer nada. Depois desse episódio, desenvolveu uma fobia por peixe, ovos e bananas. Winnicott analisa que não havia como explicar de maneira lógica que a fobia de ovos e bananas teria decorrido da relação física 33 (alérgica) com a ingestão do peixe. Portanto, este parece um caso que informa que algo ocorreu para além da esfera física. Nessa perspectiva, o psicanalista enxerga que a mãe deveria estar com ciúme do pai que estava alimentando a criança, que até então fora exclusivamente dela. Sua racionalização seria a de que o peixe não faria bem para o seu filho, e o deixaria doente. De maneira inconsciente, a mãe estava tentando despertar na criança um sentimento de culpa por ter aceitado o alimento do pai. A fobia de peixe se estendeu para ovos e bananas provavelmente devido ao significado simbólico desses alimentos para o menino. Assim, podemos enxergar como a reação de uma criança pequena à demanda de sua mãe pode afetar o seu corpo. A fobia durou alguns meses e depois se resolveu espontaneamente, não parecendo ser um caso de distúrbio ou de cisão entre psique e soma, mas apenas uma reação do corpo que sinalizou algo sobre os conflitos psíquicos da criança. No “Caso 6” (Winnicott, 1934/1997, p. 152), que chamaremos de Se não pensar, não coça, um menino de oito anos de idade começou a sofrer de uma urticária irritativa. Ele fora uma criança nervosa desde bebê, chorava facilmente e era descrito pela mãe como “o filhinho da mamãe” (Winnicott, 1934/1997, p. 152). Aos dois anos de idade teve o que pareceu ser um resfriado que durou uma semana, depois disso, ele ficou muito quieto e demorou a recuperar a sua vivacidade. Desde este episódio, ele nunca se recuperou totalmente da alergia e seu nervosismo foi aumentado. Sua urticária papular, a princípio, coçava muito, mas sua mãe disse que ela iria piorar se ele coçasse. Como ele era muito nervoso, desistiu de se coçar, mas desenvolveu um edema nas pálpebras, mãos e pés que aparecia e desaparecia subitamente. Ele também relatava ter uma sensação de aperto no peito e chorava de forma “anormalmente fácil para um menino da sua idade” (Winnicott, 1934/1997, p. 153). Winnicott chama a atenção para o choro da criança, pois percebe que a urticária, caracterizada por edema e vesículas nos olhos, está ligada a fantasias reprimidas associadas à micção e ao grito suprimido, restando apenas as lágrimas de um choro sem palavras. Essa criança apresentava dificuldades de lidar com impulsos hostis e dizia que se pensava na coceira, piorava muito e mal conseguia respirar. No entanto, se pensasse em outra coisa, deixava de coçar. Winnicott questiona o menino sobre que tipo de coisas ele precisava tentar não pensar e a criança responde que são coisas ruins, como matar alguma coisa. Nesse sentido, este caso nos parece ser um pouco mais complexo apontando para a presença de um 34 possível distúrbio, tendo em vista que a criança apresenta um histórico de seis anos da sua condição fisiológica, acompanhada do nervosismo e choro. Quando questionada pelo psicanalista sobre o que precisava não pensar para deixar de sentir a coceira, o menino fala de seus impulsos agressivos. Curiosamente, quando foi admitido ao hospital quando teve um edema de pálpebras e mãos, o edema cedeu imediatamente e não foi encontrada nenhuma evidência de doença física para explicar o sintoma. O caso 6 de Winnicott nos convida a refletir sobre como, mesmo em quadros clínicos mais graves, que poderiam se aproximar de um distúrbio psicossomático, a existência psicossomática permanece presente e ativa. Observamos que, apesar das manifestações somáticas intensas, como a urticária papular e o edema, a psique do menino age em consonância com seu corpo, talvez não de forma integrada, mas é notório que alguma relação entre as instâncias psíquica e somática existe. Quando o garoto relata a piora dos sintomas ao pensar em impulsos agressivos, como "matar alguma coisa", nota-se que as fantasias reprimidas parecem encontrar uma expressão corporal. Ao mesmo tempo, sua habilidade de aliviar a coceira ao “não pensar” reflete