UNIVERSIDADE ESTADUAL PAULISTA “JULIO DE MESQUITA FILHO” INSTITUTO DE GEOCIÊNCIAS E CIÊNCIAS EXATAS Trabalho de Conclusão de Curso Curso de Graduação em Física OSCILAÇÃO DE NEUTRINOS NO VÁCUO E O PROBLEMA DO NEUTRINO SOLAR Luiz Ricardo Prais Prof. Dr. Luiz Antonio Barreiro (orientador) Rio Claro (SP) 2016 UNIVERSIDADE ESTADUAL PAULISTA Instituto de Geociências e Ciências Exatas Câmpus de Rio Claro LUIZ RICARDO PRAIS OSCILAÇÃO DE NEUTRINOS NO VÁCUO E O PROBLEMA DO NEUTRINO SOLAR Trabalho de Conclusão de Curso apresentado ao Instituto de Geociências e Ciências Exatas - Câmpus de Rio Claro, da Universidade Estadual Paulista Júlio de Mesquita Filho, para obtenção do grau de Licenciado em Física. Rio Claro - SP 2016 Prais, Luiz Ricardo Oscilação de neutrinos no vácuo e o problema do neutrino solar / Prais, Luiz Ricardo. - Rio Claro, 2016 44 f. : il., figs., gráfs., tabs. Trabalho de conclusão de curso (licenciatura - Física) - Universidade Estadual Paulista, Instituto de Geociências e Ciências Exatas Orientador: Luiz Antonio Barreiro 1. Partículas (Física nuclear). 2. Oscilação de Sabor. 3. Matriz de mistura. 4. Probabilidade de oscilação. I. Título. 539.721 P898o Ficha Catalográfica elaborada pela STATI - Biblioteca da UNESP Campus de Rio Claro/SP Aos meus pais, com gratidão. Agradecimentos Em primeiro lugar, sem sombra de dúvidas, agradeço aos meus pais, Luiz Fernando e Adriana, por todo o suporte emocional e incentivo dados à mim desde que entrei na faculdade. Na verdade, agradeço-lhes por terem acreditado em mim desde quando eu era uma simples criança que sonhava com o universo, e se hoje me consagro Físico, é devido à eles. Agradeço também aos meus irmãos, Adriano e Gabriel, que sempre demonstraram solidariedade e força perante as dificuldades que encontrei, e espero que este trabalho sirva de inspiração para que seus sonhos um dia sejam realizados, tais como foram os meus. Agradeço à minha querida namorada, Amanda, pelo incentivo nos momentos difícies ao longo destes semestres, e também pela compreensão nos momentos de ausência que foram precisos para encarar os desafios deste curso. Fica aqui o meu agradecimento aos meus amigos de Palmares Paulista, em especial àqueles de longa data, que sempre mantiveram a amizade, mesmo estando longe. Agradeço aos meus companheiros de curso, em especial da turma de Física de 2012 da Unesp Rio Claro, que sempre estiveram presentes, amenizando as dificuldades e demonstrando companheirismo na jornada até este dia, onde juntos consagramos esta vitória. Deixo aqui o meu enorme agradecimento à Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior (CAPES) pelo financiamento fornecido durante a graduação, possibilitando a minha participação no Programa de Licenciaturas Internacionais (PLI), rendendo hoje esta sonhada dupla titulação. Ainda neste âmbito, deixo aqui o meu agradecimento à todos os docentes e funcionários da Universidade de Coimbra, em especial ao professor João Carvalho, que se empenhou no nosso processo de aprendizagem, ao qual também devo agradecer pela oportunidade de ter visitado o CERN, fato este que me deu forças e inspiração para procurar entender o magnífico mundo quântico das partículas elementares. Aos meus amigos PLI, juntamente com os queridos moradores da nossa Casa da Dona Rosa, que foi a minha família em Coimbra, fica aqui a minha gratidão por todos os momentos em Portugal. Juntos estudamos, passamos por dificuldades, e também nos divertimos, e esta época vivida foi uma provação que teve suas barreiras e angústias amenizadas pela força da amizade e o companheirismo que se criaram nestes 2 anos de história. Aos meus amigos da República Beco, deixo o meu agradecimento por terem proporcionado um ambiente onde eu me senti bem e acolhido, tendo aqui vivido a etapa final da minha graduação. Nesta casa eu pude contar com cada um para desabafar, contar os planos e sonhos, e juntos tivemos alguns dos melhores momentos nesta cidade, onde pude dar um significado maior à palavra universitário. Por fim, agradeço aos docentes do Departamento de Física do IGCE da Unesp Rio Claro, em especial ao meu orientador, Dr. Barreiro, por todo o conhecimento e orientação à mim transmitidos. Ao longo destes anos de curso aprendi a ver o mundo de uma maneira diferente, e saio hoje daqui com uma maturidade e senso crítico exponencialmente maiores do que quando entrei. Um sincero muito obrigado à todas as pessoas que de alguma forma participaram na minha formação e construção como Físico, e como já disse um grande amigo, é um prazer para mim hoje fazer parte da mesma classe de profissionais a qual pertenceu Albert Einstein. “Eu fiz uma coisa terrível, eu postulei uma partícula que não pode ser detectada." (Wolfgang Pauli) Resumo Neste trabalho vamos apresentar a definição e a Física que envolve os neutrinos, abrangendo desde a proposta de sua existência, até a confirmação experimental do fenômeno oscilatório, que rendeu o Prêmio Nobel de Física em 2015 à Arthur McDonald e Takaaki Kajita. Após contextualizar o problema do neutrino solar, que baseia-se no fato de experimentos para detectar neutrinos do elétron vindos do Sol terem evidenciado um déficit nos valores esperados, vamos apresentar e desenvolver o chamado modelo de oscilações de sabor induzida por diferença de massa, tendo como foco deste trabalho a oscilação entre νe e νa, onde νa é o estado de um neutrino não-eletrônico. A elaboração do modelo baseia-se em considerar os estados de sabor como sendo combinações coerentes dos autoestados de massa, regidos pela chamada matriz de mistura, e por fim, através do cálculo da probabilidade de sobrevivência, aplicamos o modelo aos dados experimentais obtidos por algumas colaborações, evidenciando sua relevância no desenvolvimento da chamada Física além do modelo padrão. Palavras-chave: Oscilação de Sabor. Matriz de Mistura. Probabilidade de Oscilação. Abstract In this work we aim to introduce the physics of the neutrino, from its first proposal by Wolfgang Pauli, until the experimental evidence of flavor oscillation, which gave the 2015 Nobel Prize in Physics to Arthur McDonald and Takaaki Kajita. After we present the so called Solar Neutrino Problem, which is based on the fact that experiments to detect electronic-neutrinos from the Sun have shown a deficit in the expected values, we will develop the physics behind the model of flavor oscillation due to difference in mass, focusing on the two flavor case between νe and νa, where νa is a non-electronic neutrino flavor. In this model we use the mixing matrix to compose a coherent neutrino flavor state using what is called neutrino mass eigenstates, and after finding the probabilities of survival, we discuss how is this evidence contributing to the development of the physics beyond standard model. Keywords: Flavor Oscillation. Mixing Matrix. Oscillation Probability. Sumário Introdução . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 11 1 PARTÍCULAS ELEMENTARES E SUAS INTERAÇÕES: O MO- DELO PADRÃO . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 12 1.1 Léptons . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 12 1.2 Quarks . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 13 1.3 Interações . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 14 1.3.1 Força Gravitacional . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 14 1.3.2 Força Eletromagnética . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 15 1.3.3 Força Forte . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 15 1.3.4 Força Fraca . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 15 2 NEUTRINOS: HISTÓRIA E DETECÇÃO . . . . . . . . . . . . . . . 17 2.1 Decaimentos nucleares . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 17 2.2 O decaimento β e a proposta da existência do neutrino . . . . . . . 18 2.3 1956: Descoberta experimental . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 19 3 O PROBLEMA DO NEUTRINO SOLAR . . . . . . . . . . . . . . . 22 3.1 O Sol: uma fonte de νe . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 22 3.2 O problema: déficit nos experimentos e o desaparecimento de neu- trinos . