UNIVERSIDADE ESTADUAL PAULISTA - JÚLIO DE MESQUITA FILHO Faculdade de Ciências e Letras - Campus de Araraquara/SP Programa de Pós- Graduação em Linguística e Língua Portuguesa RAFAELA REGINA GHESSI CONCORDÂNCIA VERBAL EM PORTUGUÊS: um estudo sobre atitudes linguísticas em duas escolas públicas de Monte Azul Paulista-SP ARARAQUARA – S.P. 2020 RAFAELA REGINA GHESSI CONCORDÂNCIA VERBAL EM PORTUGUÊS: um estudo sobre atitudes linguísticas em duas escolas públicas de Monte Azul Paulista-SP Dissertação de Mestrado apresentada ao Programa de Pós-Graduação em Linguística e Língua Portuguesa da Faculdade de Ciências e Letras – Unesp/Araraquara, como requisito para obtenção do título de Mestre em Linguística e Língua Portuguesa. Orientadora: Profa. Dra. Rosane de Andrade Berlinck Agência de fomento: CNPq ARARAQUARA – S.P. 2020 Ficha catalográfica elaborada pelo sistema automatizado com os dados fornecidos pelo(a) autor(a). Ghessi, Rafaela Regina Concordância verbal em português: um estudo sobre atitudes linguísticas em duas escolas públicas de Monte Azul Paulista-SP / Rafaela Regina Ghessi — 2020 138 f. Dissertação (Mestrado em Linguistica e Lingua Portuguesa) — Universidade Estadual Paulista "Júlio de Mesquita Filho", Faculdade de Ciências e Letras (Campus Araraquara) Orientador: Rosane de Andrade Berlinck 1. Concordância verbal em português. 2. Atitudes linguísticas. 3. Teoria da Variação e Mudança Linguísticas. 4. Ensino de Língua Portuguesa. I. Título. Dissertação de autoria de Rafaela Regina Ghessi, sob o título CONCORDÂNCIA VERBAL EM PORTUGUÊS: um estudo sobre atitudes linguísticas em duas escolas públicas de Monte Azul Paulista-SP, apresentada ao Programa de Pós-Graduação em Linguística e Língua Portuguesa da Faculdade de Ciências e Letras – Unesp/Araraquara, para obtenção do título de Mestre em Linguística e Língua Portuguesa. Linha de Pesquisa: Análise Fonológica, Morfossintática, Semântica e Pragmática. Orientadora: Profa. Dra. Rosane de Andrade Berlinck Data da Defesa: 06/02/2020 MEMBROS COMPONENTES DA BANCA EXAMINADORA: __________________________________________ Profa. Dra. Rosane de Andrade Berlinck UNESP/FCLAr Presidente e Orientadora _________________________________________ Profa. Dra. Lucia Furtado de Mendonça Cyranka Instituição :UFJF/Juiz de Fora. Membro Titular __________________________________________ Profa. Dra. Juliana Bertucci Barbosa Instituição: UFTM/Uberaba Membro Titular Local: Universidade Estadual Paulista Faculdade de Ciências e Letras UNESP – Campus de Araraquara Para aqueles que, assim como eu, lutam por uma educação democrática e igualitária. Agradecimentos Agradeço, primeiramente, a Deus, por ter me dado força e perseverança para que eu conseguisse realizar esse sonho. Só Ele sabe de tudo que passei para chegar até aqui. Aos meus pais, Sandra e Sérgio, por sempre acreditarem em mim. Não teria chegado onde eu cheguei se não fosse pelo desejo, pelos planos, pela paciência e por todo o trabalho que tiveram. Agradeço por nunca desistirem de mim. Aos meus tios, Bete, José, Miguel e Tuca, por toda oração, preocupação e por tornarem os meus anos de estudo possíveis. Muita gratidão por tudo. Ao meu irmão, Leonardo Ghessi, por ser meu exemplo de disciplina e determinação e que, junto com sua esposa, Naiara, sempre torceram por mim. À minha avó, Onélia (in memoriam), meu exemplo de vida, que, durante 20 anos, esteve ao meu lado me orientando em caminhos corretos. Enquanto houver você do outro lado, por aqui eu consigo me guiar, pois, de alguma forma, você me dá apoio e inspiração para continuar indo em frente, lutando pelos meus sonhos. Terei a vida inteira de gratidão. Ao Felipe Arroyo, meu noivo, que percorreu comigo todas as etapas que me levaram até aqui. Agradeço por sonhar comigo meu sonho e sempre acreditar em mim. Com você esse percurso se tornou mais fácil e não digo apenas pela ajuda na parte estatística do trabalho, mas por todas as vezes que você olhava para mim e dizia que iria ficar tudo bem. Meu parceiro de vida e de profissão, seguiremos juntos, buscando e proporcionando conhecimento. Aos meus amigos de Monte Azul Paulista, que, mesmo que soasse complexo, ficavam horas e horas me ouvindo “palestrar” sobre a Teoria da Variação e Mudança. Agradeço por tornarem as coisas sempre mais leves para mim. Quero agradecer a Larissa Peluco, amiga e parceira não só da vida acadêmica, mas parceira de boas risadas, bons conselhos e a única que consegue entender e ouvir com tranquilidade os meus dilemas (que são muitos). Agradeço por sempre me apoiar e andar junto comigo nessa caminhada. Aos integrantes do grupo SOLAr, que me acolheu tão bem nesses dois anos e compartilhou comigo experiências enriquecedoras. Em especial, agradeço imensamente ao Marcus Garcia de Sene, uma das pessoas mais inteligente e amante da área acadêmica que eu conheço, por, sem medir esforços, ter me ajudado com muitas coisas, especialmente com a parte estatística do meu trabalho. Agradeço também à Milena Aparecida, a gêmea que a UNESP me deu, por sempre saber falar as coisas certas nas horas certas e me ajudar a confiar mais em mim. À Profa. Dra. Rosane de Andrade Berlinck, minha orientadora, me faltam palavras. Agradeço por todo suporte teórico, disponibilidade e sabedoria com que me acolheu e me assessorou nesse tempo, me fazendo pesquisadora. Minha admiração por você será eterna. À Profa. Dra. Juliana Bertucci que esteve comigo nos meus 4 anos de graduação, me incentivando e orientando nos caminhos da Sociolinguística e que, mesmo depois, contribuiu para minha formação acadêmica, dando apontamentos enriquecedores ao meu trabalho. À Profa. Dra Lúcia Cyranka pelas significantes contribuições ao meu trabalho. Foi uma enorme realização ter tido meu trabalho lido por uma referência tão importante na área da Sociolinguística Educacional. A Rafaela da graduação, que lia e relia sua tese como fonte de conhecimento e inspiração não teria acreditado. Aos professores, alunos e toda coordenação das duas Escolas de Monte Azul Paulista- SP, que me receberam e fizeram desse trabalho possível. Ao CNPq, pela bolsa de Mestrado e ao Programa de Pós-Graduação em Linguística e Língua Portuguesa da Universidade Estadual Paulista Júlio de Mesquita Filho por todo auxílio prestado. Meu muito obrigado! RESUMO O tema da avaliação deve ser discutido em estudos sobre variação e mudança linguística, pois suscita um processo de construção de julgamentos subjetivos do falante em relação a sua própria língua e à do seu interlocutor. Esses julgamentos estão ancorados na ideologia linguística de uma língua padrão, uma vez que os falantes acreditam que a língua existe em formas padronizadas e esse tipo de crença afeta o modo como pensam sua própria língua (MILROY, 2011, p.49). A escola, que tem como uma das disciplinas de ensino a língua materna, acaba sendo um ambiente propício para a distorção da realidade linguística e propagação de preconceitos linguísticos. Dessa forma, o presente trabalho tem como objetivo refletir sobre o ensino de língua portuguesa no Brasil, investigando atitudes linguísticas de professores e alunos de duas escolas da rede pública de Monte Azul Paulista, município do interior de SP, mediante o fenômeno variável de concordância verbal de terceira pessoa do plural. Para isso, este trabalho pautou-se no aporte teórico e metodológico da Sociolinguística Variacionista, buscando fazer uma reflexão sobre a Teoria da Variação e Mudança Linguística (WEINREICH; LABOV; HERZOG, 2006) e uma revisão teórica acerca dos conceitos de atitudes e avaliações linguísticas (LABOV, 2008 [1972]; LAMBERT, 1967). Com relação à coleta do corpus, elaboramos uma proposta de redação aos alunos, com o propósito de selecionar e quantificar as ocorrências de CV. Paralelamente a essa etapa, elaboramos dois testes de atitudes linguísticas que foi aplicado aos professores de Língua Portuguesa e aos alunos, de modo a analisar a reação no que se refere às convenções e aos padrões institucionalizados, auxiliando na discussão da valorização e rejeição às variedades da língua em uso. Além disso, o objetivo deste trabalho é estabelecer uma relação entre as respostas dos professores e as atitudes dos alunos. A hipótese é a de que as atitudes dos professores de língua materna frente a fenômenos variáveis podem influenciar nas crenças e atitudes de seus alunos sobre a língua. As respostas dos testes confirmaram o prestígio da variante com a marcação de plural, indicando, portanto, o valor de uma variedade orientada para a ascensão social. Além disso, foi possível concluir que o ensino de língua portuguesa está distante de um ensino reflexivo e de uma pedagogia culturalmente sensível (ERICKSON, 1987). PALAVRAS-CHAVES: Concordância verbal. Atitudes linguísticas. Ensino. ABSTRACT The evaluation theme should be discussed in studies on linguistic variation and change, as it raises a process of constructing subjective judgments of the speaker in relation to his own language and that of his interlocutor. These judgments are anchored in the linguistic ideology of a standard language, since speakers believe that the language exists in standardized forms and this type of belief affects the way they think their own language (MILROY, 2011, p.49). The school, which has the mother tongue as one of its teaching subjects, ends up being a favorable environment for the linguistic reality distortion and the linguistic prejudices spread. Thus, this paper aims to reflect on the Portuguese teaching in Brazil, investigating the linguistic attitudes of teachers and students from two public schools in Monte Azul Paulista, in the interior of Sao Paulo, through the variable phenomenon of verbal agreement third-person plural. Thereunto, this work was based on the theoretical and methodological contribution of Variationist Sociolinguistics, seeking to reflect on the Theory of Variation and Linguistic Change (WEINREICH; LABOV; HERZOG, 2006) and a theoretical review on the concepts of attitudes and linguistic evaluations (LABOV, 2008 [1972]; LAMBERT, 1967). Regarding the corpus collection, we prepared a proposal for writing to the students, with the purpose of selecting and quantifying the occurrences of CV. Parallel to this stage, we developed two tests of linguistic attitudes that were applied to Portuguese language teachers and students, in order to analyze the reaction with regard to institutionalized conventions and standards, helping to discuss the appreciation and rejection of language varieties in use. In addition, the objective of this work is to establish a relationship between the teachers’ responses and the student’s attitudes. The hypothesis is that the mother tongue teachers 'attitudes towards variable phenomena can influence their students' beliefs and attitudes about the language. The test responses confirmed the prestige of the variant with the plural marking, thus indicating the value of a variety oriented towards social ascension. In addition, it was possible to conclude that the Portuguese language teaching is far from reflective teaching and culturally sensitive pedagogy (ERICKSON, 1987). KEYWORDS: Verbal agreement. Linguistic attitudes. Teaching. LISTA DE FIGURAS Figura 1. Localização de Monte Azul Paulista em São Paulo.........................................56 Figura 2. Localização das escolas locus da pesquisa no mapa de Monte Azul Paulista. 57 Figura 3. Quantidade de alunos por idade e sexo na Escola A. ...................................... 59 Figura 4. Quantidade de alunos por idade e sexo na Escola B. ...................................... 59 Figura 5. Nuvem de palavras associada à sentença “qual a profissão do seu pai?” elaborada através das respostas dos alunos da Escola A. ............................................... 60 Figura 6. Nuvem de palavras associada à sentença “qual a profissão do seu pai?” elaborada através das respostas dos alunos da Escola B. ............................................... 