uma tentativa de regular o impacto emocional dessas fantasias sobre o corpo. Winnicott, ao destacar o fenômeno do edema nas pálpebras que desaparece com a hospitalização e ausência de uma explicação médica, aponta para uma dinâmica em que o corpo reage como se fosse o canal de comunicação para os conflitos psíquicos. Nesse sentido, o caso evidencia a existência psicossomática como uma presença fundante das experiências corporais e subjetivas, mostrando que, para além de um possível distúrbio, o menino expressa, de forma dolorosa e sintomática, o laço existente entre psique e soma. Ao compararmos o caso 2 com o caso 6, percebemos que ambos ilustram a existência psicossomática como uma inter-relação basal entre psique e corpo, mas que se expressa de maneira distinta devido às diferenças de desenvolvimento e complexidade emocional dos dois pacientes. No caso 2, o sintoma físico surge após uma situação específica e isolada: o conflito entre os pais durante a alimentação do menino. A reação de vômito e a fobia alimentar que se segue indicam uma resposta psicossomática à angústia vivida pela criança em relação ao desejo de aceitação e ao sentimento de culpa inconsciente. Contudo, o sintoma desaparece espontaneamente, e não parece haver um distúrbio psicossomático consolidado. 35 Já no caso 6, a situação é mais complexa e persistente: o menino apresenta uma condição psicossomática crônica, marcada pela urticária e pelo edema, acompanhada de um quadro emocional de ansiedade e angústia que perdura desde a primeira infância. A expressão física de impulsos hostis e de fantasias reprimidas sinaliza um conflito psíquico contínuo que encontra vazão no corpo de forma mais intensa e frequente. Assim, o caso 6 exemplifica como uma condição psicossomática pode se aproximar de um distúrbio, enquanto o caso 2 revela uma manifestação psicossomática mais transitória, ambas evidenciando a existência psicossomática na dinâmica emocional e corporal da criança. Embora a integração psicossomática seja uma tarefa fundamental no desenvolvimento emocional primitivo, como veremos mais adiante, a existência psicossomática permanece, independentemente de o processo de integração ser completo ou não. Esse é o ponto central que buscamos demonstrar ao longo deste capítulo: a existência psicossomática é uma dimensão basal da experiência humana, que não se perde mesmo diante da dificuldade de integração entre psique e soma. 1.4 A teoria do desenvolvimento emocional de Winnicott ​ Acreditamos que até aqui o leitor pôde perceber as repetidas menções que fizemos ao desenvolvimento humano no pensamento winnicottiano. Assim como propõem Loparic (2000), Dias (2003/2017), Ferreira (2010), Dias (2012) e Fulgencio (2020), enxergamos Winnicott como um autor desenvolvimentista, como ele mesmo se definiu em diversos momentos da sua trajetória profissional (Winnicott, 1958/2021; Winnicott, 1971/1975; Winnicott, 1984/2022; Winnicott, 1988/1990): “Vocês já devem ter percebido que, por natureza, treinamento e prática sou uma pessoa que pensa de modo desenvolvimental” (Winnicott, 1984/2022, p. 42). A perspectiva desenvolvimentista é o que nos permitirá mostrar que é possível compreender a noção de existência psicossomática separada da noção de integração psicossomática. Vejamos como isso se apresenta a partir da teoria acerca do papel do ambiente e dos cuidados para o amadurecimento humano, da existência de tarefas e conquistas do desenvolvimento, entre outras ideias de Winnicott, afinal, “O estudo detalhado da pediatria psicossomática não pode ser realizado até que seja feita uma completa exposição do desenvolvimento emocional do indivíduo humano” (Winnicott, 1988/1990, p. 45). 