Teorias clássicas das finanças falham em evitar crises, e cientistas buscam modelos para prevê-las nas ciências naturais A física da economia unespciência M ar cu s “j ap s” P en na maio de 2010 ° ano 1 ° número 8 ° R$ 7,00 HISTÓRIA REVOLUÇÃO SEXUAL NO BRASIL COLÔNIA ECOLOGIA COMO LIDAR COM UMA ILHA INVADIDA InOVAÇÃO BAMBU TÃO VERSÁTIL QUANTO MADEIRA UC_08_Capa02.indd 1 4/23/10 12:37 PM Os interessados devem acompanhar abertura dos editais e todo o trâmite processual no endereço: A UNESP autorizou a realização de 152 concursos públicos www.unesp.br/concursos/docente Biológicas, Exatas e Humanidades para cargos de professor titular nas três grandes áreas do conhecimento: em suas 25 unidades universitárias. Anuncio.indd 2 26/4/2010 16:26:58 ca rt a ao le ito r Governador  Alberto Goldman Secretário de Ensino Superior Carlos Vogt Quando a física mete  a colher na economia P ouco mais de uma semana antes de fechar esta edição, os sites de notícias começaram a dar destaque para as atividades do impronunciável vulcão finlandês Eyjafjallajökull (diz o colega Claudio Ange- lo, da Folha de S.Paulo, que se lê “êyafiatlaiêktl”, mas acho que ainda não ajuda muito). Na ocasião, sua co- luna de fumaça já fechava o espaço aéreo britânico, e não passou muito tempo para impedir o tráfego em quase toda a Europa, causando um apagão aéreo de cinco dias e um prejuízo estimado de US$ 1,7 bilhão (cerca de R$ 3 bilhões) para o setor. A erupção de um vulcão, assim como a ocorrência de terremotos, como se sabe, é algo que a ciência ain- da não consegue antecipar. Mas, preocupada com a proximidade do evento com as minhas férias, e ainda atarantada com o fechamento, só conseguia blasfemar uma coisa: por que raios os físicos, em vez de tentar prever esses desastres naturais, inventam de meter a colher na área dos outros? Desabafo irracional e injusto, claro, motivado pelo tema da nossa reportagem de capa: a econofísica, uma nova disciplina na qual físicos trabalham com modelos das ciências naturais para tentar antecipar as flutua- ções do mercado. Irracional de minha parte porque mais mentes que se esforcem a evitar crises financei- ras são sempre bem-vindas num mundo que começa a se recuperar do mais recente crash. E injusto porque obviamente tem muito cientista debruçado sobre os desafios dos fenômenos da natureza. Mas ainda assim compreensível, vai... é o medo de perder as férias. Drama pessoal à parte, o interessante da reporta- gem de Igor Zolnerkevic, físico que também mudou de área, vindo para o jornalismo científico, é que talvez os arroubos da economia sejam mais fáceis de pre- ver que terremotos e vulcões. Essa ideia é atribuída a um dos principais estudiosos da econofísica, Didier Sornette, que coordena o Observatório de Crises Fi- nanceiras do Instituto Federal Suíço de Tecnologia (EHT), em Zurique. Antes de se aventurar no mun- do das finanças, ele era geofísico e trabalhava com terremotos. É de se imaginar o quão frustante deve ser acompanhar desgraças como a do Haiti sem con- seguir avançar muito. Agora ele tenta prever bolhas financeiras. Em qual se dará melhor? UNIVERSIDADE ESTADUAL PAULISTA Reitor  Herman Jacobus Cornelis Voorwald Vice-reitor  Julio Cezar Durigan Pró-reitor de Administração  Ricardo Samih Georges Abi Rached Pró-reitora de Pós-Graduação Marilza Vieira Cunha Rudge Pró-reitora de Graduação Sheila Zambello de Pinho Pró-reitora de Extensão Universitária Maria Amélia Máximo de Araújo Pró-reitora de Pesquisa Maria José Soares Mendes Giannini Secretária-geral Maria Dalva Silva Pagotto Chefe de Gabinete Carlos Antonio Gamero   Presidente do Conselho Curador Herman Jacobus Cornelis Voorwald Diretor-presidente José Castilho Marques Neto Editor-executivo Jézio Hernani Bomfim Gutierre Assessor editorial Antonio Celso Ferreira Superintendente administrativo e financeiro William de Souza Agostinho unespciência Diretor editorial  Maurício Tuffani Editora-chefe  Giovana Girardi Editor de arte  Ricardo Miura Editores-assistentes  Luciana Christante e Pablo Nogueira Colunista  Oscar D’Ambrosio Repórter  Igor Zolnerkevic Colaboradores  Alice Giraldi, Fábio de Castro (texto);  Carlos Miller, Daniela Toviansky, Guilherme Gomes,  Luiz Machado (foto); Carlos Fonseca, Marcus “Japs” Penna e Fernando Gonsales (ilustração) Projeto gráfico  Buono Disegno  (Renata Buono e Luciana Sugino)   Produção  Mara Regina Marcato Apoio de internet  Marcelo Carneiro da Silva Apoio administrativo  Thiago Henrique Lúcio  Endereço Rua Quirino de Andrade, 215, 4º andar,  CEP 01049-010, São Paulo, SP. Tel. (11) 5627-0323.     www.unesp.br/revista   unespciencia@unesp.br    Diretor-presidente Hubert Alquéres Diretor industrial Teiji Tomioka Diretor financeiro Clodoaldo Pelissioni Diretora de gestão de negócios  Lucia Maria Dal Medico   Tiragem  25 mil exemplares É proibida a reprodução total ou parcial de textos e  imagens sem prévia autorização formal. maio de 2010 .:. unespciência 3 Giovana Girardi editora-chefe UC_08_Editoria01.indd 3 4/23/10 12:38 PM su m ár io unespciência .:. maio de 20104 18 Games chegam à sala de aula Jogos eletrônicos e animações digitais são novas ferramentas para apresentar os mistérios da física para a meninada on-line de hoje em dia 26 32 Física de olho na economia Físicos utilizam modelos baseados nas ciências naturais para propor uma revisão das teorias clássicas das finanças após suas sucessivas falhas em evitar crises Raízes sexuais do Brasil Estudos de documentos da Inquisição mostram que moral cristã não conseguiu frear a sexualidade de brasileiros no período Colonial. Interações dos vários costumes construíram nossa identidade sexual UC_08_Sumario01.indd 4 28/4/2010 11:54:26 Gostaria de agra- decer e da r os parabéns a to - dos pela excelen- te edição de abril da revista Unesp Ciência e desta- car a matéria “Intercâmbio sem sair de casa”. É importante existir um es- paço virtual para que estudantes do Brasil e do exterior troquem conheci- mentos e cultura. Gilmaci Santos, deputado estadual e presidente do PRB-SP, por e-mail Até agora gostei de tudo que li nesta re- vista. Tenho minhas preferências pes- soais por certos assuntos, mas achei bri- lhante a ideia de trazer diversas ciências sem esquecer o contexto social no qual estamos inseridos. Isso caracteriza o dinamismo da revista. Parabéns! Que venham muitas outras edições! Everly, pelo twitter A revista Unesp Ciência é uma das melhores iniciativas que esta Univer- sidade já teve em toda sua história. Elias Silveira, pelo blog Na reportagem “Receita de um planeta água” (1ª edição), que fala sobre a pes- quisa de Karla Torres, encontramos na página 33 um desenho representativo de parte do Sistema Solar, mais especi- ficamente do Sol, da Terra e do cinturão de asteroides. Meu comentário é que o tamanho proporcional da imagem do Sol está muito pequeno em relação à Terra. Sugiro que em próximas oportunidades seja colocada uma legenda indicando que é apenas uma representação não colo- cada em escalas. Embora o texto esteja muito bem elaborado, em se tratando de Astronomia precisamos ter cuidado com as imagens e suas escalas, para não alimentarmos ideias equivocadas em nossos leitores de que o Sol é poucas vezes maior do que a Terra. Parabenizo o autor da reportagem, espero que minha sugestão possa contribuir para a revista. Roberta Chiesa Bartelmebs, pelo blog Nota da redação: A imagem realmente era apenas ilustrativa. Mas a sugestão está devidamente anotada. O Núcleo José Reis de Divulgação Cien- tífica da ECA (Escola de Comunicações e Artes) / USP e a Abradic (Associação Brasileira de Divulgação Científica) cum- primentam o pessoal da Unesp por este empreendimento que certamente enrique- cerá o debate das ciências e amplia, com o excelente trabalho desta instituição, as possibilidades da divulgação científica com qualidade. Há uma identidade na praça da revista, feita por uma equipe valente que encara no braço, com o co- ração e muita imaginação, isso é muito bom. Parabéns e saudações. Osmir Nunes, presidente da Abradic, por e-mail Erramos Ao contrário do publicado na reportagem “Descarga hormonal” (edição 6, pág. 20), nos trabalhos desenvolvidos pelo grupo de pesquisadores do Instituto de Biociên- cias de Botucatu, ratos cujas mães fo- ram tratadas com um éster de ftalato durante a prenhez não apresentaram aceleração do trânsito de espermato- zoides nos testículos. Pela sexta vez a Terra passa por uma perda brutal de formas de vida; agora a causa não é a queda de um asteroide, mas a ação de uma espécie, o Homo sapiens À beira da extinção em massa unespciência N ik N ev es abril de 2010 ° ano 1 ° número 7 ° R$ 7,00 INOVAÇÃO NOBEL INSPIRA COSMÉTICO NACIONAL LÍNGUAS COMPARTILHAR PARA APRENDER TECNOLOGIA MAIS PRECISÃO PARA NOVO GPS Pela sexta vez a Terra passa por uma perda brutal de formas de vida; agora a causa não é a queda de um asteroide, mas a ação de uma espécie, o Homo sapiens À beira da extinção em massa TECNOLOGIA MAIS PRECISÃO PARA NOVO GPS UC_07_Capa02.indd 1 22/3/2010 10:30:06 www.unesp.br/revistablog twitter.com/unespciencia unespciencia@unesp.br maio de 2010 .:. unespciência 5 cartas 48 6 12 16 36 42 44 46 50 Perfil Peter Dauelsberg: o mestre da música de câmara Como se faz Laboratório processa bambu para substituir madeira de lei Estação de trabalho Especialista em reco-reco coleciona o instrumento em diversas formas Estudo de campo Biólogos acompanham experiência de reconstituição de fauna em ilha Quem diria Codornas vivem num estresse só Arte Labirintos do Barroco na obra de Percival Tirapeli Livros História das agriculturas do mundo Click! Imagem nanométrica de óxido de alumínio ganha prêmio em NY Ponto Crítico Ciência, religião e jornalismo UC_08_Sumario01.indd 5 28/4/2010 11:54:27 unespciência .:. maio de 20106 Ca rl os M ill er N ascido numa família amante da cultura, o alemão naturali- zado brasileiro Gerhard Peter Dauelsberg, de 77 anos, viveu durante a infância na Alemanha as agruras da Se- gunda Guerra Mundial e chegou ao Brasil trazendo na bagagem o amor pela músi- ca erudita e pela esposa, uma pianista brasileira. Nesta entrevista, falou sobre a paixão pela música de câmara, a tra- jetória como violoncelista, que o levou a alguns dos principais palcos do mundo, a colaboração com alguns dos grandes nomes da MPB e a carreira como profes- sor do Instituto de Artes da Unesp, onde trabalhou por 25 anos e ajudou a formar alguns importantes nomes da cena eru- dita contemporânea nacional. Unesp CiênCia  Sua família sempre esteve  envolvida com cultura?  Gerhard peter daUelsberG Sim. Meu avô materno, Carl Busse, ainda jovem já era muito célebre na Alemanha, aos vinte e poucos tinha vários livros de poesia publi- cados. Sua poesia foi musicada por grandes compositores, como Richard Strauss. Ele era um famoso crítico literário e desco- briu o [escritor vencedor do prêmio Nobel] Herman Hesse (1877-1962), que escreveu um agradecimento ao meu avô nas suas obras completas. Morreu jovem, com 40 e poucos anos, logo após a Primeira Guerra Mundial. Meus pais liam muito e gosta- vam de música, tinham assinaturas para as temporadas de concertos. Às quintas- feiras, enquanto nós crianças íamos para a cama, meu pai, junto com um amigo, sentava-se ao piano. Tocavam, a quatro mãos, todas as sinfonias de Beethoven. UC  O senhor nasceu no ano em que Hi- tler chegou ao poder (1933) e viveu a  Segunda Guerra. Que lembranças tem  desse período tão conturbado?  