60 Figura 7. Nuvem de palavras associada à sentença “qual a profissão da sua mãe?” elaborada através das respostas dos alunos da Escola A. ............................................... 62 Figura 8. Nuvem de palavras associada à sentença “qual a profissão da sua mãe?” elaborada através das respostas dos alunos da Escola B. ............................................... 62 Figura 9. Exemplo de boxplot. ....................................................................................... 68 Figura 10. Distribuição das escolas no CP “Solidariedade” por escola e por fragmento. ........................................................................................................................................ 75 Figura 11. Distribuição das escolas no CP “Qualificação” por escola e por fragmento. 81 Figura 12. Distribuição das escolas no CP “Prestígio” por escola e por fragmento....... 84 Figura 13. Distribuição das respostas no CP “Solidariedade” por sexo/gênero e por fragmento. ....................................................................................................................... 94 Figura 14. Distribuição das respostas no CP “Qualificação” por sexo/gênero e por fragmento. ....................................................................................................................... 95 Figura 15. Distribuição das respostas no CP “Prestígio” por sexo/gênero e por fragmento ........................................................................................................................ 96 LISTA DE TABELAS Tabela 1. Efeitos dos anos de escolarização no uso da concordância verbal em duas amostras aleatórias da comunidade do Rio de Janeiro em épocas diferentes. ................ 51 Tabela 2. Índice do IDEB da Escola A e Escola B. ....................................................... 57 Tabela 3. Renda salarial dos pais das profissões em destaque nas nuvens de palavras.. 61 Tabela 4. Renda salarial das mães das profissões em destaque nas nuvens de palavras. 62 Tabela 5. Perfil dos professores participantes da pesquisa. ............................................ 63 Tabela 6. Ausência vs. Presença da marca de concordância verbal na escola A ........... 71 Tabela 7- Ausência vs. Presença da marca de concordância verbal na escola B. .......... 72 Tabela 8- Correlação entre as respostas nas onze escalas (Análise de Componentes Principais). ...................................................................................................................... 73 Tabela 9- Resultados do Modelo de Regressão para o CP1 “Solidariedade”. ............... 75 Tabela 10- Resultados do Modelo de Regressão para o CP2 “Qualificação”. ............... 81 Tabela 11- Resultados do Modelo de Regressão para o CP3 “Prestígio”. ..................... 84 Tabela 12- Ocorrências de concordância verbal por sexo/gênero na Escola A. ............. 92 Tabela 13- Ocorrências de concordância verbal por sexo/gênero na Escola B. ............. 93 Tabela 14- Resumo das respostas do fragmento 1. ...................................................... 109 Tabela 15- Resumo das respostas do fragmento 2. ...................................................... 110 Tabela 16- Resumo das respostas do fragmento 1. ...................................................... 110 Tabela 17- Resumo das respostas do fragmento 2. ...................................................... 111 LISTA DE QUADROS Quadro 1. Diferença entre fala e escrita de um ponto de vista dicotômico. ................... 31 Quadro 2. A perspectiva variacionista. ........................................................................... 32 Quadro 3. Perspectiva sociointeracionista. ..................................................................... 34 SUMÁRIO 1. INTRODUÇÃO ..................................................................................................... 14 2. PRESSUPOSTOS TEÓRICOS ............................................................................ 19 2.1 Teoria da Variação e Mudança Linguísticas .................................................... 19 2.2 Atitudes Linguísticas .......................................................................................... 24 2.3 Fala e escrita: uma reflexão sobre continuum e mudança linguística ............ 30 2.4 Norma Padrão e a crença do “erro” linguístico ............................................... 36 2.5 A contribuição da Sociolinguística para o ensino de Língua Portuguesa ...... 41 2.6 O fenômeno variável da concordância verbal (CV) ........................................ 48 3. PROCEDIMENTOS METODOLÓGICOS ....................................................... 55 3.1 As escolas locus de pesquisa ............................................................................... 55 3.2. Perfil social dos informantes ............................................................................. 58 3.3 O teste de atitudes linguísticas: decisões metodológicas e métodos de análise .................................................................................................................................... 64 4. ANÁLISE DOS DADOS ....................................................................................... 70 4.1 Atitudes dos alunos ............................................................................................. 71 4.1.1 Solidariedade percebida nos fragmentos .............................................. 74 4.1.2 Qualificação percebida nos fragmentos ................................................ 80 4.1.3 Prestígio percebido nos fragmentos ...................................................... 83 4.1.4 Uma breve discussão sobre sexo/gênero ............................................... 91 4.2 Atitudes dos professores ................................................................................ 99 4.3 Correlação entre as atitudes e as avaliações linguísticas dos professores e dos alunos ................................................................................................................. 114 7 CONSIDERAÇÕES FINAIS ............................................................................. 117 REFERÊNCIAS ......................................................................................................... 123 APÊNDICE I ............................................................................................................... 131 APÊNDICE II ............................................................................................................. 132 APÊNDICE III ............................................................................................................ 135 ANEXO A- TERMO DE CONSENTIMENTO LIVRE E ESCLARECIDO (TCLE) ......................................................................................................................... 138 ANEXO B- DISPENSA DO TERMO DE CONSENTIMENTO LIVRE E .......... 140 ANEXO C- AUTORIZAÇÃO PARA REALIZAÇÃO DE PESQUISA ............... 142 14 1. INTRODUÇÃO A Sociolinguística Variacionista é uma das áreas da Linguística que se dedica ao estudo da língua no contexto social, ou seja, estuda a relação existente entre a língua que falamos e a sociedade em que vivemos. Essa ciência considera a língua como um objeto histórico, defendendo a heterogeneidade existente na sistematicidade da língua. Sobre isso, Bright (1966, p.29) discute que uma das maiores tarefas da Sociolinguística é “mostrar que a variação não é livre, mas que está correlata às diferenças sociais sistemáticas”. Nos tempos em que se firmavam as raízes da Sociolinguística, meados dos anos 1960, essa ciência voltou-se para a descrição da variação e mudança linguística e sua relação com os fatores linguísticos e extralinguísticos, expandindo-se, posteriormente, para outras dimensões da linguagem humana. Sobre esse aspecto, Gumperz (1922- 2013) reflete: Desde meados dos anos 1960, quando o termo sociolinguística apenas começava a ser aceito, essa disciplina vem ampliando seus objetivos iniciais de investigação, muito além da explicação dos processos de mudança e difusão linguísticos. Na atualidade, especialmente durante a última década, converteu-se em uma disciplina central, preocupada com todos os aspectos da comunicação verbal nas sociedades humanas. Em particular, com as formas como a comunicação influi e reflete as relações de poder e dominação, com o papel que a linguagem joga na formação e perpetuação de instituições sociais, assim como, com a transmissão da cultura. (JOHN GUMPERZ, 1922-2013 apud BORTONI-RICARDO, 2014, p.13) Podemos verificar, primeiramente, que a Sociolinguística priorizou a descrição linguística a partir de amostras, principalmente de fala e, posteriormente, essas pesquisas foram ampliadas para além do descritivo, e começaram a ser trilhados caminhos para se conhecer como as crenças, atitudes e avaliações linguísticas interferem no processo de constituição da identidade de uma comunidade. O trabalho de Labov (2008 [1972]) sobre a mudança fonética no inglês falado na ilha de Martha’s Vineyard, já apontava para esse tipo de estudo e para esses fatores. No livro Fundamentos empíricos para a teoria da mudança linguística, Weinreich, Labov e Herzog (2006 [1968]) discutem a importância do estudo da avaliação na mudança linguística: 15 [...] o estudo do problema da avaliação na mudança linguística é um aspecto essencial da pesquisa que conduz a uma explicação da mudança. Não é difícil ver como traços de personalidade inconscientemente atribuídos a falantes de um dado subsistema determinariam a significação social da alternância para esse subsistema e assim seu desenvolvimento ou obsolescência como um todo. (WEINREICH, LABOV e HERZOG, 2006, p.103). O tema da avaliação deve ser discutido em estudos sobre variação e mudança linguística, pois suscita um processo de construção de julgamentos subjetivos do falante em relação a sua própria língua e à do seu interlocutor. Esses julgamentos estão ancorados na ideologia linguística de uma língua padrão, uma vez que os falantes acreditam que a língua existe em formas padronizadas e esse tipo de crença afeta o modo como pensam sua própria língua (MILROY, 2011, p.49). A concepção social de padronização da língua reflete-se no ensino de Língua Portuguesa nas escolas brasileiras e nos livros didáticos adotados pelos professores que, embora apresentem variação linguística como conteúdo, aparentemente a concepção de língua como prática social é subjacente à sua abordagem1. A escola, que tem como uma das disciplinas de ensino a língua materna, acaba sendo um ambiente propício para a distorção da realidade linguística e propagação de preconceitos linguísticos, silenciando sujeitos externos a uma norma idealizada2, que é carregada de ideologias e de relações de poder (PETERMANN e ALVES, 2018). Dessa forma, os professores, que deviam ser agentes que descontroem estereótipos linguísticos, hesitam em se trabalhar a pluralidade da língua dentro de sala de aula, tornando cristalizada a metodologia conservadora e excludente e relegando a segundo plano a variação linguística. Quando os professores recusam, em nome da “boa tradição”, o ensino reflexivo das normas gramaticais em uso, acabam apostando em dicotomias como certo e errado e estereotipando seus alunos pelo modo de falar. A falta de reconhecimento referente à pluralidade da língua, em parte decorrente de uma metodologia e fundamentação inadequadas, faz com que os professores subestimem a variedade linguística de seus alunos e sua própria capacidade, como se os 1 Petermann e Alves (2018) analisaram três livros didáticos do Ensino Médio com o objetivo de observar a forma como abordam a variação linguística. Suas análises evidenciaram que, de alguma maneira, os livros estavam ligados à Ideologia da Padronização (MILROY, 2011), pois parecem conceber a língua como um sistema único e fechado que é exterior ao falante. Para os autores, a abordagem de ensino desses livros “visa ao reconhecimento e classificação das “variedades” do que a reflexão acerca da existência e da persistência dos fenômenos linguísticos” e enxergam a variação linguística como “distorções de um padrão ilusório da língua” (PETERMANN e ALVES, 2018, p. 19). 