36 Winnicott explica a sua teoria do desenvolvimento no texto Desenvolvimento Emocional Primitivo (Winnicott, 1945/2021) e no livro Natureza Humana (Winnicott, 1988/1990). Apesar de observarmos que o autor faz menção à teoria em diversos textos, ele não se preocupou em sistematizá-la em vida. Esse trabalho foi feito postumamente, por alguns estudiosos da obra winnicottiana, como a irlandesa Spelman (2013) e Dias (2003/2017), no Brasil. Não pretendo primeiro apresentar uma resenha histórica, mostrando o desenvolvimento de minhas ideias a partir das teorias de outras pessoas, porque minha mente não funciona dessa maneira. O que ocorre é que eu junto isto e aquilo, aqui e ali, volto-me para a experiência clínica, formo minhas próprias teorias, e então, por último, procuro descobrir de onde roubei o quê. Talvez seja um método tão bom quanto qualquer outro. (Winnicott, 1945/2021, p. 281) ​ Percebemos que existe uma pluralidade de nomenclaturas utilizadas tanto pelo autor para se referir à própria teoria, como também pelos comentadores. Fulgencio (2020) discute as diversas expressões utilizadas por Winnicott: “apenas desenvolvimento, sem nenhum outro qualitativo, ou teoria do desenvolvimento humano, pessoal, do indivíduo, da personalidade, emocional, afetivo, da infância, da criança; ou ainda, como uma teoria do amadurecimento” (Fulgencio, 2020, p. 172-173). Percebemos que, no Brasil, as nomenclaturas se dividem, principalmente, entre as variações de Teoria do Amadurecimento e Teoria do Desenvolvimento Emocional Primitivo. O termo Teoria do Amadurecimento foi a tradução utilizada por Dias e Loparic, como comenta Ferreira (2010). Notamos que essa nomenclatura é utilizada em seus nos trabalhos de Loparic (2000), Dias (2003/2017), Loparic (2006), Laurentiis (2007), Dias (2008), Dias (2012) e Laurentiis (2016). Já o termo Teoria do Desenvolvimento Emocional Primitivo, configura-se como a tradução literal de Primitive Emotional Development, correspondente aos termos utilizados pelo seu criador (Winnicott, 1945/2021). Percebemos que a utilização desta segunda opção é feita nos trabalhos de Graña (2007) e Fulgencio (2016; 2020). Optamos por utilizar a tradução literal nesta dissertação, por acreditarmos que ela corresponde de maneira fiel à proposta winnicottiana, apesar de considerarmos relevantes as contribuições dos autores que optam pelo termo Teoria do Amadurecimento. A noção de existência, para Winnicott permeia a noção de ser, que é fundamental para a compreensão de sua teoria do desenvolvimento. Nas palavras do autor: “Por complexa que 37 se torne a psicologia do sentimento do eu (self) e do estabelecimento de uma identidade, à medida que o bebê cresce, nenhum sentimento do eu (self) surge, exceto na base desse relacionamento no sentimento de SER” (Winnicott, 1971/1975, p. 114). Existe uma linha de pesquisa que se destina a compreender as bases filosóficas da teoria winnicottiana. Dentre os autores que fazem parte desta linha, decidimos nos basear nas contribuições de Fulgencio (2020), que consideramos ser um trabalho complexo e extenso, que introduz a temática e apresenta os demais autores que se encontram neste meio. Embora Winnicott não faça nenhuma menção direta ao existencialismo e não se filie às perspectivas clínicas existencialistas, é possível observar a presença de pontos de vista e concepções fenomenológico-existenciais em seu pensamento. Fulgencio (2020) aponta para a influência de autores como Husserl, Kierkegaard, Sartre e Heidegger na construção da teoria winnicottiana, que fornecem uma base filosófica para o questionamento da existência humana. Não nos aprofundaremos nesta discussão, por fugir dos objetivos do capítulo, mas ela pode ser visitada no trabalho de Fulgencio (2020). Dito isso, chama-nos a atenção uma questão que permeia a teoria do desenvolvimento de Winnicott referente à oposição entre ser e não ser como o fundamento para a existência humana, que podemos observar em Winnicott (1988/1990). Concordamos com Fulgencio (2020) ao observarmos que não é tanto a definição do que é o ser que interessa a Winnicott, mas a experiência que o sujeito tem de ser e continuar sendo, que caracteriza uma existência (psicossomática) saudável. Acreditamos que um ponto chave da teoria winnicottiana é que o autor parte da compreensão do funcionamento do psicossoma na saúde para então entender o que ocorre nas patologias. Para Winnicott, a continuidade do ser significa