daUelsberG Péssimas. A mulher de Carl Bus- se [sua avó materna], embora convertida à igreja luterana, era judia de nascimento. Na época, as famílias tinham que comprovar a ausência de judeus até a terceira geração. Minha mãe e minha tia não sabiam que minha avó era judia. Descobriram quando começou a perseguição. Mas já era tarde demais, e isso trouxe consequências. Meu pai recebeu uma comunicação de que de- via se divorciar da minha mãe no início da guerra. Ele se recusou. Ele estava no exército, numa patente alta, e foi rebaixa- do a um posto bastante inferior. A guerra foi muito marcante. Meu pai sumiu de ca- sa quando eu tinha 6 anos. Aparecia por 10, 15 dias e depois sumia de novo. Logo Bremen, onde morávamos, começou a ser bombardeada. Como minha mãe era meio judia, era obrigada a fazer trabalhos forçados numa fábrica de munições. Saía de casa às 4h30 e voltava às 20h. Desde muito cedo, aprendi o que era limpar a casa, cobrir as janelas com papel durante os bombardeios – porque os vidros já ti- nham se quebrado há muito –, cozinhar... Dauelsberg Pablo Nogueira da música de câmara à MPB Peter Apaixonado pela canção romântica alemã, o lied, e pela cultura brasileira, artista tocou com grandes nomes e fortaleceu o ensino de música no país maio de 2010 .:. unespciência Dauelsb erg , so b re a infância na Alemanha durante a Segun da G ue rr a Desde muito cedo, aprendi a limpar a casa, cobrir as janelas com papel nos bombardeios, cozinhar... Algo que detesto até hoje O violoncelista André Navarra (esq.) com o pai do músico, Gerhard Dauelsberg Algo que detesto até hoje. No mais tardar às 22h já tinha soado o alarme, e a gente tinha de correr para os abrigos. Um dos meus colegas, da minha idade, era um violoncelista maravilhoso. Já na época tocava maravilhosamente bem e teria si- do um dos grandes do mundo. As nossas famílias se conheceram, nossos pais tra- balhavam juntos. Ele morreu junto com a família inteira, a mãe, a avó, a irmã. A bomba explodiu na entrada [da casa] e ma- tou todo mundo. Devido aos bombardeios eu perdi minha casa e tudo que possuía. UC  Como o senhor se encantou pelo  violoncelo? daUelsberG Em 1936 mudou para o nosso prédio um casal jovem em que o homem era um violoncelista amador. Ele gostava de fazer música de câmara e, para não ter reclamações pelo barulho, convidou os vizinhos para ouvir. Minha mãe ia e se encantou pelo violoncelo. E decidiu que o filho tinha que tocar violoncelo. Eu preferia jogar futebol, fazer outra coisa... Mas a minha mãe me obrigou. Eu tinha por volta de 10 anos. Ela ficava uma hora ao meu lado fazendo tricô enquanto eu estudava. A partir de um certo momento, comecei a sentir prazer e não precisava mais da minha mãe me olhando estudar. Meu pai queria que eu me tornasse mé- dico e mais tarde cuidasse da pesquisa da fábrica de penicilina que ele dirigia, depois da guerra. Tivemos um desentendi- mento. Ele disse que eu tinha de estudar por pelo menos um ano e depois podia decidir. Fui para Göttingen, onde havia uma escola de medicina tradicional. Lá havia professores e alunos que tocavam como amadores. Nunca fiz tanta música na minha vida como naquele ano [risos]. Meu pai me liberou e deu uma mesada muito baixa, mas que dava para comer e pagar as aulas de violoncelo. UC  O senhor estudou com um dos violon- celistas mais famosos do século, André  Navarra (1911-1988)... daUelsberG Uma colega me sugeriu ir es- tudar no Conservatório de Paris com An- dré Navarra. Fui até lá e toquei para ele. Eu não falava francês, por isso havia uma intérprete que traduzia a nossa conversa. Ele disse: “Diga que ele nunca vai ser um Casals [Pablo Casals, grande violoncelista do século 20]. Mas que ele pode ser muito bom, e que estou disposto a aceitá-lo com aluno com uma condição: que ele faça o que eu pedir. E eu sou exigente”. Durante um ano eu pratiquei só escalas e intervalos de terça, quarta, sexta... Praticava oito, dez horas por dia. Ele era o grande represen- tante da escola francesa de arco. Era um jeito de tocar completamente relaxado, você não podia sentir dores. unespciência .:. maio de 20108 Egberto Gismonti Compositor e instrumentista Fiz minha primeira apresentação pública em um teatro brasileiro em 1972, com a participação de dois mestres já reverenciados pelo meio musical: Paulo Moura e Peter Dauelsberg. A relação com eles foi fundamental para meu desenvolvimento artístico. Peter propôs que eu estudasse violoncelo e se prontificou a me ensinar. Também colaborou nos meus primeiros quatro discos. A participação dele na minha vida musical foi orientadora e importante pelos conselhos, pelas correções propostas à minha escrita, pela sugestão de músicos e regentes capazes de melhor executar as partituras, pela orientação discreta, mas definitiva, pela cumplicidade com a música, pela amizade, pelo respeito e dignidade à música. Milton Nascimento Cantor e compositor (em carta para o memorial de Dauelsberg) Admiro sua obra não como “cellista”, mas pelo entendimento que sempre teve da MPB, em atitude pouco comum a seus pares na época. Trocamos informações e experiências que se mostraram fundamentais para meu desenvolvimento musical. Julio Medaglia Maestro O Brasil era carente no ensino de cordas. Peter trouxe o melhor da escola alemã para a área e deu uma grande contribuição à música no país. É um grande violoncelista e um artista completo. O que dizem sobre Peter Dauelsberg O duo formado com a pianista Ingrid Haebler (cartaz à dir.) evoluiu para um trio com o violinista Gerhard Hetzel UC  Como veio para o Brasil? daUelsberG No conservatório de Paris eu conheci minha mulher, Myriam, que é brasileira e pianista. Nós tocávamos num quarteto, eu me encantei e me declarei. Ela tinha a possibilidade de concorrer a um prêmio no Brasil e voltou para cá. Depois escreveu me convidando para vir. Disse que conhecia o governador de Bra- sília [Israel Pinheiro da Silva], e ele havia dito que ia criar uma orquestra sinfônica. Recebi um contrato, pelo correio, para tra- balhar nessa orquestra. Levei a um banco na Alemanha para que fosse examinado, e o funcionário me disse: “O sr. vai ganhar bem. Parece que lá tem dois lagos. Com es- se salário o sr. vai poder morar numa casa no lago”. Então assinei o contrato [risos]. Mas a passagem era muito cara. Como a Orquestra Sinfônica Brasileira (OSB), no Rio, estava precisando de violoncelos, me propuseram pagar pela passagem de avião e tocar lá algum tempo por um pequeno salário, enquanto descontavam o valor da passagem. Como a orquestra de Brasília ia começar no ano seguinte, em janeiro, eu concordei. No fim, não fui para Brasília. Quando cheguei aqui em 1960 e me de- parei com o calor, o povo carioca, o sol, a luz, a alegria, as cores... Achei fantástico. UC  O senhor conheceu Villa-Lobos? daUelsberG Conheci em Paris. Ele era ami- go dos pais de Myriam e a tinha como uma filha. Villa-Lobos gostava de mim e disse que queria ser nosso padrinho. A cerimônia foi marcada para 1960, mas ele morreu em 1959. UC  Qual cenário para a música erudita  o sr. encontrou no Brasil na época? daUelsberG Havia um público razoável para música sinfônica, um público enor- me e entusiasta para ópera e um público entusiasta, mas reduzidíssimo, para a música de câmara, que foi onde eu me ocupei muito. Nessa época as orquestras não eram profissionais. Entre os músicos havia advogados, médicos, contadores, den- tistas, de tudo. Muitas vezes eles faltavam aos ensaios devido a outros compromis- sos profissionais. Lembro de um músico que faltou ao ensaio para acompanhar a mulher ao médico. Tive de reconhecer que aqui era tudo diferente. Outros mú- sicos estrangeiros que tocavam na OSB não se adaptaram e voltaram para a Eu- ropa. Mas para mim a música de câmara foi um fator importante para ficar aqui. UC  O senhor chegou a ser diretor da Sala  Cecília Meireles, talvez o mais famoso  espaço para música de câmara do Brasil... daUelsberG Foi consequência da carreira da minha mulher. Ela foi diretora da sa- la por muitos anos. O [pianista] Jacques Klein (1930-1982) era diretor e chamou a Myriam para ser diretora artística. Quan- do ele saiu, ela ficou como diretora, e o nome dela está ligado à história da sala, porque fez coisas fantásticas. Grandes artistas do mundo estavam vindo pa- ra se apresentar lá. O presidente [ João] Figueiredo [no cargo entre 1979 e 1985] chamou Eduardo Portella para ser minis- tro da [Educação e] Cultura, e ele convi- dou Myriam para chefe de gabinete. Ela a princípio não queria ir para Brasília e me deixar sozinho com nossos dois fi- lhos, mas eu argumentei que ela sempre quisera participar da política cultural e que eu cuidaria da sala no lugar dela por um ano. Foi o tempo em que fiquei, maio de 2010 .:. unespciência Dauelsb erg , so b re a decisão de ficar no Rio em vez de e m B ra sí li a a o c h e ga r ao B ra sil Quando cheguei aqui em 1960 e me deparei com o calor, o povo carioca, o sol, a luz, a alegria, as cores... Achei fantástico A rq ui vo p es so al À esq., um dos concertos que deu em 60 anos como violoncelista; hoje, ensina interpretação de “lied” a cantores e pianistas em 1979. Eu já era professor da Unesp, passava dois dias por semana lá, dando aula. Era tão corrido que eu aproveitava para fazer feira em São Paulo e depois tra- zia as sacolas de avião, para economizar tempo. Depois de alguns meses ela me telefonou chorando e dizendo que queria sair do governo. UC  O senhor também colaborou com  grandes nomes da MPB. daUelsberG Entre 1970 e 1973 cuidei dos arranjos de cordas da Phillips. Foi a épo- ca áurea da gravadora, durante a qual foram produzidos mais de 500 discos. O primeiro do Edu Lobo tem um agra- decimento a mim. Ele diz que agradece pela minha paciência, porque ele não sabia ler música. Também fiz shows com o Tamba Trio, Baden Powell, Oscar Cas- tro Neves, Egberto Gismonti... A Globo tinha uma orquestra muito boa, que to- cava nos festivais, e me chamava para tocar como primeiro violoncelista. Foi uma época muito rica. Nos bastidores, o DOPS [Departamento de Ordem Política e Social] batia nos artistas, e no palco eles tinham de cantar. Conheci muitos artistas. Egberto Gismonti, Dori Caym- mi e Milton [Nascimento] eu levei para minha casa. Milton era extremamente modesto e gentil, recém-chegado de Mi- nas. Foi lá em casa almoçar e começou a falar sobre seu novo disco e perguntou se eu ia fazer os arranjos de cordas. Fiz com muito prazer. Era o Milagre dos Peixes. Se naquela época as orquestras tinham limitações técnicas, a música popular era a qualidade. Deixei muitos amigos lá. UC  Como o sr. virou professor da Unesp? daUelsberG Eu tocava num trio de muito sucesso, o Trio Continental, com Jacques Klein. Fomos convidados para tocar e dar aulas no Festival de Campos do Jordão. O concerto foi assistido pelo então governa- dor Paulo Egydio (1975-1979) e a família dele. Depois do concerto, ele nos convidou para tomarmos um chá na casa dele. Eu e ele estávamos conversando quando de repente ouvi dois gritos: “Myriam!”, “Bra- sília!”. Minha mulher e a dele tinham sido grandes amigas no colégio e se reencontra- ram. Assim começou uma amizade, meus filhos foram passar as férias com os filhos dele... Ele tinha fundado a Unesp [em 1976], pois achava que a USP e a Unicamp não atendiam o Estado inteiro, e me convidou para ensinar lá, dizendo que precisava de pessoas boas na parte de música. Respondi que estava viajando muito, pela Europa e pelo Brasil. Mas ele disse que se eu desse duas aulas ia poder viajar à vontade. Essa promessa foi mantida depois. UC  O senhor foi um dos primeiros artis- tas ocidentais a se apresentar na China,  após a Revolução Cultural. Como foi? daUelsberG O Jacques Klein tinha saído do trio. No seu lugar entrou um aluno dele, o Arnaldo Cohen, e formamos o Trio Artis. Arnaldo tinha ligações com uma agência de viagens que estava levando turistas para lá e possuía boas conexões com o governo. Eles recorreram ao Itamaraty e entraram em contato com o Ministé- rio da Cultura da China. Assim foi pla- nejada uma turnê. Durante a Revolução Cultural os chineses não tinham acesso a nenhuma obra de arte, música ou livro que não fossem chineses. Então, chegar a um país onde ninguém sabia mais o que era um piano ou um violino foi uma coisa extraordinária. Os ingressos esgotaram semanas antes, e o público era formado por diplomatas, estudantes e militares. Tudo era televisionado. Quando subía- mos ao palco, qualquer gesto, mesmo que fosse só o de virar uma página, era comentado pelo público. Só tínhamos comida chinesa para comer. Em Pequim, o ministro da Cultura nos ofereceu um jantar com 72 pratos de pato, entre eles o pato laqueado. Em outra cidade, o go- vernador tocava um pouco de violino e nos convidou para um jantar com mais 40 pessoas. Trouxeram um bicho estra- Ca rl os M ill er unespciência .:. maio de 201010 A rq ui vo p es so al nho num prato, e percebi