2Faraco (2008) propõe um tratamento para a polissemia que envolve a concepção de norma. É o que veremos mais adiante. 16 alunos não soubessem português. No entanto, o que na verdade eles não sabem são as regras da gramática tradicional que são apresentadas a eles sem nenhum sustento no uso, mas apenas em formas a serem decoradas. Os professores devem, primeiramente, entender que a língua não é sinônimo de gramática tradicional e a variação linguística não é apenas mais um conteúdo do livro didático. Além disso, a escola não deve ser um ambiente que fortalece preconceitos linguísticos, ou seja, a variedade do aluno não deve ser motivo de exclusão, mas ser vista como caracterização do uso normal e real da língua. De acordo com Bortoni-Ricardo (1985, p. 92), a avaliação positiva das variedades prestigiadas em contrapartida às não-prestigiadas pode representar, para o falante, a perda de sua integridade pessoal e a identidade de grupo. Uma nova pedagogia de ensino de língua materna pauta-se em um trabalho sem danos aos valores sociais dos alunos. Defendemos que os alunos precisam ter consciência de que a língua varia com o tempo e que todas as variedades, do ponto de vista estrutural linguístico, são perfeitas e complementares entre si. A escola não pode ignorar as diferenças sociolinguísticas. Deve-se usá-las para que os alunos reflitam sobre a variedade que aprendem em casa e as variedades cultas, que aprendem na escola; assim será possível desenvolver sua competência comunicativa3 tanto na modalidade falada como na escrita. Partindo dessas reflexões, o objetivo principal desta pesquisa é investigar as atitudes linguísticas de professores de Língua Portuguesa do Ensino Médio e de alunos do 3° ano do Ensino Médio de duas escolas da rede pública de Monte Azul Paulista- SP, perante o fenômeno variável de concordância verbal (CV) de terceira pessoa do plural. A pesquisa segue os pressupostos teórico-metodológicos da Sociolinguística Variacionista (WEINREICH, LABOV, HERZOG 2006 [1968], LABOV 2008 [1972]). O estudo das atitudes e avaliações linguísticas é uma das tarefas que a Sociolinguística se propõe, sendo uma das suas questões fundadoras da Teoria da Variação e Mudança Linguísticas (WEINREICH, LABOV, HERZOG, 2006[1968]). Os trabalhos que discutem a rejeição da escola à variedade do aluno são de suma importância e devem ser tratados sob essa ótica. Compreender e analisar as atitudes de 3 Entendemos competência comunicativa como um conceito que inclui “[...] não só as regras que presidem à formação das sentenças, mas também as normas sociais e culturais que definem a adequação da fala” (BORTONI-RICARDO, 2004, p.73). A competência comunicativa de um falante lhe permite saber o que falar e como falar com quaisquer interlocutores e em quaisquer situações de comunicação, sendo esta a noção de “adequação” proposta por Dell Hymes e retomada por Bortoni-Ricardo (2004). 17 professores e alunos abrem caminhos para a discussão da variação e mudança dentro do universo escolar, orientando para um ensino que considera o aluno como um indivíduo pensante e ativo e não mais aquele que "não sabe português". Paulo Freire, em suas discussões sobre a pedagogia libertadora, refletiu sobre a urgência de dar voz aos alunos: ouvi-los significa “[...] captar a linguagem deles e, necessariamente, seus temas, que vêm através de suas palavras e de sua sintaxe. É claro, exatamente porque a linguagem é um problema de classe social” (FREIRE, 2011, p.245). Para a construção do corpus, elaboramos uma proposta de redação aos alunos, com o propósito de selecionar e quantificar as ocorrências de CV. Paralelamente a essa etapa, elaboramos um teste de atitudes linguísticas que foi aplicado aos professores de Língua Portuguesa e aos alunos, de modo a analisar a reação no que se refere às convenções e aos padrões institucionalizados, auxiliando na discussão da valorização e rejeição às variedades da língua em uso. Além disso, o intuito deste trabalho é estabelecer uma relação entre as respostas dos professores e as atitudes dos alunos. A escolha das escolas de Monte Azul Paulista-SP se deu a partir da localização geográfica: uma das escolas está localizada no centro da cidade, enquanto que a outra escola está localizada em um bairro periférico bastante estigmatizado na cidade. A escolha da CV é justificada por ser um fenômeno superavaliado. Mesmo que para esse fenômeno estejam em evidência duas variantes, a ausência da marcação de plural nos verbos (Os meninos fala) e a presença de marcação de plural nos verbos (Os meninos falam), a não realização do traço morfológico de número possui um valor sociolinguístico, podendo corresponder a uma maneira de desqualificar o falante da língua. Sobre isso, argumenta Scherre (2005): Quem deixa de fazer concordância de número é normalmente chamado de burro, ignorante, porque, afirma-se, “não saber falar”. Somos então às vezes inteligentes e às vezes burros? Somos “variavelmente” inteligentes? Repito: a variação da concordância de número no português brasileiro está seguramente instalada na língua falada [...]. (SCHERRE, 2005, p.20) Não é o objetivo principal deste trabalho descrever a fundo o funcionamento da concordância verbal do Português Brasileiro (PB), mas, com base na literatura robusta existente sobre o tema (cf. VIEIRA e PIRES, 2012; LUCCHESI, BAXTER e SILVA, 2009; SCHERRE e NARO, 2006; OLIVEIRA, 2005; entre outros), busca-se observar a 18 maneira como esse fenômeno aparece no contexto escolar por meio das atitudes linguísticas dos professores e dos alunos. Com este trabalho, buscamos responder às seguintes questões: A) Há correlação entre as atitudes e avaliações linguísticas dos professores e a dos alunos em relação à ausência de concordância verbal? Se afirmativo, as atitudes dos professores podem ter algum reflexo nas atitudes desfavoráveis dos alunos em relação a sua própria capacidade em dominar a norma culta? B) Os professores conseguem compreender os desvios de concordância a partir de um ponto de vista Sociolinguístico? C) Ter como critério de seleção a localização geográfica (centro x periferia) e o perfil socioeconômico dos bairros é relevante quando observamos a distribuição de ausência de concordância verbal e as atitudes e avaliações linguísticas dos alunos por escola? A hipótese deste trabalho é a de que as atitudes dos professores de língua materna frente a fenômenos variáveis influenciam nas crenças e atitudes dos alunos sobre a língua. Os testes com os professores funcionariam como forma de se controlar os resultados obtidos nos testes dos alunos. Quanto mais as atitudes e avaliação linguísticas dos professores fossem negativas em relação à variedade que foge dos padrões impostos pela escola, mais negativas seriam as atitudes e avaliações dos alunos e mais descrentes estariam eles sobre o ensino de língua portuguesa e sobre sua competência comunicativa, segundo os modelos escolares esperados. Sobre isso, afirma Basso (2006, p. 24): “[...] a aprendizagem dos alunos é melhorada quando eles percebem as expectativas e as intenções dos professores, e quando os professores percebem acuradamente as expectativas e as intenções de seus alunos”. Para averiguar tal hipótese e responder as perguntas fundadoras mencionadas, o estudo se compõe de uma revisão científica dos conceitos abordados, do trabalho de campo nas escolas em que foram realizados os contatos com os alunos e professores, das redações e dos testes de atitudes. Na seção 1, de introdução desta dissertação, introduzimos as principais temáticas, justificando o trabalho e sintetizando os objetivos, hipóteses e metodologias adotadas. Na seção 2, intitulada “Pressupostos teóricos”, há a discussão das teorias e 19 conceitos utilizados no trabalho, como a Teoria da Variação e Mudança linguísticas, Atitudes Linguísticas, continuum entre fala e escrita, Sociolinguística Educacional e uma breve discussão sobre o fenômeno variável da concordância verbal, que é colocado na dimensão avaliativa nos testes de atitudes linguísticas. Na seção seguinte, 3, “Procedimentos metodológicos”, apresentamos e descrevemos os procedimentos metodológicos adotados na realização da presente pesquisa. Nessa seção, explicitamos as escolas que fizeram parte da pesquisa e apresentamos os perfis sociais dos alunos e professores. Além disso, tratamos sobre a construção do teste de atitudes linguísticas, demonstrando as decisões metodológicas para o levantamento do corpus. Já na seção 4, “Análise dos dados”, apresentamos a descrição e a interpretação das respostas dos alunos e professores nos testes de atitudes linguísticas. Nessa mesma seção, exibimos a correlação entre as atitudes e avaliações linguísticas dos professores e alunos. Na última seção, “Considerações finais”, o trabalho é finalizado com as conclusões, seguidas das referências, apêndices e anexos. 2. PRESSUPOSTOS TEÓRICOS Nesta seção, apresentamos, de maneira sucinta, as principais abordagens adotadas nesta investigação. Dessa forma, discutem-se os pressupostos da Teoria da Variação e Mudança Linguística, noções fundamentais acerca de Atitudes Linguísticas, algumas contribuições da Sociolinguística para o ensino de Língua Portuguesa no Brasil e, por fim, algumas considerações a respeito do fenômeno variável da concordância verbal e da escrita e oralidade. 2.1 Teoria da Variação e Mudança Linguísticas O estabelecimento da Sociolinguística em 1964 como uma área autônoma na Linguística é precedido por estudos de vários pesquisadores, como Meillet4 e Bakhtin5, que tinham como objetivo a articulação da linguagem com os aspectos de ordem social 4 Antoine Meillet foi um aluno de Saussure, mas se opunha a seu mestre, pois defendia que as histórias das línguas são inseparáveis da história da sociedade e da cultura em que vive o falante. Essa noção de língua para o autor pode ser vista de modo mais aprofundado em sua obra intitulada Esquisse d’une histoire de la langue latine, 1977. 5 Bakhtin foi um teórico social da linguagem que considerava a relação entre sociedade, linguagem e identidade e também foi um crítico à postura de Saussure, como podemos ver em sua obra Marxismo e filosofia da linguagem, 1988, p.123: “A verdadeira substância da língua não é constituída por um sistema abstrato de formas linguísticas, nem pela enunciação monológica isolada [...]”. 20 e cultural. A Sociolinguística se constitui e floresce na insatisfação com as concepções estruturalistas e gerativistas, de modo que essas duas áreas do conhecimento linguístico contribuíram para um novo olhar à linguagem, vista, agora, como um fenômeno social, heterogêneo e plural. Vale frisar que a Sociolinguística é um termo bastante amplo, que incorpora diferentes maneiras de olhar para a relação entre língua e sociedade. Nesta seção, trataremos da teoria e do método da Sociolinguística Variacionista (ou Quantitativa). Weinreich, Labov e Herzog (2006 [1968]), no livro Fundamentos empíricos para uma teoria da mudança linguística, criticam o conceito de língua que foi proposto por Saussure (2006) no Curso de Linguística Geral, dado que sua teoria privilegiava somente o caráter formal e estrutural do fenômeno linguístico. Para Saussure, a língua é um sistema abstrato e invariante, subjacente à atividade da fala. Ao distinguir a fala (parole) da língua (langue): [...] ele via a língua como social e fala como individual. Entretanto, observemos que Saussure nada tem a dizer de concreto sobre a comunidade como a matriz do desempenho da fala individual. Em particular, não há nada em sua teoria que pudesse acomodar uma língua heterogênea salvando-a ao mesmo tempo como um objeto legítimo da investigação sincrônica. (WEINREICH, LABOV e HERZOG, 2006 [1968], p. 56). Saussure, dessa forma, insistia que as explicações dos fatos linguísticos acham- se somente derivadas de outros fatos linguísticos, excluindo quaisquer dados externos que pudessem explicar o comportamento linguístico, pois para ele “A língua [...] é de natureza homogênea” (SAUSSURE, 2006, p.32). Esse postulado estabeleceu uma correlação entre estrutura e homogeneidade, de modo que, para Saussure, só era possível observar estrutura e sistematicidade num recorte que tivesse o objeto língua como homogênea. Saussure parece limitar as possibilidades do estudo histórico das línguas, assim como observamos no gerativismo: Os gerativistas buscam “explicar” (entre aspas, porque prefiro “interpretar”) as mudanças- no caso, sintáticas, que ocorreram sem considerar fatores externos, ou sócio históricos, interessados apenas nos fatores próprios a grammar do falante, ou seja, em seu processamento computacional. (MATTOS e SILVA, 2008, p. 12). 