E n s a io -f íl m ic o Ensaio-fílmico RafaEl chRistofolEtti R a fa el C h R isto fo let t i Cinema, louCura e resistênCia ENSAIO-FÍLMICO Miolo_Ensaio-filmico_(GRAFICA).indd 1Miolo_Ensaio-filmico_(GRAFICA).indd 1 14/01/2014 10:11:0214/01/2014 10:11:02 CONSELHO EDITORIAL ACADÊMICO Responsáveis pela publicação desta obra César Donizetti Pereira Leite Joyce Mary Adam de Paula e Silva Laura Noemi Chaluh Leila Maria Ferreira Salles Luiz Carlos Santana Maria Antonia Ramos de Azevedo Rosa Maria Feiteiro Cavalari Samuel de Souza Neto Miolo_Ensaio-filmico_(GRAFICA).indd 2Miolo_Ensaio-filmico_(GRAFICA).indd 2 14/01/2014 10:11:2914/01/2014 10:11:29 RAFAEL CHRISTOFOLETTI ENSAIO-FÍLMICO CINEMA, LOUCURA E RESISTÊNCIA Miolo_Ensaio-filmico_(GRAFICA).indd 3Miolo_Ensaio-filmico_(GRAFICA).indd 3 14/01/2014 10:11:2914/01/2014 10:11:29 © 2013 Editora UNESP Cultura Acadêmica Praça da Sé, 108 01001-900 – São Paulo – SP Tel.: (0xx11) 3242-7171 Fax: (0xx11) 3242-7172 www.editoraunesp.com.br feu@editora.unesp.br Cip – Brasil. Catalogação na fonte Sindicato Nacional dos Editores de Livros, RJ C951e Christofoletti, Rafael Ensaio-fílmico: cinema, loucura e resistência / Rafael Christofoletti. São Paulo: Cultura Acadêmica, 2013. Recurso digital Formato: ePDF Requisitos do sistema: Adobe Acrobat Reader Modo de acesso: World Wide Web Inclui bibliografia ISBN 978-85-7983-454-7 (recurso eletrônico) 1. Saúde mental. 2. Arte e doença mental. 3. Psiquiatria no cinema. 4. Livros eletrônicos. I. Título. 13-07321 CDD: 615.85156 CDU: 615.851.7 Este livro é publicado pelo Programa de Publicações Digitais da Pró-Reitoria de Pós-Graduação da Universidade Estadual Paulista “Júlio de Mesquita Filho” (UNESP) Editora afiliada: Miolo_Ensaio-filmico_(GRAFICA).indd 4Miolo_Ensaio-filmico_(GRAFICA).indd 4 14/01/2014 10:11:2914/01/2014 10:11:29 À memória do meu querido vô Gusto, o Gustão, pelos ensinamentos cotidianos de uma vida alegre... À memória da Lê ReEFoot, minha querida amiga Janis de Santa, ou Le- landa (para os íntimos) pelos encontros e estórias tão intensas... Miolo_Ensaio-filmico_(GRAFICA).indd 5Miolo_Ensaio-filmico_(GRAFICA).indd 5 14/01/2014 10:11:2914/01/2014 10:11:29 Miolo_Ensaio-filmico_(GRAFICA).indd 6Miolo_Ensaio-filmico_(GRAFICA).indd 6 14/01/2014 10:11:2914/01/2014 10:11:29 Agradeço à minha família, principalmente, a meu pai e a minha mãe, pelo incondi- cional apoio nas minhas diferentes (e malucas) empreitadas; à Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior (Capes) pelo financiamento de minha pesquisa; ao pessoal do Centro de Atenção Psicossocial (Caps) de Santa Gertru- des pelos encontros, lutas, risadas e experiências muito loucas; à Nau dos loucos do I-mago pelos encontros, brincadeiras, discussões e amizades... ao querido (des)orientador e compa- nheiro de viagens César Leite por com- partilhar desta arriscada travessia que é a experiência da pesquisa. Miolo_Ensaio-filmico_(GRAFICA).indd 7Miolo_Ensaio-filmico_(GRAFICA).indd 7 14/01/2014 10:11:2914/01/2014 10:11:29 Miolo_Ensaio-filmico_(GRAFICA).indd 8Miolo_Ensaio-filmico_(GRAFICA).indd 8 14/01/2014 10:11:2914/01/2014 10:11:29 Vamos fazer um filme... (Renato Russo) Miolo_Ensaio-filmico_(GRAFICA).indd 9Miolo_Ensaio-filmico_(GRAFICA).indd 9 14/01/2014 10:11:2914/01/2014 10:11:29 Miolo_Ensaio-filmico_(GRAFICA).indd 10Miolo_Ensaio-filmico_(GRAFICA).indd 10 14/01/2014 10:11:2914/01/2014 10:11:29 SUMÁRIO PRÉ-PRODUÇÃO Ensaio-fílmico como possibilidade de reportar 17 Travessia de experimentação 29 Um encontro muito louco 39 PRODUÇÃO Ensaio-fílmico: o que as imagens nos provocam a ler 49 Cena I – Higienização social 57 Cena II – A loucura 75 Cena III – A Reforma Psiquiátrica 93 Cena IV – IV Feira de Economia Solidária e Saúde Mental 125 Cena V – Caps, cotidiano e produção de loucura 145 PÓS-PRODUÇÃO Ensaio-fílmico: imagens, loucura e minoridade 165 Referências 173 Miolo_Ensaio-filmico_(GRAFICA).indd 11Miolo_Ensaio-filmico_(GRAFICA).indd 11 14/01/2014 10:11:2914/01/2014 10:11:29 Miolo_Ensaio-filmico_(GRAFICA).indd 12Miolo_Ensaio-filmico_(GRAFICA).indd 12 14/01/2014 10:11:2914/01/2014 10:11:29 PRÉ-PRODUÇÃO Miolo_Ensaio-filmico_(GRAFICA).indd 13Miolo_Ensaio-filmico_(GRAFICA).indd 13 14/01/2014 10:11:2914/01/2014 10:11:29 Miolo_Ensaio-filmico_(GRAFICA).indd 14Miolo_Ensaio-filmico_(GRAFICA).indd 14 14/01/2014 10:11:2914/01/2014 10:11:29 Sinopse O presente trabalho se apresenta como um ensaio-fílmi- co e está dividido em três partes (pré-produção, produção e pós-produção) e vem a ser uma montagem de cenas com plano-fragmentos a partir de algumas sessões de cinema e de produções de imagens realizadas com usuários de saúde mental do Centro de Atenção Psicossocial (Caps I) do município de Santa Gertrudes (SP). Problematiza- -se, sobretudo, a loucura e a Reforma Psiquiátrica em um contexto de sociedade de controle. Argumento Este ensaio-fílmico surge de encontros entre alguns trabalhos desenvolvidos no campo da Saúde Mental, do cinema, de produções imagéticas e de possibilidades de produções de sentidos a partir de montagens. Essa proposta surge dos modos com que trabalhei com os usuários do Caps I de Santa Gertrudes (SP) –, e pode ser apresentada Miolo_Ensaio-filmico_(GRAFICA).indd 15Miolo_Ensaio-filmico_(GRAFICA).indd 15 14/01/2014 10:11:2914/01/2014 10:11:29 16 RAFAEL CHRISTOFOLETTI em momentos que juntos assistíamos a filmes (Bicho de sete cabeças e A vida é bela) e que produzíamos imagens a partir do uso livre de câmeras filmadoras e fotográficas. Enquanto no cinema tradicional enredos, personagens e narrativas são lineares, previstos, preestabelecidos (dados a priori), aqui esses elementos tomaram corpo ao longo do processo de pesquisa, conforme o cotidiano (dinâmico e múltiplo) do serviço e das possibilidades que se apre- sentavam decorrentes dos encontros com os usuários e a coordenação do serviço. Os usuários que assistiram ao primeiro filme não necessariamente assistiram ao segundo, assim como os que filmaram no Caps não necessariamente o fizeram em viagem realizada a São Paulo, rumo à IV Feira de Economia Solidária e Saúde Mental. Além de diferentes personagens, diferentes enredos e narrativas foram sendo tecidos ao longo do percurso com, inclusive, mudanças no cronograma de pesquisa como no ordenamento das atividades a serem desenvolvidas. Assim como o processo cinematográfico, o presente trabalho está organizado em três momentos – pré-produção, produção e pós-produção –, mas se diferencia principal- mente pelo fato de não estabelecer um roteiro prévio e minucioso como um roteiro técnico. A produção é composta por cinco cenas constituídas a partir de montagens do que venho a chamar de plano-fragmentos – uma espécie de miniensaios, uns maiores e outros menores, uns mais imagéticos, outros mais conceituais, mas todos frutos de composições ora com textos, ora com imagens, trechos de filmes, músicas, enfim, montados com objetivo de pro- dução de sentidos a partir de uma série de problemáticas suscitadas relativas a controle, loucura, saúde mental e reforma psiquiátrica em uma perspectiva de transversa- lidade e subversão à lógica de compartimentalização dos saberes e fazeres cinematográfico e do meio científico. Miolo_Ensaio-filmico_(GRAFICA).indd 16Miolo_Ensaio-filmico_(GRAFICA).indd 16 14/01/2014 10:11:2914/01/2014 10:11:29 ENSAIO-FÍLMICO COMO POSSIBILIDADE DE REPORTAR Na primeira exibição da história do cinema, em 1895, dizem que um grupo de pessoas entrou em pânico e, de- sesperadamente, correu para o fundo da sala com medo do trem que, imaginavam, sairia da tela. Com A chegada do trem à estação Ciotat (e outros curtas-metragens) os irmãos Lumière apresentavam ao mundo os primeiros atos cinematográficos. Mesmo sendo de curtíssima duração, com apenas alguns poucos minutos, em plano fixo imóvel1 e de caráter estritamente documental, mostrando cenas do cotidiano, já acenavam para a potência da emergência dessa nova arte em afetar e mobilizar intensamente as pessoas. Rapidamente o cinema se alastrou pela Europa, pelos Estados Unidos e pela América Latina, desencadeando uma verdadeira revolução tecnológica na área. Em princípio, os filmes eram mudos e, geralmente, exibidos acompanhados de música ao vivo, fato que ainda na década de 1920 se modificou, com a conquista da sincronização do som com a imagem. A partir daí as inovações não pararam mais e, 1 O peso do equipamento cinematográfico de produção impedia qualquer tipo de mobilidade. Miolo_Ensaio-filmico_(GRAFICA).indd 17Miolo_Ensaio-filmico_(GRAFICA).indd 17 14/01/2014 10:11:2914/01/2014 10:11:29 18 RAFAEL CHRISTOFOLETTI com o tempo, a ideia de montagem e os efeitos especiais, ganharam uma dimensão cada vez maior. Hoje em dia, em plena era digital e de disseminação de uma série de novas câmeras fotográficas e filmadoras (a preços mais baixos), tem-se popularizado2 uma nova relação com a imagem, que é a da