saúde (Winnicott, 1988/1990). Assim, Winnicott parte de um modelo de homem centrado na noção de ser. Para que o autor pudesse chegar a sua concepção de existência psicossomática, alguns questionamentos são feitos, como: de onde vem o ser e qual a condição de existência do homem? (Winnicott, 1988/1990). Para ele, o ser surge a partir do não ser, de uma solidão sem sujeito. Essa solidão, chamada de solidão essencial (Winnicott, 1988/1990), é vivida dentro da barriga da mãe e nos primeiros meses de vida, pois, do ponto de vista do bebê, não existe nada além dele. Esse é o ponto de partida do ser humano para a existência psicossomática do ser. 38 No início há a não-integração, não há vínculo algum entre corpo e psique, e não há lugar para uma realidade não-EU. Teoricamente, este é o estado original, não padronizado e não planificado. Na prática isto não é verdade, pois o bebê está sendo cuidado, ou seja, amado, e isto quer dizer fisicamente amado. A adaptação à necessidade é quase completa. (Winnicott, 1988/1990, p. 153) A partir do estado de solidão essencial, o bebê deve se desenvolver para se tornar um ser. Para Winnicott, o desenvolvimento depende de dois fatores: a tendência inata ao amadurecimento e a presença contínua de um ambiente facilitador. Amadurecer, nesse sentido, significa unificar-se e responder por um Eu (Dias, 2003/2017). Portanto, o estado de unidade é a conquista básica para a saúde no desenvolvimento emocional e físico de todo ser humano. Para chegar nessa concepção, Winnicott ultrapassou as ideias da psicanálise tradicional que, trabalhando com as neuroses, supõe como já dadas a constituição do Eu primitivo e a capacidade de contato com a realidade; além da divisão dinâmica essencial descrita em termos de pulsões e de defesas da ordem da repressão e mesmo da lógica de oposição defensiva como cerne do funcionamento psíquico (Fulgencio, 2016). Winnicott defende que nem todo ser humano constitui uma unidade e o objetivo final deste trabalho se destina a investigar o quadro no qual não houve a conquista da unidade psicossomática, como veremos nos próximos capítulos. Nesse sentido, apesar de inata, a tendência ao desenvolvimento psicossomático não acontece automaticamente, como se bastasse a mera passagem do tempo. Como afirma Dias (2003/2017), trata-se de uma tendência e não de uma determinação. É preciso que o bebê encontre uma base para ser. Para que a tendência ao amadurecimento se realize, a criança pequena precisa de um ambiente facilitador que forneça cuidados suficientemente bons. Vemos que a noção de ser, em Winnicott, considera o corpo. O ser psicossomático existe a partir da relação com o ambiente, necessariamente através dos cuidados corporais, materializados numa mãe-ambiente. As funções exercidas pela mãe cuidadora permitem que certas tarefas fundamentais para o desenvolvimento psicossomático sejam concluídas. Assim, na teoria winnicottiana o desenvolvimento é dividido em fases, que são estabelecidas de acordo com a dependência do ambiente, do maior ao menor grau de dependência. Nas palavras do autor: Seria lógico descrever o desenvolvimento do ser humano desde a concepção, gradualmente prosseguindo através da vida intra-uterina, o nascimento, passando em revista o bebê que aprende a andar e a criança em fase de latência, e depois o 39 adolescente, e mais tarde alcançando o adulto maduro, pronto para ocupar um lugar no mundo, e que depois envelhece e, afinal, morre. (Winnicott, 1988/1990, p. 51) 1.5 As fases do desenvolvimento Em Da dependência à independência no desenvolvimento do indivíduo (Winnicott, 1963/2022), o autor descreve o crescimento emocional a partir de sua própria perspectiva, que percebe na data da publicação do trabalho, como mais consolidada em relação a 30 anos atrás, momento em que estava demasiadamente influenciado pelas teorias freudiana e kleiniana. Winnicott examina o crescimento psicossomático em termos de dependência, tentando não invalidar a conceituação feita sobre o crescimento em termos de zonas eróticas ou de relações objetais. Neste