21 Contrapondo esse cenário linguístico, a Sociolinguística trata das investigações que entendem que a variabilidade caracteriza o uso normal da língua e é chave para a compreensão de mecanismos de seu funcionamento, como, por exemplo, a mudança linguística (CONDE SILVESTRE, 2007, p.26). O aporte teórico e metodológico da Sociolinguística vem para demonstrar que a variação e a mudança não são aleatórias, mas sim estruturadas, organizadas e instruídas por diferentes fatores, ao contrário do que Saussure considerava. A heterogeneidade ordenada do sistema linguístico possibilita a expressão de um mesmo conteúdo informacional através de regras diferentes, todas igualmente lógicas e com coerência funcional (BAGNO, 2007, p.43). Sobre isso, apontam Weinreich, Labov e Herzog (2006 [1968]): O sistema heterogêneo é então visto como um conjunto de subsistemas que se alternam de acordo com um conjunto de regras co- ocorrentes, enquanto dentro de cada um desses subsistemas podemos encontrar variáveis individuais que covariam mas não co-ocorrem estritamente. Cada uma dessas variáveis acabará sendo definida por funções de variáveis independentes extralinguísticas ou linguísticas, mas essas funções não precisam ser independentes umas das outras. Pelo contrário, normalmente se esperaria encontrar íntima covariação entre as variáveis linguísticas. (WEINREICH, LABOV e HERZOG, 2006 [1968], p. 108). Essa concepção define, portanto, que todas as línguas vivas, usadas para a comunicação, variam e a variação não é condicionada apenas linguisticamente, mas também por algum fator de ordem social. A variação linguística é um processo pelo qual duas formas ou mais podem ocorrer em um contexto com o mesmo valor referencial (COELHO et al, 2015, p.16). O sociolinguista tem como propósito descobrir quais mecanismos regulam a variação, como ela interage com outros fatores de ordem linguística e social e como a variação pode levar à mudança linguística. Entretanto, como foi abordado por Weinreich, Labov e Herzog (2006[1968]), autores com trabalhos fundamentais da Sociolinguística Histórica6, “Nem toda variabilidade e heterogeneidade na estrutura linguística implica mudança; mas toda mudança implica variabilidade e heterogeneidade” (WEINREICH, LABOV e 6 A Sociolinguística, com a sistematicidade teórica e metodológica dos estudos sobre Variação e Mudança Linguística (WEINREICH; LABOV; HERZOG, 2006) veio corroborar com os estudos diacrônicos e sincrônicos sobre a língua, ocupando-se tanto dos fenômenos gerais e históricos das mudanças, como da compreensão e explicação de processos de mudanças concretos a partir das correlações entre fatores linguísticos e sociais. Essa relação da Linguística Histórica com a Sociolinguística foi nomeada como Sociolinguística Histórica (CONDE SILVESTRE, 2007). 22 HERZOG, 2006[1968], p.125). Para esses mesmos autores, os fatores sociais são de suma importância para o desenvolvimento das mudanças, de modo que apontam que a mudança se inicia quando determinada forma alternativa- originária de um subgrupo- se estende a todos os membros de uma comunidade de fala. O traço linguístico em questão assume um certo significado social, simbolizando os valores sociais relacionados àquele subgrupo. A mudança linguística e a heterogeneidade são essenciais para a existência de uma língua, sendo fatores indissolúveis, uma vez que o desenvolvimento de uma mudança implica historicamente a existência de heterogeneidade na comunidade de fala (CONDE SILVESTRE, 2007, p. 31). A perspectiva histórica é a única que pode dar conta da realidade dinâmica da língua, pois se entendermos a língua de maneira homogênea em estados autônomos no decorrer do tempo, será difícil explicar os períodos de transição entre um estágio e outro. Segundo Mollica (2003): Cabe à Sociolinguística investigar o grau de estabilidade ou de mutabilidade da variação, diagnosticar as variáveis que têm efeito positivo ou negativo sobre a emergência dos usos linguísticos alternativos e prever seu comportamento regular e sistemático (MOLICCA, 2003, p. 11). William Labov foi um dos pioneiros dos estudos sociolinguísticos, uma vez que contribuiu com metodologias de análises em comunidades de fala, sublinhando o papel decisivo dos fatores sociais na explicação da variação e da mudança linguística. Labov (2008 [1972]) teve como seu principal objeto de estudo a língua falada, esta que foi observada, descrita e analisada em situações reais de uso. Para a análise dos fenômenos variáveis, o autor propôs o conceito de comunidades de fala, esta que: [...] não é definida por nenhuma concordância marcada de uso de elementos linguísticos, mas sim pela participação num conjunto de normas compartilhadas; essas normas podem ser observadas em tipos de comportamento avaliativo explícito e pela uniformidade de padrões abstratos de variação que são invariantes no tocante a níveis particulares de uso. (LABOV, 2008 [1972], p.150). Ao estudar a comunidade de fala, se constata a variação e a diversidade linguística, de modo que toda comunidade se caracteriza por uma maneira de falar. Toda língua possui um feixe de variedades e cada variedade representa características próprias do uso linguístico. Desse modo, Labov (2008 [1972]) parte dessa premissa em 23 seus estudos, como podemos observar no trabalho que foi feito na comunidade da ilha de Martha’s Vineyard. Labov observou uma mudança sonora no contexto da vida da comunidade: a alteração na posição fonética dos primeiros elementos do ditongo /ay/ e /aw/. Das informações que foram dispostas, Labov conclui que quando os falantes da ilha centralizam mais os fonemas, estão inconscientemente expressando o fato de que pertence a ilha: a alta centralização de (ay) e (aw) está intimamente correlacionada a expressões de grande resistência às incursões dos veranistas. Sobre isso, Labov (2008[1972]) disserta: A ilha possui, pela pressão econômica, a dependência do turismo. A crescente dependência em relação ao turismo de verão atua como uma ameaça à independência pessoal deles. O estudo dos dados mostra que a alta centralização de (ay) e (aw) está intimamente correlacionada a expressões de grande resistência às incursões dos veranistas. (LABOV, 2008 [1972], p.48) No entanto, aqueles que reagem positivamente ao turismo apresentam em menor escala essa centralização ou então não apresentam. Esse estudo, portanto, evidenciou um padrão unificado na comunidade de Martha’s Vineyard, que exprime o significado dos ditongos centralizados. Em tal estudo, revelou-se significativa, a partir dos juízos de valores dos informantes, a questão da identidade e da atitude. Labov (2008[1972]) aborda a noção de prestígio encoberto para explicar o desejo do falante de manter sua identidade no interior de seu grupo social. Se um indivíduo deseja se integrar a um grupo, deve partilhar, além das suas atitudes e valores, a linguagem característica desse grupo. Nesse caso, determinadas formas de linguagem se investem de um “status” particular, embora sejam desprovidas de prestígio na comunidade linguística em geral (PAIVA, 2003, p.40 apud CYRANKA, 2007, p.57). Este estudo foi muito relevante à área, uma vez que abre caminhos para se pensar em como a variação e a mudança linguística sofrem pressões sociais. De acordo com Labov (2008 [1972]): A contribuição de forças internas, estruturais, para a efetiva difusão das mudanças linguísticas, deve ser naturalmente o foco de atenção de qualquer linguista que esteja investigando esses processos de propagação e regularização. No entanto, uma abordagem que considera apenas as pressões estruturais dificilmente pode contar a história toda. Nem todas as mudanças são altamente estruturadas, e nenhuma mudança acontece num vácuo social. Até mesmo a mudança 24 em cadeia mais sistemática ocorre num tempo e num lugar específicos, o que exige uma explicação. (LABOV, 2008 [1972], p.20) Labov (2008[1972]) define uma comunidade linguística como um conjunto de falantes que compartilham os mesmos valores com relação à língua. Isso implica que “[...] os falantes, de alguma maneira, reconhecem, mesmo que eventualmente possam não concordar, o que se costuma chamar de significado social, das formas variantes [...] que têm a ver com identidades sociais” (PAGOTTO, 2006, p.58). Alguns valores atribuídos a uma forma linguística podem ser negativos, o que faz com que ela esteja sujeita automaticamente à avaliação negativa dos usuários da língua. Os falantes atribuem valores sociais a um fenômeno variável superavaliado, prestigiando ou estigmatizando um uso linguístico, como é com o caso do fenômeno aqui escolhido: a concordância verbal. Muitos estudos já demonstraram que a variante explícita de plural é a variante de prestígio e a variante zero de plural é julgada pela tradição e pelos falantes como índice de não saber falar português (SCHERRE; NARO, 2006, p.2). As formas da língua, portanto, não veiculam somente o seu significado referencial, mas também denunciam julgamentos sociais, abrindo espaços para que marginalizemos os falantes que fazem usos de formas desprestigiadas na sociedade. Um dos objetivos da Sociolinguística é justamente constatar que não há nada nas formas variáveis de uma língua que permita afirmar que uma é melhor do que a outra. Além disso, muitas pesquisas vêm demonstrar, assim como a de Labov na comunidade de Martha’s Vineyard, que muitas formas linguísticas recebem avaliação positiva ou negativa como uma maneira de reforçar identidades. Podemos dizer que, ao mesmo tempo em que uma forma é avaliada negativamente em uma comunidade linguística, em outra, ela pode ser avaliada positivamente pelos participantes da comunidade, sendo uma forma de se aliarem a um grupo social. Estudos que estão nesse âmbito promovem caminhos para conhecer como as crenças, atitudes e avaliações linguísticas interferem no processo de constituição da identidade de uma comunidade. A subseção que segue tem como objetivo descrever mais sobre essa temática, que atualmente é tão cara aos estudos sociolinguísticos. 