produção propriamente dita. Com os celulares multifuncionais, por exemplo, qualquer um tem a condição de deixar de ser um mero espectador e produzir suas próprias imagens. Com a emergência de um mercado cada vez mais lucra- tivo, instaurou-se um processo de divisão social da produ- ção no fazer cinematográfico – à semelhança do processo fabril com a divisão social do trabalho – e a especialização na área com a separação e compartimentalização de uma série de atividades (e saberes) com o objetivo de dar mais celeridade e otimização ao processo.3 Isso é verificado nas chamadas funções cinematográficas básicas consideradas fundamentais para a realização de qualquer projeto ci- nematográfico: direção, produção – a que nos ateremos brevemente, apenas a critério de ilustração – fotografia, arte, som, montagem e finalização.4 2 Mesmo a preços mais baixos é importante reconhecer que o acesso a tais equipamentos pode ainda ser considerado elitizado – logicamen- te, muito menos que algumas décadas atrás, haja vista grande parte da população mundial sequer ter condições mínimas de sobrevivência. Recordo-me do documentário brasileiro Garapa, que apresenta uma versão abrasileirada da fome e da miséria no sertão semiárido brasileiro, onde o diretor José Padilha acompanha o dia a dia de três famílias que padecem de fome crônica no interior do Ceará. 3 Essa tem sido uma característica observada, sobretudo, mas não apenas, na produção cinematográfica hollywoodiana. 4 Baseamo-nos aqui no material didático da Academia Internacional de Cinema (AIC), localizada no município de São Paulo, referente a dois cursos que realizei (correntes cinematográficas e curso intensivo de cinema digital) além de material disponível no site sobre cinema. Disponível em: . Acesso em: 10 jul. 2012 Miolo_Ensaio-filmico_(GRAFICA).indd 18Miolo_Ensaio-filmico_(GRAFICA).indd 18 14/01/2014 10:11:2914/01/2014 10:11:29 ENSAIO-FÍLMICO 19 O diretor, como o criador da obra cinematográfica, é a pessoa que coordena os diferentes processos da produção cinematográfica, desde o início, na análise, interpretação e adequação do roteiro, escolha de locações, atores, figu- rinos, cenografias, equipamentos, até a edição final. An- tigamente, ele fazia tudo: escrevia suas próprias histórias, produzia, filmava, montava o filme e às vezes até atuava. Hoje, ainda cabe a ele a maior responsabilidade no processo de construção do projeto cinematográfico. A partir da ideia de indústria do cinema, entretanto, ele adquire uma postura mais de gerente de fábrica do que de artista de fato, por vezes se relacionando de maneira hierarquizada com os demais departamentos, com o objetivo voltado a uma lógica pautada por interesses comerciais e maximi- zadores de lucro. Nesse contexto, ganha maior importância a esfera da produção na figura do produtor do filme. Esse pode ser a pessoa que irá em busca de verbas para financiamento do projeto – produtor executivo – ou simplesmente o en- carregado pelos aspectos organizacionais do filme, quem administra os recursos humanos, técnicos, artísticos e materiais e, junto com o diretor, realiza a análise técni- ca do roteiro com o objetivo de racionalizar e viabilizar (financeiramente) a execução de um projeto. Inicialmente, diz-se que é necessário ter um roteiro: uma história/narrativa que se dará em sequências de ações e que vai servir de base para a produção de um filme. É a partir dele que se desencadeia todo o restante da cadeia cinematográfica. Segundo o Manual de produção da Aca- demia Internacional de Cinema (AIC, 2010), o roteirista5 5 Referimo-nos aqui ao diretor, roteirista, produtor como pessoas responsáveis pelas respectivas funções cinematográficas (direção, roteiro e produção). É importante destacar que o processo de com- partimentalização hoje em dia tem alcançado níveis ainda maiores. Assim, por exemplo, dentro da esfera da produção existe o produtor Miolo_Ensaio-filmico_(GRAFICA).indd 19Miolo_Ensaio-filmico_(GRAFICA).indd 19 14/01/2014 10:11:2914/01/2014 10:11:29 20 RAFAEL CHRISTOFOLETTI “cria, a partir de uma ideia, texto ou obra literária, sob forma de argumento ou roteiro cinematográfico, narrativa com sequências de ação, com ou sem diálogos, a partir da qual se realiza o filme”. Ou seja, o roteiro vai delimitar minuciosamente a sequência das cenas6 e os planos7 que devem ser filmados. Grosso modo, tecnicamente, um filme é composto por uma série de fotogramas, imagens fixas, que ficam dispostas em sequência e que, passando de maneira ritmada, dão origem a uma imagem aumentada que se move – a qual visualizamos em certo quadro. O conceito de cena é utili- zado como forma de delimitar como vão ser orquestradas as ações de um filme já previstas pelo roteiro técnico.8 Isso se dá a partir da montagem de um conjunto de planos. A cena seria então como que um trecho do filme com unidade de tempo e espaço, ou ainda, uma “unidade dramática do lugar e tempo, seção contínua de ação, dentro de uma mesma localização” (AIC, 2010, p.25). Já a ideia de plano compreende diferentes sentidos. Pode se tratar da perspectiva de profundidade dentro do quadro: quando se diz que a pessoa está em primeiro plano, se faz referência a seu enquadramento frente aos demais elementos que compõem o quadro. O plano também é considerado a menor unidade narrativa de um roteiro que geral, produtor executivo, os assistentes de produção etc. Além disso, há de lembrar que nos referimos ao modo tradicional de fazer cinema. 6 Pela definição do Manual da AIC, a cena é considerada uma unidade dramática do lugar e tempo, uma seção contínua de ação, dentro de uma mesma localização. 7 Pela definição do manual da AIC o plano é a imagem entre dois cortes, a menor unidade narrativa de um roteiro técnico, e a duração do tempo varia conforme as necessidades dramáticas. 8 Roteiro técnico é o roteiro minuciosamente finalizado com a lista de planos que contarão a história do filme; é também conhecido como decupagem final. Miolo_Ensaio-filmico_(GRAFICA).indd 20Miolo_Ensaio-filmico_(GRAFICA).indd 20 14/01/2014 10:11:2914/01/2014 10:11:29 ENSAIO-FÍLMICO 21 ocorre a partir do momento em que a câmera é ligada até o momento em que ela é desligada. Mas, no decorrer do processo de montagem de um filme, por vezes, são eli- minadas partes de seu início (e/ou final) e o plano acaba se tornando a imagem entre os dois cortes. Um plano inicial, então, pode ser dividido em dois ou mais planos que, intercalados, podem fazer parte de determinada sequência e/ou cena. Algumas vezes os conceitos de plano e tomada9 são confundidos. Um dos privilégios do cinema é o fato de um plano poder ser filmado quantas vezes o diretor achar necessário, ou seja, um plano pode ter várias tomadas e apenas uma deverá ser aproveitada na montagem/edição do filme. A proposta do presente trabalho é utilizar alguns desses elementos fundamentais do produto audiovisual que, geralmente, são utilizados para seu planejamento, realização, ou mesmo para análise crítica,10 para então criar um Ensaio-Fílmico (EF) que se configura como um produto, uma matéria de expressão, a partir de imagens produzidas por e com usuários e técnicos do Caps I de Santa Gertrudes. Tem-se então uma série de planos que não seguem uma lógica narrativa linear (como em um filme) produzidos em decorrência do encontro livre11 com 9 É comum a utilização americanizada do termo: take. 10 Interessante lembrar que, acerca do papel da crítica de cinema, Deleuze (2008a, p.75) discorre: “A crítica de cinema esbarra num duplo obstáculo: é preciso evitar simplesmente descrever os filmes, mas também aplicar-lhes conceitos vindos de fora. A tarefa da crítica é formar conceitos, que evidentemente não estão dados no filme, e que, no entanto, só convém ao cinema, e a tal gênero de filmes, a tal ou qual filme (travelling, raccords, falsos raccords, profundidade de campo, planeza etc.), mas a técnica não é nada se não serve a fins que ela supõe e que ela não explica”. 