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 24 4 OSCILAÇÃO DE SABOR . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 27 4.1 Aspectos do conceito de mistura . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 27 4.2 Oscilação entre dois sabores no vácuo . . . . . . . . . . . . . . . . . . 28 4.3 Formalizando o problema . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 31 4.4 Probabilidades de conversão e sobrevivência . . . . . . . . . . . . . . 35 4.4.1 Probabilidade de conversão . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 35 4.4.2 Probabilidade de sobrevivência . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 36 4.5 Coerência com os dados experimentais . . . . . . . . . . . . . . . . . 38 4.6 2015: Consolidação e Prêmio Nobel . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 41 5 CONCLUSÃO . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 43 REFERÊNCIAS . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 44 11 Introdução O neutrino é atualmente uma importante e peculiar partícula presente em nosso universo. Na verdade, o neutrino é a segunda partícula mais abundante no cosmos, atrás apenas do fóton. Estão presentes nos processos nucleares de geração de energia no interior de estrelas, nas explosões de supernovas, nos reatores de usinas nucleares, e até mesmo em nós. Devido ao seu caráter intangível, e de massa muito pequena, o neutrino, em geral, atravessa grandes quantidades de matéria sem mesmo interagir. De fato, a maior parte dos neutrinos vindos do Sol atravessa a Terra e nós mesmos como se não houvesse nada, seguindo seu caminho pelo universo. Seu estudo pode nos fornecer tanto informações sobre processos quânticos, quanto até mesmo informações sobre estruturas cósmicas. Em 1930, Wolfgang Pauli propôs a existência do neutrino para explicar o espectro contínuo do decaimento β, que continha problemas na conservação de energia, tendo sido este detectado experimentalmente pela primeira vez em 1956 por Clyde Cowan e Frederick Reines. Na ocasião Cowan e Reines detectaram um neutrino associado ao elétron, sendo então denominado neutrino do elétron, representado por νe. Sucessivamente descobriu-se, nos anos seguintes, a existência de neutrinos associados aos múons e taus, representados por νµ e ντ , respectivamente. Em seguida, após experimentos detectarem um déficit no fluxo de neutrinos do elétron vindos do Sol, considerou-se a possibilidade da ocorrência de um fenômeno chamado oscilação de neutrinos. Por muito tempo pensou-se que o neutrino possuisse massa nula, segundo predito pelo chamado Modelo Padrão da Física de Partículas, mas evidências do caráter oscilatório destas partículas sugeriram em seguida a possibilidade da existência de massa. 1 PARTÍCULAS ELEMENTARES E SUAS INTERAÇÕES: O MODELO PADRÃO De acordo com o modelo atual da Física de Partículas, existem duas classes de partículas: os constituintes da matéria, que incluem os léptons e quarks, e os quanta de interação, também chamados de bósons de calibre (do inglês, gauge boson), que são partículas responsáveis pela mediação das interações entre todas as outras partículas. Para cada partícula observada corresponde também a existência de uma antipartí- cula (que pode ou não ser distinta). Uma partícula e sua antipartícula associada têm a mesma massa, spin e vida média, porém suas cargas (e também outras características de natureza similar, chamadas cargas generalizadas) são as mesmas em magnitude, mas de sinais opostos. Ex: o elétron tem carga -1, e sua antipartícula, o pósitron, possui carga elétrica +1, apesar de possuir a mesma massa que o elétron. 1.1 Léptons Léptons são partículas indivisíveis, aparentemente desprovidas de estrutura e têm em comum a propriedade de não interagirem via interação forte. Todos possuem spin 1 2 e obedecem à distribuição estatísitca de Fermi-Dirac, sendo chamados portanto de férmions. Existem seis distintos léptons, distinguíveis pelas suas massas, carga elétrica e meios de interação. Três deles, o elétron (e−), o múon (µ−) e o tau (τ−), possuem carga elétrica igual a -1 (em unidades de carga elétrica elementar e > 0). Entretanto, possuem diferentes valores de massas. Os outros três léptons, os neutrinos, são partículas sem carga elétrica e com massa extremamente pequena, da ordem de um milhão de vezes menor que a massa do elétron. Os três neutrinos existentes estão associados aos três léptons já mencionados, sendo denominados então neutrino do elétron (νe), neutrino do múon (νµ) e neutrino do tau (ντ ). São estas as partículas que discutiremos de forma mais abrangente nos capítulos seguintes. Assim sendo, estas partículas são agrupadas nas chamadas famílias de léptons. Existem três famílias de léptons: (e−, νe), (µ−, νµ), e (τ−, ντ ). Na tabela a seguir estão reunidas as propriedades que discutimos. 1.2. Quarks 13 Partícula Símbolo Massa (MeV/c2) Carga elétrica (e) Elétron e− 0, 511 −1 Neutrino do elétron νe < 15× 10−6 0 Múon µ− 105, 7 −1 Neutrino do Múon νµ < 0, 17 0 Tau τ− 1777 −1 Neutrino do Tau ντ < 19 0 Tabela 1 – Léptons. (Adaptado de [1]) 1.2 Quarks A distinção entre cada um dos léptons e quarks existentes é feita através de um número quântico chamado sabor. Até o presente momento conhecemos seis diferentes sabores de quarks, sendo o up (u), down (d), charm (c), strange (s), top (t), e bottom (b), e separados em três famílias, segundo seus modos de interações: (u, d), (c, s), e (t, b). Partículas constituídas por quarks recebem o nome de hadrons. Agrupamentos de quarks da primeira família são os responsáveis pela existência da matéria visível, constituída (além do elétron) por prótons e nêutrons, enquanto que no geral, agrupamentos de quarks pertencentes às outras famílias são responsáveis por partículas geralmente instáveis. Tal como os léptons, quarks possuem spin 1 2 , porém apresentam a característica de possuírem carga elétrica fracionada: quarks u, c, e t possuem carga igual a 2 3 , enquanto que os quarks d, s e b possuem carga igual a −1 3 (sempre em unidades de carga e > 0). Porém, o que realmente difere os quarks dos léptons é que eles possuem um outro número quântico chamado carga de cor, ou simplesmente cor. Cada sabor de quark pode exisitr em um dos três estados de cor, chamados red, green, e blue. Reforçamos que esta carga de cor não é a cor da partícula em si, e sim um método encontrado para rotular e classificar os quarks segundo suas propriedades e interações. A presença de cor em uma partícula implica que a mesma está sujeita, além de outras, à interação forte. Como os léptons não possuem cor, estes não são afetados pela interação forte, que vamos discutir na seção seguinte, juntamente com as outras interações existentes. Se até o presente momento partículas de carga elétrica fracionada não foram observadas, isso é devido aos quarks, que ao contrário dos léptons, não podem existir de forma isolada, e sim apenas em combinações específicas onde o número total da 14 Capítulo 1. PARTÍCULAS ELEMENTARES E SUAS INTERAÇÕES: O MODELO PADRÃO carga elétrica seja um múltiplo da unidade de carga e. Este processo é conhecido como confinamento da cor, que leva ao confinamento dos quarks. Partícula Símbolo Massa livre (GeV/c2) Massa constituinte (GeV/c2) Carga elétrica (e) up u (5, 6± 1, 1)× 10−3 0, 33 2/3 down d (9, 9± 1, 1)× 10−3 0, 33 −1/3 charm c 1, 35± 0, 05 1, 5 2/3 strange s 0, 199± 0, 033 0, 5 −1/3 top t 180 2/3 bottom b 4, 5 −1/3 Tabela 2 – Quarks. (Adaptado de [1]) 1.3 Interações Na Física Moderna o conceito de interação, ou a grosso modo, Força, entre duas partículas é entendido como a troca de certas partículas, nomeadamente bósons de calibre. São assim chamadas pois possuem spin inteiro, e seu comportamento é descrito pelas chamadas teorias de calibre. As quatro forças fundamentais da natureza são: • força gravitacional • força eletromagnética • força forte • força fraca 1.3.1 Força Gravitacional É do nosso conhecimento que corpos dotados de massa se atraem mutuamente. Esta força rege o movimento de corpos celestes e de estruturas em larga escala, e sua intensidade diminui com a distância. Em grande escala estes movimentos e interações são bem descritos pela teoria gravitacional de Newton. Embora em escalas cosmológicas a força gravitacional tenha uma tremenda influên- cia, sendo a força dominante, no âmbito quântico esta força nem sempre é relevante (se comparada com as outras forças atuantes nesta escala), pois em geral a energia cinética de uma partícula é muito maior que a sua energia potencial gravitacional. Ainda assim, todos os objetos e partículas dotados de massa sofrem a ação da força gravitacional. 