trabalho, o psicanalista opta pela utilização do termo amadurecimento e explica: “A maturidade do ser humano é uma palavra que implica não somente crescimento pessoal mas também socialização. Digamos que na saúde, que é quase sinônimo de maturidade, o adulto é capaz de se identificar com a sociedade” (Winnicott, 1963/2022, p. 105). Em Os Bebês e suas mães (Winnicott, 1987/2012), o autor assinala que: “Pode-se afirmar que a história do desenvolvimento infantil é uma história de dependência absoluta, que avança firmemente através de graus decrescentes de dependência, e vai, tateando, em direção à independência” (Winnicott, 1987/2012, p. 73). Assim, vemos a distinção de três categorias do amadurecimento: dependência absoluta, dependência relativa e rumo à independência. A existência psicossomática permeia todas as três grandes fases do desenvolvimento. No entanto, Winnicott adverte: A dissecação das etapas do desenvolvimento é um processo extremamente artificial. Na verdade, a criança está o tempo todo em todos os estágios, apesar de que um determinado estágio pode ser considerado dominante. As tarefas primitivas jamais são completadas, e pela infância afora sua não-conclusão confronta os pais e educadores com desafios. (Winnicott, 1988/1990, p. 52) Assim, utilizamos essa categorização com fins didáticos para uma melhor compreensão da teoria winnicottiana, como fazem Fulgencio (2020) e Dias (2003/2017). Devido ao objetivo deste capítulo, que é discutir a existência psicossomática, nos ateremos ao início da vida para o entendimento de como a existência psicossomática se dá, entendendo que ela percorre toda a vida. É por esse motivo que mergulharemos mais profundamente nas nuances da fase de dependência absoluta neste capítulo. 40 No início, os cuidados auferidos ao bebê são corporais, e deste manejo corporal elaborado imaginativamente surge a psique, como já apontamos anteriormente. A mãe que cuida do bebê deve enxergá-lo para além de uma massa corpórea, ela deve considerá-lo uma pessoa em crescimento, com potencial para a autonomia e independência, que virão a ocorrer futuramente. Essa cuidadora deve ser capaz de adequar-se às necessidades do seu filho de acordo com cada etapa do seu desenvolvimento. Winnicott (1987/2012) afirma que não podemos ter a certeza de que a psique do bebê irá formar-se de modo satisfatório com o soma, isso só ocorre mediante às facilitações ambientais, personificadas na figura da mãe nas fases de dependência. Apesar da base para a existência psicossomática ser uma tendência hereditária do desenvolvimento, ela pode não ser percebida sem que haja a participação ativa de um ser humano que segure o bebê e cuide dele (Winnicott, 1987/2012). 1.6 A mãe suficientemente boa O psicanalista denominou de “mãe suficientemente boa” (Winnicott, 1960/2022, p. 184) e “mãe dedicada comum” (Winnicott, 1987/2012, p. 1) a pessoa responsável pelos cuidados iniciais do bebê, que facilita as condições necessárias para a boa fruição da existência psicossomática. No entanto, para que ela seja percebida, elaborada e desenvolvida, é preciso que haja uma mãe cuidadora. Cabe à mãe suficientemente boa manter-se viva e fazer o bebê sentir e ouvir sua vivacidade, em primeiro lugar. Esta é uma figura que sabe que “precisa adiar seus próprios impulsos, até a época em que a criança possa fazer bom uso de sua existência separada” (Winnicott, 1962/2022, p. 88). O autor aponta que são características fundamentais da mãe suficientemente boa: prover a continuidade do ambiente, que auxilia na integração; ser confiável e previsível; adaptar-se gradualmente às necessidades da criança e auxiliar no impulso criativo de seu filho (Winnicott, 1960/2022). Os comentadores ressaltam a importância da figura materna no desenvolvimento psicossomático, destacando pontos específicos que merecem a nossa atenção: ao discutir a adaptação realizada pela mãe suficientemente boa, Fulgencio (2016) ressalta que a mãe deve atender a necessidade do bebê de forma variável, sutil e jamais mecanicamente. A adaptação suficientemente boa não