que tinham cortado as antenas do bicho. Era barata! Ainda tínhamos um concerto na China e depois íamos para Hong Kong. Um de meus colegas, depois daquele jantar, fi- cou sem comer até Hong Kong. UC  Foi a partir do Trio Artis que surgiu  sua parceria com a famosa pianista In- grid Haebler? daUelsberG Foi algo maravilhoso, porque ela era uma grandíssima pianista. Ela veio ao Brasil tocar na Cecília Meireles e ficou hospedada na minha casa. Assim, me viu tocando com o trio. Depois que voltou à Áustria, escreveu uma longa carta me con- vidando para tocarmos toda a obra para violoncelo e piano de Beethoven. Eu viajei para Salzburgo, e passávamos 15 horas por dia ensaiando. Nós trabalhávamos duro, ensaiávamos dois ou três compassos por dia. A Unesp foi muito compreensiva. Eu dava minhas aulas, e a Universidade per- mitiu que eu vivesse para estudar com ela. Tocamos em dueto e depois acrescentamos um violinista, que depois foi substituído. Durante essa fase tocamos nas grandes sa- las de concerto do mundo, em Leningrado, Leipzig, Paris, Bruxelas, Antuérpia, Moscou, na ópera de Berlim... Lembro de uma vez em que estávamos chegando à Holanda e, enquanto esperávamos a bagagem na esteira, ela viu um outro rapaz segurando um violoncelo. Imediatamente fui até ele e começamos a conversar. Era Yo-Yo Ma [famoso violoncelista norte-americano], no início da carreira. Ele ficou doido quando soube que eu estava com a Ingrid, quis sa- ber como trabalhávamos, me chamou para assistir ao concerto dele, eu o chamei para vir ao nosso... Essa receptividade é algo comum entre os violoncelistas. Se fôsse- mos dois violinistas se encontrando, talvez um fingisse que não viu o outro [risos]. O primeiro violinista que convidamos para tocar conosco foi Henryk Szeryng (1918- 1988). Ele faleceu pouco depois. A seguir convidamos Gerhart Hetzel (1940-1992), que era spala [1º violinista] da Filarmônica de Viena. Fizemos 10 recitais e ele faleceu. Daí Ingrid me disse: “Peter, acho melhor pararmos, se não vão dizer que estamos matando violinistas” [risos]. UC  E como era o trabalho na Unesp nes- sa época? daUelsberG Comecei quando o IA [Insti- tuto de Artes] ainda era em São Bernardo [ficou lá até 1981], então pude acompanhar desde o início. Eu fiquei alguns anos como professor de violoncelo [de 1978 a 1986]. Meus alunos me adoravam. Quando eu vou a São Paulo ainda me encontro com eles. Mas eu não sei se fui um bom professor. Não sinto que tenha conseguido fazer os estudantes avançarem. Em geral, eles já estavam dentro de uma orquestra. Eram obrigados a tocar de manhã e estudar à tarde. O regente pedia, por exemplo, para que eles tocassem mais forte. Eu tentava mostrar a eles que relaxadamente se pode tocar mais forte. Mas o mais comum era que, quando eu chegava à aula, dissesse aos alunos sempre a mesma coisa: que eles não conseguiam progredir. Depois de alguns anos como professor de violoncelo, fui à direção e pedi para mudar [de área]. O Paulo Egydio queria professores com experiência internacional, que pudessem passar para o aluno suas vivências de palco, suas viagens por outros países etc. Foi com essa orientação na cabeça que eu pedi para sair. Achei que não estava conseguindo fazer isso. UC  E a que se dedicou depois? daUelsberG Recebi a classe de música de câmara. Na minha primeira turma tinha um trombonista, um violinista, um saxo- fonista e 20 ou 22 pianistas. Nesse tempo conheci toda a literatura para dois, três, quatro ou cinco pianos de cor [risos]. De- pois, passei a ensinar também música de câmara vocal. Lá me vi com o seguinte problema: os alunos queriam cantar mú- sicas de câmara alemãs, assim como já cantavam músicas inglesas, francesas e brasileiras. Mas a canção alemã, o “lied”, é o ápice da época romântica. Reuniu os melhores poetas e os melhores compo- sitores, e o resultado é tão incrível que mesmo quem não entende a língua ale- mã se sente atraído. Os alunos cantavam em alemão, e eu vi que, como eles não sabiam a língua, não entendiam o que estavam dizendo, e, consequentemente, não conseguiam transmitir sentimen- tos para sublinhar o texto. Daí comecei a traduzir as letras e passei a estudar o assunto com profundidade. Fiz várias pesquisas sobre o “lied” enquanto estava na Unesp. Esses trabalhos já circulam nas universidades brasileiras, porque foram feitos para a universidade. Hoje, devido a um acidente, não toco mais o violon- celo. Mas continuo recebendo em casa cantores, pianistas e grupos que pedem orientação sobre pronúncia das canções, sobre o texto, interpretação... Faço isso com uma alegria imensa. Na música de câmara, eu consegui transmitir minha experiência aos estudantes. UC  O senhor foi professor por 25 anos.  Como viu as transformações que o IA  passou nesse período? daUelsberG Depois que o instituto veio para São Paulo, ele progrediu muito, a tal ponto que, inegavelmente, é o melhor lugar para ensino de música em São Paulo, em termos de corpo docente. O corpo discente eu conheço menos hoje. Mas pessoas que foram meus alunos hoje se apresentam em grandes teatros. Em Colônia [Alemanha] assisti com imensa alegria à primeira ré- cita de uma nova montagem de As Bodas de Fígaro, de Mozart, por exemplo, com Leonardo Fischetti, que hoje é primeiro barítono num teatro em Portugal. Tive alunos muito bons, que queriam apren- der. Vendo desde o começo, o crescimento foi enorme. Estão de parabéns, e tenho orgulho de ter ensinado lá e contribuído. Dauelsb erg , so b re o período em que colaborou com m úsic os d a M P B Se naquela época as orquestras tinham limitações técnicas, a música popular era a qualidade. Deixei muitos amigos lá maio de 2010 .:. unespciência 11 Bambu de lei Pesquisadores e estudantes do câmpus de Bauru fazem do Laboratório de Processamento de Madeira uma marcenaria diferente, usando como alternativa mais sustentável a gramínea de rápido crescimento À primeira vista parece uma sim- ples marcenaria. O conjunto de galpões está repleto de ferramen- tas e equipamentos: serra de esquadria, serra destopadeira, lixadeira, furadeira de bancada, prensa, refiladora e um tú- nel de vento para secagem de madeira. Na entrada, um mostruário dá uma ideia das sofisticadas peças de madeira de di- versas tonalidades que são produzidas ali. São bancos, cadeiras de balanço, muletas, utensílios de cozinha, andadores, maque- tes de casas, amostras de pisos, painéis e muitos outros objetos de fino acabamento. Mas não é uma marcenaria qualquer. Em vez de marceneiros e aprendizes, ali trabalham pesquisadores e estudantes. No lugar da madeira comum, diversas espé- cies de bambu. Trata-se do Laboratório de Processamento de Madeira, da Faculdade de Engenharia (FE) do câmpus de Bauru da Unesp. Os objetos produzidos ali são todos feitos exclusivamente a partir do bambu, mas a maior parte não apresenta o formato cilíndrico característico des- se material. A aparência surpreendente Fábio de Castro unespciência .:. maio de 201012 UC_08_Como01.indd 12 4/23/10 12:42 PM No laboratório, diariamente, grupos de estudantes realizam testes de todos os tipos. Em um galpão, um deles avalia a eficiência do uso de resíduos – folhas caulinares do bambu, misturadas ao bagaço de cana-de- -açúcar – para a confecção de placas de aglomerado. Na sala ao lado, outro grupo fabrica três cadeiras com o mesmo dese- nho: uma com bambu in natura, outra apenas com ripas processadas e a terceira apenas com BLC. O objetivo é analisar todo o processo produtivo, incluindo deman- da de energia e geração de resíduos, para comparar o desempenho de cada cadeira em termos de sustentabilidade. Desde o início, o Projeto Bambu tinha como proposta avaliar cientificamente as diversas possibilidades de aplicação do bambu. Como era preciso dispor con- tinuamente de matéria-prima, o projeto passou a ter suas atividades divididas entre o laboratório e o campo. A primei- ra muda foi plantada há 15 anos, na área experimental agrícola do câmpus de Bau- ru. Hoje existem ali grandes touceiras de 25 espécies diferentes, que servem para pesquisa e aplicações, além de um viveiro de mudas. Foram escolhidas as espécies consideradas prioritárias entre as mais de 1.300 espalhadas pelo mundo em várias latitudes e altitudes. Com acesso a uma plantação controlada, ao longo do tempo os pesquisadores da Unesp aprimoraram as técnicas de manejo e fizeram extensos estudos de caracterização e viabilidade do material. Foram testadas todas as características de resistência física e mecânica, tração, compressão e flexão das ripas de bambu. “Constatamos que a capacidade de compressão de uma peça de BLC é de 500 quilos por centímetro quadrado. Isso significa que a resistência mecânica é muito satisfatória. A capacida- de de tração é semelhante à das melhores madeiras”, explica Pereira. As virtudes que fazem do bambu uma boa alternativa à madeira de árvores, no entanto, não se limitam à alta resistência mecânica. A incrível velocidade de cres- cimento do bambu faz dele um poderoso sequestrador de carbono. Na plantação da Unesp, a gramínea gigante chega a crescer deve-se ao método de processamento empregado na confecção dos produtos: o bambu laminado colado (BLC), técni- ca desenvolvida na China e adaptada no Brasil para as espécies mais comuns aqui. “O bambu é cortado longitudinalmente em ripas, que adquirem uma forma plana. Essas ripas são então recortadas e cola- das conforme a necessidade no projeto”, explica Marco Antonio dos Reis Pereira, professor do Departamento de Engenharia Mecânica e coordenador do Projeto Bambu, desenvolvido no laboratório desde 1992. Mesmas aplicações da madeira De acordo com ele, levantamentos feitos na China revelam que o bambu in natura pode ter pelo menos 4.000 aplicações, que vão do artesanato à construção de grandes estruturas. “Com o BLC – e com as chapas de aglomerado produzidas a partir dos resíduos do processamento –, as possibilidades são praticamente ines- gotáveis. Absolutamente tudo o que pode ser feito com madeira pode ser feito com bambu”, afirma Pereira. D an ie la T ov ia ns ky maio de 2010 .:. unespciência UC_08_Como01.indd 13 4/23/10 12:42 PM SHOWROOM Peças produzidas no laboratório; pesquisadores e alunos usam o bambu in natura, o laminado colado (BLC) e chapas de aglomerado de resíduos PRePaRaçãO Colmos de bambu são cortados longitudinalmente em ripas quase 30 centímetros por dia. Apenas três meses após o plantio, uma muda atinge os 30 metros de altura, dependendo da espécie. No Japão, onde o solo é mais apropriado que o de Bauru, há bambus que crescem 110 centímetros a cada 24 horas. Quando acaba o crescimento – que ocorre entre janeiro e março –, começa o amadurecimento. Isto é, a planta come- ça a adquirir a resistência mecânica ade- quada. Com dois anos, já pode ser usada em artesanato. No fim do terceiro ano, o bambu está maduro e pode ser utilizado para construção. Para se ter uma ideia, o mogno, que tem um crescimento conside- rado rápido para as madeiras de lei, leva de 15 a 20 anos para começar a atingir uma dimensão mínima para corte (tempo semelhante ao do eucalipto). Mas precisa de pelo menos 30 anos para atingir real- mente um valor comercial bom. Outra vantagem do bambu é que as tou- ceiras são perenes e, assim que a produção é estabelecida, o processo se torna contí- nuo. Novos brotos vão surgindo na mesma touceira, que tem bambus novos a cada ano, possibilitando o manejo. “A colheita é feita entre maio e agosto. Vamos colher, neste ano, apenas os colmos que cresce- ram no início de 2007. Em 2011, será a vez dos que cresceram em 2008, e assim por diante. A touceira não cessa nunca de gerar novos bambus e, ao produzir bio- massa com tanta velocidade, sequestra carbono de forma fantástica – ao mesmo tempo em que seu uso poupa o corte de árvores. O que é fascinante, com esse ma- nejo, é que podemos colher mil bambus sem que se note qualquer alteração na touceira. Podemos dizer que o bambu é visivelmente sustentável”, afirma Pereira. Mesmo com tamanho potencial, o bam- bu não é usado em larga escala no Brasil. O principal obstáculo para que a versátil matéria-prima conquiste espaço na indús- tria moveleira e na construção civil, na opinião do pesquisador, é