1.3. Interações 15 No âmbito quântico, duas partículas sofrem interação gravitacional mediante a troca de uma partícula chamada gráviton. O gráviton, até então, tem especulação teórica, não tendo sido detectado até o presente momento. 1.3.2 Força Eletromagnética As partículas que sofrem interação segundo a força eletromagnética são as partículas dotadas de carga elétrica, como os elétrons, prótons, múons, e outras mais. Esta força pode ser atrativa ou repulsiva, dependendo do sinal de suas cargas elétricas. Por exemplo, elétrons e prótons se atraem mutuamente, pois possuem cargas elétricas opostas, de −1 e +1 (em unidades de carga elementar e), respectivamente. Por outro lado, partículas desprovidas de carga elétrica (como os nêutrons e neutrinos) não interagem eletromagneticamente. Da mesma forma que a força gravitacional, a força eletromagnética é de longo alcance, e é também proporcional à carga elétrica das partículas envolvidas. Esta força também diminui com a distância entre as partículas. A partícula mediadora da interação eletromagnética é o fóton (γ). 1.3.3 Força Forte A chamada força forte é uma força atrativa que age entre os núcleons (prótons e nêutrons), e é a responsável por manter o núcleo atômico coeso. Em um núcleo atômico a interação eletromagnética tende a afastar os prótons entre si, mas a ação da força forte mantém estes núcleons unidos. A força forte, de maneira geral, atua nos quarks, que como vimos, possuem carga de cor. Desta forma, a partícula mediadora desta interação é o chamado glúon (g), e sua atuação está restrita à dimensões inferiores a 10−13m. 1.3.4 Força Fraca Das quatro interações apresentadas, a interação fraca é a que mais nos interessa neste trabalho, pois é a responsável pelo chamado decaimento β, uma das reações que envolvem neutrinos. Esta força é assim chamada pois sua intensidade é menor se comparada com a força forte. As partículas mediadoras da força fraca são os bósons W+, W−, e Z0. Ao contrário do gráviton, do fóton, e do glúon (que possuem massa de repouso nula), as partículas responsáveis pela força fraca são muito massivas, e seu raio de atuação é da ordem de 10−16m. Este fenômeno (massa de repouso não-nula) se deve ao bem estabelecido Mecanismo de Higgs. 16 Capítulo 1. PARTÍCULAS ELEMENTARES E SUAS INTERAÇÕES: O MODELO PADRÃO Na tabela abaixo estão apresentados um resumo com as propriedades de cada partícula responsável por estas interações. Força (interação) Partícula mediadora Ordem de magnitude Massa (GeV/c2) Alcance (m) Gravitacional gráviton (teórico) 10−39 0 ∞ Eletromagnética fóton (γ) 1/137 0 ∞ Fraca W±, Z0 10−5 80− 90 10−16 Forte glúon (g) 1 0 < 10−13 Tabela 3 – Interações fundamentais. (Adaptado de [1]) 17 2 NEUTRINOS: HISTÓRIA E DETECÇÃO No capítulo anterior apresentamos os neutrinos como sendo férmions de spin 1 2 , vindos em 3 sabores distintos, cada um associado ao e−, µ−, ou τ−. Neste capítulo vamos abordar a história por trás da proposta da existência do neutrino, e como, em 1956, sua existência foi confirmada. 2.1 Decaimentos nucleares Todo núcleo atômico possui um determinado número Z de prótons e um número N de nêutrons, que juntos caracterizam o número de massa A, onde A = Z +N . Assim, um determinado elemento X, que possui Z prótons e tem número de massa A, é representado por A ZX, (Z,A), ou mesmo (Z,N). Certos núcleos, em geral massivos, apresentam instabilidade e podem sofrer suces- sivos decaimentos até atingirem a estabilidade. São conhecidos 3 modos de decaimento, sendo: • Decaimento α: processo onde um núcleo emite uma partícula composta por 2 prótons e 2 nêutrons, chamada partícula α, que nada mais é do que um núcleo de Hélio. Neste processo, um núcleo inicialmente composto de Z prótons e número de massa A passa a ter um número Z − 2 de prótons, e número de massa A− 4, segundo a relação (Z,A)→ (Z − 2, A− 4). (2.1) • Decaimento β− e β+: processo onde um núcleon (nêutron ou próton) se transforma segundo a emissão de um elétron ou pósitron, juntamente com um neutrino ou antineutrino. No chamado decaimento β−, este processo é governado pela relação n→ p+ e− + ν̄e. (2.2) Assim, o núcleo segue a transformação do tipo (Z,A)→ (Z + 1, A). (2.3) 18 Capítulo 2. NEUTRINOS: HISTÓRIA E DETECÇÃO Já no processo chamado decaimento β+, um próton é convertido em um nêutron, emitindo um pósitron (antipartícula do elétron) e um neutrino, segundo a relação p→ n+ e+ + νe. (2.4) Nesta ocasião, o núcleo se transforma segundo (Z,A)→ (Z − 1, A). (2.5) Observe que nestes processos o número de massa não se altera, pois não houve alteração no número de núcleons. Existe também o chamado decaimento β inverso, onde um neutrino (ou antineutrino) do elétron, interage com um núcleon na forma νe + n→ p+ e−, (2.6) podendo ocorrer também segundo ν̄e + p→ n+ e+. (2.7) Veremos adiante que foi a reação descrita por (2.7) que os físicos Cowan e Reines utilizaram em seu experimento para realizar a primeira confirmação experimental da existência do neutrino. • Decaimento γ: processo onde um núcleo altera seu estado emitindo um fóton. Neste processo o núcleo apenas altera sua energia, não havendo mudanças no número de núcleons, e por consequência, no número de massa. Em geral, a relação que representa este tipo de decaimento é dada por X∗ → X + γ, (2.8) onde X∗ é o núcleo excitado, ou seja, estado de maior energia. 2.2 O decaimento β e a proposta da existência do neutrino Como mencionado, foi através dos processos envolvendo o decaimento β que o neutrino trilhou sua história. Para saber mais precisamos voltar um pouco na história, antes mesmo da própria formulação por Enrico Fermi da teoria do decaimento β. Sabendo que o núcleo filho de um decaimento radioativo possui menos massa que o núcleo pai, é possível saber a energia que é liberada neste processo, e que por consequência é carregada pelas partículas emitidas. Esta energia é dada pela relação de Einstein, E = mc2. 2.3. 1956: Descoberta experimental 19 Na época, no ínício do século XX, os físicos nucleares esperavam que o elétron emitido neste processo carregasse toda a energia disponível. Entretanto, resultados experi- mentais mostraram que os elétrons sempre possuíam menos energia do que o esperado, e ao invés de todos os elétrons possuírem a mesma energia, caracterizando uma linha vertical em um gráfico, observou-se uma distribuição contínua, como representado1 pela figura 1. Figura 1 – Espectro de energia dos elétrons emitidos em um decaimento β simples. O espectro observado é contíunuo, e não constante, como se esperava. Podemos ver uma clara discrepância entre os valores esperados e o que de fato foi medido. No início não houveram explicações sobre este processo, até que em 1930 o físico austríaco Wolfgang Pauli escreveu uma carta para a conferência de Tübingen, onde ele propôs a existência de uma partícula extremamente leve, sem carga elétrica, e de spin 1 2 , que estaria sendo emitida juntamente com o elétron nestes processos. Isto explicaria então o espectro contínuo, pois a energia disponível estaria sendo dividida e carregada pelo elétron e pela suposta partícula neutra não detectada. Na ocasião, Pauli nomeou esta partícula “nêutron”, mas quando este nome foi dado para a partícula que atualmente conhecemos como nêutron (descoberto por James Chadwick em 1932), Fermi renomeou a partícula de Pauli como “neutrino” (italiano para “pequeno neutrôn”), e este nome então permaneceu. 