11 As câmeras eram disponibilizadas sem a delimitação de uma tarefa específica a ser desenvolvida, sem uma diretividade em relação ao Miolo_Ensaio-filmico_(GRAFICA).indd 21Miolo_Ensaio-filmico_(GRAFICA).indd 21 14/01/2014 10:11:2914/01/2014 10:11:29 22 RAFAEL CHRISTOFOLETTI a câmera. Planos esses produzidos cada um uma única vez, com uma única tomada; planos únicos, impossíveis de ser repetidos. Foi a partir de leituras decorrentes do encontro com as respectivas imagens que se criou a ideia de plano-frag- mento – como que miniensaios construídos a partir de composições com textos, imagens, diálogos, trechos de filmes e músicas. Montagens com esses plano-fragmentos são realizadas, constituindo cenas com o objetivo de um reportar12 – reportar ou desenvolver a potência de criar acontecimento nas práticas de registro audiovisual a par- tir da apreensão das emergências de zonas relevantes de tensão social. Cabe aqui um pouco mais da elaboração de Luiz Fu- ganti (2011) acerca do conceito de reportar, mesmo apesar de alguns pormenores decorrentes da transcrição direta de sua fala: [...] reportar, re-portar, é, na verdade, uma espécie de transporte, ao mesmo tempo em que remete, reporta ou retransmite. Mas, reportar ou retransmitir o quê? E tam- bém como? E a partir do quê? Só que como a partir do quê? O que nos move nos modifica, nos toca, um mundo. Ou seja, tem a ver com o que a gente sente, que é importante. Remeter e transportar: reportar. O quê? Como? A partir do quê? O quê é o tema, o objeto, o alvo: e são valores por- que urge aquilo que toca nossa vida no momento, é aquilo que é o presente. Essa zona de importância, esse recorte importante é constitutivo do próprio valor. Valor do quê? que deveria ou não ser filmado: apenas uma orientação acerca do manuseio básico de funcionamento: ligar/desligar a câmera. 12 Tal conceito fora trabalhado por Luiz Fuganti na oficina de cinema “Reportar e Documentar”, desenvolvida pela Escola Nômade no município de São Paulo, em que tive a oportunidade de participar de alguns encontros. Miolo_Ensaio-filmico_(GRAFICA).indd 22Miolo_Ensaio-filmico_(GRAFICA).indd 22 14/01/2014 10:11:3014/01/2014 10:11:30 ENSAIO-FÍLMICO 23 De um problema. Para a vida, desejo, relações? De conser- vação de vida? De busca de felicidade? Desenvolvimento e progresso da vida? Ou de mudança do próprio modo de vida na medida em que se é movido por um desejo de criação de novas realidades e de novas maneiras de existir. O que nos toca remete também a um segundo problema: toca quem em nós? A partir de o que me toca, o que toca o outro, o que nos toca, o que é relevante, o que é digno de ser reportado, a partir do quê, esse que toca o quê em mim? (este é o trabalho de subjetivação) e como? Acaba sendo o terceiro elemento que pode se tornar o primeiro elemento, ou seja, o aspecto mais importante: aquele que deve melhor se uivar, se vigiar, se lapidar porque o como é como se fosse o próprio ser da passagem. Da passagem do quê? Exatamente, do quê em relação ao quê, é como eu sou tocado por o quê. Por aquilo que se destaca, e a quem? Depende de como, quem em mim são (a partir do quê) o quê, segundo como (a maneira que me atravessa)? O quê nos afeta? Por que nos afeta? O motor afeta quem em mim? Um sujeito, ou uma potência em variação, um desejo que se transmuta a cada toque, a cada acontecimento. Então, na verdade, esse reportar sente também para o documentar. O documentar envolve uma elaboração e uma montagem. Reportar: remete ao registro a expres- são, invenção de uma expressão para a emergência de algo, de um acontecimento que ainda não tem expressão instituída ou forma de expressão. Inventar mais do que um fato, trazer uma força. O documentar implica mais nos desdobramentos de um acontecimento, tem íntima relação, insere o reportar numa cadeia de acontecimentos que pode se desdobrar em múltiplas séries temporais e de movimento físico. Então o documentar exige também uma interpretação contínua das forças que se continuam umas as outras e que criam ou fabricam acontecimen- tos ou histórias. Jamais o documentar deve se prender a Miolo_Ensaio-filmico_(GRAFICA).indd 23Miolo_Ensaio-filmico_(GRAFICA).indd 23 14/01/2014 10:11:3014/01/2014 10:11:30 24 RAFAEL CHRISTOFOLETTI uma narrativa linear, pois a narrativa linear é uma fixação necessariamente, toma um principio de deformação por uma verdadeira conformação. Então a origem de um fato ou de uma história, seu desenvolvimento e seu fim, sempre elegem pontos de partida e de chegada arbitrários do ponto de vista das razões intensivas da vida. Ora, tudo o que se trata é de encontrar justamente essas razões de potência da vida. São essas razões ou linhas de força que traçam as séries, e não origens, finalidades arbitrariamente eleitas a partir de um bom senso e de um senso comum. Reportar criação inédita, invenção de expressão, e não enquadramento em clichês. Documentar constituição de narrativas não lineares e não prisioneiras de representa- ções. Veia crítica permanente – descontrair os clichês até onde nos tomamos por originais e inovadores. Como? É um exercício critico. Fazer com que na expressão do acon- tecimento ao reportar a esse campo expressivo, investir a expressão como uma fonte permanente de retransmissão da força que ela exprime. Procuro com esse remeter, transportar, reportar a partir do que as imagens mobilizam e provocam a ler. Em outras palavras, trata-se de uma busca particular de criação de expressão não linear e produção de sentidos a partir da concepção de produção cinematográfica e dos problemas suscitados pelos planos singulares produzidos por usuários, estagiários e pelo próprio pesquisador, e materializados textualmente na montagem de cenas a partir do que se chamou aqui de plano-fragmentos, e que no caso versam acerca da loucura, da reforma psiquiátrica em tempos de sociedade de controle. Na produção cinematográfica, o argumento e a sinop- se são considerados os primeiros passos depois da ideia inicial do filme que se quer realizar, e ocorrem na pré- -produção. Enquanto a sinopse é uma descrição sintética Miolo_Ensaio-filmico_(GRAFICA).indd 24Miolo_Ensaio-filmico_(GRAFICA).indd 24 14/01/2014 10:11:3014/01/2014 10:11:30 ENSAIO-FÍLMICO 25 que não costuma ultrapassar algumas linhas, o argumento irá ser o seu desenvolvimento e, geralmente, já é uma tarefa delegada ao roteirista. É nessa etapa de preparação que se realizam as avaliações logísticas e técnicas que irão definir as características do filme, seja em relação ao seu estilo mise-en-scène (movimentação e posicionamento no set de filmagem), seja em relação ao seu visual, ao tom da atuação dos personagens etc. Nesse período ganha des- taque também o produtor, que tem o papel de planejar e elaborar um cronograma de atividades com datas e prazos meticulosamente calculados. Há também a atuação de outros responsáveis de área, como fotógrafo, diretor de arte, diretor de som, entre ou- tros, que apresentam suas propostas para o diretor do filme, dado um determinado roteiro, mas, sobretudo, um orçamento. A partir daí o diretor vai escolher: ato- res, locações,13 decupagens,14 paleta de cores,15 figurinos, cenários, detalhes de som etc. Ao passo que, ao fim da etapa de pré-produção de um filme, já se tem um roteiro técnico pronto e minu- ciosamente pensado (principalmente no que refere ao quê, como, quando, onde e com quem filmar), nesse EF a proposta é aberta. Em princípio foi pensado dar continuidade às sessões de cinema do Caps assistindo a um filme que fosse de escolha dos usuários, para que então se partisse para as oficinas de produção de imagens, onde as câmeras seriam disponibilizadas nas mãos dos usuários, sem um roteiro prévio ou um direcionamento em relação ao que deveria 13 Locais de filmagens que não o estúdio. 14 Definições concernentes às cenas (diálogos e duração), posições de câmeras, lentes, movimentação de atores, tipos de planos, constru- ção de cena plano a plano etc. 15 Discussão que aos diretores de arte do filme a partir de uma con- cepção de filme pensada (realista, caricatural, de suspense...). Miolo_Ensaio-filmico_(GRAFICA).indd 25Miolo_Ensaio-filmico_(GRAFICA).indd 25 14/01/2014 10:11:3014/01/2014 10:11:30 26 RAFAEL CHRISTOFOLETTI ser filmado. As produções imagéticas seriam decorrentes desse encontro, que, em alguns casos, significou o primeiro contato do usuário com uma câmera.16 A possibilidade de um trabalho com a perspectiva de sair da esfera do espectador para a da produção propria- mente dita (material e imaterial) mobilizou o serviço e contou com o apoio (entusiasmado) de usuários, familiares, profissionais e, sobretudo, da coordenação do serviço, o que implicou a ocorrência das oficinas no Caps e viagem ao município de São Paulo. Em razão da IV Feira Estadual de Economia Solidária e Saúde Mental, logo na semana seguinte à realização da proposta das oficinas, a coordenação do serviço sugeriu antecipar as oficinas. Continuaríamos com as sessões de cinema e as oficinas no serviço da mesma maneira, mas com a diferença da antecipação das produções na viagem. A ideia, bem recebida pelos usuários, propiciou uma potente experiência para além do espaço institucional e sanitário do Caps. A proposta levada pelo pesquisador foi logo de início modificada, incorporando as vozes dos diferentes ato- res – envolvidos com o objetivo de abrir possibilidades para emergência do novo –, aberta ao acontecimento, nem que por isso tivesse que mudar os planos do cronograma previamente estabelecido, como na inversão das ativida- des relacionadas às sessões de cinema e às oficinas de produção de imagens. Após as produções imagéticas em São Paulo – dos usuários, estagiários e mesmo do próprio pesquisador –, seguiram-se as sessões de cinema com os filmes Bicho