o preconceito. “No Brasil pouca gente conhece o valor e as possibilidades desse material. O uso do bambu ainda é associado à falta de recur- sos. É a chamada madeira dos pobres”, diz Pereira, que mora, desde 1995, em uma casa onde o bambu substitui os tijolos, sendo apenas a parte externa recober- ta com reboco. “As pessoas riem quando digo que moro em uma casa de bambu. Imaginam algo extremamente precário.” Design para assentados Exatamente por causa disso, quando o Projeto Bambu concluiu os principais es- tudos sobre sua viabilidade, a prioridade passou a ser o design. Os pesquisadores perceberam que, além da funcionalidade, a questão da aparência não é meramente acessória: para os produtos de bambu, a beleza é fundamental. Com base nos dados obtidos nas pesquisas de engenharia, o la- boratório passou a explorar os resultados estéticos do bambu processado e laminado. A partir daí, a pesquisa passou a ser feita com base na geração de produtos, envol- vendo alunos dos cursos de Design e de Arquitetura da Faculdade de Arquitetura, Artes e Comunicação da Unesp de Bauru. Alunos de engenharia estão começando as pesquisas voltadas para a construção. Em 2008, o laboratório conseguiu re- cursos do Banco Real para um projeto de extensão que previa a transferência do Espécies de bambu plantadas no câmpus de Bauru crescem 30 centímetros por dia. Com dois anos já podem ser usadas para artesanato. Material é multiuso e, ao ser processado em técnica conhecida como BLC, pode substituir madeiras de lei unespciência .:. maio de 201014 UC_08_Como01.indd 14 4/23/10 12:42 PM MatéRia-PRiMa e PRODutO FinaL Área experimental agrícola do câmpus tem touceiras de 25 espécies, que são testadas para as mais diversas aplicações; acima, sala da casa de Pereira, feita com a planta conhecimento gerado no laboratório para os moradores do assentamento rural Horto de Aimorés. A comunidade, situada a 18 quilômetros do câmpus, teve contato com o Projeto Bambu por meio da Incubadora de Cooperativas Populares da Unesp. Em maio de 2009, por iniciativa dos alunos, foi formado o Grupo Taquara, que integra o trabalho dos graduandos de Design e de Arquitetura ao projeto de extensão. Hoje, as atividades do cotidiano do Labo- ratório de Processamento de Madeira são exercidas principalmente por esse grupo. “Diariamente trabalhamos no laboratório e às sextas-feiras recebemos os assentados para uma oficina conjunta. Todos atuam também na manutenção da plantação ex- perimental. Trabalhamos em toda a cadeia de produção – desde o manejo das mudas, passando pela colheita, até o processamen- to e o acabamento dos produtos feitos em BLC. É uma interação horizontal”, conta Rodrigo Rocha Carneiro, um dos primeiros alunos do curso de Design a se envolver com a criação do Grupo Taquara. Na área do assentamento, a comuni- dade já plantou 60 mudas e em breve plantará outras 60, que dentro de três anos produzirão cerca de mil colmos de bambu por ano. Na área experimental da Unesp, a colheita é feita nos três pri- meiros meses do ano, com participação de alunos e assentados. Mas os cuidados diários de manejo de mudas são geral- mente realizados pelos assentados. Nas oficinas semanais, as famílias aprendem a manipular as ferramentas para as di- versas aplicações do BLC. Os estudantes também aprendem com a vivência agrí- cola dos trabalhadores e têm a missão de compreender as necessidades deles e adaptar a elas o design do produto. “Previmos, no estatuto do grupo, a participação de colaboradores de outras disciplinas. Percebemos que vamos pre- cisar, em breve, de alunos das áreas de Humanidades para mediar as relações com o pessoal do assentamento, além de um aluno da engenharia de produção para otimizar os processos e a produção cooperada da comunidade. Já integramos também alunos de biologia”, diz Carneiro. As rotinas do laboratório são estabeleci- das por projetos de pesquisa que garantem bolsas e geram metas. Em 2009, o grupo conseguiu financiamentos por meio do Ministério da Educação e do Banco San- tander. O grupo também organiza mostras dos produtos, com a intenção de saber se o que estão passando para os assentados é de fato viável para comercialização. Até agora, o resultado tem sido um sucesso. Para os assentados, como Vicente Coim- bra, o objetivo é adquirir conhecimento que agregue valor a sua produção artesa- nal de objetos em bambu, gerando renda para a comunidade. “Aprendemos todo o processo – do plantio à produção do BLC. Unimos forças com os estudantes, e a experiência está sendo um grande passo para nós. Esperamos que, com o dinheiro de um artesanato mais bonito, a gente possa comprar as máquinas para montar uma oficina no acampamento e aumentar a renda da comunidade”, contou Coimbra, que produz taças, copos, colhe- res e outros tipos de utensílios de bambu. De acordo com Pereira, coordenador do grupo, o interesse da comunidade pelo projeto de extensão é fundamental pa- ra o laboratório, já que para divulgar e popularizar o uso do bambu também é preciso dispor de mão-de-obra qualifi- cada. Cerca de 20 famílias já chegaram a participar, e seis delas se mantiveram assiduamente atuantes no projeto. Enquan- to isso, os 14 alunos do Grupo Taquara abriram um novo processo seletivo e já tiveram a procura de 60 interessados. “É importante que haja essa adesão, porque o grupo precisa se perpetuar. E os estu- dantes universitários se renovam a cada ano. Assim como o bambu.” Fo to s: D an ie la T ov ia ns ky maio de 2010 .:. unespciência 15 UC_08_Como01.indd 15 4/23/10 12:43 PM Carlos Stasi Cabeça Capixaba Usada no espírito Santo, traz na cabeça uma referência à escravidão, e as cores remetem ao cultivo da cana-de- açúcar. QUeixada mUSiCal de tudo se faz música, até da mandíbula de um animal. esta, provavelmente de um jumento, é usada em ritmos afro-peruanos Na falta de uma sala própria no antigo prédio do Instituto de Artes, no Ipiranga, o professor de percussão resolveu fazer de escritório o quarto que ocupa na casa dos pais. Ali foi juntando, ao longo dos últimos 23 anos, cerca de 300 instrumentos, CDs, fitas e pastas com fotos. Dorme no chão, no meio da bagunça, em um colchonete fininho que divide com a noiva. O enxoval se mistura com a coleção. Por mais de dez anos, viajou por 27 países com o objetivo de conhecer como os diversos povos tocam o reco-reco, sua especialidade. Entre peças que adquiriu e outras que ganhou, reuniu por volta de 200 reco- recos, como esses abaixo. homenagem Foi de um tio que fabricava reco-recos que Stasi ganhou seu primeiro. após a morte dele, o músico via o instrumento em todo lugar, de escadas a espirais, o que motivou sua busca pelo mundo unespciência .:. maio de 201016 UC_08_Estacao02.indd 16 30/4/2010 17:55:28 novidade Com a assessoria de um amigo iraniano, Stasi adquiriu um Tombak, instrumento usado em diversos estilos musicais daquele país. este traz um reco-reco embutido ralador de QUeijo bem poderia ser, mas é na verdade uma guira, um típico reco-reco da rep. dominicana. o instrumento foi aperfeiçoado de uma lata de óleo SonS do aniS músicos folcóricos da espanha costumam utilizar a superfície rugosa desta garrafa de anis para tirar sons semelhantes aos de um reco-reco Fo to s: G ui lh er m e G om es maio de 2010 .:. unespciência 17 UC_08_Estacao02.indd 17 30/4/2010 17:55:33 S e você perdeu dinheiro na bolsa nos últimos seis meses, talvez queira tirar satisfação com o físico Didier Sornette, coordenador do Observatório de Crises Financeiras do Ins- tituto Federal Suíço de Tecnologia (ETH, na sigla em alemão), em Zurique. Como um meteorologista que percebe sinais de uma tempestade a caminho, Sornet- te afirma que observou quatro bolhas financeiras se formando no horizonte do mercado global durante esse período. Mas em vez de alarmar o mercado e, portan- Pesquisadores de uma nova disciplina, a econofísica, consideram ultrapassadas as teorias econômicas, as culpam pela atual crise financeira e oferecem modelos das ciências naturais para tentar prever novos estouros dos mercados de alto risco Física Igor Zolnerkevic to, interferir em seu objeto de estudo, ele passou os seis meses quietinho em seu “observatório”, verificando se seu modelo matemático poderia mesmo identificar o início de bolhas e prever quando elas explodiriam. É fácil entender qualitativamente o que é uma bolha no mercado financeiro. Elas acontecem quando os negociantes acredi- tam demais na valorização de uma certa mercadoria. Esse bem pode ser desde uma flor, como as tulipas negociadas na Holanda em 1636, protagonistas da pri- economia unespciência .:. maio de 201018 UC_08_Econofisica06.indd 18 29/4/2010 12:11:38 maio de 2010 .:. unespciência UC_08_Econofisica06.indd 19 28/4/2010 12:01:13 meira bolha financeira da história, até imóveis, caso da bolha norte-americana que gerou a grande crise financeira atual. Nesse clima de otimismo, empresários têm crédito para emprestar somas fabu- losas de dinheiro para alavancar seus negócios. De repente, porém, fica claro que há uma supervalorização dos bens negociados e a bolha estoura, desenca- deando uma espiral de pânico. Os preços começam a cair, todos querem vender, ninguém compra, os preços caem ainda mais e as dívidas ficam impossíveis de pagar. Se a bolha for das grandes, empre- sas, bancos e seguradoras vão à falência, e a sociedade inteira é afetada. Difícil mesmo é perceber um sinal ob- jetivo de que uma bolha está se forman- do e decidir o que fazer a respeito para evitá-la. Economistas em geral nem se arriscam a tentar prevê-la. É da natureza da economia clássica considerar que cri- ses são inerentes ao setor e não há muito a fazer sobre isso, a não ser lidar com o problema depois. Mas profissionais de uma área completamente distinta – a física – estão se embrenhando por essa seara com a expectativa de fazer o que os colegas da economia não fazem. São os chamados econofísicos. É o caso de Sornette. Em seu experimen- to sigiloso iniciado em 2 de novembro do ano passado, ele e sua equipe monitora- ram o sobe-e-desce dos preços de vários bens ligados a ações negociadas mundial- mente. Eles identificaram nos valores de quatro deles uma taxa de crescimento que seu modelo matemático identificou como uma bolha. As previsões de Sornette fo- ram guardadas confidencialmente pelo ArXiv, um servidor on-line público de artigos científicos, e seriam divulgadas dia 1º de maio, infelizmente, depois do fechamento desta edição. Este repórter, entretanto, arrisca uma previsão: as quatro bolhas terão realmente acontecido, mas Sornette não conseguirá, com seu modelo, prever a data em que elas estouraram (saiba se o repórter leva jeito para guru no nosso blog: www.unesp. br/revistablog). O palpite baseia-se no su- cesso que três pesquisadores brasileiros – Daniel Cajueiro e Fellipe Werneck, da Universidade de Brasília (UnB), e Benja- min Tabak, da Universidade Católica de Brasília – tiveram ao aplicar o modelo de Sornette para identificar bolhas na Bovespa em 2008. “Aparentemente funciona, mas não temos certeza se conseguimos fazer previsões”, diz Cajueiro, que é professor de economia da UnB, com formação em enge- nharia elétrica e ciências da computação. A ideia de observar, diagnosticar e pre- ver bolhas financeiras quantitativamente pode parecer loucura para economistas como Alan Greenspan, diretor de 1987 a 2006 do Fed (Federal Reserve, o Ban- co Central americano), que afirmou ser possível perceber uma bolha somente no momento em que ela explode. Greenspan ficou famoso por dirigir o Fed com base na chamada teoria neoclássica dos mer- cados eficientes. Segundo ela, tanto as variações normais de preços quanto as crises financeiras são causadas unicamen- te por eventos imprevisíveis externos ao mercado. Prever bolhas seria como prever os números da loteria, e os economistas não poderiam fazer nada para evitá-las. Mas nem todos pensam assim. “A evi- dência é que esses choques são uma parte A teoria neoclássica dos mercados eficientes prevê que as flutuações dos preços seguem uma distribuição de probabilidade gaussiana. Análises de várias séries históricas de preços por econofísicos, porém, sugerem que esta distribuição subestima a