2.3 1956: Descoberta experimental Por volta das décadas de 40 e 50, os físicos sabiam que explosões nucleares são, por si só, uma intensa fonte de neutrinos. Baseado neste fato, Frederick Reines propôs utilizar um detector próximo a uma explosão nuclear. Em 1952, Reines se encontra com 1 Adaptado de 20 Capítulo 2. NEUTRINOS: HISTÓRIA E DETECÇÃO Clyde Cowan, e estes finalmente concordam em utilizar uma fonte mais prática para a produção de neutrinos: a usina nuclear de Hanford, em Washington. O experimento foi realizado no ano de 1953, mas os resultados ainda não eram conclusivos. Sendo assim, realizaram um novo experimento no ano de 1956, com mais cautela, e desta vez próximo à usina nuclear de Savannah River, Georgia. O diferencial deste experimento foram as melhorias feitas, onde puderam reduzir a contagem de fundo, e desta forma obter um sinal claro da existência do neutrino. Dado o carater elusivo desta partícula, o projeto foi chamado de Projeto Poltergeist, do alemão poltern (ruído), e geist (espírito). Neste experimento a reação utilizada foi o decaimento β inverso, envolvendo antineutrinos, descrito pela expressão ν̄e + p→ n+ e+. (2.9) Esta reação ficou conhecida como reação de Cowan-Reines. O fluxo esperado de antineutrinos provenientes do reator nuclear é da ordem de 1013 neutrinos por segundo por cm2, excepcionalmente maior que qualquer outra fonte natural de radioatividade na Terra. O detector consiste de 2 tanques de 200 litros de uma mistura de água e cloreto de cádmio (CdCl2), envolvidos por 3 tanques de um cintilador líquido, de dimensões 183× 132× 56 cm3 cada, contendo 110 fotomultiplicadores. A estrutura então é envolvida por uma camada de terra e metal para funcionar como blindagem para raios cósmicos e outras partículas vindas do reator (em parte), e colocada a 11 metros do reator nuclear e a 12 metros abaixo do solo. Figura 2 – Representação esquemática do experimento realizado por Cowan e Reines, em 1956, consistindo de 2 tanques de uma mistura de água e cloreto de cádmio (CdCl2), envolvidos por 3 tanques de um cintilador líquido. (Extraído de [3]) O antineutrino vindo do reator interage com um próton do detector, dando origem a um nêutron e um pósitron. O pósitron se aniquila com elétrons presentes no material do 2.3. 1956: Descoberta experimental 21 detector, dando origem a dois fótons, e o nêutron perde energia até ser capturado pelos núcleos de cádmio, implicando na emissão de um outro fóton. A cadeia de eventos pode então ser resumida a: • Interação do antineutrino com o detector segundo a relação ν̄e + p→ n+ e+. • Aniquilação dos pósitrons produzidos dando origem a dois fótons com energia de 0, 511 MeV cada: e+ + e− → 2γ. • Detecção simultânea dos fótons de 0, 511 MeV por fotomultiplicadores no tanque de cintilador líquido. • Desacelaração dos nêutrons através de colisões com moléculas de água. • Captura destes neutrons por núcleos de Cd, dando origem à um núcleo com maior energia (Cd∗), segundo a relação n+108Cd→109Cd∗. • Emissão de 1 fóton com energia de 9 MeV, segundo a relação 109Cd∗ →109Cd+γ. • Detecção do fóton de 9 MeV pelos fotomultiplicadores no tanque de cintilador líquido, com atraso de poucos µs em relação aos de origem na aniquilação e+e−. Neste arranjo experimental os fótons emitidos pela interação do nêutron com o Cd foram detectados com uma diferença de tempo de aproximadamente 5µs em relação aos de origem na aniquilação e+e−, e este processo indicou uma assinatura distintiva para a reação envolvendo o neutrino. A contagem foi de aproximadamente 3 eventos por hora, e na primeira leva de medidas (200 horas), foram medidos 567 eventos. Subtraindo a contagem de fundo, que era da ordem de 200, estatiscamente o experimento foi um sucesso. Uma confirmação adicional de que este experimento de fato estava observando um neutrino foi de que após desligarem o reator da usina nuclear, houve um decréscimo no número de eventos. Os resultados foram publicados em 1956. Pela sua contribuição à física de neutrinos, Reines et al. recebeu o Prêmio Nobel em 1995. 3 O PROBLEMA DO NEUTRINO SOLAR O Sol é uma grande fonte de neutrinos do elétron, e a nossa atual compreensão desta estrela baseia-se no chamado Modelo Solar Padrão (MSP). Através do MSP podemos prever o fluxo de neutrinos provenientes do Sol que chegam na Terra, e com este valor, comparar com a predição teórica. Veremos posteriormente que os experimentos utilizados para detectar este tipo de neutrinos apresentaram um fluxo detectado abaixo do valor esperado, caracterizando o chamado problema do neutrino solar. 3.1 O Sol: uma fonte de νe É amplamente aceito que a energia do Sol provém de reações termonucleares, nomeadamente fusões nucleares. Nestas reações, dois ou mais núcleos se fundem para dar origem a um outro núcleo, liberando energia. Em estrelas da chamada sequência principal, a qual o Sol pertence, a reação dominante é a fusão do hidrogênio em hélio, dada por 4p+ 2e− ⇀↽ 4He+ 2νe + 26, 73Mev. (3.1) Tal reação faz parte de um grupo específico de reações, denominadas cadeias pp (próton-próton), e é responsável pela maior parte da energia gerada no Sol, enquanto que outras reações, como por exemplo o ciclo CNO (Carbono-Nitrogênio-Oxigênio), são responsáveis por uma fração menor da energia produzida. O ciclo CNO é responsável por menos de 1,5% do fluxo total de neutrinos que atinge a Terra, e por esta razão não entraremos em detalhes sobre este processo. Das já mencionadas cadeias pp, vamos caracterizar 5 delas, sendo • pp p+ p→ 2H + e+ + νe (E≤ 0,42 MeV). (3.2) • pep: p+ e− + p→ 2H + νe (E=1,44 MeV). (3.3) • Hep: 3He+ p→ 4He+ e+ + νe (E≤ 18,77 MeV). (3.4) 3.1. O Sol: uma fonte de νe 23 • 7Be: 7Be+ e− → 7Li+ νe (E≤ 0, 86 MeV). (3.5) • 8B: 8B → 8Be+ e+ + νe (E≤ 14, 06 MeV). (3.6) As indicações de E em cada reação são os valores máximos de energia (ou, no caso, exatos para a reação pep) com que os neutrinos podem ser emitidos. As duas primeiras reações somam 87% do fluxo de νe que chega na Terra (86% + 1%, respectivamente). As relações entre o fluxo de neutrinos e os valores de energia para neutrinos oriundos das reações mencionadas acima podem ser consultadas na figura2 abaixo. Figura 3 – Espectro e limiares de energia para os neutrinos solares. Porém, sabendo que o experimento de Super-Kamiokande possui um limiar mínimo de energia próximo de 8 Mev, os neutrinos provenientes das reações pp, pep, e 7Be não são detectados, restando então apenas os provenientes das reações Hep e 8B, apesar de representarem uma pequena fração do fluxo total que atinge a Terra. Em especial, neutrinos provenientes da reação do 8B representam 8, 6× 10−5do fluxo total de neutrinos que chegam na Terra. 2 Adaptado de 24 Capítulo 3. O PROBLEMA DO NEUTRINO SOLAR 3.2 O problema: déficit nos experimentos e o desaparecimento de neutrinos Desde 1966, no experimento de Homestake, idealizado e realizado por Ray Davis, já notava-se que o fluxo de neutrinos que chegavam na Terra era menor do que o esperado. No experimento de Homestake um neutrino do elétron interage com um átomo de cloro (37Cl) produzindo um elétron e um átomo de argônio (37Ar), segundo a reação νe +37 Cl→ 37Ar + e−. (3.7) Apoiado neste fato, podemos ter três possíveis razões para este fenômeno: • O Modelo Solar Padrão está equivocado, prevendo assim um fluxo maior do que o verdadeiro. • Os experimentos estão equivocados, medindo valores irreais. • Ou, por fim, os neutrinos estão de fato desaparecendo durante sua viagem do Sol até a Terra (o termo desaparecer não significa deixar de existir, e sim ser indetectável). Durante o período de 1970 a 2002, a taxa de captura de neutrinos por áto- mos de cloro-37 no tanque do experimento foi de (2,56±0,23)×10−36por segundo, ou (2,56±0,23)SNU . Aqui, SNU é a chamada unidade de neutrinos solares (solar neutrino unit - SNU ), com o valor de 10−36capturas por átomo de cloro por segundo. Segundo o MSP, a taxa esperada era de (7, 6± 1, 3)SNU . Isto significa que o detectado corresponde a uma fração de (34± 7)% do fluxo total esperado. Da mesma forma, outros experimentos também apresentaram o mesmo déficit nos dados. O Soviet-American Gallium Experiment (SAGE) e o Gallex - atualmente conhecido como GNO - utilizam como meio de detecção o processo onde um neutrino do elétron interage