de sete cabeças, de Laís Bodanzky, e A vida é bela, de Ro- 16 Tal proposta fora feita à coordenação do serviço que apostou na ideia e sugeriu a apresentação na assembleia semanal de usuários e trabalhadores do serviço. Miolo_Ensaio-filmico_(GRAFICA).indd 26Miolo_Ensaio-filmico_(GRAFICA).indd 26 14/01/2014 10:11:3014/01/2014 10:11:30 ENSAIO-FÍLMICO 27 berto Benigni, assim como as oficinas no próprio Caps realizadas em três encontros, sendo um deles em uma das assembleias semanais do serviço. Esse momento de preparação da produção cinema- tográfica – que geralmente é a mais extensa do proces- so – correspondeu nesse ensaio-fílmico também ao que chamamos de pré-produção, mas que, a despeito de um planejamento minucioso naquele, aqui apresenta o percurso que levou à tessitura do presente trabalho, realizado a partir e com imagens de usuários, estagiários e profissionais do Centro de Atenção Psicossocial (Caps I) do município de Santa Gertrudes. De certa maneira, pode-se dizer que essa pré-produção rompe com uma lógica tradicional de elaboração e estruturação do texto científico na medida em que adquire maior expressão e extensão que o usual. Miolo_Ensaio-filmico_(GRAFICA).indd 27Miolo_Ensaio-filmico_(GRAFICA).indd 27 14/01/2014 10:11:3014/01/2014 10:11:30 Miolo_Ensaio-filmico_(GRAFICA).indd 28Miolo_Ensaio-filmico_(GRAFICA).indd 28 14/01/2014 10:11:3014/01/2014 10:11:30 TRAVESSIA DE EXPERIMENTAÇÃO Como estudante de Psicologia na Faculdade de Ciências e Letras da Universidade Estadual Paulista (Unesp) cam- pus de Assis (SP), realizei um estágio extracurricular na Penitenciária do Município de Assis. Naquele momento e no contexto daquela experiência, acabei me envolvendo com temáticas acerca dos efeitos do “poder sobre a vida” que, para mim, se configurava com bastante intensidade na imagem da prisão, como uma das maiores expressões do poder da superestrutura nos processos de subjetivação. Como não havia, até então, nenhum vínculo entre a Universidade e a Instituição, consegui um estágio extra- curricular junto ao setor psicossocial da Penitenciária de Assis. Nessa atividade de estágio, participava de encontros com a equipe técnica (psicólogas e assistentes sociais), agentes penitenciários, diretores (geral e de segurança) e, em menor medida, com os presos. Esses encontros tinham como finalidade compreen- der a dinâmica da instituição no sentido de um melhor entendimento das relações de poderes nela presentes. Os encontros com os presos só ocorriam com a presença da psicóloga e em parlatório (espaço de atendimento sepa- Miolo_Ensaio-filmico_(GRAFICA).indd 29Miolo_Ensaio-filmico_(GRAFICA).indd 29 14/01/2014 10:11:3014/01/2014 10:11:30 30 RAFAEL CHRISTOFOLETTI rado por grades). Esses atendimentos tinham como foco central a aplicação de testes psicológicos para as avaliações psicológicas que serviriam de subsídios para os chamados exames criminológicos. Vale salientar que essas práticas eram questionadas pela equipe, que acreditava que outros tipos de atividades/trabalhos poderiam ser desenvolvidos. A aplicação desses testes se deve em razão da Lei de Execução Penal (LEP) de 1994, que instituiu o exame criminológico a ser realizado por psicólogos, psiquiatras e assistentes sociais (equipes técnicas) do Sistema Prisional, com o objetivo de avaliar se o preso merece1 ou não rece- ber a progressão de regime. Tal exame, que oferece um embasamento teórico-técnico para as decisões judiciais, verifica o bom comportamento e o nível de readequação social do preso e reforça um poder de disciplinarização dos corpos. Solicitado pelo juiz, parte-se da premissa de que esses profissionais teriam a capacidade de prever se os presos irão fugir ou cometer outros crimes caso recebam o benefício de liberdade condicional (uma antecipação da liberdade ao condenado, que cumpre sua pena privativa de liberdade e se enquadra em determinadas condições durante certo tempo) ou regime semiaberto (que também é obtido em razão de um enquadramento em determinadas condições exigidas e refere-se à liberação para que o preso possa trabalhar durante o dia, sendo obrigado a voltar à noite para a instituição). Outro espaço de intervenção para o psicólogo na insti- tuição era o da clínica individual – via parlatório. Espaço que, contudo, ficava à mercê do seu papel de avaliador exigido pelos exames criminológicos. Os limites, como 1 O termo faz referência ao poder dos respectivos profissionais em definir uma condição futura ao preso, o que é feito, em grande me- dida, a partir da análise de seus antecedentes e sua personalidade. Miolo_Ensaio-filmico_(GRAFICA).indd 30Miolo_Ensaio-filmico_(GRAFICA).indd 30 14/01/2014 10:11:3014/01/2014 10:11:30 ENSAIO-FÍLMICO 31 observados pela equipe técnica e já salientados antes, da atuação do profissional psicólogo na instituição, assim como a dificuldade de contato com os internos deslocaram-me no ano seguinte para a escola da unidade; lá pude desen- volver o estágio para a disciplina de Psicologia Comuni- tária, estreitando, assim, a relação entre a Universidade e a Penitenciária. Próxima ao pavilhão dos presos, distante da área ad- ministrativa e técnica da unidade, a escola era trancada e destrancada pontualmente nos horários de suas atividades. No entanto, constituía-se em um dos poucos espaços de vida, em um lugar que se caracterizava pelo que podemos chamar de vida (des)potencializada.2 Ali, na escola, os encontros com os detentos eram possíveis, potencializando produções de sentidos e afetos. Esses encontros eram propiciados pelo programa de educação de jovens e adultos, desenvolvido pela Fundação de Amparo ao Preso (Fundap). Eram realizadas atividades/ oficinas de sensibilização, dinâmicas de grupo e grupos de discussões, com temas eram ligados à violência, direitos humanos, sexualidade, desigualdade social. Com o auxílio conceitual de autores como Foucault, Deleuze, Guattari, Rolnik, tal experiência me possibilitou pensar na problemática do poder para além dos muros da penitenciária, para além de sua dimensão macro, do que em princípio parecia ser central para mim: a questão da superestrutura como determinante dos processos de subjetivação. Não que as relações no âmbito macro não 2 O termo vida (des)potencializada, assim como a discussão se referen- te ao exame criminológico, faz referência ao trabalho apresentado e publicado no Congresso de Psicologia de Assis O Sistema Prisional e o corpo (des)potencializado, no ano de 2007, por Flávia Augusta Bueno, Rafael Christofoletti e Ricardo Sparapan Pena, acerca da possibilidade de a equipe técnica ter uma perspectiva para além da avaliação desconstruindo políticas de aprisionamentos dos corpos. Miolo_Ensaio-filmico_(GRAFICA).indd 31Miolo_Ensaio-filmico_(GRAFICA).indd 31 14/01/2014 10:11:3014/01/2014 10:11:30 32 RAFAEL CHRISTOFOLETTI sejam importantes e constitutivas, mas se faz fundamental pensá-las em consonância com a esfera micropolítica, no campo de uma analítica das formações do desejo no campo social – de uma biopolítica menor, o que, por exemplo, Guattari denomina enquanto molar e molecular. Eu e Gilles Deleuze sempre tentamos cruzar essa opo- sição com uma outra, a que existe entre micro e macro. As duas são diferentes. O molecular como processo pode nascer no macro. O molar pode se instaurar no micro. O problema que você está colocando não se reduz apenas a dois níveis, o molecular e o molar (nível de políticas de constituição das grandes subjetividades). Essa redução não nos permite pensar problemas como esse da indivi- dualidade, identidade e singularidade. (Guattari; Rolnik, 1986, p.128) Foucault (1999a) ressalta a constituição do exercício de um novo tipo de poder que, de certo, tem ligação com um processo de mudança de regime político (séculos XVIII e XIX), mas que tem a ver com sua capilaridade (micros- cópica) no sentido de que atinge os indivíduos em sua forma de agir, pensar e ser. A prisão, por exemplo, criada em princípio com a ideia de ser um projeto de transformação de indivíduos (em gente honesta) fracassa e se torna uma fábrica de produção de criminosos. Isso ocorre em meio a um movimento de moralização sobre a população, no século XIX – o povo, então, compreendido como um sujeito moral deveria ser separado dos perigosos delinquentes, assim como dos loucos doentes. Foi então que houve, como sempre nos mecanismos de poder, uma utilização estratégica daquilo que era um inconveniente. A prisão fabrica os delinquentes, mas os Miolo_Ensaio-filmico_(GRAFICA).indd 32Miolo_Ensaio-filmico_(GRAFICA).indd 32 14/01/2014 10:11:3014/01/2014 10:11:30 ENSAIO-FÍLMICO 33 delinquentes são úteis tanto no domínio econômico como no político. Por exemplo, no proveito que se pode tirar da exploração do prazer sexual: a instauração, no século XIX, do grande edifício da prostituição, só foi possível graças aos delinquentes que permitiram a