2.2 Atitudes Linguísticas 25 Dentre os “problemas” que a Teoria da Variação e Mudança Linguística propõe como fundamentais para a explicação dos processos (socio)linguísticos, o da avaliação das variáveis (socio)linguísticas é aquele que mais toca os objetivos do presente estudo. De acordo com Labov (2008 [1972]), “Nem todas as mudanças linguísticas recebem avaliação social explícita ou sequer reconhecimento. Algumas parecem ficar muito abaixo do nível das reações sociais explícitas” (p.354). Para o autor (2008 [1972), é possível classificar os diversos elementos envolvidos na variação e mudança linguística segundo sejam ou não avaliados e, em caso afirmativo, segundo o tipo de avaliação social que eles recebem. Distinguiu, assim, três tipos de variáveis: indicadores, marcadores e estereótipos. Os indicadores são traços linguísticos encaixados em uma matriz social, indicando diferenciação entre os falantes, mas que não possuem nenhum padrão de alternância estilística e não possuem muita força avaliativa. Um exemplo de indicador é a monotongação dos ditongos /ey/ e /ow/ no português falado atual, em palavras como peixe/pexe, feijão/feijão, couve/cove”, pois é isenta de valor social e estilístico (COELHO et al, 2015, p. 67). Os marcadores, embora possam estar abaixo do nível da consciência, produzem reações regulares em testes de reações subjetivas, possuindo mais força avaliativa que os indicadores (LABOV, 2008 [1972], p. 360). Um exemplo de marcadores é a variação entre os pronomes “tu” e “você”, em certas regiões do Brasil. De acordo com Coelho et al (2015, p. 66), “O uso desses pronomes, em geral, não é estigmatizado, mas está correlacionado a variáveis estilísticas (grau de intimidade, por exemplo) e sociais (como a faixa etária dos falantes)”. Por último, os estereótipos “são formas socialmente marcadas, rotuladas enfaticamente pela sociedade” (LABOV, 2008 [1972], p. 360). Algumas formas podem ter prestígio que varia de grupo para grupo, sendo, dessa forma, positivos para alguns e negativos para outros. Como exemplos de estereótipos, podemos citar a concordância verbal, fenômeno posto na dimensão avaliativa em nosso trabalho. O indivíduo ao ouvir uma forma sem a marcação de plural, associa-se, em geral, ao dialeto caipira ou a classes sociais mais baixas, que são, normalmente, com menor grau de escolarização (BENFICA, 2016). Assim, se desencadeia uma impressão negativa sobre o falante da variante sem prestígio, revelando o estereótipo daquele que não sabe falar português. De acordo com Botassini (2015): 26 Esse rótulo que se impõe sobre determinados grupos linguísticos está pautado nos julgamentos sobre as pessoas, nas crenças que o indivíduo carrega a respeito de um traço linguístico, nos conhecimentos sobre um grupo e sua cultura, nos preconceitos em relação a língua e aos falantes dessa língua. (BOTASSINI, 2015, p.125). As variantes linguísticas que recebem mais força avaliativa tornam-se mais facilmente identificadas, fazendo com que os falantes passem a monitorar sua fala com o objetivo de não serem avaliados. A avaliação linguística diz respeito à forma como um ouvinte/falante mensura os valores que carrega consigo, pela qual associa esses valores à produção linguística de si mesmo e de seus interlocutores. De acordo com Oushiro (2015, p.32), a avaliação linguística “é empregada para fazer referência ao discurso metalinguístico dos falantes sobre variantes, o que constitui um objeto de estudo em si”. As atitudes linguísticas relacionam-se com o problema da avaliação, que busca compreender os correlatos subjetivos das mudanças linguísticas em curso. Nas palavras de Lambert e Lambert (1972): Uma atitude é uma maneira organizada e coerente de pensar, sentir e reagir em relação a pessoas, grupos, questões sociais ou, mais genericamente, a qualquer acontecimento ocorrido com nosso meio circundante. Seus componentes essenciais são os pensamentos e as crenças, os sentimentos (ou emoções) e as tendências para reagir. Dizemos que uma atitude está formada quando esses componentes se encontram de tal modo inter-relacionados que os sentimentos e tendências reativas específicas ficam coerentemente associados com uma maneira particular de pensar em certas pessoas ou acontecimentos. (LAMBERT; LAMBERT, 1972, p. 77-78) As áreas da Sociologia e da Psicologia contribuíram e contribuem fortemente para o estudo das Atitudes Linguísticas. Wallace Lambert, amparado na Psicologia Social, foi o precursor desses estudos e trouxe um progresso considerável na investigação do tema, publicando o artigo “A Social Psychology of Bilingualism”, em 1967, cujo propósito era estender e integrar os interesses dos psicólogos, dos linguistas e dos antropólogos com relação ao bilinguismo. Nesse artigo, Lambert (1967) apresenta a técnica matched guise (também conhecida como técnica dos “falsos pares”) com o propósito de inferir e medir atitudes, descrevendo-a da seguinte forma: [...] envolve as reações de ouvintes (referidos como juízes) a gravações de um número de falantes perfeitamente bilíngües lendo uma passagem de dois minutos uma vez em uma de suas línguas 27 (ex.:francês) e, depois, uma tradução equivalente da mesma passagem em sua segunda língua (ex.: inglês). Grupos de juízes são levados a ouvir essas séries de gravações e a avaliar as características da personalidade de cada falante tanto quanto possível, usando pistas de fala apenas. (LAMBERT, 1967, p. 93) As gravações eram apresentadas aos “juízes” como pertencendo a pessoas diferentes, de modo que não tinham consciência de que, na verdade, tratava-se das mesmas pessoas ora lendo o texto em uma língua, ora lendo o texto em outra língua. A partir da avaliação dos “juízes” foi possível notar diferenças nos julgamentos sobre o falante, representando atitudes estereotipadas em relação aos membros de um grupo etnolinguístico específico (BOTASSINI, 2015, p. 111). Labov (2008 [1972]) considera a técnica matched guise como instrumento básico para o estudo de atitudes subjetivas em relação à linguagem, destacando que: O princípio essencial que emerge do trabalho de Lambert é o de que existe um conjunto uniforme de atitudes frente à linguagem que são compartilhadas por quase todos os membros da comunidade de fala, seja no uso de uma forma estigmatizada ou prestigiada da língua em questão. Essas atitudes não emergem de forma sistemática se a pessoa for questionada diretamente sobre os dialetos; mas se ela fizer dois conjuntos de julgamentos de personalidade sobre o mesmo falante usando duas formas diferentes da língua, e se não perceber que é o mesmo falante, suas avaliações subjetivas da língua emergirão como diferenças nas duas pontuações. (LABOV, 2008 [1972], p. 176). A técnica matched guise foi sofrendo modificações em relação aos tipos de produção de estímulos (textos escritos, ao invés de leitura de textos, por exemplo) e em relação à escala de avaliação. Para essa última, a técnica mais conhecida tem sido a do diferencial semântico (OSGOOD; SUCI; TANNENBAUM, 1957), que consiste na elaboração de escalas bipolares com adjetivos de valores opostos colocados em ambas as extremidades de cada escala. Sobre isso, Cyranka (2007) afirma: Construindo-se um conjunto de escalas desse tipo, obtém-se uma classificação múltipla de atitudes em relação a um estímulo. Como as respostas são marcadas por números nos traços da escala, pode-se chegar a um cálculo descritivo-demonstrativo das reações subjetivas dos falantes às amostras de fala e, conseqüentemente, aos dialetos dos sujeitos avaliados. (CYRANKA, 2007, p. 28) Os estudiosos da área da Linguística, especialmente aqueles que se dedicavam à área da Sociolinguística, reconheceram a importância dos estudos sobre atitudes que 28 abrange a variação linguística. A esse respeito, Giles, Ryan e Sebastian (1982, p.1) dissertam: Em todas as sociedades, o poder diferencial de grupos sociais particulares se reflete na variação da linguagem e nas atitudes em relação a essas variações. Normalmente, o grupo dominante promove seus padrões de uso da linguagem como o modelo necessário para o avanço social; e o uso de uma linguagem, dialeto ou sotaque de menor prestígio por membros de grupos minoritários reduz suas oportunidades de sucesso na sociedade como um todo. (RYLES; GILES; SEBASTIAN, 1982, p. 1)7 Bergamachi (2006, apud BOTASSINI, 2015) afirma que as atitudes ou os posicionamentos em relação à língua refletem as atitudes ou os posicionamentos em relação aos usuários dela. De acordo com Cyranka (2007): Conforme observa Amaral (1979, p. 25-26), em geral, os estudos de atitudes linguísticas revelam que o falante, utilizando uma língua ou variedade linguística de prestígio, é percebido favoravelmente pelos ouvintes em relação a inteligência, competência, ambição, segurança, sucesso educacional e ocupacional. Daí é derivada a consideração de que a variedade padrão é associada à dimensão de poder, “status” e controle social. Em outras palavras, é a variedade que cumpre funções sociais privilegiadas pelo poder (CYRANKA, 2007, p. 33) Os resultados de pesquisas sociolinguísticas que buscam verificar as atitudes linguísticas, assim como a de Lambert et al. (1967), são apontados como relevantes, porque os jurados não avaliavam as vozes, mas sim a variedade da língua usada. Através dos testes de atitudes conseguimos apreender significados que demonstram identificação a determinadas variedades. Nas palavras de Cyranka (2007, p. 23) “Os testes de atitude [...] fazem emergir dimensões nas escalas avaliativas, ligadas, de certa forma, à subjetividade dos ouvintes em relação às qualidades aparentes dos dialetos ou dos indivíduos”. Para Lambert e Lambert (1972), Rodrigues (1972), Moreno Férnandez (1998), entre outros estudiosos, integram-se às atitudes três componentes: o cognitivo, o afetivo e o comportamental8. Ou seja, para que uma atitude se constitua, são necessários esses três componentes inter-relacionados, de forma que, “aquilo que se sente e a maneira 7 Tradução própria. Trecho original: In every society the differential power of particular social groups is reflected in language variation and in attitudes toward those variations. Typically, the dominant group promotes its patterns of language use as the model required for social advancement; and use of a lower prestige language, dialect, or accent by minority group members reduces their opportunities for success in the society as a whole. 8 Critério dos defensores de uma interpretação mentalista da atitude. 29 como se reage diante de um objeto social estejam coerentemente associados de modo como se pensa a respeito dele.” (BOTASSINI, 2015, p. 114). O componente cognitivo diz respeito às crenças que o falante tem em relação a um objeto social referido. Segundo Botassini (2015, p. 115) “Não se pode ter uma atitude em relação a um objeto se não houver alguma representação cognitiva a seu respeito, ou seja, é preciso conhecê-lo”. Rodrigues (1972, p.398) afirma que atitudes preconceituosas são resultados de cognições negativas em relação ao grupo ou variedade que está sendo objeto de discriminação. O componente afetivo refere-se às emoções e aos sentimentos pró ou contra um objeto social, sendo mais relacionado à valoração do sujeito. Por fim, temos o componente comportamental ou conativo, entendido como reação ou conduta diante um objeto social. Oppenheim (1966, p. 106) assegura que “atitudes são reforçadas pelas crenças (componente cognitivo) e frequentemente atraem sentimentos fortes (componente emocional) que levarão a formas específicas de comportamento (o componente de tendência de ação)9”. As crenças e as avaliações linguísticas são, portanto, parte fundamental da atitude e dizem respeito ao que os indivíduos acreditam, pensam, sentem a respeito de algo. Silva, A (2011 apud BOTASSINI, 2015, p.106) apresenta um rol de termos que se referem a crenças, como por exemplo: atitudes, valores, julgamentos, axiomas, opiniões, ideologia, percepções, etc. As crenças, de acordo com Barcelos e Abrahão (2006) são: Emergentes, socialmente construídas e situadas contextualmente. [...] as crenças não estão dentro de nossas mentes como uma estrutura mental pronta e fixa, mas mudam e se desenvolvem à medida que interagimos e modificamos nossas experiências e, somos, ao mesmo tempo modificados por elas [...] Dessa forma, as crenças incorporam as perspectivas sociais, pois nascem no contexto da interação e na relação com os grupos sociais. (BARCELOS; ABRAHÃO, 2006, p. 19; destaque dos autores) Santos (1996, p. 8) define crenças e atitudes da seguinte maneira: Crença seria uma convicção íntima, uma opinião que se adota com fé e certeza [...] Já atitude seria uma disposição, propósito ou manifestação de intento e propósito. Tomando atitude como manifestação, expressão de opinião ou sentimento, chega-se à 9 Tradução nossa. Trecho original: “Attitudes are reinforced by beliefs (the cognitive component) and often attract strong feelings (the emotional component) that will lead to particular forms of behavior (the action tendency component). 