com um átomo de gálio (71Ga), dando origem a um elétron e um átomo de germânio (71Ge), segundo a reação νe +71 Ga→ 71Ge+ e−. (3.8) Até o ano de 2002, estes experimentos mediram uma taxa de (71+7 −6)SNU para o SAGE e (71± 6)SNU para o GNO, quando o MSP previa um valor de (128+8 −9)SNU . Esta diferença corresponde a (55± 6)% do fluxo esperado. Um outro experimento, o Super-Kamiokande (uma evolução do seu antecessor, o Kamiokande), utiliza o espalhamento direto resultante do choque de neutrinos com elétrons das moléculas de água como princípio para detecção. Neste processo um neutrino 3.2. O problema: déficit nos experimentos e o desaparecimento de neutrinos 25 interage com um elétron de uma molécula de água, contida num reservatório subterrâneo, e então o elétron é ejetado da molécula com velocidade superior a da luz naquele meio, produzindo o chamado efeito Cherenkov. A radiação eltromagnética emitida neste processo é então captada por fotomultiplicadores (PMT), que registram o evento. De forma semelhante aos outros experimentos, o Super-Kamiokande detectou, até o ano de 2002, um déficit médio de (48± 2)%. Na figura 4 podemos observar um comparativo entre os resultados experimentais e os valores preditos pelo MSP3. Figura 4 – Resultados experimentais do fluxo de neutrinos solares e comparativo com a predição teórica através do MSP. Nota-se que para qualquer um dos experimentos realizados existe um déficit no fluxo medido (em azul) em relação ao fluxo predito pelo MSP. No final de 2002, o experimento Sudbury Neutrino Observatory (SNO), no Canadá, nos forneceu as primeiras conclusões sobre a natureza do fenômeno conhecido como o problema do neutrino solar. Este experimento já apresentava conclusões sobre a natureza do problema do neutrino solar, e foi capaz de medir não apenas o fluxo de neutrinos do elétron, mas também dos dois outros sabores, do múon e do tau. O método de detecção consiste no espalhamento de neutrinos em água pesada (onde os átomos de hidrogênio são trocados por átomos de deutério, ou seja, cada molécula 3 Adapatado de 26 Capítulo 3. O PROBLEMA DO NEUTRINO SOLAR de água possui 1 nêutron a mais). Tal método propicia as interações de corrente neutra, que afetam igualmente os três sabores de neutrinos, tornando assim possível a detecção de neutrinos de qualquer um dos três sabores existentes. O SNO revelou que, apesar de ser observado um déficit no fluxo de neutrinos do elétron, (35 ± 2)%, o fluxo total de neutrinos que chegam à Terra vindos do Sol é equivalente ao previsto pelo modelo solar padrão. A porcentagem do fluxo observado com relação ao previsto foi de (101± 12%). O fato do SNO ter detectado um fluxo de neutrinos equivalente ao previsto pelo MSP, e tendo também detectado um déficit em neutrinos do elétron, nos leva ao fenômeno da oscilação de neutrinos como resposta ao problema do neutrino solar, onde os neutrinos do elétron produzidos no Sol podem se converter nos outros dois sabores durante seu trajeto. Ainda que vários modelos surgiram para explicar o fenômeno, apenas a oscilação no vácuo, em conjunto depois com o efeito MSW, pôde explicar não apenas os dados dos experimentos já mencionados, mas também de experimentos com anti-neutrinos de reatores nucleares. Das idéias existentes sobre como induzir a oscilação de neutrinos, a única capaz de reproduzir o comportamento de todos os dados disponíveis foi a oscilação de sabor induzida por diferença de massa. Este é o modelo que vamos tratar no capítulo seguinte. 27 4 OSCILAÇÃO DE SABOR 4.1 Aspectos do conceito de mistura Nos capítulos 2 e 3 apresentamos algumas definições relacionadas às partículas elementares, em especial o neutrino. Neste capítulo vamos utilizar uma abordagem mais técnica e formal sobre o problema em questão, e apoiado na Mecânica Quântica vamos contextualizar o fenômeno das oscilações de neutrinos. Os estados de sabor, νs = (νe, νµ, ντ ), são definidos como sendo os estados que correspondem a determinados léptons: e, µ, e τ . Os estados de massa dos neutrinos (ou neutrinos físicos), ν1, ν2 e ν3, com massas m1, m2 e m3, respectivamente, são os autoestados da matriz de massa e também do Hamiltoniano no vácuo. A chamada oscilação no vácuo significa que os estados de sabor não coincidem com os autoestados de massa, ou seja, que os estados de sabor são na verdade combinações do autoestados de massa, relacionados por νl = Uli νi, l = e, µ, τ, i = 1, 2, 3. (4.1) De maneira geral, o sentido de estado misto que exploramos aqui é o de superposição de estados quânticos. Assim, o que “vemos” e identificamos como o neutrino do elétron νe, nada mais é do que uma superposição dos estados de massa. Por exemplo, o que chamamos de neutrino do elétron é um estado do tipo: νe = Ue1 ν1 + Ue2 ν2 + Ue3 ν3. (4.2) Assim sendo, podemos interpretar Uli como um fator que dita “o quanto” de cada neutrino físico compõe o neutrino do elétron. O mesmo ocorre para os outros dois sabores νµ e ντ . De maneira generalizada, podemos definir os estados de sabor em função dos neutrinos físicos como:  νe νµ ντ  =  Ue1 Ue2 Ue3 Uµ1 Uµ2 Uµ3 Uτ1 Uτ2 Uτ3   ν1 ν2 ν3  , (4.3) 28 Capítulo 4. OSCILAÇÃO DE SABOR ou de forma simplificada ν(s) = U ν(m), (4.4) onde o parâmetro de mistura Uli forma a chamada matriz de mistura, ou matriz PMNS. Esta matriz deve ser unitária por definição (UU † = 1) para garantir que não teremos problemas futuros ao tratarmos de probabilidades. Os sobrescritos (s) e (m) na equação (4.4) indicam os estados de sabor ou de massa, respectivamente. 4.2 Oscilação entre dois sabores no vácuo Como visto na seção anterior, podemos escrever os estados de sabor, que são aqueles que podem oscilar entre si, como uma combinação dos estados de massa, ou neutrinos físicos. Na transformação utilizada, é importante satisfazer a condição UU † = 1. Sendo assim, podemos pensar nos estados de sabor como sendo uma rotação de um ângulo θ da base dos neutrinos físicos, o que nos permite escrever os estados de sabor como uma mistura dos estados de massa. No caso da oscilação entre 2 sabores, digamos νe ↔ νa, onde νa é o estado de um neutrino não eletrônico, podemos escrever: |νe〉 = cos θ |ν1〉+ sin θ |ν2〉 , (4.5) |νa〉 = − sin θ |ν1〉+ cos θ |ν2〉 , (4.6) e a sua relação inversa; |ν1〉 = cos θ |νe〉 − sin θ |νa〉 , (4.7) |ν2〉 = sin θ |νe〉+ cos θ |νa〉 . (4.8) Esta transformação é claramente descrita pela figura 5.4 4 Adaptado de [9] 4.2. Oscilação entre dois sabores no vácuo 29 Figura 5 – Os estados de sabor (νe, νa) são rotacionados em um ângulo θ em relação aos estados de massa (ν1, ν2), permitindo assim oscilação entre νe e νa. Ao tratarmos da oscilação de sabores do tipo νe ↔ νa, não perdemos a generalidade, pois para o caso do problema do neutrino solar, apenas a oscilação entre neutrinos do elétron e neutrinos do múon é relevante. Assim, temos para o problema em questão que a matriz U é dada por U =  cos θ sin θ − sin θ cos θ  . (4.9) De fato, podemos verificar que U satisfaz a condição UU † = I, ou seja UU † =  cos θ sin θ − sin θ cos θ  cos θ − sin θ sin θ cos θ  =  1 0 0 1  = I. (4.10) Nas relações acima, θ é o chamado ângulo de mistura no vácuo. De acordo com as equações (4.5) e (4.6), os estados de sabor dos neutrinos são combinações dos autoestados de massa. Podemos pensar em termos de pacotes de onda. A propagação do νe, por exemplo, é descrita como sendo um sistema de dois pacotes de onda que correspondem a ν1 e ν2. Na figura 6-a) mostramos uma representação do νe e νa como uma combinação dos estados de massa. O comprimento das caixas, cos2 θ e sin2 θ, nos dão as misturas de ν1 e ν2 no νe e νa. 30 Capítulo 4. OSCILAÇÃO DE SABOR Figura 6 – a). Representação dos estados de sabor como uma combinação dos autoestados de massa. O comprimento das caixas fornece as misturas (ou probabilidade de encontrar) dos autoestados de massa correspondentes em cada estado de sabor (a soma dos comprimentos das caixas está normalizada para 1). b). Correspondência dos estados de sabor em cada autoestado de massa. O sabor eletrônico é mostrado em vermelho e o não eletrônico em verde. Os tamanhos das partes vermelhas e verdes dão a probabilidade