articulação entre o prazer sexual quotidiano e custoso e a capitalização. (Foucault, 1999a, p.132) A mudança no regime geral de poder, do poder de soberania para o biopoder, vai implicar uma nova relação com a vida, a morte e o corpo: “do faz morrer e deixa viver” para o “faz viver e deixa morrer”. Antes eram as fábricas, as escolas, hospitais, prisões que promoviam mecanismos de dominação, assujeita- mento e disciplinarização sobre os corpos, incidindo di- retamente nos indivíduos. O biopoder, agora, vai agir mais no controle e na vigilância, destinando-se como diz Pelbart (2003, p.56) a “produzir forças e as fazer crescer e ordená-las, mais do que barrá-las ou destruí-las”, como fazia o poder de soberania até mesmo por ser muito mais rentável e eficiente (a vigilância à punição). Esse novo regime de poder foca mais a gestão da vida, atuando na “otimização de forças que ele submete” (ibidem) que de fato exigir a sua morte. Não se trata mais de defender a hegemonia de um Estado a partir da intervenção nos indivíduos, mas de garantir a sobrevivência de uma população atuando sobre toda a espécie, regulando seus deslocamentos no território. Se as disciplinas se dirigiam ao corpo, ao homem-cor- po, a biopolítica se dirige ao homem vivo, ao homem- -espécie. Se a disciplina, como diz Foucault, tenta reger a multiplicidade dos homens enquanto indivíduos sujeitos a vigilância, ao treino, eventualmente à punição, a bio- política se dirige à multiplicidade dos homens enquanto Miolo_Ensaio-filmico_(GRAFICA).indd 33Miolo_Ensaio-filmico_(GRAFICA).indd 33 14/01/2014 10:11:3014/01/2014 10:11:30 34 RAFAEL CHRISTOFOLETTI massa global, afetada por processos próprios da vida, como a morte, a produção, a doença. (ibidem, p.57) Há, então, um conjunto de estratégias pelas quais o poder investe na vida humana, seja em sua dimensão biológica, seja em suas dimensões subjetiva e social. A medicina, por exemplo, é apontada por Foucault (1999a) em O nascimento da medicina social como uma estratégia biopolítica.3 A convergência entre a biopolítica e o capitalismo pós-industrial se expande para outros domínios da vida cotidiana. Reproduzem-se não apenas mercadorias, mas nos modos de vida, uma maneira de moldar o corpo e a subjetividade a uma “norma, mas também de regular as indeterminações que ameaçam a espécie humana, a partir de técnicas e tecnologias de modulação” (Brasil, 2008, p.7) – a passagem da disciplina à biopolítica. Partindo da compreensão de Simondon da vida en- quanto uma “espécie de errância do ser, um processo por meio do qual a vida se torna exático e se defasa de si mesmo” (Brasil, 2008), define o conceito de modulação, processo de defasagem, da variação da vida que seria o foco de atuação da biopolítica, regulando-a, adequando-a, em outras palavras, modulando essa modulação da vida. Já para Deleuze (2008b) estaríamos em meio a um processo de crise das instituições (prisão, hospital, fábrica, escola, família) e diante da implantação (progressiva) desse novo regime de dominação – a passagem das sociedades disciplinares às sociedades de controle – no qual os meca- nismos de controle passam a rivalizar com os mais duros confinamentos. 3 O termo “biopolítica” aparece pela primeira vez na obra de Michel Foucault (1999a; 1999b) na conferência O nascimento da medicina social, de 1974, e também no livro Microfísica do poder. Miolo_Ensaio-filmico_(GRAFICA).indd 34Miolo_Ensaio-filmico_(GRAFICA).indd 34 14/01/2014 10:11:3014/01/2014 10:11:30 ENSAIO-FÍLMICO 35 Os confinamentos são “moldes”, distintas moldagens, mas os controles são uma “modulação” como uma molda- gem auto-deformante que mudasse continuamente a cada instante, ou como uma peneira cujas malhas mudassem de um ponto a outro. (Deleuze, 2008b, p.221) “P. Treta” Após concluir a Faculdade e então formado como Psicó- logo, trabalhei na Penitenciária III (P3) de Hortolândia (SP) junto ao setor psicossocial. Localizada no maior complexo penitenciário da América Latina, era conhecida também como “P. Treta” em razão de seu histórico de violência, morte e rebeliões, sobretudo na década de 1990. Lá desen- volvíamos atividades de atendimentos individuais (com ou sem parlatório) e em grupos (em galpões de trabalho desativados) com presos e seus familiares. Apesar dos atendimentos, a maioria da solicitação dos presos era por trabalho e educação, ambas negligenciadas pelo Setor de Segurança da unidade prisional sob o mo- tivo de “questões de segurança”, visto que a escola e os galpões de trabalho se encontravam em prédios anexos aos pavilhões. Na época, o Setor Psicossocial inclusive organizou (com os presos)4 uma lista com centenas de interessados em estudar (no ensino fundamental e médio). A lista foi encaminhada aos respectivos dirigentes da unidade, mas 4 O movimento do abaixo-assinado foi realizado em conjunto com os presos por meio do Grupo de Esportes, do qual participavam psicólogo e assistente social (via ONG) e os líderes dos dois pavilhões de pre- sos – cada um com cerca de setecentas pessoas –, representantes, na verdade, da facção criminosa Primeiro Comando da Capital (PCC), visto que o esporte é considerado, pelos presos, uma das atividades mais importantes na prisão. Miolo_Ensaio-filmico_(GRAFICA).indd 35Miolo_Ensaio-filmico_(GRAFICA).indd 35 14/01/2014 10:11:3014/01/2014 10:11:30 36 RAFAEL CHRISTOFOLETTI sem sucesso – a escola permaneceu fechada, pelo menos até o final da vigência do convênio da Secretaria de Admi- nistração Penitenciária (SAP) com a ONG Associação de Proteção e Assistência Carcerária (Apac), que perdurou até junho de 2007. Com a escola fechada, e sem prazos para o reinício de suas atividades, foi criada uma oficina de leitura – Cultura Marginal: Cidadania e Direitos Humanos –, um dos poucos momentos em que uma pequena parcela dos presos tinha a oportunidade de sair de sua cela, pois na maior parte do tempo permaneciam trancados em celas superpovoadas, e o banho de sol5 ficava restrito a apenas três horas por dia. A oficina, desenvolvida por psicólogo e assistente social, transcorria no contra turno ao banho de sol. Eram trazi- dos textos, sobretudo da coleção “Literatura Marginal”, da revista Caros Amigos, que eram lidos e discutidos em grupos com cerca de quinze pessoas. Apesar de o número de participantes significar uma fração mínima dos interessados na escola, ele possibilita- va uma fenda, uma linha de fuga no rígido e controlado universo da penitenciária. De início, partiu-se da lista dos interessados em cursar a escola para, depois, em razão do grande número, de forma aleatória, convidar pessoas já alfabetizadas. A proposta de realizar ao menos duas oficinas (uma para cada pavilhão da unidade) logo se esvaiu, ante a negativa imposta pelo setor de segurança. Um dos motivos foi, de fato, o recrudescimento das normas de segurança dentro das unidades prisionais do 5 Talvez esteja aí razão da grande demanda da população carcerária por trabalho e educação: uma oportunidade de saírem das celas superlotadas (com mais de vinte presos) onde ficavam em torno de 21 horas por dia. Miolo_Ensaio-filmico_(GRAFICA).indd 36Miolo_Ensaio-filmico_(GRAFICA).indd 36 14/01/2014 10:11:3014/01/2014 10:11:30 ENSAIO-FÍLMICO 37 Estado depois do fatídico maio de 2006.6 Mesmo com as inúmeras dificuldades e impedimentos, constituía-se um espaço para a leitura e problematização de uma série de questões desigualdade social, justiça, criminalidade, pobreza, facções criminosas, opressão, entre outros – o texto servia como dispositivo para produção de sentidos, muitas vezes, materializados em criação de textos, músicas e poesias, pelos próprios presos. 