significa perfeição, mas uma comunicação do ambiente (...) que compreende e atende o bebê ou a criança na sua necessidade, num 41 tempo adequado (que não excede o limite da tolerância de espera específico de cada bebê em cada momento). Trata-se de uma adaptação às vezes muito sutil, nunca mecânica e sempre variável no tempo e nas situações. (Fulgencio, 2016, p. 32) Dias (2008) examina a figura da mãe, entendendo que a mãe suficientemente boa apresenta alguns fatores que favorecem a percepção da existência psicossomática. A autora propõe que esses fatores são: uma mãe viva, que respira, se sente à vontade em seu corpo e o tem disponível para que o bebê o explore; ela segura o bebê e o sustenta em seus braços; ao cuidar do corpo de seu filho, ela sabe que há uma pessoa nesse corpo e “Isto faz com que as necessidades do corpo não fiquem desvinculadas, na experiência, das necessidades pessoais” (Dias, 2008, p. 113). Laurentiis (2007) concorda com os apontamentos dos autores citados ao afirmar que: Assim, tão mais próximo o bebê se encontre do início da existência, tanto mais necessita do envolvimento emocional, quanto do envolvimento somático da mãe, ou seja, da capacidade da mãe de proporcionar um ambiente vivo e facilitador de experiências, por meio seja da qualidade dos tecidos de seu corpo propriamente, ou da saúde de seu esquema corporal, que se traduz em modos de segurar, olhar, e de transformar a preocupação materna primária em cuidados corporais efetivos, tridimensionais, com os elementos de tempo e espaço incluídos, levando em conta as necessidades do bebê, ou seja, que cuida não só de um corpo, mas de uma pessoa. (Laurentiis, 2007, p. 56) Podemos perceber que os cuidados iniciais, auferidos pela mãe suficientemente boa são necessariamente corporais, tendo em vista que o bebê ainda não é capaz de andar sozinho, se banhar, se trocar, se alimentar, se comunicar com os outros, por exemplo. Ele é totalmente dependente da mãe ambiente, no início da vida. Esta nos parece uma questão importante para a compreensão da diferenciação entre as fases do desenvolvimento. Na dependência absoluta, mãe e bebê formam um só conjunto, da perspectiva da criança pequena. No entanto, só é possível que a mãe seja capaz de adequar-se às demandas do recém nascido, a partir de um estado de identificação profunda com o bebê. Esse estado é denominado de preocupação materna primária (Winnicott, 1956/2021), como pudemos observar sua utilização na citação acima de Laurentiis (2007). Segundo Winnicott: “Minha tese é de que na etapa mais inicial da vida estamos lidando com um estado muito especial da mãe, um estado psicológico que merece um nome, tal como preocupação materna primária” (Winnicott, 1956/2021, p. 495). Este estado passa a se desenvolver na gravidez, à medida em que se aproxima o parto e dura até algumas semanas 42 após o nascimento do bebê. O autor afirma que a preocupação materna primária poderia ser comparada a um estado de retraimento ou dissociação, como um episódio esquizoide, no qual um aspecto da personalidade toma o poder temporariamente. Fulgencio (2020) explicita essa ideia de Winnicott dizendo que neste estado a mãe torna-se apta a realizar uma comunicação profunda, não verbal e não propriamente mental com aquilo que o bebê precisa para ser, existir e continuar sendo. Vê-se aqui uma leitura que destaca a questão da continuidade da existência psicossomática. No entanto, após algumas semanas do nascimento da criança, a mãe se recupera desse estado particular e, por esse motivo, ele não constitui um estado patológico. A mãe que desenvolve esse estado ao qual chamei de “preocupação materna primária” fornece um contexto para que a constituição da criança comece a se manifestar, para que as tendências ao desenvolvimento comecem a desdobrar-se para que o bebê comece a experimentar movimentos espontâneos e se torne senhor das sensações correspondentes a essa etapa inicial da vida. (Winnicott, 1956/2021, p. 498) Assim, somente a mãe sensibilizada pode colocar-se no lugar do bebê e corresponder às suas necessidades