de encontrar um neutrino eletrônico ou não em um determinado estado de massa. c). Representação dos estados dos neutrinos eletrônicos e não eletrônicos como combinações dos autoestados para o qual, em alternância, mostramos a composição de sabor. (Extraído de [10]) Desta forma, temos que os estados de sabor são combinações coerentes dos auto- estados de massa. A fase relativa (ou diferença de fase) de ν1 e ν2 em νe e νa é fixa: de acordo com as equações (4.5) e (4.6) é zero no νe e π em νa. Consequentemente, existe um efeito de interferência entre ν1 e ν2 que depende da diferença de fase. Das equações (4.7) e (4.8) podemos extrair informações sobre a composição de sabor dos estados de massa, ou seja, “o quanto” de νe e νa estão presentes nos estados de massa ν1 e ν2, que são as relações inversas das equações (4.5) e (4.6). A probabilidade de encontrar o sabor eletrônico em ν1 é dada por cos2 θ, enquanto que a probabilidade de ν1 aparecer como νa é sin2 θ. Esta relação está representada na figura 6 b) por cores. Ao inserir a decomposição de sabor dos estados de massa na representação dos estados de sabor, obtemos os “retratos” dos neutrinos νe e νa, vistos na figura 6 c). De acordo com esta figura, νe é um sistema de dois autoestados de massa que em turnos possuem um sabor composto. Temos a princípio um paradoxo: existe uma parcela de sabor não eletrônico (do múon ou do tau) no neutrino do elétron! Este paradoxo possui uma resposta simples: no estado νe as componentes de νa, ν1 e ν2, são iguais e possuem fases opostas. Assim elas se cancelam e o neutrino do elétron possui puramente o sabor eletrônico, como de fato deve ser. A chave deste processo é a interferência: a interferência das partes não eletrônicas é destrutiva em νe. O neutrino do elétron tem uma componente não eletrônica “latente” que não pode ser observada devido a este particular arranjo de fase. Entretanto durante a propagação a diferença de fase se altera e não se cancela mais. Isto leva então ao 4.3. Formalizando o problema 31 aparecimento da componente não eletrônica no estado do neutrino que está se propagando e que foi originalmente produzido como um neutrino do elétron. Este é o mecanismo das oscilações de neutrinos, e o caso é similar para o estado νa. No estudo destas oscilações a dinâmica de propagação possui algumas característi- cas: • A mistura dos estados de massa em um determinado neutrino não se altera. Em outras palavras, não existe transição do tipo ν1 ↔ ν2. ν1 e ν2 propagam-se indepen- dentemente. • Os autoestados de sabor também não se alteram. Assim, o retrato dos neutrinos da figura 6 c) não se altera durante a propagação. • A fase relativa (ou diferença de fase) monotonamente aumenta. Devido a diferença de massa, os estados ν1 e ν2 possuem diferentes velocidades de fase 4vfase ≈ 4m2 2E , 4m2 ≡ m2 2 −m2 1, (4.11) e a diferença de fase se altera segundo 4φ = 4vfase t. (4.12) A fase é o único grau de liberdade operante aqui. O aumento da fase induz às oscilações. De fato, a alteração da fase modifica a interferência: em particular, o cancelamento das partes não eletrônicas no estado produzido como νe desaparece e a componente não eletrônica torna-se observável. O processo é periódico: quando 4φ = π, a inteferência das partes não eletrônicas é construtiva e neste ponto a probabilidade de encontrarmos νa é máxima. Em seguida, quando 4φ = 2π, o sistema retorna ao seu estado original: ν(t) = νe. 4.3 Formalizando o problema As energias associadas aos estados ν1 e ν2 são, respectivamente, E1 e E2, e podemos escrever assim a matriz Hamiltoniana do sistema, correspondendo a energia total, dada por H =  E1 0 0 E2  . (4.13) Note que esta matriz possui E1 e E2 como autovalores, e desta forma podemos utilizar seus autoestados para fazer uma mudança de base do espaço de estados para a base do espaço de vetores. 32 Capítulo 4. OSCILAÇÃO DE SABOR Temos como autoestados da matriz H os vetores 1 0  , (4.14) e  0 1  . (4.15) Desta forma podemos adiante utilizar as matrizes de Pauli σi para descrever os operadores. Assim, definimos o vetor [8]: ν(s) =  ϕ1 ϕ2  s = ϕ1  1 0 + ϕ2  0 1  , | ϕ1 |2 + | ϕ2 |2= 1. (4.16) O índice s indica que o vetor em questão está escrito na base dos autoestados de sabor. A base do espaço de vetores se relaciona com a base do espaço de estados, formando assim a ligação entre o formalismo vetorial e o formalismo da notação de Dirac, ou seja, o formalismo de bras e kets, de forma que: 1 0  s ≡ |νe〉  0 1  s ≡ |νa〉 . (4.17) Igualmente, temos os vetores escritos na base dos autoestados de massa: ν(m) =  ψ1 ψ2  m = ψ1  1 0 + ψ2  0 1  , | ψ1 |2 + | ψ2 |2= 1. (4.18) onde estas bases relacionam os vetores aos seguintes estados ket 1 0  m ≡ |ν1〉  0 1  m ≡ |ν2〉 . (4.19) Nesta notação, e utilizando a expressão (4.4), escrevemos: ν(s) =  cos θ sin θ − sin θ cos θ  ν(m). (4.20) Lembramos que esta definição de U é a matriz 2× 2 mais simples que satisfaz a condição UU † = 1. Sendo ν(m) o vetor dos estados das partículas físicas, ou seja, aquelas que possuem massa bem definida e se propagam no vácuo, então estes estados devem satisfazer a equação de Schrödinger. No chamado sistema natural de unidades, ou seja, c = h̄ = 1, temos: ı d dt ν(m) = H ν(m) , (4.21) 4.3. Formalizando o problema 33 onde H é a Hamiltoniana do sistema. Como não podemos interagir diretamente com os neutrinos físicos, é mais adequado escrevermos a solução em função dos estados de sabor ν(s) (νe e νa), ao invés de ν1 e ν2. Para tal, basta escrevermos os estados físicos em função dos estados de sabor, e em seguida reescrevermos a equação (4.21) em termos de ν(s). Da expressão (4.4) obtemos a seguinte relação: ν(m) = U †ν(s). (4.22) Assim, substituindo (4.22) em (4.21), e supondo que o ângulo de mistura é constante no vácuo, temos: ıU † d dt ν(s) = H U †ν(s) , (4.23) e multiplicando os dois lados da equação por U e usando a propriedade de ortogonalidade, vem: ı d dt ν(s) = U H U †ν(s) . (4.24) Da relação acima, definimos Hs como: Hs ≡ U H U † =  cos θ sin θ − sin θ cos θ  E1 0 0 E2  cos θ − sin θ sin θ cos θ  =  E1 cos2 θ + E2 sin2 θ (E2 − E1) cos θ sin θ (E2 − E1) cos θ sin θ E1 sin2 θ + E2 cos2 θ  . (4.25) Podemos utilizar as chamadas matrizes de Pauli para auxiliar na resolução do problema, podendo desta forma reescrever a equação (4.25) como uma combinação destas matrizes, o que posteriormente nos permite utilizar estas matrizes como operadores. As matrizes de Pauli são definidas como σ1 =  0 1 1 0  ; σ2 =  0 −i i 0  ; σ3 =  1 0 0 −1  . (4.26) Desta forma, e após alguma manipulação, escrevemos a matriz Hs como uma combinação de σ1, σ2, e da identidade 2× 2 (aqui representada por I), obtendo assim: Hs = (E1 + E2) 2 I + (E2 − E1) 2 (σ1 sin 2θ − σ3 cos 2θ). (4.27) Observando a equação (4.27), vemos que, ao contrário de H na definição (4.13), este Hamiltoniano Hs não é diagonal. Isto significa que a equação de Schrödinger escrita em termos de H, como em (4.21), apresenta uma probabilidade nula de se obter transições entre os estados ν1 e ν2. Com relação a Hs, temos uma situação totalmente diferente. 