30 conclusão de que nossas reações frente a determinadas pessoas, a determinadas situações, a determinadas coisas seriam atitudes que manifestariam nossas convicções íntimas, ou seja, as nossas crenças em relação a essas pessoas, situações ou coisas. (SANTOS, 1996, p.8) Da estreita relação entre crenças e atitudes, assume-se, neste trabalho, que as crenças dos alunos sobre a língua são construídas ao longo de seus anos de aprendizagem no contexto escolar, acrescidas, incontestavelmente, pelas experiências vivenciadas em seu contexto social. Consideramos que a participação do professor nesse processo é inquestionável, uma vez que adotamos a hipótese de que as atitudes dos professores frente a fenômenos variáveis da língua portuguesa influenciariam nas crenças e atitudes dos alunos. Com os testes de atitudes será possível verificar o imaginário linguístico que perpassa na mente dos professores e dos alunos, já que é das crenças que nascem as atitudes. Assim, para este trabalho, concebemos atitudes linguísticas como uma atividade, uma reação e/ou exteriorização do que se pensa, do que se avaliou enquanto se pensava. O trabalho dessa natureza no contexto escolar tem como um dos desafios a reconstrução do imaginário sobre a língua. Como afirma Santos (1996, p. 15), “Várias pesquisas produziram evidências de que a atitude de um indivíduo pode ser mudada, se forem mudadas suas crenças sobre o objeto”. 2.3 Fala e escrita: uma reflexão sobre continuum e mudança linguística De acordo com Sapir (1954) “[...] falar é uma atividade humana que varia, sem limites previstos, à medida que passamos de um grupo social a outro, porque é uma herança puramente histórica do grupo, produto de um uso social prolongado” (SAPIR, 1954, p. 18). Se observarmos cronologicamente, a fala tem uma grande precedência sobre a escrita, pois é adquirida naturalmente nas relações sociais e todos os povos têm ou tiveram uma tradição oral. A escrita, por sua vez, não é biologicamente determinada, dessa forma, como defende Marcuschi (2000): [...] sob o ponto de vista mais central da realidade humana, seria possível definir o homem como um ser que fala e não como um ser que escreve. Entretanto, isto não significa que a oralidade seja superior à escrita, nem traduz a convicção, hoje tão generalizada quanto equivocada, de que a escrita é derivada e a fala é primária (MARCUSCHI, 2000, p. 17). 31 No mundo moderno, a modalidade escrita tornou-se um bem sociocultural indispensável, adquirindo um valor social até superior à oralidade, uma vez que passou a simbolizar educação, desenvolvimento e poder. Nas palavras de Marcuschi (2000): A fala (enquanto manifestação da prática oral) é adquirida naturalmente em contextos informais do dia-a-dia e nas relações sociais e dialógicas que se instauram desde o momento em que a mãe dá seu primeiro sorriso ao bebê. Mais do que decorrência de uma disposição biogenética, o aprendizado e o uso de uma língua natural é uma forma de inserção cultural e de socialização. Por outro lado, a escrita (enquanto manifestação formal do letramento), em sua faceta institucional, é adquirida em contextos formais: na escola. Daí também seu caráter mais prestigioso como bem cultural desejável (MARCUSCHI, 2000, p. 18). No âmbito dos estudos linguísticos, as reflexões sobre fala e escrita se enquadram em diferentes perspectivas (MARCUSCHI, 2000). A primeira delas, exemplificada pelos trabalhos de Bernstein (1971), Halliday (1985) e Ochs (1979), é a que se dedica à análise das duas modalidades de uso da língua (fala e escrita) de forma dicotômica. Essa perspectiva, que foi adotada pela maioria das gramáticas pedagógicas, deu origem ao prescritivismo de uma única norma linguística tida como “padrão”, que divide a língua falada e a língua escrita em dois blocos distintos, tal como se pode ver no Quadro 1, a seguir: Quadro 1. Diferença entre fala e escrita de um ponto de vista dicotômico. Fala Escrita Contextualizada Descontextualizada Dependente Autônoma Implícita Explícita Redundante Condensada Não- planejada Planejada Imprecisa Precisa Não- normatizada Normatizada Fragmentária Completa Fonte: Adaptado de Marcuschi (2000, p. 27) Observando a visão imanentista acima, verificamos que não há preocupação alguma com os usos discursivos nem com a produção textual. Além disso, postula para a fala uma menor complexidade, um caos gramatical; enquanto que para a escrita 32 postula uma maior complexidade, o lugar da norma e do bom uso da língua. Marcuschi (2000) considera tal visão reducionista, uma vez que não analisa as diferenças entre fala e escrita por meio do uso, mas do sistema. Para opor-se a essa concepção restrita e simplista em relação às duas modalidades, Marcuschi (2000) defende sua concepção de língua essencialmente como heterogênea e variável, que é a mesma que defendemos neste trabalho: [...] toda vez que emprego a palavra língua não me refiro a um sistema de regras determinado, abstrato, regular e homogêneo, nem a relações linguísticas imanentes. Ao contrário, minha concepção de língua pressupõe um fenômeno heterogêneo (com múltiplas formas de manifestação), variável (dinâmico, suscetível a mudanças), histórico- social (fruto de práticas sociais e históricas), indeterminado sob ponto de vista semântico e sintático (submetido às condições de produção) e que se manifesta em situações de uso concretas como texto ou discurso. (MARCUSCHI, 2000, p. 43) Essa perspectiva, conhecida como variacionista, deu uma grande contribuição aos estudos sobre fala e escrita, pois, como destaca Marcuschi (2000), são “estudos que se dedicam a detectar as variações de usos da língua sob sua forma dialetal e socioletal [...] com grande sensibilidade para os conhecimentos dos indivíduos que enfrentam o ensino formal” (MARCUSCHI, 2000, p.31). Ainda de acordo com o autor, o que chama atenção nessa perspectiva é que a variação se daria tanto na fala como na escrita, o que evitaria o equívoco de identificar a língua escrita como a padronização da língua; ou seja, “impediria identificar a escrita como equivalente à língua padrão, como fazem os autores situados na perspectiva da dicotomia escrita”. As características centrais dessa visão podem ser observadas a seguir: Quadro 2. A perspectiva variacionista. Fala e escrita apresentam Língua padrão Língua culta Norma padrão Variedades não-padrão Língua coloquial Normas não-padrão Fonte: Adaptado de Marcuschi (2000, p. 31) 33 Embora essa perspectiva não veja distinção entre as duas modalidades da língua, Marcuschi (2000) considera também essa visão reducionista, pois separa os textos em variedades linguísticas como “língua padrão” e “língua não-padrão”, dedicando-se a pesquisas das normas que controlam uma ou outra. Nas palavras do autor, “Todas as variedades submetem-se a algum tipo de norma. Mas como nem todas as normas podem ser padrão, uma ou outra delas será tida como norma padrão. A decisão é muito menos linguística do que ideológica” (MARCUSCHI, 2000, p. 31). Buscando superar as falhas dos modelos anteriores, Marcuschi (2000) defende a hipótese de que as diferenças entre fala e escrita se dão dentro de um continuum tipológico das práticas sociais de produção textual e não na relação dicotômica de dois polos opostos. Ao romper com a percepção dicotômica dessas modalidades, abre-se espaço para uma corrente denominada pelo autor como sociointeracionista: A perspectiva interacionista preocupa-se com os processos de produção de sentido tomando-os sempre como situados em contextos sócio-historicamente marcados por atividades de negociação ou por processos inferenciais. Não toma as categorias linguísticas como dadas a priori, mas como construídas interativamente e sensíveis aos fatos culturais. Preocupa-se com a análise dos gêneros textuais e seus usos na sociedade. Tem muita sensibilidade para fenômenos cognitivos e processos de textualizar na oralidade e na escrita, que permitem a produção de coerência como uma atividade leitor/ouvinte sobre o texto recebido. (MARCUSCHI, 2000, p. 34). Assim, Marcuschi (2000) propõe que as investigações sobre essas modalidades sejam vistas sob uma perspectiva de seu uso, pois tanto o texto oral como o texto escrito se empregam em atividades comunicativas por meio de “práticas situadas em uso real”, de modo que são complementares, apresentando traços semelhantes que superam os distintos. Para o autor: A fala seria uma forma de produção textual-discursiva para fins comunicativos na modalidade oral (situa-se no plano da oralidade, portanto), sem a necessidade de uma tecnologia além do aparato disponível pelo próprio ser humano. Caracteriza-se pelo uso da língua na sua forma de sons sistematicamente articulados e significativos, bem como os aspectos prosódicos, envolvendo, ainda, uma série de recursos expressivos de outra ordem, tal como a gestualidade, os movimentos do corpo e a mímica. A escrita seria um modo de produção textual-discursiva para fins comunicativos com certas especificidades materiais e se caracteriza por sua constituição gráfica, embora envolva também recursos de ordem pictórica e outros (situa-se no plano dos letramentos). Pode 34 manifestar-se, do ponto de vista de sua tecnologia, por unidades iconográficas, sendo que no geral não temos uma dessas escritas puras. Trata-se de uma modalidade de uso da língua complementar à fala. (MARCUSCHI, 2000, p. 25-26) [grifo do autor] Esse modelo apresentado por Marcuschi (2000) tem maior vantagem em perceber com mais clareza a língua como fenômeno interativo e dinâmico. Para concluirmos esses postulados apresentados por Marcuschi (2000), a seguir apresentamos os fundamentos centrais da perspectiva sociointeracionista: Quadro 3. Perspectiva sociointeracionista. Fala e escrita apresentam Dialogicidade Usos estratégicos Funções interacionais Envolvimento Negociação Situacionalidade Coerência Dinamicidade Fonte: Adaptado de Marcuschi (2000, p. 33) Na literatura linguística, fala e escrita são frequentemente contrapostas, de modo que ora a fala recebe prioridade, ora a escrita. No Curso de Linguística Geral, a escrita é concebida como um elemento secundário em relação à fala, pois, de acordo com Saussure (2006, p.40) “a escrita obscurece a visão da língua”. Assim, a exclusão da escrita na linguística estruturalista é sustentada pela crença na artificialidade da escrita, vista apenas como uma representação gráfica. Como desdobramento, as duas modalidades da língua foram vistas como elementos bipartidos, elevando a fala a um status de superioridade. No âmbito da Sociolinguística, desde o trabalho pioneiro de Labov (2008), tem predominado um consenso de que é na modalidade da língua falada, mais especificamente, na língua vernácula, que observamos as condições da mudança linguística (LONGHIN-THOMAZI e RODRIGUES, 2013, p.192). Nos estudos de Labov (2008), não temos uma abordagem explícita da relação entre fala e escrita, contudo, é importante observar a referência constante ao “falante” e argumentos em 35 favor dos dados de fala, justificando-se pelo seu objeto de estudo, a variação fonética, que tende a ser anulado ou minimizado na escrita (LONGHIN-THOMAZI e RODRIGUES, 2013, p.198). Dessa forma, deu-se à escrita o estatuto marginal na investigação de aspectos de variação e mudança. Com os estudos histórico-diacrônicos, a partir da década de oitenta do século XX no Brasil, instaurou-se um paradoxo: “ao mesmo tempo em que se admitia a fala como o locus da mudança, foram os dados da escrita de sincronias passadas que passaram a subsidiar as pesquisas em mudança” (LONGHIN-THOMAZI e RODRIGUES, 2013, p.192). Nas palavras de Longhin-Thomazi e Rodrigues (2013): A justificativa para tal procedimento reside, em geral, na proposição laboviana de que há uma escala progressiva de implementação das mudanças, segundo a qual as mudanças seriam desencadeadas na fala informal de grupos socioeconômicos intermediários, avançariam pela fala informal de grupos mais elevados, atingindo posteriormente as situações formais de fala e, na última etapa, seriam assimilados na escrita (LONGHIN-THOMAZI e RODRIGUES, 2013, p.198-199). Nesse contexto, Romaine (1982) lança questionamentos sobre a inexistência da incorporação da dimensão social da variação linguística por meio de dados históricos de escrita. Observamos que o uso de material escrito como locus da variação e mudança linguística tornou-se mais recorrente nos tempos em que esta pesquisa se insere. Alguns estudos, como, por exemplo, de Tarallo (1983) e Bagno (2001)10, abordam resultados empíricos obtidos a partir da análise de dados oriundos de corpus de fala e de escrita. Além disso, como demonstram Longhin-Thomazi e Rodrigues (2013), há pesquisas no âmbito da gramaticalização que identificam a emergência de processos de mudança na escrita. Podemos destacar este trabalho como um dos poucos que utilizam estímulos de materiais escritos, sendo, portanto, inovador em trabalhos com atitudes linguísticas. Assumimos uma articulação entre a proposta variacionista e a sociointeracionista, uma vez que ambas permitem averiguar a língua como um fenômeno heterogêneo e demarcada pelo seu uso. Isso equivale a dizer que tanto a fala como a escrita, as duas modalidades da língua, apresentam um continuum de variações, ou seja, tanto a fala como a escrita variam. Os textos escritos, dessa forma, trazem marcas da convivência de 10 Tarallo (1983) observou que as orações relativas com preposição são preservadas na escrita, mas na fala, ao contrário, são escassas, predominando as relativas cortadoras, ou seja, uma forma inovadora. Por outro lado, Bagno (2001) verificou a recorrência das relativas cortadoras mesmo em registros escritos, como em revistas, textos literários e artigos de jornais. 