probabilidade de grandes flutuações. A chance de essas variações maiores ocorrerem é mais bem descrita por uma distribuição de “cauda gorda” dada por uma lei de potência. economia unespciência .:. maio de 201020 UC_08_Econofisica06.indd 20 28/4/2010 12:01:15 intrínseca da evolução dos mercados”, diz Alan Kirman, da Universidade Paul Cézan- ne, em Aix-en Provence (França), um dos economistas que lideram um movimento que defende o estudo dos mercados e da economia como “sistemas complexos”. O termo soa vago e místico, mas é assim que matemáticos, físicos, químicos e biólogos vêm chamando nos últimos 50 anos uma série de fenômenos aparentemente sem conexão – como terremotos, avalanches, transições abruptas em ecossistemas –, mas que compartilham um jeito de evo- luir muito parecido matematicamente. Economistas como Alan Kirman en- xergam, obviamente, como aliados o número crescente de econofísicos que pesquisam ou trabalham no mercado financeiro usando ferramentas das ci- ências naturais, especialmente da física (veja quadro na pág. 25). Senão para prever catástrofes, como Sornette e colegas estão tentando fazer, enxergar a economia como um sistema complexo pode permitir que se identi- fique o que precisa ser consertado em um mercado para que ele seja à prova de bolhas. É o que o físico e neurocientista Stefano Battiston, também da ETH, está buscando ao analisar a rede de relações de crédito entre os agentes do mercado financeiro global, identificando a “espi- nha dorsal” dessa rede e onde estão suas vértebras mais frágeis. “Ideias como as do Battiston sobre riscos globais, avalan- ches e redes complexas podem ajudar em termos muito concretos”, disse à Unesp Ciência Jean-Philippe Bouchaud, um dos principais econofísicos em atividade e di- retor do Capital Fund Management (CFM), um fundo de investimento francês gerido por econofísicos. Em ensaio publicado na revista Natu- re em 30 de outubro de 2008, Bouchaud defendeu que a economia precisa de uma revolução científica e culpou os precon- ceitos das teorias neoclássicas pela atual crise financeira. “Mercados não são efi- cientes. As pessoas tendem a se concen- trar demais no curto prazo, e os erros são amplificados, levando por fim ao pânico, à irracionalidade coletiva e a quedas vio- lentas”, escreveu. “Acho que o Bouchaud bate pesado de- mais nos economistas”, comenta Gerson Francisco, do Instituto de Física Teórica (IFT) da Unesp, que pesquisa aplicações da física ao mercado financeiro. Na se- quência, porém, ele pondera que a dife- rença é que os físicos se relacionam com suas teorias de modo mais flexível, e até falível, que os economistas. “Em física, se você faz uma medida e não bate, faz outra medida e também não bate, você muda a teoria”, compara. Após a crise econômica que começou em 2007 e piorou em 2008, críticas fer- renhas à teoria neoclássica saíram dos artigos científicos para ganhar atenção na imprensa geral. Um dos maiores íco- nes desse movimento é Paul Krugman, vencedor do Prêmio Nobel de Economia de 2008, que dedica boa parte de suas colunas no jornal The New York Times ao tema. Mesmo Greenspan declarou em 2008 que “o edifício intelectual” da teoria neoclássica havia colapsado. “[Nós, economistas] não somos culpados por não prever o início da crise, mas sim por desenvolver modelos em que as cri- ses não podem acontecer”, disse Kirman em palestra no final de março em um en- contro de econofísica no IFT. “A economia neoclássica não é simplesmente pesquisa acadêmica inofensiva, porque muita gente planejou e agiu de acordo com a visão de mundo derivada desses modelos.” Equilíbrio eficiente As teorias neoclássicas da economia que Bouchaud, Kirman e Krugman tanto cri- ticam surgiram inspiradas em ideias da física do final do século 19, quando as duas disciplinas enfrentavam problemas semelhantes. De um lado, os físicos ten- tavam entender como o movimento dos átomos e moléculas de uma nuvem de gás produz as características gerais dessa nu- vem, como seu volume e sua temperatura. Já a economia buscava entender como as decisões de cada indivíduo de vender ou comprar – o objeto de estudo da micro- economia – resultam no aumento ou na queda dos índices que medem o estado global da economia, como a inflação e o PIB, estudados pela macroeconomia. Os físicos conseguiram resolver seu problema, mas somente em uma situa- ção muito específica, quando a nuvem de gás está isolada do resto do mundo e atinge uma situação de equilíbrio está- vel. Impressionados com esse sucesso, alguns economistas propuseram estudar os mercados assumindo que eles tendem a um estado de equilíbrio semelhante ao dos gases isolados. Isso se daria em um estado de eficiência e perfeição, no qual crises financeiras não acontecem. A ideia ganhou a simpatia daqueles que defendiam um mercado livre de interven- ções ao oferecer a mecânica pela qual funcionaria a “mão invisível” de Adam Smith. Considerado o marco zero da ciên- cia econômica moderna, o tratado de Smith publicado em 1776, Naturezas e Causas da Riqueza das Nações, dizia que se todas as pessoas querem enriquecer, então o conjunto de suas ações leva a uma sociedade mais rica e ao bem comum. Essa visão de mercados naturalmente equilibrados obviamente caiu em desgraça após a crise de 1929, a pior da história, provocada por uma bolha financeira nas ações da indústria na bolsa de Nova York. Os economistas passaram a questionar a capacidade dos mercados de se regu- larem sozinhos. Mas a indignação não durou muito tempo. O modelo de equi- líbrio clássico foi retomado e sofisticado matematicamente a partir dos anos 1950, especialmente por economistas da Uni- versidade de Chicago (EUA). Daí o fato de as teorias de equilíbrio serem chamadas de neoclássicas. Logo, a “escola de Chica- go” dominou o pensamento na academia. “[Nós, economistas] não somos culpados por não prever o início da crise, mas sim por desenvolver modelos em que as crises não podem acontecer”, afirma Alan Kirman ao defender uma mudança nas teorias da economia neoclássica maio de 2010 .:. unespciência UC_08_Econofisica06.indd 21 28/4/2010 12:01:16 Para provar matematicamente a exis- tência de um equilíbrio estável e único, os economistas assumem que os agentes do mercado são todos representados por indivíduos perfeitamente racionais, que agem da maneira mais eficiente possível para maximizar seus lucros. No momen- to em que esses “agentes representativos” começam a negociar, o mercado ruma rapidamente em direção a um estado de equilíbrio perfeito, em que os preços re- fletem fielmente o valor real dos produtos. A teoria neoclássica considera, claro, que na prática o equilíbrio nunca é alcança- do, uma vez que o mercado não é isolado. Mas entende que notícias sobre eventos externos ao mercado chegam ao acaso, atingindo os preços de maneira aleatória. Os preços então flutuam em torno de seu valor de equilíbrio. A probabilidade des- sas flutuações é calculável, e o resultado é a famosa distribuição gaussiana (veja figura na pág. 20). O problema é que se as flutuações nos preços seguissem mesmo uma distribui- ção gaussiana, então seria extremamente improvável a chance de flutuações vio- lentas como a do crash de 1929, da “se- gunda-feira negra” de 1987 e da crise de 2008. A teoria neoclássica simplesmente não explica tantas crises econômicas em um único século. A visão dos críticos é que a maioria dos economistas se deixou seduzir pela completude matemática da teoria neoclássica, onde tudo pode ser demonstrado e calculado, embora nada tenha conexão com a realidade. Seriam os economistas tão ingênuos? “Existe excesso dos dois lados, tanto nas críticas quanto na crença excessiva na teoria neoclássica”, diz Cajueiro. “Os mo- delos baseados em teoria neoclássica são aproximações interessantes em várias si- tuações e dão respostas adequadas, prin- cipalmente em nível microeconômico.” Estudos de Andrew Lo, economista do MIT (Instituto de Tecnologia de Massa- chusetts, na sigla em inglês), mostram que, pelo menos em alguns momentos, os mercados reais funcionam como os mer- cados eficientes das teorias neoclássicas. Lo cita como exemplo as flutuações dos preços do mercado que ocorreram ime- diatamente após a explosão do ônibus espacial Challenger, em 1986. Após uma comissão governamental comprovar que o acidente foi provocado por uma peça defeituosa, as ações da indústria aeroes- pacial que construiu a peça caíram em questão de minutos. Economia complexa Um estudo de Bouchaud publicado on- line no ArXiv em março de 2008 sugere que em geral as flutuações de preço não têm quase nada a ver com notícias exter- nas ao mercado. Sua equipe observou a flutuação de 893 ações entre agosto de 2004 e de 2006 e não conseguiu identifi- car nenhuma relação entre notícias rele- vantes e a maioria dos saltos nos preços. Esses saltos abruptos sem causa aparente acrescentam mais uma evidência de que o mercado é um sistema complexo. A primeira pista dessa complexidade foi observada em 1963 pelo matemático polonês radicado na França Benoit Man- delbrot, na época, pesquisador da IBM. Ele estudou uma série histórica das flutuações de preço do algodão e notou que a ocorrên- cia de grandes variações era muito maior que a prevista pela distribuição gaussiana. A curva que descrevia a probabilidade de flutuações dos preços tinha uma “cauda mais gorda” que a das distribuições gaus- sianas (veja figura na página 20). A descoberta de Mandelbrot permaneceu esquecida até os anos 1990, quando físicos como Eugene Stanley, da Universidade de Boston (EUA), e Rosario Mantegna, da Universidade de Palermo (Itália) – autores do livro Econophysics, de 1999, que po- pularizou o termo –, resolveram analisar uma quantidade enorme de dados sobre ações nas bolsas de valores disponibili- zados em formato eletrônico. A análise de várias séries de preços mostrou que realmente a distribuição gaussiana su- bestimava a ocorrência de grandes flutu- ações. A curva que melhor descrevia as flutuações nos preços parecia ser uma “lei de potência” (veja figura abaixo), a mar- ca registrada de um sistema complexo. Ela sugere duas coisas: que quanto mais intenso, menos provável é um evento, e que as flutuações, sejam elas grandes ou pequenas, são provocadas por uma mesma dinâmica interna. “Você vê essa lei de potência em tudo quanto é lugar, em terremotos, no cére- bro e na internet, mas ainda não há uma teoria geral para tudo”, explica o físico Gerson Francisco, do IFT. O que já exis- te para descrever os sistemas complexos são uma série de modelos e ferramentas estatísticas e computacionais ainda meio cruas matematicamente, se comparadas com a teoria neoclássica. Essa aparente “falta de rigor” dos físi- cos assusta os economistas e talvez seja a principal diferença cultural entre as duas disciplinas. Bouchaud acredita que a ênfase na observação e na descrição dos fenômenos, sacrificando o rigor matemá- tico de suas teorias, pelo menos em um primeiro momento, é a maior contribuição que a física pode oferecer à economia. “A física tem seu jeito próprio de construir modelos da realidade baseados em uma mistura sutil de intuição, analogias físi- cas e tratamentos matemáticos, onde o conceito vago de plausibilidade pode ser mais relevante que a acurácia das previ- sões”, ele explica. O exemplo clássico que ilustra todas as características que os sistemas comple- xos têm em comum são as avalanches de uma pilha de areia. Imagine que alguém derrama continuamente areia sobre um ponto da superfície de uma mesa. Logo se forma uma pilha de areia em torno do ponto. À medida que cai mais areia, o ângulo entre os lados da pilha e sua base vai aumentando até atingir um va- lor crítico. Alcançado esse valor, a pilha Econofísicos sugerem que a economia funciona como um grande sistema complexo, guiado pela chamada lei de potência; ela propõe que quanto mais intenso, menos provável é um evento, e que as flutuações são provocada por uma mesma dinâmica interna unespciência .:. maio de 201022 economia UC_08_Econofisica06.indd 22 28/4/2010 12:01:16 passa por uma “transição de fase” em seu comportamento. Ela para de crescer con- tinuamente e começa a sofrer uma série de avalanches