6 Em maio de 2006, a facção criminosa Primeiro Comando da Capital (PCC) promoveu uma megarrebelião em 74 unidades prisionais, além de uma série de ações fora dos presídios, como ataques a policiais, agências bancárias, ônibus e instituições públicas em várias cidades do estado de São Paulo. Estudo da organização não governamental (ONG) Justiça Global aponta três causas para os ataques: a corrupção policial na relação com a facção criminosa; a falta de estrutura de combate ao crime no estado; e, como estopim, a transferência de 765 chefes do grupo, às vésperas do Dia das Mães de 2006, para a penitenciária de Presidente Wenceslau (SP). Como resposta policial, “foram 493 pessoas mortas em pouco mais de uma semana, das quais 6% tinham antecedentes criminais. De acordo com o relatório, 122 casos possuem característica de exe- cução sumária pela polícia – sem que tenha havido esforços para apontar culpados. Foram 43 policiais mortos”. Disponível em: . Acesso em: 10 abr. 2012. Miolo_Ensaio-filmico_(GRAFICA).indd 37Miolo_Ensaio-filmico_(GRAFICA).indd 37 14/01/2014 10:11:3014/01/2014 10:11:30 Miolo_Ensaio-filmico_(GRAFICA).indd 38Miolo_Ensaio-filmico_(GRAFICA).indd 38 14/01/2014 10:11:3014/01/2014 10:11:30 UM ENCONTRO MUITO LOUCO Meu primeiro encontro com a saúde mental se deu em razão de uma visita a São Paulo em dia comemorativo ao Dia da Luta Antimanicomial,1 quando conheci Austregé- silo Carrano Bueno – figura emblemática do Movimento da Luta Antimanicomial – que, de baixo de uma tenda, vendia seus livros e contava, de forma contundente e emocionada, sua experiência de internação nos hospitais psiquiátricos de Curitiba e Rio de Janeiro. “Estar lá é ter o físico dopado e a alma ao deleite de Satã” diz Carrano em autógrafo no seu livro/depoimento Canto dos malditos, obra que inspirou o filme Bicho de sete cabeças. O encontro com Carrano potencializou reflexões e sensações experienciadas anteriormente com a proble- 1 O dia 18 de maio é considerado o Dia da luta antimanicomial e faz referência ao Encontro dos Trabalhadores da Saúde Mental realizado no dia 18 de maio de 1987 – considerado um marco importante do Movimento da Luta antimanicomial. Nesse dia (ou nos dias pró- ximos a essa data) ocorrem pelo país atividades culturais, políticas, acadêmicas e esportivas, com o objetivo de envolver a sociedade com a discussão da temática da loucura e da Reforma Psiquiátrica. Miolo_Ensaio-filmico_(GRAFICA).indd 39Miolo_Ensaio-filmico_(GRAFICA).indd 39 14/01/2014 10:11:3014/01/2014 10:11:30 40 RAFAEL CHRISTOFOLETTI mática prisional, do encarceramento, acerca dos processos de produção de subjetividade e de modos de ser na vida. Um maior envolvimento com a loucura, no entanto, se deu a partir de 2007, quando, após aprovação em concurso público, passei a trabalhar em um Centro de Atenção Psicossocial2 (Caps) no município de Santa Gertrudes (SP).3 O serviço recém-iniciado (em fevereiro de 2007) con- tava com uma equipe nova, aberta, e sem experiência no campo da saúde mental, à exceção da coordenadora, que já trabalhara e possuía mestrado na área de Saúde Mental. Essa suposta falta de experiência, no entanto, pode ter sido o que, curiosamente, contribuiu para a construção de um serviço mais aberto e comprometido com uma “clínica ampliada”, na medida em que, enquanto profissionais recém-concursados, mobilizaram-se, de fato, pelo desafio da implementação (e construção) de um serviço novo com tais características. A clínica ampliada surge como uma crítica ao processo de medicalização na lida com o sofrimento psíquico e parte da premissa de que apenas o diagnóstico não basta para determinar o tipo de tratamento a ser proposto para uma pessoa, tendo em vista que o diagnóstico tem como base 2 Os Centros de Atenção Psicossocial são instituições consideradas fundamentais para a implementação da Política Nacional de Saúde Mental. Amparada pela Lei n.10.216/02, ela busca instituir um “modelo de atenção à saúde mental aberto e de base comunitária. Isto é, que garante a livre circulação das pessoas com transtorno mentais pelos serviços, comunidade e cidade, e oferece cuidados com base nos recursos que a comunidade oferece” (site do Ministério da Saúde). 3 Santa Gertrudes é um município vizinho, e antigo distrito, de Rio Claro (SP). Sua autonomia política e administrativa data de 1948. Destacou-se, no século XIX, pela produção de cana-de-açúcar e, posteriormente, com o café (sobretudo da Fazenda Santa Gertru- des). Atualmente pertence a um dos maiores polos cerâmicos das Américas. Miolo_Ensaio-filmico_(GRAFICA).indd 40Miolo_Ensaio-filmico_(GRAFICA).indd 40 14/01/2014 10:11:3014/01/2014 10:11:30 ENSAIO-FÍLMICO 41 um princípio universalizante e generalizável a todos, e que as pessoas são únicas, singulares. A cartilha da Política Nacional de Humanização (PNH) Humaniza SUS, de 2004, explicita a ideia de clínica ampliada: – Um compromisso radical com o sujeito doente visto de forma singular; – Assumir a responsabilidade sobre os usuários do serviço de saúde; – Buscar ajuda em outros setores, ao que se dá o nome de intersetorialidade; – Reconhecer os limites do conhecimento dos profis- sionais de saúde e das tecnologias por ele emprega- das – tarefa muito difícil para esses profissionais – e buscar outros conhecimentos em diferentes setores [...]; – Assumir um compromisso ético profundo [...]. (Bra- sil, 2004, p.8) Apesar da falta de recursos financeiros, a liberdade de ação foi uma característica importante a ser destacada no Caps I Santa Gertrudes, que contou com o apoio do poder público local, que foi quem, inclusive, deu o “pontapé inicial” para a constituição do serviço. O Caps contava com agente administrativa, auxiliar de enfermagem, auxiliar de limpeza e cozinha, enfermeira, médico especialista em psiquiatria, médico generalista, três psicólogo(a)s e uma terapeuta ocupacional (coordenadora do serviço). A seguir listamos alguns dos procedimentos cotidianos: – o acolhimento é o primeiro contato com o serviço que é de Porta Aberta e acolhe a pessoa no mesmo dia em que ela chega ao serviço; Miolo_Ensaio-filmico_(GRAFICA).indd 41Miolo_Ensaio-filmico_(GRAFICA).indd 41 14/01/2014 10:11:3014/01/2014 10:11:30 42 RAFAEL CHRISTOFOLETTI – a história de vida, em grande parte das vezes,4 é o segundo momento do usuário5 no serviço e ocorre geralmente em companhia de um familiar; – o técnico de referência é aquele profissional que, após o primeiro acolhimento, fica responsável pela continui- dade do acompanhamento de determinado usuário, é sua referência; – o projeto terapêutico individual se refere à construção, juntamente com o usuário, de estratégias de cuidado; – o acolhimento da crise se dá na perspectiva de evitar a internação psiquiátrica; – as atividades e recursos terapêuticos do serviço são os atendimentos individuais e em grupo com os usuá- rios, familiares, busca ativa, grupo de inserção no mercado de trabalho (cooperativa), assembleias do serviço, além das reuniões de equipe multidisciplinar e supervisões. Nesse sentido, era incentivada a proposição e o de- senvolvimento de uma série de atividades e projetos que, no caso da psicologia, extrapolavam o padrão clássico de atendimento individual de consultório: – A oficina de futsal, por exemplo, ocorria semanal- mente. Participavam do grupo usuários, técnicos, estagiários e comunidade local. Tal espaço propiciava a reinserção social dos usuários com a possibilidade de criar vínculos para além do espaço do Caps, já que 4 Isso porque não existe uma rigidez no que se refere ao ordenamento dos procedimentos do serviço que ocorrem muito em razão da di- nâmica do primeiro encontro com a pessoa em sofrimento psíquico e as possibilidades de construção de um projeto terapêutico. 5 A denominação de usuário é utilizada como forma de contrapor a ideia de paciente, daquele que se submete passivamente sem críticas a determinada recomendação de tratamento. Assim, o termo usuário vem ao encontro de uma ideia de contratualidade, no tratamento. Miolo_Ensaio-filmico_(GRAFICA).indd 42Miolo_Ensaio-filmico_(GRAFICA).indd 42 14/01/2014 10:11:3014/01/2014 10:11:30 ENSAIO-FÍLMICO 43 acontecia na quadra do principal parque público da cidade, além de disparar nos usuários o interesse em participar de eventos como as Olimpíadas dos servi- ços extra-hospitalares – o Caps I de Santa Gertrudes participou em 2008 em Casa Branca (SP) e em 2009, em Rio Claro (SP), em diferentes modalidades espor- tivas, inclusive com ganho de medalhas. – A Oficina Universidade, Ensino Superior e Profissões ocorreu com usuários que terminavam o nível médio e que, em princípio, se viam impossibilitados de cursar uma faculdade. Contribuíam para isso os mais diver- sos motivos, como: família, estigma da sociedade, experiências anteriores com a vida escolar e mesmo a falta de informações sobre o assunto. A partir do grupo, alguns usuários mobilizaram-se para prestar o Exame Nacional do Ensino Médio (Enem). – A oficina de cozinha foi uma das primeiras atividades em grupo a serem realizadas quando da abertura do Caps. No início, algumas usuárias se reuniam para, geralmente, fazer um bolo para os aniversariantes do mês. Com a minha entrada no serviço (em agosto de 2007) e em um projeto de constituição de uma incu- badora de empreendimentos econômicos solidários na Unesp, campus de Araraquara, a Incubadora de Cooperativas Populares da região Nordeste do Estado de São Paulo (Inconesp),6 estabeleceu-se uma parceira 6 Minha participação no projeto de Incubação de empreendimentos econômico-solidários se deu em função de cursar Ciências Econô- micas na Faculdade de Ciências e Letras de Araraquara desde o ano de 2006. Em 2007, um grupo de alunos dos cursos de Administração Pública e Ciências Econômicas, sob a coordenação do professor Dr. Sérgio Fonseca do Departamento de Administração Pública foram convidados pela reitoria da Unesp a constituir o Projeto Incubadora de Cooperativas Populares da região nordeste do Estado de São Pau- lo (Inconesp) com núcleos em Araraquara e Franca. Um dos grupos Miolo_Ensaio-filmico_(GRAFICA).indd 