36 práticas sociais, ou seja, na escrita também observamos a heterogeneidade que reflete, entre outras coisas, o vernáculo. De acordo com Longhin-Thomazi e Rodrigues (2013, p. 200): Ainda que a noção de contínuo suponha uma forma compartimentação11, já que nos extremos estariam situadas as instâncias mais “puras” do falado e do escrito, há um deslocamento: o foco sai do sistema (língua oral e escrita) e vai para o uso (textos falados e escritos), o que, na nossa parte, equivale a assumir: que fala e escrita são modos de enunciação pela língua (supostamente não puros); e que fala e escrita devem ser consideradas, primordialmente, à luz dos “modos de dizer”, histórica e convencionalmente instituídos, à luz das Tradições Discursivas. Essa perspectiva é, para nós, mais vantajosa. (LONGHIN-THOMAZI e RODRIGUES, 2013, p.200). 2.4 Norma Padrão e a crença do “erro” linguístico Como temos insistido ao longo de nossa exposição, a língua portuguesa, como qualquer outra língua natural, “não é um sistema autônomo, nem se esgota no código linguístico [...] é um fenômeno cultural e histórico fundado numa atividade social e cognitiva que varia com o tempo de acordo com os falantes” (MARCUSCHI, 1997, p. 137). As línguas são caracterizadas por grande diversidade, cujo reflexo se dá nas próprias comunidades dos falantes que, também, são muito diversificadas. No entanto, a história das línguas naturais não é demarcada pela diversidade e pelo seu feixe de variedades, mas pela unificação, que busca o estabelecimento de um ideal de língua. Desde o século XIX, nossa elite brasileira resolvia as questões sobre a língua pelo discurso da unidade, segundo o qual há apenas uma língua e deveríamos preservar sua pureza dada pelos portugueses na colonização, seus legítimos e únicos proprietários (FARACO, 2011, p. 272). Os brasileiros, portanto sempre foram instruídos a aproximarem-se dos portugueses e abandonarem sua identidade. Com isso, prevaleceu uma imagem de que: [...] somos uma sociedade que fala e escreve mal a língua portuguesa, uma sociedade que comete muitos erros de gramática, uma sociedade inferiorizada frente a uma pretensa superioridade lusitana. E tudo o que- no português culto brasileiro- não coincida com certa norma lusitana passou a ser listado por gramatiqueiros pseudopuristas como erro. (FARACO, 2011, p.272) 11 Separação radical, compartimentando o falado e o escrito. 37 A língua é recoberta de um imaginário que nos orienta como devemos dar sentido às variedades linguísticas, estabelecendo o que é valor e o que não é valor. Como disse Faraco (2011, p.266), “[...] as pessoas se orientam por uma imagem segundo a qual há, na língua, princípios claros e indiscutíveis de correção. E por isso, acreditam que podem censurar com convicção e autoridade, ou com deboche e sarcasmo, o comportamento linguístico dos outros”. Os falantes que estigmatizam determinadas variedades afirmam que elas constituem formas “erradas” de falar a língua, construindo uma concepção normativa hierarquizada da heterogeneidade da língua e pressupondo que há diferenças qualitativas entre as variedades. Qualquer língua, qualquer variedade, qualquer norma possui “plenitude formal12 e é dotada de suficiente potencial semiótico” (FARACO; ZILLES, 2017, p.45), ou seja, têm organização estrutural. É preciso entender o equívoco que surge pela polissemia da palavra “norma”. O termo “norma" carrega, nos estudos da linguagem, um sentido mais geral, equivalendo a toda e qualquer variedade linguística e um sentido mais específico, equivalendo a um conjunto de preceitos que definem o chamado “bom uso” linguístico. No primeiro caso, estamos perante a realidade linguística, com toda sua variabilidade, dinâmica, mudanças, que refletem o próprio universo das inter-relações sociais. Ou seja, estamos perante o que é “normal”, habitual em uma determinada comunidade de fala. Enquanto que no segundo caso, estamos perante uma tentativa de “homogeneização”, de controle do comportamento linguístico dos falantes. Nessa segunda acepção, “norma” remete àquilo que é colocado como “normativo”, sendo a “[...] referência que se usa tradicionalmente para sustentar juízos sociais de correção ou incorreção linguística” (FARACO; ZILLES, 2017, p. 12). Coseriu (1979) foi um dos teóricos que abriu caminhos, no contexto do estruturalismo, a se conceber a língua enquanto fenômeno histórico e, por sua vez, inserir no binarismo língua (langue) e fala (parole) da teoria saussuriana um terceiro elemento: a norma. A teorização de Coseriu se assenta na postulação de um plano estrutural abstrato composto exclusivamente de oposições funcionais (o sistema) que conhece diferentes realizações nas várias comunidades de fala caracterizadas por traços linguísticos específicos e 12 Edward Sapir (1924 apud FARACO; ZILLES, 2017) foi o primeiro a utilizar a expressão plenitude formal para se referir ao fato de que toda e qualquer manifestação linguística da humanidade possui organização e gramática. 38 relativamente constantes em cada uma delas (as normas), que se materializam, então nos atos linguísticos individuais (a fala). (FARACO; ZILLES, 2017, p.26-27). Assim, Coseriu (1979) afirmava que uma norma não diz respeito ao que “se pode dizer” em uma determinada língua (tarefa do sistema), mas como “se diz” na comunidade de fala considerada. O que “já se diz” é “o que se tornou, nessa comunidade, habitual, constante, normal, característico; é o que configura a norma linguística dessa comunidade” (FARACO; ZILES, 2017, p.28). Lucchesi (2015) disserta que a Sociolinguística opera uma fusão entre os conceitos de sistema normal e sistema formal, defendidos por Coseriu (1979), uma vez que a variação é estudada como parte integrante do funcionamento do sistema linguístico, e não como algo que prejudicasse o sistema. De acordo com Faraco e Zilles (2017), a ideia de norma, como proposta por Coseriu, surgiu no arcabouço teórico estruturalista, aproximadamente no fim da década de 1960, no entanto, “[...] qualquer modelo teórico da linguagem verbal tem, inexoravelmente, de se posicionar frente à variabilidade supraindividual, ou seja, frente às diferentes variedades sociais (normas)13que constituem uma língua” (p.28). Ainda de acordo com os autores: Mesmo trabalhando com modelos teóricos bastante abstratos, não temos, portanto, como fugir da heterogeneidade linguística. É uma realidade incontornável que nos obriga a pensar uma língua sempre como um conjunto de normas, gramáticas, ou variedades sociais. (FARACO; ZILLES, 2017, p.28) A partir dessas reflexões, Faraco (2008) propõe, a título de exemplificação dentro da realidade linguística brasileira, uma distinção entre as variedades cultas (designadas pela expressão genérica norma culta), norma-padrão e norma- curta14 (FARACO, 2008). Para isso, Faraco (2002, p. 38) parte do “[...] conceito técnico de que os grupos sociais se distinguem pelas formas de língua que lhes são de uso comum. 13 Adotaremos a concepção de “norma” presente nos estudos de Faraco e Zilles (2017), que equiparam norma e variedade social. O olhar variacionista (sociolinguístico) vê a língua constituída por um conjunto de variedades (normas) sociais. 14 Celso Cunha (1985) já havia feito uma distinção entre “norma objetiva” (aquela relativa a padrões observáveis na realização linguística) e “norma subjetiva” (aquela relativa a um sistema de valores), assim como Bagno (2003) propôs que se adotassem norma- padrão (para norma normativa), variedades prestigiadas (para substituir norma culta) e variedades estigmatizadas (para substituir norma popular). No entanto, aqui, neste trabalho, adotaremos, principalmente, a distinção feita por Faraco (2008), mas não por considerá-la melhor, apenas porque o autor traz uma distinção interessante para nossa discussão: a “norma curta”. 39 Esse uso comum caracteriza o que se chama de norma linguística de determinado grupo”. O autor ainda explica: Não há, obviamente, um total encapsulamento e insulamento dos grupos sociais, nem de seus membros. Assim, é inevitável o contato entre essas muitas normas no intercâmbio social, o que redunda em múltiplas interinfluências (as normas são, portanto, hibridizadas) e também eventualmente em mudanças linguísticas em diferentes direções. (FARACO, 2002, p.39). Assim, norma culta/comum/standard é a "variedade que os letrados usam correntemente em suas práticas mais monitoradas de fala e escrita" (FARACO, 2008, p. 73). Nas palavras de Faraco (2008, p.73), “a norma culta15 é a expressão viva de certos segmentos sociais em determinadas situações”, enquanto que a norma- padrão é uma “codificação relativamente abstrata, uma baliza extraída do uso real para servir de referência, em sociedades marcadas por acentuada dialetação, a projetos políticos de uniformização linguística”. Nesse sentido, a norma-padrão é um modelo idealizado, construído com o fim de homogeneizar o uso em determinados contextos, “não é, portanto, uma das tantas normas presentes no fluxo espontâneo do funcionamento social da língua, mas um construto que busca controlá-lo” (FARACO; ZILLES, 2017, p.19). Vale frisar que os falantes da norma culta não são falantes de estilo único (LABOV, 2008[1972]), ou seja, não são monovarietais; assim como qualquer falante de qualquer língua ou variedade, variam sua expressão. De acordo com Faraco e Zilles (2017): São, portanto, falantes da norma culta, mas têm diversos estilos de fala correlacionados às diferentes circunstâncias da interação social de que participam, desde as mais espontâneas (nas quais se pode identificar o chamado vernáculo ou variedades vernaculares) até as mais monitoradas (FARACO; ZILLES, 2017, p.20). Nas palavras de Barros (1997, p.35): “[...] falante de prestígio, que conhece as regras de conversação e da língua, que emprega adequadamente suas possibilidades de variação, que tem a função de referendar os ‘bons usos’ da linguagem”. Cabe, entretanto, destacar, mais uma vez, que, em princípio, a habilidade de adaptar o registro 15 Para Faraco e Zilles (2017), o qualificativo culto/a não é o termo mais adequado, porque pode sugerir que os falantes de outras variedades não sejam “cultos”, ou seja, não tem cultura. No entanto, para os autores, “vale insistir que se trata de um uso restrito: culto/a remete especificamente a uma certa dimensão da cultura, isto é, à cultura escrita” (p.20). 