34 Capítulo 4. OSCILAÇÃO DE SABOR O fato de Hs não ser diagonal implica que, quando aplicada à equação de Schrö- dinger, teremos uma probabilidade não nula de encontrar alternância entre os estados νe e νa. Assim, retornando ao problema, a equação de Schrödinger (4.24) escrita em termos de Hs, e consequentemente na base de sabor, fica ı d dt ν(s) = Hs ν (s) . (4.28) A solução da equação acima é do tipo ν(s)(t) = e−iHst  ϕ1 ϕ2  s , (4.29) onde ϕ1 e ϕ2 são constantes e dependem das condições iniciais. Com respeito à normalização, como apenas utilizamos operações envolvendo a matriz U (que é ortonormal), precisamos apenas garantir que ϕ2 1 + ϕ2 2 = 1 para que ν(s)(t) também esteja normalizado. A solução geral para o problema é obtida inserindo5 (4.27) na expressão (4.29), obtendo ν(s)(t) = e−i E1+E2 2 t  ϕ1 ϕ2 × [I cos ( ∆E 2 t ) − i (σ1 sin 2θ − σ3 cos 2θ) sin ( ∆E 2 t )] , (4.30) onde ∆E = E2 − E1. Em seguida, resta aplicarmos as condições iniciais para determinarmos os valores das constantes ϕ1 e ϕ2. Como estamos trabalhando com neutrinos solares, sabemos que no instante t = 0 os neutrinos produzidos no Sol são do tipo eletrônico, νe. Assim, para t = 0, a expressão (4.30) resume-se a ν(s)(0) =  ϕ1 ϕ2  = |νe〉 . (4.31) Com base na definição dada pela expressão (4.17), concluímos que ϕ1 = 1 e ϕ2 = 0. Fazendo ϕ1 = 1 e ϕ2 = 0 na expressão (4.30), vem ν(s)(t) = e−i E1+E2 2 t  1 0 ×[I cos ( ∆E 2 t ) − i (σ1 sin 2θ − σ3 cos 2θ) sin ( ∆E 2 t )] . (4.32) Ao fazermos a multiplicação dos termos desta equação, teremos que aplicar σ1 e σ3 no estado inicial  1 0 , de forma que σ1  1 0  s =  0 1 1 0  1 0  s =  0 1  s = |νa〉 (4.33) 5 Utilizando a propriedade e−iα(σ1 sin β−σ3 cos β) = I cosα− i(σ1 sin β − σ3 cosβ) sinα 4.4. Probabilidades de conversão e sobrevivência 35 σ3  1 0  s =  1 0 0 −1  1 0  s =  1 0  s = |νe〉 . (4.34) Vemos que, como proposto, as matrizes de Pauli agem como operadores sobre o estado inicial. A ação de σ1 no estado inicial νe levou-o ao estado não-eletrônico νa. Já a ação de σ3 não produz alteração de estado. Ao realizarmos este processo fazemos a associação entre a notação vetorial,  ϕ1 ϕ2  s , e a notação de vetores de estado, |νl〉, definidas no início da solução deste problema. Obtemos, por fim, que a solução particular que descreve a evolução temporal de um neutrino solar é dada por |νe(t)〉 = e−i E1+E2 2 t× {[ cos ( ∆E 2 t ) + i cos 2θ sin ( ∆E 2 t )] |νe〉 − i sin 2θ sin ( ∆E 2 t ) |νa〉 } . (4.35) Como esperado, esta solução possui uma parte que representa o estado inicial |νe〉 e outra que representa o estado não-eletrônico |νa〉. Podemos notar claramente os efeitos de mistura, que levam o estado inicial puro a evoluir como uma composição de estados. 4.4 Probabilidades de conversão e sobrevivência Após termos determinado a equação que descreve a evolução temporal de um neutrino solar, com este resultado é possível calcular as chamadas probabilidades de conversão e de sobrevivência. 4.4.1 Probabilidade de conversão A chamada probabilidade de conversão é a quantidade que, no problema dos neutrinos solares, nos diz a probabilidade de um neutrino que foi produzido inicialmente com sabor eletrônico νe se converter em um neutrino de sabor não-eletrônico νa, após um certo tempo t, ou seja, durante o seu trajeto da fonte até o detector. É definida, segundo a mecânica quântica, como Pea(t) = | 〈νa| νe(t)〉 |2, (4.36) e após realizar o produto interno, obtemos Pea(t) = sin2 2θ sin2 ( ∆E 2 t ) . (4.37) 36 Capítulo 4. OSCILAÇÃO DE SABOR 4.4.2 Probabilidade de sobrevivência Como as probabilidades estão todas normalizadas, podemos obter a chamada probabilidade de sobrevivência, que nos diz qual a probabilidade de um neutrino não sofrer alteração de sabor durante seu trajeto entre a fonte e o detector. É definida de forma simples, dada por Pee(t) = 1− Pea(t). (4.38) Inserindo o resultado de (4.37) em (4.38), obtemos Pee(t) = 1− sin2 2θ sin2 ( ∆E 2 t ) . (4.39) Ainda assim, para torná-la prática à aplicação da fenomenologia dos neutrinos, são necessárias algumas poucas aproximações na expressão acima, que poderemos escrever em função de parâmetros mais práticos e de interpretação mais coerente, como a distância entre a fonte e o detector. No nosso caso a fonte de emissão de neutrinos é o Sol, e os detectores estão na Terra, pelo qual podemos afirmar que a Terra é o detector. Na equação (4.39) a variável t é apenas um parâmetro de evolução, resultado do formalismo de ondas planas. Sabemos que os neutrinos são partículas extremamente relativísticas, e assim podemos dizer que a sua velocidade é aproximadamente a velocidade da luz, ou seja vneutrino ≈ c. (4.40) Desta forma podemos relacionar o tempo t com um parâmetro de distância x, onde x = vneutrino t ≈ ct. (4.41) Neste problema x vem a ser a distância entre a fonte (Sol) e o detector (Terra), e lembrando que estamos trabalhando em unidades naturais, onde c = 1, temos que x ≈ t. Assim, inserindo este resultado em (4.39), obtemos Pee(x) = 1− sin2 2θ sin2 ( ∆E 2 x ) . (4.42) O que fizemos foi simplesmente reinterpretar a equação da probabilidade em termos da distância x entre a fonte e o detector. Assim, sem perda de generalidade, passaremos a escrever a probabilidade como na expressão acima, ou seja, em função de x. 4.4. Probabilidades de conversão e sobrevivência 37 Na continuidade do processo de adequação dos resultados obtidos, vamos analisar as energias E1 e E2 envolvidas. A expressão (4.42) depende da diferença de energia entre os estados ν1 e ν2, ou seja, ∆E. Como os neutrinos são partículas relativísticas, a energia pode ser expressa segundo E2 i = p2 +m2 i , (4.43) onde p ≡ | ~p | é o módulo do momento linear do estado νi, com i = 1, 2 (ou 3). A equação (4.43) relaciona a energia cinética da partícula, representada pelo módulo quadrado do momento, enquanto que o termo m2 i está relacionado com a energia em forma de massa (lembrando que no sistema natural de unidades c = 1, assim m é na verdade mc2). Segundo o modelo solar padrão, a energia total dos neutrinos é da ordem de MeV (mega elétron-volt), e tentativas de se medir a massa dos neutrinos indicam que estes possuem massa da ordem de poucos eV. Assim, podemos afirmar que a energia total destas partículas, ou seja, o autovalor da hamiltoniana, é praticamente a energia cinética do neutrino em forma de momento. Em outras palavras, matematicamente esta informação nos diz que mi p � 1. (4.44) Utilizando uma expansão binomial do tipo √ 1 + x ≈ 1+ x 2 , reescrevemos a expressão (4.43) como Ei = p √√√√1 + m2 i p2 ∼= p+ m2 i 2p . (4.45) Assim, substituindo E1 e E2, obtidos na expressão acima, na definição de ∆E obtemos ∆E = E2 − E1 = ∆m2 2p . (4.46) A grandeza ∆m2 é fundamental neste modelo, juntamente com o ângulo de mistura θ. Utilizando a aproximação (4.45) na expressão (4.43), podemos afirmar que p ≈ Ei ≡ E. (4.47) Neste caso a energia E (sem o índice) representa a energia total do feixe, ou seja, a energia dos estados de sabor. Com estas aproximações obtidas, inserimos estes resultados na expressão (4.42), obtendo finalmente a expressão que vem a ser a solução para o modelo de oscilações no vácuo, dada por Pee(x) = 1− sin2 2θ sin2 ( ∆m2 4E x ) . (4.48) 38 Capítulo 4. OSCILAÇÃO DE SABOR Repare que sempre que o valor de x for um múltiplo de uma determinada distância característica, o termo sin2 ( ∆m2 4E x ) valerá zero, e assim a porcentagem de neutrinos do elétron no feixe será restaurada ao seu valor inicial. Em outras palavras, Pee(x) = 1, e assim teremos obtido uma oscilação completa, e o número de neutrinos do elétron será o mesmo de quando foram produzidos incialmente. Esta distância é conhecida como comprimento de oscilação, e é dada por L0 = 4π E ∆m2 . (4.49) 4.5 Coerência com os dados experimentais Com os resultados obtidos anteriormente, vamos agora tentar explicar os dados apresentados na figura 4. Seja φ o fluxo de neutrinos solares. Chamamos de φteo o fluxo teórico, previsto pelo modelo solar padrão, e φexp o fluxo de neutrinos observado pelos experimentos. Desta forma, definimos fluxo relativo segundo φrel = φexp φteo . (4.50) Como vimos, o problema do neutrino solar se resume ao fato de que φexp φteo < 1. (4.51) Como esta grandeza é sempre menor do que um (afinal, não observou-se um “ganho” na quantidade esperada de neutrinos do elétron, e sim, sempre uma redução), podemos relacionar diretamente φrel com a probabilidade de sobrevivência, Pee. No gráfico da figura 7 podemos ver a dependência de φrel com a energia do feixe de neutrinos. 