43Miolo_Ensaio-filmico_(GRAFICA).indd 43 14/01/2014 10:11:3014/01/2014 10:11:30 44 RAFAEL CHRISTOFOLETTI entre as duas instituições por meio de assessoria a esse grupo de usuárias que implicou o surgimento da cooperativa de cozinha Temperoloko: uma possi- bilidade de geração de renda (e inclusão no mercado de trabalho) para usuários, familiares (e que contou, inclusive, com pessoas da comunidade), a partir da produção e comercialização de produtos alimentícios. Com a cooperativa, o grupo participava de even- tos festivos da cidade, nos quais comercializava seus produtos, realizava visitas a outros empreendimentos econômicos solidários em saúde mental, além de par- ticipar da Feira de Economia Solidária, em Campinas (SP), e de cursos de higiene e manipulação de alimen- tos, nas cidades de Araraquara (SP) e Rio Claro (SP). – O projeto Caps Carbono Zero (CCZ) surgiu da cons- trução de um projeto terapêutico individual com um usuário, cuja fobia inicial com poluição e fumaça de cigarro disparou uma proposta de neutralização de carbono do serviço. A ideia era compensar todas as emissões de gases de efeito estufa decorrentes do funcionamento do Caps, desde a sua inauguração. O cálculo das emissões levou em conta o consumo de energia elétrica e gás da Instituição, assim como o deslocamento da equipe técnica e usuários. O CCZ recebeu apoio de esferas tanto de dentro como de fora do serviço. Em assembleia semanal realizada entre trabalhadores e usuários, a ideia ganhou um caráter coletivo com a adesão de outras pessoas do serviço. Apoio importante também se deu com a Diretoria do Meio Ambiente do município, que auxiliou na sua execução, oferecendo suporte técnico e material. assessorados foi o grupo de usuárias do Caps de Santa Gertrudes que, além da assessoria técnica pôde contar com recursos materiais como freezer industrial, carrinho para lanches e estufa. Miolo_Ensaio-filmico_(GRAFICA).indd 44Miolo_Ensaio-filmico_(GRAFICA).indd 44 14/01/2014 10:11:3014/01/2014 10:11:30 ENSAIO-FÍLMICO 45 Assim, foram plantadas cerca de oitenta mudas de árvores no Parque municipal Ruy Raphael Rocha, em outubro de 2008. Com a neutralização das emissões, o projeto contribuiu para a restauração do parque através da preservação do solo, água e biodiversidade – uma iniciativa que fez do Caps I Santa Gertrudes o primeiro serviço de saúde mental extra-hospitalar ecologicamente neutro em emissões de carbono no Brasil. A sala de TV certamente era um dos lugares mais dis- putados do serviço, por congregar sempre grande parte dos usuários para assistir a desenhos, novelas, telejornais, filmes etc. – um potente espaço de encontros que gera- va grandes discussões para se definir ao que assistir. A assembleia, por vezes, acabava se tornando palco para resolução desses conflitos, o que implicou a construção do projeto de sessões de cinema – uma iniciativa de uma usuária em decorrência de seu interesse, por vezes não respeitado, por alguns dos usuários que frequentavam a sala de TV, em assistir a filmes. Estipulavam-se, então, períodos para a execução das sessões, que contavam com usuários e técnicos. As escolhas eram livres e as temáticas dos filmes, as mais diversas. O entusiasmo dos usuários em relação às sessões, aliás, foi um dos motivos que mo- bilizaram o presente trabalho, ampliando a relação com a imagem para a esfera da produção imagética. Miolo_Ensaio-filmico_(GRAFICA).indd 45Miolo_Ensaio-filmico_(GRAFICA).indd 45 14/01/2014 10:11:3014/01/2014 10:11:30 Miolo_Ensaio-filmico_(GRAFICA).indd 46Miolo_Ensaio-filmico_(GRAFICA).indd 46 14/01/2014 10:11:3014/01/2014 10:11:30 PRODUÇÃO Miolo_Ensaio-filmico_(GRAFICA).indd 47Miolo_Ensaio-filmico_(GRAFICA).indd 47 14/01/2014 10:11:3014/01/2014 10:11:30 Miolo_Ensaio-filmico_(GRAFICA).indd 48Miolo_Ensaio-filmico_(GRAFICA).indd 48 14/01/2014 10:11:3014/01/2014 10:11:30 ENSAIO-FÍLMICO: O QUE AS IMAGENS NOS PROVOCAM A LER Enquanto na pré-produção cinematográfica o roteiro técnico é produzido a partir de um planejamento minucioso acerca de planos, atores, locações e figurinos escolhidos, afinal é preciso minimizar os custos do projeto ao extremo, com vistas à rentabilidade do projeto – daí a razão desse planejamento logístico prévio com a divisão e comparti- mentalização de saberes e fazeres –, a etapa de produção corresponde às filmagens propriamente ditas. A decupagem ocorrida na pré-produção vai orientar, de forma detalhada, como ocorrerão as filmagens, determi- nando como os planos se relacionarão com seus elementos no enquadramento, assim como na relação com os demais planos no conjunto de sua montagem. Neste ensaio-fílmico, contudo, as filmagens são rea- lizadas sem um planejamento prévio delimitado por um roteiro – sem decupagem –, mas são fruto do encontro com a câmera, que, como já mencionado, acaba sendo, muitas vezes, o primeiro contato do usuário com esse tipo de equipamento. Dessa maneira, produzem-se planos úni- cos, singulares, com uma única tomada, não passíveis de repetição. Miolo_Ensaio-filmico_(GRAFICA).indd 49Miolo_Ensaio-filmico_(GRAFICA).indd 49 14/01/2014 10:11:3014/01/2014 10:11:30 50 RAFAEL CHRISTOFOLETTI A questão que se impôs, a partir desse momento, foi como trabalhar com essas imagens no sentido de um docu- mentar, reportar sem cair na esfera de uma interpretação ou mesmo utilidade.1 Procurei, então, produzir leituras a partir dos respectivos planos/vídeos produzidos – a imagem como outro. Em Nietzsche & a educação, Larrosa (2002) traz alguns questionamentos importantes acerca da experiência da leitura que acredito serem interessantes para se pensar a produção de leituras a partir das imagens. Segundo ele, ultimamente a leitura tem se caracterizado pela pressa e utilidade. Em vez de nos entregarmos à experiência da leitura, tornamo-nos leitores profissionais lendo, quase sempre, com uma determinada utilidade – “uma atividade na qual o que se lê é meramente apropriado em função de sua utilização apressada para a elaboração de outro pro- duto que deverá, por sua vez, se consumir rapidamente” (Larrosa, 2002, p.14). O ato de ler é tomado, então, por uma lógica econômica de trade-off,2 de troca, na qual previamente determinamos um objetivo específico para cada leitura na tentativa de obter algo para determinado fim, já dado – a atividade da leitura enquanto uma espécie de ação econômica otimizadora. Da mesma maneira, por exemplo, se faz com o cine- ma e com as leituras dos filmes. Se um professor passa 1 Essa perspectiva de trabalhar com a imagem de maneira um tan- to incomum ao que normalmente se faz, sobretudo na educação tem sido objeto de trabalho do I-mago: laboratório da imagem, experiência e criação – grupo de professores e alunos da graduação e pós-graduação da Unesp de Rio Claro. 2 Trade-off é uma expressão da economia utilizada para caracterizar uma situação em que há conflito de escolha e se caracteriza como uma ação econômica que visa resolver determinado problema, mas acarreta outro, obrigando a uma escolha. Tal escolha, inclusive, é objeto de mensuração da teoria econômica convencional em funções de utilidades. Miolo_Ensaio-filmico_(GRAFICA).indd 50Miolo_Ensaio-filmico_(GRAFICA).indd 50 14/01/2014 10:11:3014/01/2014 10:11:30 ENSAIO-FÍLMICO 51 determinado filme para seus alunos, ora está almejando uma melhor eficiência do processo de aprendizagem (no sentido tecnicista do termo), ora o faz com vistas a tornar seus alunos críticos no sentido de formar para a cidadania. Dificilmente tal prática é compreendida sob a óptica de produção de novos sentidos. Mortifica-se a experiência decorrente do encontro com o filme na medida em que se direciona o olhar, preenchendo teoricamente essa re- lação com a imagem, sendo que a “experiência da leitura não consiste somente em entender o significado do texto, mas em vivê-lo” (Larrosa, 2002, p.17), e a experiência da leitura de um filme não consiste somente em entendê-lo, interpretá-lo e entender seu significado, mas experienciá-lo. Análise semelhante é a de Deleuze e Guattari (2000) no texto Introdução: rizoma, no qual distinguem o que de- nominam a lógica arborescente (radícula, raiz fasciculada) da rizomática (na perspectiva de uma teoria das multipli- cidades), caracterizando a figura do livro em três tipos. O livro-raiz viria ao encontro dessa lógica arborescente, na medida em que imita o mundo, a arte, a natureza, e traz consigo uma interioridade, seguindo a linha da reflexão e da interpretação. O livro radícula (ou fasciculada), apesar de abolir sua raiz principal, “sua unidade subsiste ainda como passado ou porvir” (Deleuze; Guattari, 2000, p.14), e, ao conceder uma linearidade à multiplicidade, cristaliza- -se em uma estrutura, diminuindo suas possibilidades de combinação, ou seja, o livro continuaria ainda nessa acepção, enquanto imagem do mundo (não rompendo com o dualismo sujeito-objeto). O livro seria um agenciamento, e