40 ao contexto é comum a todos os falantes. De acordo com Milroy (2011, p.52), a “variedade padrão” (ou norma padrão) tem sido equiparada à “variedade de maior prestígio”, no entanto, nem todo padrão tem, necessariamente, prestígio. Nas palavras de Milroy (2011): Com efeito, não é difícil argumentar que as variedades de língua realmente não têm prestígio em si mesmas: tais variedades adquirem prestígio quando seus falantes têm prestígio elevado, porque o prestígio é atribuído pelos seres humanos a determinados grupos sociais e a objetos inanimados ou abstratos [...] O prestígio atribuído às variedades linguísticas (por metonímia) é indexador e está envolvido na vida social dos falantes. (MILROY, 2011, p.53). Moreno Fernández (1998) afirma que o prestígio pode ser considerado como conduta ou como atitude, sendo, portanto, algo que o indivíduo ou um grupo possui e ostenta, podendo ser também algo que é atribuído. Aprofundando o último sentido, o autor define prestígio como “um processo de concessão de estima e respeito aos indivíduos ou aos grupos que reúnem certas características e que leva à imitação das condutas e crenças desses indivíduos ou grupos” (MORENO FERNÁNDEZ, 1998, p.189). Bisinoto (2007, p. 24), destaca que: As avaliações manifestas e encobertas, subjetivas e objetivas, mais ou menos conscientes, relativas à linguagem dos homens numa sociedade plural, têm a propriedade de fundar e governar tanto as relações de poder quanto o prestígio ou o desprestígio das formas linguísticas, estabelecendo seletividades, evidenciando preconceitos. Determinar como padrão uma única forma de falar é atribuir prestígio e maior status apenas a uma variedade e aos falantes dessa variedade, desconsiderando toda diversidade do Português Brasileiro, desconsiderando, também, uma cultura, uma história, uma identidade. De acordo com Milroy (2011): O estabelecimento da ideia de uma variedade padrão, a difusão de conhecimento dessa variedade, sua codificação em compêndios gramaticais e dicionários largamente usados e sua promoção num amplo espectro de funções- tudo isso leva à desvalorização das outras variedades. A forma padrão se torna a forma legítima, e as outras formas se tornam, na mente do povo, ilegítimas. (MILROY, 2011, p.76). 41 É neste contexto que Faraco (2008) propõe a noção de “norma curta”, conceituando-a como um discurso categórico, dogmático, que se resume em ridicularizar o falante, de forma gratuita e sem fundamento. Esse discurso é apenas “uma das faces da cultura do erro que veio tomando corpo desde meados do século XVIII, como resposta às mudanças sociais das quais resultou uma progressiva desaristocratização dos modelos de falar e escrever” (FARACO; ZILLES, 2017, p.151). Essas crenças sobre a língua portuguesa, o que é valor e o que não é, o que é prestígio o que não é, são socialmente construídas e contextualmente situadas, como pudemos observar. Com os estudos que abordam a avaliação e crenças linguísticas será possível estimular uma nova atitude dos professores de língua materna, buscando inserir no contexto escolar não mais uma pedagogia estigmatizadora, mas uma pedagogia pautada na reflexão sobre a heterogeneidade do sistema linguístico. Assim, os professores poderão desconstruir crenças dos alunos perante a língua materna, crenças essas que são tão fortes em nossa sociedade. Temos um caminho longo e árduo pela frente, pois como afirma Milroy (2011): Não se trata de estrutura linguística, tal como os linguistas a entendem: trata-se de ideologia, e se os linguistas afirmarem que todas as variedades são “gramaticais” (o que elas, é claro, são), suas opiniões serão interpretadas como ideológicas, não linguísticas. (MILROY, 2011, p.62). 2.5 A contribuição da Sociolinguística para o ensino de Língua Portuguesa A educação foi, há muito tempo, vista como um adereço sociocultural de uma elite conservadora. Com o processo de ampliação do acesso ao ensino em escala nacional, que trouxe para a escola alunos de diversas classes sociais, a disparidade social tornou-se aguçada e o ensino, que até então era encoberto por um modelo elitista e artificial, começou a passar por complicações. Nas palavras de Vieira e Freire (2014, p.83), “[...] criou-se um desafio para a escola: como lidar com as diferentes variantes trazidas por esses alunos, já que o ideal a ser perseguido sempre foi a norma inspirada nos padrões linguísticos lusitanos?”. A urbanização intensa e a escolarização em massa demonstraram a complexa realidade sociolinguística do nosso país, que, ainda, não teve tempo para se reorientar satisfatoriamente diante dessas transformações. 42 A língua que a escola pretende transmitir para os alunos, que se respalda em uma tradição histórica idealizada e homogeneizadora, se distancia do português de sua clientela. “O Brasil apresenta assim um caso extremo de “diglossia” entre a fala do aluno que entra para a escola e o padrão da escrita que ele deve adquirir” (KATO, 1983, p.20). Os alunos levam para a escola a variedade que aprenderam no seio familiar, esta que por sua vez traduz uma história particular, uma identidade. A escola é diversificada, assim como é diversificada a língua no Brasil; dessa forma, a variação linguística precisa estar presente no ensino de língua portuguesa ou cada vez mais o português será aprendido como língua estrangeira em nossas escolas. Bourdieu (2002 [1930]), na sua análise sobre o mercado dos bens simbólicos difundidos pela escola, discute sobre as sanções do mercado escolar que se realizam com todas as aparências de legitimidade e seus efeitos sobre os alunos. Sobre isso, explica: Desta maneira, as disposições negativas no tocante à escola que levam a maioria das crianças das classes e frações de classe mais desfavorecidas culturalmente à auto-eliminação, como por exemplo, a depreciação de si mesmas, a desvalorização da escola e de suas sanções ou a resignação ao fracasso e à exclusão, devem ser compreendidas em termos de uma antecipação fundada na estimativa inconsciente das probabilidades objetivas de êxito viáveis para o conjunto da categoria social, sanções que a escola reserva objetivamente às classes ou frações de classe desprovidas de capital cultural. (BOURDIEU, 2002 [1930], p. 310). A Sociolinguística Educacional é uma corrente teórico-prática que busca um ensino de língua materna que valoriza as variedades linguísticas, lutando, dessa forma, contra o preconceito linguístico. Trata-se de uma área que vem evidenciando as preocupações em relação à qualidade do ensino e à busca por metodologias que levem em conta a realidade em que o aluno e a escola estão inseridos e não somente o conteúdo programático. Sobre isso, Bortoni-Ricardo (2005) disserta: Denominarei Sociolinguística Educacional, de forma um pouco genérica, todas as propostas e pesquisas sociolinguísticas que tenham por objetivo contribuir para o aperfeiçoamento do processo educacional, principalmente na área do ensino de língua materna. (BORTONI-RICARDO, 2005, p. 128). 43 A autora propõe seis princípios fundamentais para a implementação da Sociolinguística Educacional, servindo como guia e efetivação desse novo campo, princípios que elencamos a seguir (Bortoni-Ricardo (2005, p.130-132): (1) Primeiro Princípio: a influência da escola na aquisição da língua não deve ser procurada no dialeto vernáculo dos falantes, mas em seus estilos formais, monitorados. É no campo da linguagem monitorada que as ações de planejamento linguístico têm influência. (2) Segundo Princípio: relaciona-se ao caráter sociossimbólico das regras variáveis. Regras que não estão associadas à avaliação negativa pela sociedade não são objeto de correção na escola. Assim, a Sociolinguística Educacional orienta que no ensino das regras variáveis associadas à avaliação negativa pela sociedade, não se deve inferiorizar o aluno que tem tais variantes. (3) Terceiro Princípio: inserção da variação sociolinguística na matriz social. O ensino das variedades de prestígio na escola não é necessariamente fonte de conflito, embora possa ser fonte de discriminação das crianças falantes de variedades populares. Para superar essa barreira, propõe-se que os professores desenvolvam uma pedagogia culturalmente sensível às diferenças sociolinguísticas e culturais de seus alunos. (4) Quarto Princípio: os estilos monitorados da língua são reservados à realização de eventos de letramento em sala de aula. Em lugar da dicotomia entre português culto e português ruim, institui-se na escola uma dicotomia entre letramento e oralidade. (5) Quinto Princípio: análise minuciosa do processo interacional, na qual se avalia o significado que a variação assume. Entre os professores, terão aqueles que atribuem valores muito negativos à variação e outros que a veem como uma característica natural dos alunos, indicadora de sua cultura. (6) Sexto Princípio: processo de conscientização crítica dos professores e alunos quanto à variação e à desigualdade social que ela reflete. A pedagogia da variação linguística e a Sociolinguística Educacional têm um importante papel na investigação relativa ao trabalho escolar com a linguagem, trazendo a possibilidade de se proceder a uma revisão da tarefa da escola em levar os alunos a desenvolverem sua competência comunicativa tanto na modalidade falada como na escrita. Para isso, é proposto um ensino voltado à reflexão sobre os fenômenos linguísticos, no qual os professores não vão ensinar os alunos a falarem o português, mas irão ampliar os conhecimentos com que chegam à escola. De acordo com Camacho (2003): As variedades são alternativas e podem conviver harmoniosamente na sala de aula, cabendo ao professor o bom senso de discriminá-las adequadamente, fornecendo ao aluno as chaves para perceber as 44 diferenças de valor social entre elas e, depois, saber tirar vantagem dessa habilidade, selecionando a mais adequada conforme as exigências das circunstâncias do intercurso verbal (CAMACHO, 2003, p.72). A variedade do aluno não deve ser motivo de exclusão e nem a escola deve ser ambiente de fortalecimento de preconceitos linguísticos; pelo contrário, devem-se respeitar as características socioculturais e individuais de cada aluno. Nas palavras de Bortoni-Ricardo (2005), o objetivo da pedagogia culturalmente sensível, assim denominada por Erickson (1987), é: [...] criar em sala de aula ambientes de aprendizagem onde se desenvolvem padrões de participação social, modos de falar e rotinas comunicativas presentes na cultura dos alunos. Tal ajustamento nos processos interacionais é facilitador da transmissão do conhecimento, na medida em que se ativam nos educandos processos cognitivos associados aos processos sociais que lhes são familiares (BORTONI- RICARDO, 2005, p.128). A pedagogia culturalmente sensível aos saberes dos alunos considera as diferenças linguísticas presentes no contexto escolar e as utiliza para a conscientização e adequação a diferentes situações comunicativas, sem prejuízos no processo de ensino/aprendizagem, uma vez que o trato inadequado ou desrespeitoso das diferenças pode provocar inseguranças. Nos nossos documentos oficiais de diretrizes para o ensino de língua portuguesa, já foi incluída uma complexa temática sobre a maneira como os professores devem proceder na prática pedagógica. Os Parâmetros Curriculares Nacionais (PCNs) de língua portuguesa, assim como a Base Nacional Comum Curricular (BNCC)16, conceituam a língua como uma atividade sociointeracional e histórica, dando ênfase, portanto, ao ensino voltado para o uso, para a interação e para a diversidade linguística, fazendo referência à adequação ao contexto de comunicação. É o que observamos a seguir: [...] a questão não é falar certo ou errado, mas saber qual forma de fala utilizar, considerando as características do contexto de comunicação, ou seja, saber adequar o registro às diferentes situações comunicativas. É saber coordenar satisfatoriamente o que falar e como fazê-lo, considerando a quem e por que se diz determinada coisa. (BRASIL, 1998, p.26) 16 A terceira versão da BNCC para a Educação Infantil e o Ensino Fundamental foi divulgada no dia 6 de abril de 2017. 45 A concepção pedagógica que sustenta os Parâmetros foi uma tentativa de inovação no ensino de língua portuguesa, uma vez que buscou subordinar o estudo gramatical às práticas sociais da língua falada e da língua escrita, estipulan