4.5. Coerência com os dados experimentais 39 Figura 7 – Valores de φrel em função da energia, obtidos no experimento de Super- Kamiokande. (Extraído de [8]) Observe que se o fluxo detectado na Terra fosse o mesmo previsto pelo modelo solar padrão, teríamos todos os pontos na linha φrel = 1. Por já, observamos que (ignorando os erros) temos todos os pontos abaixo do fluxo relativo de 0, 5. Desta forma, o fator sin2 2θ não pode ser muito menor do que 1, pois como a média de sin2 ( ∆m2 4E x ) é 0, 5, se sin2 2θ for muito menor do que 1 a média da oscilação ficará acima de 0, 5. Assim, o requisito mínimo para que a solução encontrada represente os dados experimentais é sin2 2θ ≈ 1. (4.52) Na sequência vamos procurar obter o valor do fator ∆m2. Para tal, basta invertermos a expressão (4.49), obtendo ∆m2 = 4π E L0 . (4.53) Vamos nos concentrar agora em analisar os resultados obtidos pelo experimento de KamLand, que trabalha com antineutrinos provenientes de reatores nucleares. Isto significa que estas partículas atravessam menos matéria (em comparação com os neutrinos formados no Sol), então se observado um caráter oscilatório, é um excelente indicativo da consolidação deste modelo. Da mesma forma que fizemos com os dados do Super-Kamiokande, vamos analisar os valores de φrel para os dados do KamLand publicados em junho de 2004, mostrados na figura 8. 40 Capítulo 4. OSCILAÇÃO DE SABOR Figura 8 – Valores de φrel em função da energia, obtidos no experimento de KamLand (Junho de 2004). (Extraído de [8]) Podemos notar o surgimento de um padrão oscilatório. Vamos, a partir disto, tentar obter valores para sin2 2θ a partir do gráfico. O valor de sin2 2θ é, a grosso modo, o valor da distância entre a probabilidade 1 e a probabilidade mais baixa. No caso da figura 8 vemos que podemos estimar grosseiramente este valor como sendo a distância entre o valor 1 e o dado do valor mais baixo, o que nos fornece algo em torno de sin2 2θ ≈ 0, 8, como visto na figura 9. Figura 9 – Ignorando as barras de erro, podemos notar o padrão oscilatório visto na figura 8. As linhas ligando os pontos representam apenas o padrão que estamos seguindo nesta análise, não representando por enquanto nenhum ajuste aos dados experimentais. Na elaboração desta figura foram omitidos os dois pontos com valor maior que 1. (Extraído de [8]) 4.6. 2015: Consolidação e Prêmio Nobel 41 Para determinar pelo menos o valor da ordem de grandeza de ∆m2, consideramos a medida estimada do valor médio da energia para os pontos que representam um evidente caráter oscilatório, de valor E = 5, 46 MeV. Na realização da análise de dados, o experimento KamLand utilizou um valor de 180 km= 9, 1× 1017 MeV−1(em unidades naturais) como sendo a distância entre a fonte e o detector. Podemos relacionar esta distância com o valor médio da energia de cada período L0 (pois vimos pela equação (4.49) que este valor cresce com a energia). Assim, utilizando a expressão (4.53) temos ∆m2 = 4π E L0 = 4π 5, 46 9, 1× 1017 ≈ 10−4eV 2. Por fim, na figura 10 está representada a curva do modelo de oscilação no vácuo sobreposta aos dados do KamLand, com as devidas barras de erros. Figura 10 – Representação da curva Pee sobreposta aos dados do KamLand. Os parâmetros utilizados neste gráfico são sin2 2θ ≈ 0, 8 e ∆m2 = 10−4eV2, ambos obitidos da análise feita da figura 9. (Extraído de [8]) 4.6 2015: Consolidação e Prêmio Nobel O experimento de Super-Kamiokande e o SNO continuaram sua coleta de dados, e em 2013 publicaram seus resultados. Foi observado então que o fluxo total estava de acordo com o fluxo teórico. Após uma comparação constatou-se que dois terços dos neutrinos do elétron vindos do sol alteraram seu sabor, chegando à Terra como neutrinos do múon ou do tau. Estas evidências de oscilação apresentadas pelo SNO foram confirmadas em seguida pelos dados experimentais do Kamland. 42 Capítulo 4. OSCILAÇÃO DE SABOR Devido às suas contribuições, Takaaki Kajita (Super-Kamiokande) e Arthur B. McDonald (SNO) receberam em 2015 o Prêmio Nobel de Física “pela descoberta das oscilações de neutrinos, que mostram que os neutrinos têm massa”. 43 5 CONCLUSÃO Apresentamos neste trabalho o desenvolvimento do modelo de oscilação de neutrinos no vácuo, e vemos que ele traz boas explicações para os dados experimentais obtidos por diferentes colaborações. Na sequência de um tratamento completo, deve-se levar em conta um efeito que, por fins didáticos, ignoramos neste trabalho: a interação dos neutrinos com a matéria solar. Este efeito é chamado de Efeito MSW (Mikheyev–Smirnov–Wolfenstein). Por mais que esta interação com a matéria seja muito tênue, sua consideração torna completo o modelo de oscilação, e assim é possível determinar com mais precisão os valores de ∆m2 e do ângulo de mistura θ. A observação do fenômeno quântico das oscilações de neutrinos implica que estas partículas possuem massa, em contradição com o Modelo Padrão da física de partículas. Ainda não se conhece ao certo o mecanismo de geração da massa dos neutrinos, e para tal o Modelo Padrão deve ser extendido, e este campo de estudo compreende em parte a chamada Física além do Modelo Padrão. Embora não se conheça ao certo a massa de cada um dos neutrinos existentes, estudos sugerem um limite máximo de ∑mi < 0, 23 eV para a massa total combinada dos três sabores. Para fins de comparação, esta massa é mais de um milhão de vezes menor que a massa do elétron, e isto é um indicativo da existência de uma nova escala fundamental de massa, não explicada atualmente pelo Modelo Padrão. É esta inclusão da pequena massa do neutrino que caracteriza esta “nova física”. Para o futuro, alguns experimentos planejam atingir uma sensibilidade de aproximadamente 0, 20 eV, e desta forma poderemos compreender melhor os mecanismos que regem estas partículas. Compreender a natureza do neutrino é hoje de grande importância, não apenas para a Física de Partículas, mas também para a Astrofísica e a Cosmologia. Seu estudo pode nos fornecer informações sobre o Big Bang, colapso de supernovas, discos de acreção em buracos negros, e muito mais. Adicionalmente, especula-se que com a descoberta da existência de massa nos neutrinos, estes podem compreender uma pequena porção da “matéria escura”, que influencia como estruturas de larga escala foram formadas em eras cosmológicas passadas. De fato, a descoberta das oscilações de neutrinos e a sua implicação na existência de uma massa associada abriu uma nova porta para a ciência, que nos levará à uma melhor compreensão do universo em que vivemos. Referências [1] HO-KIM, Quang; PHAM, Xuan-Yem. Particles and Interactions: An Overview. In: HO- KIM, Quang; PHAM, Xuan-Yem (Ed.).Elementary Particles and Their Interactions: Concepts and Phenomena. Paris: Springer-Verlag Berlin Heidelberg, 1998. Cap. 1. p. 1-9. [2] WILLIAMS, W. S. C. Nuclear Instability. In: WILLIAMS, W. S. C.. Nuclear and Particle Physics. Oxford: Oxford University Press, 1991. Cap. 5. p. 66-73. [3] KORYTOV, Andrey. Introduction to Elementary Parti- cle Physics: Neutrino: hypothesis, discovery. Disponível em: . Acesso em: 22 ago. 2016. [4] A Brief History Of Neutrinos. Disponível em: . Acesso em: 06 abr. 2016. [5] NEUTRINOS. Disponível em: . Acesso em: 06 abr. 2016. [6] Cowan and Reines Neutrino Experiment. Disponível em: . Acesso em: 22 ago. 2016. [7] RAJASEKARAN, G. The Story of the Neutrino. 2016. ArXiv:1606.08715v1 [physics.pop-ph]. Disponível em: . Acesso em: 10 ago. 2016. [8] VALDIVIESSO, Gustavo do A.; GUZZO, Marcelo M.. Compreendendo a oscilação dos neutrinos. Rev. Bras. Ensino Fís., São Paulo , v. 27, n. 4, p. 495-506, dez. 2005 . Disponível em . Acesso em: 10 out. 2016. http://dx.doi.org/10.1590/S1806-11172005000400002. [9] SMITH, Darrel. Calculating the Probability for Neutrino Oscillati- ons. 2001. Student Lecture Series for MiniBooNE. Disponível em: . Acesso em: 05 jun. 2016. [10] SMIRNOV, A. Yu. The MSW effect and Solar Neutrinos. 2003. ArXiv:hep- ph/0305106v1. Disponível em: . Acesso em: 04 abr. 2016. Dedicatória Agradecimentos Epígrafe Resumo Abstract Sumário Introdução PARTÍCULAS ELEMENTARES E SUAS INTERAÇÕES: O MODELO PADRÃO Léptons Quarks Interações Força Gravitacional Força Eletromagnética Força Forte Força Fraca NEUTRINOS: HISTÓRIA E DETECÇÃO Decaimentos nucleares O decaimento e a proposta da existência do neutrino 1956: Descoberta experimental O PROBLEMA DO NEUTRINO SOLAR O Sol: uma fonte de e O problema: déficit nos experimentos e o desaparecimento de neutrinos OSCILAÇÃO DE SABOR Aspectos do conceito de mistura Oscilação entre dois sabores no vácuo Formalizando o problema Probabilidades de conversão e sobrevivência Probabilidade de conversão Probabilidade de sobrevivência Coerência com os dados experimentais 2015: Consolidação e Prêmio Nobel CONCLUSÃO Referências