iniciais. É importante ressaltarmos que, a princípio, tais necessidades são corporais e, com o tempo, transformam-se em necessidade do ego, como já comentamos. O papel da mãe suficientemente boa, que passa pelo estado de preocupação materna primária, é fundamental para a boa fruição da existência psicossomática, pois, os cuidados auferidos à criança permitem o surgimento da elaboração imaginativa das experiências corporais. A base para o estabelecimento do ego, portanto, é uma continuidade suficiente de um “continuar a ser” (Winnicott, 1956/2021, p. 499), fornecida pela mãe ambiente, na fase da dependência absoluta. 1.7 O cuidado e os estágios do desenvolvimento No estágio inicial da vida do bebê, não é possível descrever o seu funcionamento sem descrever o seu ambiente (Winnicott, 1969/1994). Assim, a criança pequena, na fase de dependência absoluta, experimenta o mundo a partir da forma como a mãe o apresenta. O bebê vivencia, portanto, um mundo subjetivo, pois, de início, ele não apresenta a capacidade de objetivar: “Quando se diz que o bebê é dependente e, de começo, absolutamente dependente (...), decorre então que a maneira pela qual o meio ambiente se apresenta tem importância, por ser uma parte do bebê.” (Winnicott, 1969/1994, p. 196). Entendemos que 43 para que o bebê se torne uma unidade, um ser separado que vivencia a sua existência psicossomática e sua, apenas, é preciso que ele viva a experiência de mutualidade com a sua mãe universo. Mais tarde, com o decorrer do amadurecimento, o sujeito poderá perceber o mundo e os acontecimentos externos como fenômenos separados dele devido à vivência de fusão inicial. Para tanto, no mundo subjetivo, o bebê entende que a sua necessidade cria o objeto do qual precisa: o objeto subjetivo (Winnicott, 1969/1994). O estágio de dependência absoluta ou quase absoluta tem a ver com o estado, no começo, do bebê que ainda não separou um NÃO-EU do que é EU, do bebê que ainda não se acha aparelhado para desempenhar esta tarefa. Em outras palavras, o objeto é um objeto subjetivo, não objetivamente percebido. Mesmo que seja repudiado, posto longe, o objeto ainda é um aspecto do bebê. (Winnicott, 1969/1994, p. 197) Dias (2003/2017), Laurentiis (2007), Ferreira (2010), Dia (2012) e Fulgencio (2020) reconhecem a importância de se destacar o mundo e o objeto subjetivos para a compreensão da existência psicossomática em Winnicott. Tais comentadores não restringem a compreensão de mundo e objeto subjetivos ao objetivo de discutir a existência psicossomática, como fazemos no presente trabalho, mas sim, expandem estes conceitos a outras temáticas da obra winnicottiana. Percebemos a relevância da compreensão do conceito de mundo subjetivo para entendermos a capacidade humana de elaboração e da criatividade, fundamentais para a elaboração imaginativa, que permite a fruição da existência psicossomática. Concordamos com Fulgencio (2020) na seguinte reflexão: Este tipo de experiência (modo de relação subjetiva com o objeto da necessidade) de adaptação do ambiente ao bebê, de comunicação profunda e direta realizada ativamente pela mãe (...) se repete no dia a dia dos cuidados maternos e da existência. O bebê registra semanticamente suas vivências corporais e os cuidados ambientais que receber; ele os diferencia e dá importância a estes acontecimentos colorindo-os semanticamente com tais qualidades ou significados. (Fulgencio, 2020, p. 119) Conforme o bebê vai amadurecendo, a mãe deixa o estado da preocupação materna primária, e passa a não estar constantemente presente, como o ambiente total da criança. Nesse sentido, a mãe volta a se preocupar com outros âmbitos de sua vida, que não apenas a criança, como ocorreu nas primeiras semanas após o parto. Este retorno da mãe a si mesma pode apresentar algumas falhas ambientais para aquele bebê que estava acostumado a existir na dupla mãe-bebê e não por si só. As falhas apresentadas devem ser toleráveis para a criança e, assim, ela é obrigada a se desenvolver não mais num estado de dependência absoluta, mas 44 sim de dependência