intermitentes. A areia continua a cair, mas o ângulo em vez de aumentar continuamente, au- menta às vezes mais, às vezes menos, até diminuir. O ângulo volta ao valor crítico depois que uma avalanche de areia desliza sobre a pilha. Um gráfico do número de ocorrências de avalanches pelo tamanho delas mostra uma lei de potência. A moral da história da lei de potência das avalanches sobre a pilha de areia é que tanto uma pequena quanto uma grande avalanche são qualitativamente iguais. Suas causas são as mesmas. Não é preciso provocar um grande choque na pilha de areia para provocar uma grande avalanche sobre sua superfície. A mes- ma dinâmica que provoca as pequenas avalanches também provoca as grandes. A transição de fase abrupta também é outro comportamento dos sistemas com- plexos que os mercados apresentam. O exemplo mais estudado é o da água. As- sim como o modelo físico do século 19 de um gás em equilíbrio não é capaz de explicar a transição do líquido para o vapor d´água, o modelo de mercado em equilíbrio não consegue explicar a tran- sição de um mercado saudável para um em crise. Isso porque o modelo físico de um gás ideal não leva em conta a intera- ção das moléculas de água. Não são os detalhes das propriedades de cada molécula de água que provocam a transição de fase, mas a interação delas. É o que o físico Philip W. Anderson, um dos pais da ideia de sistemas complexos, chamou de “mais é diferente”, isto é, o to- do é mais que a soma das partes. De fato as bolhas financeiras lembram muito essas transições de fases. Em um momento as pessoas estão motivadas a negociar seus bens e no outro ficam de- sesperadas para se livrar deles. É essa analogia que o modelo de Didier Sornette, por exemplo, explora: sinais de que uma transição de fases está prestes a aconte- cer no mercado. O modelo neoclássico de equilíbrio não leva em conta a interação direta dos agen- tes do mercado. A teoria dos sistemas complexos, porém, sugere que justamen- te nela esteja o segredo para entender a dinâmica das crises. Essas interações têm sido estudadas pela teoria das redes complexas, que tem uma lição muito interessante para ensi- nar à economia. Com a globalização, a rede de relações entre bancos e outras instituições financeiras se tornou mais e mais intrincada. Alguns economistas interpretaram o fato como um sinal de que o sistema estaria mais robusto, menos vulnerável a crises. “Acontece que essa rede não é aleatória, alguns dos nós são muito mais conectados que outros e se um deles colapsa você tem um problema”, explica Gerson Francisco. Isso é explora- do pelo modelo de Battiston. A abordagem mais recente é dos “mo- delos baseados em agentes”, uma espécie de jogo de computador automático que A pilha formada por um filete de areia caindo continuamente é mais complexa do que parece. Depois que a pilha atinge um ângulo crítico, seus flancos sofrem uma série intermitente de avalanches. A chance de uma avalanche acontecer está ligada diretamente ao seu tamanho por uma “lei de potência”, o mesmo tipo de lei que governa a flutuação de preços de um mercado. maio de 2010 .:. unespciência UC_08_Econofisica06.indd 23 28/4/2010 12:01:18 simula um mercado financeiro. Diferen- temente de uma simulação comum de física, as “partículas” ou agentes do mo- delo aprendem com o passar do tempo e mudam seu comportamento. O que é programado nesses modelos é o padrão de comportamento dos agentes, que po- dem inclusive agir de forma diferente uns dos outros. Essa modelagem já foi usada para avaliar mudanças nas regras da bolsa Nasdaq, em Nova York. Descrever o comportamento humano em programas de computador, porém, não é tarefa simples, observa Mário Bertella, economista da Faculdade de Ciências e Letras da Unesp de Araraquara, que está começando um projeto de pesquisa que contrapõe os resultados da teoria neo- clássica com os de modelos baseados em agentes. Ele também compara essas duas abordagens com uma terceira, a chamada economia comportamental. Grosso modo, a economia comporta- mental é a contribuição da psicologia à economia, que questiona a hipótese do agente perfeitamente racional. Muitas de suas contribuições foram reconhecidas com prêmios Nobel de Economia. Um exemplo muito estudado é a tendência humana de ser maria-vai-com-as-outras. Estamos sempre atentos ao que os outros estão fazendo e, se acreditamos que eles têm alguma informação privilegiada que não temos, os seguimos. Bertella espera que, no futuro, os modelos baseados em agentes consigam programá-los de acordo com os achados da economia comporta- mental. “É um passo extremamente rico que ainda não foi feito”, diz. Regulação dos mercados A economia como sistema complexo su- gere que crises são sistêmicas e, portanto, poderiam ser evitadas com a regulação do sistema – ponto particularmente de- licado para o mundo neoliberal. Como Bouchaud bem lembra, a ideia dos mer- cados perfeitos em equilíbrio esteve por trás das políticas de desregulação nos últimos anos nos EUA. “O que precisa ser feito é monitorar constantemente o sistema em busca de sinais de instabilidade e vulnerabilida- de”, disse Kirman à Unesp Ciência. “Uma maneira de fazer isso é ditar regras e o governo verificar se os investidores estão respeitando-as. Mas uma alternativa – e acho que é o que está acontecendo nos EUA agora – é ter uma autoridade que monitora o tempo todo o que está acon- tecendo e muda as regras dependendo do que ela observa.” Curiosamente, esse intervencionismo dinâmico citado por Kirman parece muito com o que já acontece no Brasil. “A eco- nomia brasileira teve menos impacto da crise porque é muito mais vigiada e re- gulamentada”, acredita Bertella. “Temos dois órgãos, o BC (Banco Cen- tral) e a CVM (Comissão de Valores Mobi- liários) que fiscalizam, e o fazem muito bem”, comenta Alan de Genaro, diretor de derivativos da BM&FBovespa. A CVM exige que os bancos e as instituições fi- nanceiras avaliem o risco que correm seus clientes. “A bolsa tem um tratamento muito específico e distingue bem a pos- sibilidade de crises.” Um físico pode estudar em todos os detalhes as propriedades de uma molécula de H2O e nunca conseguir prever que a água ferve a 100° C. Como ocorre com a transição da água líquida para vapor, a evolução de um mercado de uma fase normal para uma bolha financeira prestes a estourar depende mais da mudança de interação dos negociadores do que de sua propriedades particulares. economia unespciência .:. maio de 201024 UC_08_Econofisica06.indd 24 28/4/2010 12:01:21 Genaro explica que a bolsa faz “testes de estresse” – avaliações usando modelos que preveem qual seria a perda se ocor- resse uma variação abrupta em um índi- ce econômico importante como o preço do dólar, por exemplo. Os resultados são enviados mensalmente ao BC, que tem um sistema on-line que monitora as tran- sações entre os bancos atuando no país. Sobre a crise financeira, Genaro co- menta que uma de suas causas foi que o controle sobre as transações financeiras era feito em nível de instituição. Não se sabia que tipo de transação era feito den- tro das instituições. “Na Bovespa toda operação é registrada e monitorada em base diária, a gente sabe o risco de cada um de nossos clientes; nos EUA o micro não era observado.” Bombas financeiras E, apesar de tanto palpitar sobre o tra- balho dos economistas, a própria física é outra culpada pela crise, ainda que in- diretamente. Produtos financeiros cha- mados de derivativos, essencialmente contratos negociando ações por preços fixados previamente, são desenvolvidos por econofísicos ou engenheiros financei- ros (veja quadro ao lado). O preço justo e o risco desses contratos é calculado usando modelos que tentam prever a flutuação de preços. Se os modelos subestimam as chances de grandes variações, então o cliente e o vendedor de um derivativo podem estar correndo um risco muito maior do que imaginam. Entre os protagonistas da crise finan- ceira de 2008 estão os CDOs (Obrigações de Débito Colateralizadas, em inglês), de- rivativos usados por bancos para vender a grandes investidores aplicações baseadas em empréstimos imobiliários. “Modelos ingênuos varreram o risco dos CDOs para debaixo do tapete”, diz Bouchaud. “Esses modelos têm hipóteses das quais as pessoas precisam estar conscientes”, diz Rogério Rosenfeld, do IFT. Genaro concorda: “As pessoas enxergam os mo- delos matemáticos como respostas abso- lutas, como 2+2 = 4. Você precisa criticar o modelo, avaliar as implicações das hi- póteses que assume”. O investidor, estatístico e escritor liba- nês Nassim Taleb, aponta para o perigo de se imaginar que quando os riscos es- tão calculados, eles estão controlados. Ele chama atenção para os limites dos modelos e dos cálculos das estatísticas. “Derivativos complexos precisam ser ba- nidos porque ninguém os entende.” Um exemplo irônico foi a falência do fundo de investimento Long-Term Capital Management. O fundo era presidido por Richard Merton e Myron Scholes, dois expoentes pioneiros da econofísica, que dividiram o prêmio Nobel de Economia de 1997 pelo desenvolvimento da principal ferramenta matemática usada no cálculo de derivativos. O fundo faliu após falhar em levar em conta a chance de dois even- tos extremos, a bolha asiática de 1997 e Econofísica padrão A maioria dos econofísicos tem um objetivo bem mais modesto e prático que salvar a economia global. “As pessoas arregalam os olhos quando falo em física financeira, e a primeira coisa que me perguntam é como faço para ga- nhar dinheiro com isso”, conta Rogério Rosenfeld, diretor do IFT, que além de finanças pesquisa cosmologia e partículas elementares. “Nosso objetivo é apenas encontrar o preço justo de um contrato”, explica. O trabalho se concentra em reduzir o risco de perder dinheiro em contratos chamados de derivativos, como as “opções” vendidas por bancos. O cliente que adquire uma opção paga pelo direito (mas não a obrigação) de comprar ou vender uma ação até um certo prazo por um preço fixado anteriormente. Se até o final do prazo o cliente decidir exercer sua opção, o banco então tem a obrigação de vender ou comprar a ação pelo preço fixado, esteja ele acima ou abaixo do valor de mercado. Mas quanto o banco deve cobrar de seu cliente para não perder dinheiro caso a opção seja exercida? Uma solução foi oferecida pelos economistas Fischer Black e Myron Scholes em 1973. Eles comparam a flutuação dos preços com a difusão das moléculas de um gás em um ambiente, um problema familiar para os físicos. O modelo permite que o banco invista corretamente o dinheiro que o cliente pagou, de modo a ter verba suficiente para honrar o contrato. O banco lucra com a opção, cobrando a mais que o preço justo calculado pelo modelo. O modelo original de Black-Scholes, porém, assume que a flutuação dos preços segue uma distribuição gaussiana que não corresponde à realidade, subesti- mando a chance de grandes variações. “É o que gostamos de chamar de modelo da vaca esférica”, diz Rosenfeld, referindo-se à piada do físico que simplificou demais seu objeto de estudo. Atualmente, os econofísicos que trabalham em bancos calculando preços justos de opções tentam desenvolver versões mais sofisticadas do modelo para avaliar os riscos de maneira realista. a moratória do governo russo de 1998. “Inovações em produtos financeiros deveriam ser escrutinadas, testadas con- tra cenários extremos fora do reino dos modelos atuais e aprovadas por agências independentes, assim com temos feito com outras indústrias potencialmente letais (química, farmacêutica, aeroespa- cial, energia nuclear)”, escreve Bouchaud. Esse caso dos derivativos serve como exemplo para mostrar que a econofísica, apesar de aparentemente conseguir expli- car as fragilidades da economia melhor que as teorias neoclássicas, ainda não é capaz de evitar grandes crises. Merton e Scholes falharam por acreditarem que o modelo deles captava todas as complexi- dades da economia. Mas a realidade se revelou ainda mais complexa. maio de 2010 .:. unespciência 25 UC_08_Econofisica06.indd 25 28/4/2010 12:01:21 Análise de documentos da Inquisição e da Companhia de Jesus revelam as origens do comportamento sexual mais