relativa. Neste estágio, o mundo não é mais percebido de maneira subjetiva, como uma criação que faz parte do bebê. Portanto, acreditamos que o que caracteriza a transição da fase da dependência absoluta para a fase da dependência relativa são as falhas ambientais, provocadas pelo distanciamento corporal da mãe, e toleradas pelo bebê. A mente surge na transição da dependência absoluta para a dependência relativa, como uma função do psicossoma, que tenta dar conta das falhas maternas (1949/2021). Assim, com um gradual distanciamento da presença física e constante da mãe, o bebê se vê obrigado a criar uma representação mental da figura materna, como uma figura acolhedora e tranquilizadora. A transição da dependência absoluta para a dependência relativa faz com que a existência psicossomática possa ser percebida de maneira mais sólida e complexa para criança pequena. Desse modo, as falhas ambientais permitem com que o bebê deixe de viver num mundo mágico, criado por ele a partir da sua necessidade e vivencie outras dinâmicas, possibilitadas pela transicionalidade, caracterizadas pela desilusão e pelo uso do objeto. Não entraremos nas nuances de tais dinâmicas/estágios, por se distanciarem dos objetivos deste capítulo, embora elas sejam vivenciadas através da existência psicossomática. Nosso foco permanece na constituição da existência psicossomática na fase da dependência absoluta. Entendemos que na fase em rumo da independência, a terceira e última definida por Winnicott (1963/2022), a existência psicossomática está bem consolidada e podemos observar sua boa fruição, caso as falhas maternas não sejam excessivas. Por esse motivo, analisamos até aqui a relação da criança pequena com o ambiente, a figura da mãe suficientemente boa, o estado de preocupação materna primária, o mundo e objeto subjetivos e a elaboração imaginativa das funções corpóreas. 1.8 As funções maternas: rumo à integração psicossomática Apresentemos brevemente o exercício das funções maternas realizadas pela mãe dedicada comum, que possibilita a boa fruição da existência psicossomática. Cabe à mãe suficientemente boa exercer três funções, associadas às tarefas fundamentais do desenvolvimento emocional primitivo. As funções são: o segurar (holding), o manejar (handling) e a apresentação de objetos (object-presenting) (Winnicott, 1971/1975). De início, as três funções maternas são essencialmente corporais e devem ser executadas por uma mãe 45 viva, presente e atenta ao seu bebê: “é preciso dizer que o bebê se desmancha em pedaços a não ser que alguém o mantenha inteiro. Nestes estágios o cuidado físico é um cuidado psicológico” (Winnicott, 1988/1990, p. 137). Winnicott afirma que, como consequência da função ambiental: “O bebê pode reagir a essas provisões ambientais, mas o resultado, nele, é uma maturação pessoal máxima” (Winnicott, 1971/1975, p. 153). Assim, o holding, o handling e a apresentação de objetos estão diretamente associados ao amadurecimento saudável e à boa fruição da existência psicossomática, facilitada pelas funções maternas. Apesar da base para a existência psicossomática ser uma tendência hereditária do desenvolvimento, como vemos em Winnicott (1949/2021; 1966/1994; 1984/2022; 1988/1990), ela pode não ser percebida sem que haja a participação ativa de um ser humano que segure o bebê e cuide dele (Winnicott, 1987/2012). É nessa medida que entendemos que a existência psicossomática é a inter-relação entre psique e soma, dada desde o início da vida. Esta inter-relação apresenta uma tendência inata: de integrar-se. Para que esta integração psicossomática seja possível, é preciso que haja um ambiente suficientemente bom, capaz de fornecer os cuidados necessários para a boa fruição da existência psicossomática. Esta seria a condição para a ocorrência da personalização. Winnicott observa que a integração e a conquista do Eu, separado do Não-Eu, só ocorrem a partir do senso de existência psicossomática. É por esse motivo que nos dedicamos até aqui a apresentar esta noção e discutimos os conceitos necessários para a sua