liberal dos brasileiros, apesar das sucessivas tentativas da Igreja de controlá-lo Sexo do lado de baixo do Equador Alice Giraldi história unespciência .:. maio de 201026 UC_08_Sexo01.indd 26 28/4/2010 12:04:10 Sexo do lado de baixo do Equador E m seu lamento irônico sobre as imaginárias condições meteoroló- gicas no momento da descoberta do Brasil, o poeta modernista Oswald de Andrade sugeriu que se os índios tivessem conseguido impor sua nudez aos coloniza- dores, tudo seria diferente. A liberdade de comportamento e a exuberante sexualidade indígenas poderiam ter prevalecido sobre o conservadorismo cristão europeu que, afinal, acabou se estabelecendo no Brasil. No ideal antropofágico modernista, valorizar a cultura indígena sobre a do colonizador fazia sentido – e Oswald não ia perder a piada. Mas a história hoje mos- tra que, apesar de subjugados, os índios conseguiram deixar sua marca muito Quando o português chegou Debaixo de uma bruta chuva Vestiu o índio. Que pena! Fosse uma manhã de sol O índio tinha Despido o português. Oswald de Andrade, Erro de português maio de 2010 .:. unespciência Ca rl os F on se ca UC_08_Sexo01.indd 27 28/4/2010 12:04:12 mais do que os religiosos portugueses, perplexos com aquele cenário, provavel- mente gostariam. Análises de documentos do Brasil Co- lônia mostram que nossa sexualidade foi, sim, marcada pela moralidade cristã, mas também por uma acentuada liberalidade, com forte influência dos costumes indíge- nas e africanos, além de uma participação entusiasmada do colonizador português. Tudo isso, ressalte-se, apesar das sucessi- vas tentativas por parte da Igreja Católica de controlar o comportamento sexual que escapasse às suas normas, por meio de ações coercitivas, punitivas e pedagógicas. Pesquisadores do Núcleo de Estudos da Sexualidade (Nusex), grupo interdiscipli- nar fundado há uma década na Faculdade de Ciências e Letras (FCL) da Unesp Ara- raquara, investigaram os textos coloniais sob o ponto de vista da educação sexual, a fim de estabelecer uma historiografia sobre o tema no Brasil. “Não existe um registro histórico da sexualidade no Bra- sil sob a perspectiva da educação sexual”, destaca o psicólogo Paulo Rennes Marçal Ribeiro, coordenador e criador do núcleo. Ele defende que preencher essa lacuna é importante para fornecer aos educadores essa trajetória de um modo sistematizado. “Aquilo que nós compreendemos e senti- mos sobre sexualidade é reflexo da nossa formação cultural, mas muitos professo- res que trabalham com educação sexual desconhecem essa origem”, afirma Ren- nes, que também é professor do Depar- tamento de Psicologia da Educação da FCL e do Programa de Pós-Graduação em Educação Escolar. A educação sexual, nesse caso, é com- preendida sob dois diferentes enfoques. “Um deles é mais escolar, voltado aos es- tabelecimentos de ensino, é mais recente em termos históricos”, explica. “Outro é informal, aquela educação que é dada na família, nos grupos sociais, pela própria sociedade. É muito anterior e, historica- mente falando, remonta ao Brasil Colônia.” Escorregando em índias A primeira pesquisa do grupo foi realiza- da pelo próprio Rennes, a partir da aná- lise de duas compilações de documentos que relatam as atividades da Inquisição durante o período colonial: “Confissões da Bahia” (1591-1593), organizada por Ronal- do Vainfas, e “Confissões de Pernambuco“ (1593-1596), organizada por José Antonio Gonsalves de Mello. Posteriormente, outras duas pesquisa- doras do Nusex também se debruçaram sobre o tema da educação sexual a partir de documentos produzidos durante a Co- lônia. Em 2007, a pedagoga Shirley Rome- Apesar do terror que os inquisidores inspiravam e das humilhações perpetradas nos julgamentos públicos, os tribunais do Santo Ofício não causaram muito efeito em terras brasileiras nem atingiram a truculência que tiveram em colônias espanholas e na Europa história unespciência .:. maio de 201028 Ca rl os F on se ca UC_08_Sexo01.indd 28 28/4/2010 12:04:14 ra dos Santos apresentou um estudo de iniciação científica sobre os regimentos do Santo Ofício, e, em 2009, a cientista social Anne Caroline Mariank Alves Scalia apresentou sua dissertação de mestrado sobre a contribuição da Companhia de Jesus na formação da cultura sexual bra- sileira, a partir da análise dos escritos do padre Manuel da Nóbrega. Os três trabalhos fazem parte de um projeto de pesquisa integrado, intitulado “Educação sexual e sexologia – passado e presente: um estudo histórico, etnológico e interdisciplinar acerca da institucionali- zação do conhecimento sexual no Brasil desde a Colônia até os nossos dias”. “Éramos uma sociedade que praticava sexo com intensidade”, conta Rennes. Os costumes sexuais da população indígena, assim como os dos africanos, não vincula- vam o sexo ao casamento, mas ao prazer. O português que chegava ao Brasil vinha de uma Europa medieval bastante contida no que dizia respeito ao vestir e aos hábi- tos sexuais e se deparava com a nudez e a disponibilidade da mulher indígena. Nos primeiros tempos, os colonos enviados ao Brasil eram exclusivamente homens, indivíduos condenados ao degredo por crimes cometidos em Portugal. “Pratica- mente não havia mulheres portuguesas por aqui, apenas índias”, lembra Anne Scalia. Gilberto Freyre, no livro Casa Grande & Senzala (1933), descreve, de maneira bas- tante crua, o cenário que os portugueses encontravam ao aportar por aqui: “ (...) o europeu saltava em terra escorregando em índia nua; os próprios padres da Com- panhia de Jesus precisavam descer com cuidado, se não atolavam o pé em carne (...). As mulheres eram as primeiras a se entregarem aos brancos, as mais ardentes indo esfregar-se nas pernas desses que supunham deuses. Davam-se ao europeu por um pente ou um caco de espelho”. As “Confissões da Inquisição”, docu- mentos formados por livros de denúncias, confissões propriamente ditas e ratifica- ções, trazem uma descrição minuciosa do comportamento sexual no Brasil no período de 1591 a 1769, nas capitanias da Bahia, de Pernambuco, do Maranhão e do Grão-Pará. A primeira Visita Inquisitorial, em 1591, tinha o objetivo de localizar os judeus convertidos, ou “cristãos novos”, que ainda praticavam os ritos judaicos às encondidas. “Mas, ao chegar aqui, os visitadores perceberam que o principal ponto de conflito com os dogmas da Igreja Católica era o comportamento sexual da população”, conta Shirley Romera. Na Colônia de el rei, constataram os in- quisidores, grassavam muitas das práticas sexuais condenadas pela Igreja Católica, tais como a sodomia, a bigamia, o adultério, o concubinato e a bestialidade (veja quadro nas págs. 30 e 31). Pior: as transgressões sexuais envolviam os próprios membros da Igreja. Séculos antes da atual onda de acusações de pedofilia, freiras e padres desrespeitavam abertamente as normas da castidade e do celibato, por exemplo. A Inquisição não pegou O concubinato entre padres e índias era comum. Também era conhecida a figura do “freirático”, cavalheiro que se dedicava a seduzir freiras, empreitada que envolvia um verdadeiro ritual, com envio de pre- sentes à religiosa em questão e doações em dinheiro ao convento em que ela vivia. “É preciso lembrar que o celibato ainda era algo recente na Igreja Católica”, pon- dera Rennes. E, portanto, bastante des- respeitado em todo o mundo, mas nada como ocorria no Brasil. A norma havia sido finalmente estabelecida durante o Concílio de Trento, em 1563, depois de séculos de discussões sobre o tema. “Além disso, era frequente as mulheres irem para os conventos por questões familiares, não por escolha ou vocação, o que as tornava mais vulneráveis à sedução.” O medo, mais precisamente o pavor, era a estratégia utilizada pela Inquisição para extrair confissões e denúncias sobre a vida privada do cidadão. Ao chegar nu- ma determinada localidade, a equipe de visitadores afixava nas portas das casas um documento denominado monitório – uma lista dos crimes em geral, como heresias, blasfêmias, sacrilégios, não res- trita aos delitos sexuais estipulados pelo Santo Ofício – e convocava a população a confessar-se, sob pena de excomunhão, caso as transgressões cometidas viessem a público posteriormente. Era dado um prazo de 30 dias para que os fiéis confes- sassem seus crimes – período conhecido como “Tempo da Graça” –, depois do qual iniciava-se a fase das delações. Apesar do terror que os inquisidores inspiravam e das humilhações perpe- tradas nos julgamentos públicos, os tri- bunais do Santo Ofício não causaram muito efeito em terras brasileiras nem atingiram a truculência que tiveram na Europa e em algumas colônias espanho- las. “Como ocorreu com tantas outras coi- sas, a Inquisição não pegou no Brasil”, afirma Shirley. “Aqui não houve tortura nem pessoas queimadas em fogueiras.” Os pesquisadores do Nusex observaram que as penas para os crimes sexuais, na grande maioria das vezes, eram brandas, incluindo apenas admoestações, penitên- cias espirituais, jejum e uma segunda confissão. “Localizamos um único caso em que houve uma punição mais severa, de uma senhora que foi citada em várias confissões e delações de conteúdo sexu- al”, informa Rennes. A ré era Paula de Sequeira, mulher do contador da Fazenda D’el Rei na capitania da Bahia. Paula tomou a iniciativa de ir ...Eram três ou quatro moças bem moças e bem gentis / Com cabelos mui pretos pelas espáduas E suas vergonhas tão altas e tão saradinhas / Que de nós as muito bem olharmos Não tínhamos nenhuma vergonha. Oswald de Andrade, A descoberta, parafraseando a Carta do Descobrimento, de Pero Vaz de Caminha maio de 2010 .:. unespciência UC_08_Sexo01.indd 29 28/4/2010 12:04:14 ao Santo Ofício para confessar o “caso” mantido durante dois anos com uma mu- lher chamada Felipa de Sousa. A esposa do contador foi castigada du- ramente para os moldes brasileiros: levou chibatadas em praça pública e foi expul- sa da capitania. Ainda assim, uma pena infinitamente mais leve e piedosa, diga- -se de passagem, do que aquela prevista pela mesma Inquisição para o crime de homossexualidade feminina na Europa: as praticantes deveriam ser queimadas vivas e reduzidas a pó, para que delas não restasse nem memória. Se as penas para os fiéis transgressores na esfera sexual eram brandas – uma vez que não tinham muito efeito mesmo –, o esforço da Santa Inquisição acabou se fo- calizando no sentido pedagógico. “Ao dizer o que era errado, a Igreja acabava apon- história unespciência .:. maio de 201030 Crime e castigo O monitório, documento produzido pela Inquisição, listava os crimes de natureza sexual. Os fiéis eram convocados a consultá-lo para confessar os próprios delitos e denunciar outros infratores, sob pena de excomunhão. As punições eram definidas segundo critérios subjetivos. “As penas atribuídas durante determinada visitação eram específicas daquela visitação e da interpretação dada a cada caso pelo visitador”, explica o pesquisador Paulo Rennes. As transgressões sexuais mais praticadas no Brasil Colônia, segundo os documentos da Inquisição, eram as seguintes: Sodomia – Sexo anal. Era o delito mais frequente entre todos. Acontecia tanto entre homens como entre homens e mulheres, solteiros ou casados. A Igreja denominava a sodomia de pecado nefando ou crime contra natura, por considerar a prática “contrária a natureza”, ou seja, não destinada à procriação. Curiosamente, as penas para um crime considerado tão grave pelo Santo Ofício em geral eram brandas: admoestações, rezas, jejum e confissões públicas. Ca rl os F on se ca UC_08_Sexo01.indd 30 28/4/2010 12:04:18 tando o que era o correto em termos de comportamento sexual”, diz Shirley. “Tra- tava-se de uma tentativa de normatização da conduta sexual.” Assim, por exemplo, se a homosexualidade e a sodomia eram considerados crimes, o certo e lícito para a Igreja era a relação sexual entre homem e mulher com o objetivo de procriar. Diabinho x anjinho O mesmo caminho educativo percorreu o padre Manuel da Nóbrega, primeiro repre- sentante da Companhia de Jesus a pisar em terras brasileiras, em 1549. Embarca- do de última hora em substituição a ou- tro religioso que havia sido designado ao Brasil, o padre jesuíta chegou à Colônia com a incumbência de catequisar os ín- dios para ampliar os domínios da Igreja, mas escandalizou-se com o que encontrou. “O olhar crítico de Nóbrega era dirigi- do aos colonos e aos padres portugueses, que, apesar de conhecer o cristianismo e a doutrina da Igreja, viviam amanceba- dos com as índias”, conta a pesquisadora Anne Scalia, que, dos 46 escritos do pa- dre, estudou 23 que apresentam conteúdo relacionado à educação sexual. São rela- tos detalhados, dirigidos à Companhia de Jesus, dando conta do que ocorria aqui. “É claro que Nóbrega se chocou com a nudez e com a poligamia dos indígenas, mas compreendia que se tratava de uma outra cultura, com costumes diferentes. E se tornou um grande protetor do índio.” A intenção de Nóbrega era casar as índias com os portugueses, mas o projeto come- çou a complicar quando o jesuíta tentou enquadrar os costumes locais nos dogmas cristãos. “Para que um colono pudesse se casar com uma índia, ela precisaria ser convertida ao cristianismo”, afirma Anne. “Mas, para converter-se ao cristianismo, era necessário que primeiro essa índia fosse batizada. Daí a importância da catequese.” Só que a lógica colonial em muitos as- pectos contradizia os dogmas da Igreja. A recomendação de monogamia e contenção na prática sexual, por exemplo, batia de frente com as possibilidades de ascensão econômica do colono, que estavam direta- mente ligadas à prática da miscigenação. “Como o casamento indígena se dava por acordo, o português que casava com uma índia era aceito pela tribo e, assim, passava a ter acesso às riquezas das terras dela”, explica Anne. Portanto, quanto maior fos- se o número de índias com as quais esse colono se juntasse, maior seria sua pos- sibilidade de explorar recursos naturais como pau-brasil e minérios, por exemplo. “Essa contradição acompanha toda a história da Igreja”, diz Rennes. “As normas eram impostas, mas as práticas sexuais são uma tradição passada de geração em geração.” No Brasil, crê o pesquisador, houve uma adaptação dos dogmas da Igreja Católica ao contexto local, a par- tir da qual, ao longo dos séculos, foi se forjando a cultura sexual brasileira. “Se hoje somos contraditórios em relação às práticas sexuais – e somos, há sempre um diabinho de um lado que diz ‘faça’ e um anjinho do outro lado que diz ‘não faça’ –, isso deve-se à forma que se deu a construção da nossa cultura sexual.” “Se hoje somos contraditórios em relação às práticas sexuais – e somos, há sempre um diabinho de um lado que diz ‘faça’ e um anjinho do outro lado que diz ‘não’ –, isso deve-se à forma que se deu a construção da nossa cultura sexual.” maio de 2010 .:. unespciência 31 Afirmar que “a ordem dos casados era superior que a ordem dos sacerdotes” – “A Igreja estabelecia uma hierarquia entre religiosos e fiéis, de acordo com o que considerava como aqueles mais bem vistos aos olhos de Deus”, diz a pesquisadora Shirley Romera. Em primeiro lugar, vinham os membros da Igreja, padres e freiras que dedicavam a vida à religião; em segundo, as pessoas casadas; em terceiro, os solteiros celibatários. Apesar dessa norma, muitos fiéis insistiam em afirmar que era melhor ser casado, e poder ter relações sexuais, do que ser religioso, e ter de se manter casto. Essa simples afirmação era considerada uma transgressão pela Inquisição, passível de punições como admoestações, penitências espirituais e pagamento de um valor em dinheiro. Bigamia – Prática relativamente comum na Colônia, envolvendo portugueses que já eram casados na terra natal e voltavam a casar-se no Brasil. Alguns acreditavam que haviam ficado viúvos, casavam-se de novo aqui e depois recebiam a notícia de que o cônjuge continuava vivo em Portugal. Na maioria das vezes a pena para o delito era leve, consistindo de penitências espirituais. Fornicação – Prática dividida em duas categorias: simples, que envolvia as relações sexuais entre homens e mulheres solteiros; e qualificada, que incluía adultério, concubinato, relação sexual com freiras e bestialidade. A pena poderia ser a própria confissão. Solicitação – Pedido de favor sexual pelo padre ao fiel no momento da confissão, podendo envolver uma troca pela absolvição de pecados. “Nesses casos havia uma relação de sedução e poder”, destaca Anne Scalia. “Afinal, o padre estava abaixo do papa, que estava abaixo de Deus.” UC_08_Sexo01.indd 31 28/4/2010 12:04:18 Sai Mario Bros, entram os quarks P essoas realmente inteligentes não jogam videogames. Tudo bem praticar ocasionalmente para relaxar. Mas não todo o tempo, e muitas pessoas estão agindo assim.” O vaticínio emitido em 2001 pelo célebre escritor de ficção científica Ray Bradbury, então com 81 anos, retrata bem o olhar crítico com que muitos das gerações mais anti- gas contemplam a avassaladora paixão de adolescentes e jovens adultos por jogos eletrônicos. Essa febre sustenta uma in- dústria global e multibilionária que cresceu mais de 10% na maior parte desta década, e, apesar da recessão que sufocou o pla- neta, arrecadou mais de US$ 20 bilhões em 2009. Tamanho sucesso está levando alguns educadores e profissionais envol- vidos com divulgação científica a aposta- rem numa atitude diferente. Para eles, os games podem ser aliados na transmissão de conhecimentos para uma geração que está se tornando mais íntima de telas de cristal líquido do que de livros de papel. É o caso do físico Sérgio Novaes, do IFT (Instituto de Física Teórica), da Unesp de São Paulo, que bolou um game sobre fí- sica de partículas. Novaes é coordenador do projeto Sprace (sigla em inglês para Partículas fundamentais da física são alvo de nave espacial nanométrica em novo game que tenta popularizar o assunto e aumentar o conhecimento de estudantes sobre a matéria Centro Regional de Análise de São Paulo), que desde 2003 desenvolve pesquisas em física de altas energias. Os membros do Sprace colaboram com alguns dos princi- pais experimentos da área realizados em aceleradores de partículas, como o LHC, ligado ao Cern (Centro Europeu de Pes- quisa Nuclear), na Suíça, e o acelerador Tevatron, do Laboratório Fermi, nos EUA. Lá fora é comum as agências financiadoras exigirem, como contrapartida, que pes- quisadores contemplados com fundos se envolvam em atividades de divulgação. Como o Sprace é financiado pela Fapesp, Novaes buscou maneiras de levar aos es- tudantes pelo menos parte do universo da física de altas energias. Sua primeira iniciativa foi elaborar um cartaz com informações básicas sobre a constituição da matéria, nos níveis atômi- co e subatômico. O projeto, lançado em 2008, chamava-se “Estrutura elementar da matéria: um cartaz em cada escola”, e se inspirava em iniciativas semelhantes ocorridas nos Estados Unidos e na França. Financiado pelo CNPq, resultou na produ- ção de 25 mil cartazes, dos quais 24.131 foram destinados a todas as unidades de ensino médio do país, localizadas, literal- mente, do Oiapoque ao Chuí. Os custos de envio do material, da ordem de R$ 70 mil, foram bancados pela Universidade Federal do ABC, o que gerou uma econo- mia de parte dos recursos. Novaes decidiu investir então em outro projeto de divul- gação: o game sobre partículas, destina- do, mais uma vez, aos alunos do ensino médio. “As informações que os estudantes recebem sobre a estrutura da matéria na escola estão defasadas em quase um sé- culo. Queremos ajudá-los a superar essa falha em sua formação”, explica. O jogo, batizado de Sprace Game, foi produzido pela Summa Technologies do Brasil, empresa com experiência na cria- ção de games sob encomenda. “Existem vários jogos que se propõem a transmitir conhecimentos de Física. Todos os que pu- de jogar, porém, são muito chatos”, avalia Einar Saukas, designer do Sprace Game. Ele cita como exemplo um jogo disponi- bilizado no site do Cern, onde o jogador comanda um bonequinho que tem como missão saltar obstáculos. A cada obstáculo transposto abre-se uma janela com infor- mações como “o átomo é composto de elétrons, prótons e nêutrons”, sem muita interação com o jogo em si. “Ninguém quer Pablo Nogueira “ educação unespciência .:. maio de 201032 UC_08_Games03.indd 32 28/4/2010 12:06:22 maio de 2010 .:. unespciência UC_08_Games03.indd 33 28/4/2010 12:06:29 Combinação de quarks Embora o jogador possa experimentar todo tipo de combinação com as seis diferentes variedades de quarks (top, bottom, up, down, charm e strange) e seus correspondentes de antimatéria, apenas as combinações que se observam na natureza como estáveis é que são válidas no game. As demais terminam numa pequena explosão. Esta combinação é feita num ambiente chamado módulo de análise jogar um jogo chato. E se ninguém joga, qual é o valor educativo que ele tem?”, questiona Saukas. “É preciso que o game seja divertido, impressionante, semelhante aos outros jogos a que os alunos têm aces- so. E o conteúdo educativo tem de estar integrado à experiência, em vez de ficar interrompendo o jogo”, diz. No Sprace Game, o jogador pilota uma nave espacial reduzida a proporções na- nométricas e equipada com um canhão de raios. Ele deve cumprir quatro missões diferentes, mas todas envolvem o uso do canhão para capturar partículas subatô- micas e levá-las a um laboratório, onde são analisadas. À medida que as missões se sucedem, o jogador vai aprende sobre o universo das partículas e toma contato com propriedades como as diferenças de massa ou de composição (veja acima). Na etapa final, o estudante descobre os quarks, espécie de tijolinhos fundamentais que formam os nêutrons e prótons, partí- culas que ele conhece das aulas no ensino médio. Durante uma das fases, o jogador também é obrigado a consultar a tabela periódica dos elementos, outra velha co- nhecida dos bancos escolares. “Ao mostrar como são formados partículas e elementos químicos que o aluno já conhece, fazemos uma associação entre o conhecimento que ele possui e as novas informações que está recebendo agora. Isso impede que a aprendizagem fique restrita a um plano abstrato”, defende Saukas. Durante o jogo, o estudante toma contato com quase 40 partículas. Todas as informações científi- cas sobre elas foram colhidas no catálogo científico The Review of Particle Physics. Contrabalançando tanta informação cien- tífica, havia a preocupação de assegurar um produto com apelo para os jovens. A qualidade dos gráficos é profissional. A operação da nave, mais difícil do que pa- rece, mas não difícil demais. “Se for muito fácil, não tem graça. E se for muito difícil, ninguém consegue jogar”, explica Saukas. Para testar a eficácia da atração, ele colocou os próprios sobrinhos, de idade entre 13 e 15 anos, para caçarem partículas. “Muitos elementos do tutorial foram acrescentados para responder a dúvidas que eles expres- saram enquanto jogavam”, diz. Um teste maior foi feito durante um evento de divulgação realizado pelo IFT chamado Master Classes. Trata-se da edição brasileira de um programa que acontece Game on Durante as fases do Sprace Game, o jogador se depara com vários conceitos da física de partículas. Veja alguns deles: Decaimento Processo pelo qual uma partícula, após certo tempo, transforma-se espontaneamente em outras menos massivas. Muitas vezes, o jogador está com o alvo na mira e erra o tiro porque a partícula multiplicou-se em várias outras. Tanto o intervalo de tempo necessário para que o decaimento ocorra no jogo quanto os padrões pelos quais as novas partículas são formadas a partir das antigas reproduzem as informações dos manuais de física Análise de partículas Na última fase, o jogador deve capturar quarks e usá-los para formar novas partículas. Na realidade é impossível visualizar diretamente os quarks que compõem uma partícula. O jeito encontrado aqui foi dotar o jogador da capacidade de paralisar o tempo. Nesta dimensão “congelada”, seria possível fazer a análise. Aqui, veem-se um quark strange e um anti-quark up Massa Uma partícula “grande”, como o tau, possui milhares de vezes mais massa do que uma “pequena”, como o elétron. No jogo, essas variações são representadas visualmente pela diferença de tamanho entre as partículas. As velocidades também variam: enquanto as mais massivas se deslocam qu