não uma imagem do mundo. Ele é uma multiplicidade, e como tal não possui um sujeito ou objeto, mas matérias diferentemente for- madas, de datas e velocidades muito diferentes. E mais: ao atribuirmos um sujeito ao livro desconsideramos todo o trabalho das matérias e a exterioridade de suas correlações. Miolo_Ensaio-filmico_(GRAFICA).indd 51Miolo_Ensaio-filmico_(GRAFICA).indd 51 14/01/2014 10:11:3014/01/2014 10:11:30 52 RAFAEL CHRISTOFOLETTI Não se trata, portanto, de se extrair um significado, uma compreensão, ou mesmo uma interpretação de um livro, pois, enquanto agenciamento, ele vai se conectar a outros agenciamentos (multiplicidades) que podem ou não funcionar, que podem ou não fazer passar intensidades. Tais agenciamentos envolvem necessariamente fluxos semióticos, materiais e sociais simultaneamente. Um agenciamento, contudo, é sempre agenciamento maquínico de desejo (conteúdo) e agenciamento coletivo de enunciação (expressão), ligados necessariamente um ao outro, e à sua exterioridade portadora de multiplicidades, e, ao funcionar, o agenciamento já não é mais o mesmo. O livro (ou o rizoma), então, seria composto por dife- rentes tipos de linhas de “segmentaridade, de estratifica- ção, como dimensões, mas também linhas de fuga ou de desterritorialização como dimensão máxima segundo a qual, em seguindo-a, a multiplicidade se metamorfoseia, mudando de natureza” (Deleuze; Guattari, 2000, p.32). O rizoma, então, não seria composto de unidades, mas dimensões – sistema acentrado não hierárquico e não sig- nificante, que não tem um começo ou fim, mas “sempre um meio pelo qual ele cresce e transborda” (ibidem), ou seja, ele não é objeto de reprodução, mas procede por variação, expansão, conquista, captura, picada como que um mapa que se constitui por múltiplas entradas e saídas. O rizoma se conecta a qualquer outro ponto de natureza não necessariamente semelhante. Voltando à questão da experiência, para Larrosa (2002, p.21), a experiência é o que nos passa, nos toca, nos mo- biliza. Na era da informação, muitas coisas se passam, mas poucas de fato nos acontecem, pois informação não é experiência. A obsessão pela informação, na verdade, é o que impede que as coisas nos aconteçam. Se a experiência se refere ao que nos passa, nos toca, nos mobiliza, ela depende do acontecimento, da relação Miolo_Ensaio-filmico_(GRAFICA).indd 52Miolo_Ensaio-filmico_(GRAFICA).indd 52 14/01/2014 10:11:3014/01/2014 10:11:30 ENSAIO-FÍLMICO 53 que se estabelece com a exterioridade – algo que vem de fora e que é estrangeiro a mim – ela depende de um outro. “Não existe, portanto, experiência sem o aparecimento de alguém, de algo, de um modo, de um acontecimento que seja exterior a mim” (Larrosa, 2010, p.7, tradução nossa).3 O lugar da experiência, na medida em que supõe um acontecimento (que é exterior a mim), se dá em mim, seja nas minhas palavras, ideias, representações ou sentimentos, e por isso caracteriza um movimento de ida e volta. De ida em relação à exterioridade – ao acontecimento – e volta no sentido de que tal acontecimento me afeta, produzindo efeitos e reverberações. O sujeito da experiência é, então, um sujeito “aber- to, sensível, vulnerável, exposto” (Larrosa, 2009, p.19),4 ou seja, muito mais um sujeito paciente, nos sentido de disponibilidade para o encontro do que um sujeito ati- vo, lembrando que o mesmo radical indo-europeu ex, de experiência, exterior, se remete à ideia de travessia, pas- sagem, caminho, viagem. O sujeito da experiência aqui é compreendido como um território de passagem, uma superfície de sensibilidade, bem diferente de outras con- cepções tradicionais e estruturalistas como a psicanálise. Ao pensar a educação, o autor chega a afirmar a exis- tência de uma lógica de destruição da experiência em que os aparatos educacionais “funcionam cada vez mais no sentido de tornar impossível que alguma coisa nos acon- teça” (Larrosa, 2002, p.23). Para Larrosa (2002, p.27), [...] experiência é um saber que não pode separar-se do indivíduo concreto em quem encarna. Não está, como o 3 “No hay experiencia, por tanto, sin la aparición de un alguien, o de un algo, o de un eso, de un acontecimiento en definitiva, que es exterior a mi.” 4 “abierto, sensible, vulnerable, ex/puesto” Miolo_Ensaio-filmico_(GRAFICA).indd 53Miolo_Ensaio-filmico_(GRAFICA).indd 53 14/01/2014 10:11:3014/01/2014 10:11:30 54 RAFAEL CHRISTOFOLETTI conhecimento científico, fora de nós, mas somente tem sentido no modo como configura uma personalidade, um caráter, uma sensibilidade ou, em definitivo, uma forma humana singular de estar no mundo, que é por sua vez uma ética (um modo de conduzir-se) e uma estética (um estilo). Por isso, também o saber da experiência não pode beneficiar-se de qualquer alforria, quer dizer, ninguém pode aprender da experiência de outro, a menos que essa experiência seja de algum modo revivida e tornada própria. Produzir um saber a partir da experiência com as sessões de cinema, as oficinas de produção de imagem, mas, sobretudo, com as imagens produzidas nesses encon- tros; permitir-se uma relação com a imagem como outro e compor junto: esse foi o grande objetivo dessa forma de expressão que se denominou ensaio-fílmico. Para isso, foi criada a ideia de plano-fragmentos, que são nada mais que miniensaios produzidos com imagens, textos, diálogos, filmes, músicas, enfim, minitextos, que não necessariamente seguem uma lógica narrativa linear, mas que estão aqui organizados/montados sob a forma de cenas. A seção Produção está, então, dividida em cinco ce- nas, montadas a partir de 24 plano-fragmentos. São elas: “Higienização social”, “A loucura”, “A Reforma Psi- quiátrica”, “IV Feira de Economia Solidária e de saúde mental” e “Caps – o cotidiano e a produção de loucura”. Algumas cenas têm um caráter mais imagético, outras, mais conceituais; no entanto, como já dito, ostentam, de certa forma, um caráter não linear mesmo no que diz respeito ao cronológico dos acontecimentos desse percurso.5 5 As produções da feira de economia solidária e Saúde Mental, por exemplo, estão na quarta cena enquanto as discussões acerca das sessões de cinema estão nas primeiras, e as produções no Caps na última cena. Miolo_Ensaio-filmico_(GRAFICA).indd 54Miolo_Ensaio-filmico_(GRAFICA).indd 54 14/01/2014 10:11:3014/01/2014 10:11:30 ENSAIO-FÍLMICO 55 Tais montagens apontam para a problematização de questões como a loucura e a reforma psiquiátrica em um contexto de sociedade de controle e medicalização da vida, mais particularmente, no que se refere à reprodução de uma lógica médica da loucura no âmbito da micropolítica das relações. Miolo_Ensaio-filmico_(GRAFICA).indd 55Miolo_Ensaio-filmico_(GRAFICA).indd 55 14/01/2014 10:11:3014/01/2014 10:11:30 Miolo_Ensaio-filmico_(GRAFICA).indd 56Miolo_Ensaio-filmico_(GRAFICA).indd 56 14/01/2014 10:11:3014/01/2014 10:11:30 CENA I HIGIENIZAÇÃO SOCIAL Plano-fragmento: Bicho de sete cabeças “Pai, As coisas ficam muito boas quan- do a gente esquece. Mas eu não es- queci o que você fez comigo. Eu não esqueci a sua covardia. Agora você vai me ouvir. Estou te mostrando a porta da rua pra você sair sem eu te bater. Eu lembro de uma frase que você me disse uma vez: eu cheguei onde eu cheguei e quero ver onde você vai chegar. Pois é, eu cheguei aqui. Aqui é meu lugar. Você conse- guiu. Me fez menor do que você. O seu mundo aí fora é grande demais para mim.” (filme Bicho de sete cabeças) O filme Bicho de sete cabeças, de Laís Bodanzki, ter- mina com a respectiva carta de Beto enviada a seu pai. Internado em um manicômio, Beto passa por mais uma situação de violência, que o faz colocar fogo na própria Miolo_Ensaio-filmico_(GRAFICA).indd 57Miolo_Ensaio-filmico_(GRAFICA).indd 57 14/01/2014 10:11:3014/01/2014 10:11:30 58 RAFAEL CHRISTOFOLETTI solitária – como que sua única ou última forma de exis- tência, de reexistência. A ideia da internação é utilizada no âmbito da psiquia- tria, geralmente, como uma reposta à situação de crise, Por uma decisão técnica (de gravidade) e adminis- trativo-legal (referente, de modo mais ou menos oculto, à periculosidade social e pessoal). A internação furta a pessoa ao seu contexto e a subordina a regras institucionais baseadas em uma abordagem medicalizante. Na realidade, a observação clinica limita o próprio interesse especifico à área sintomatológica e é incompatível com a vida integral do paciente. (Dell’Aqua; Mezzina, 2005, p.176) Segue, então, a música Bicho de sete cabeças de Zé Ramalho, Geraldo Azevedo e Renato Rocha, interpretada por Zeca Baleiro: Não tem pé, nem cabeça Não tem ninguém que mereça (não tem ninguém que mereça) Não tem coração que esqueça (não tem pé, não tem cabeça) Não tem jeito mesmo Não tem dó no peito (Não dá pé, não é direito) Não tem nem talvez ter feito (não foi nada, eu não fiz nada disso) O que você me fez desapareça (E você fez um) Cresça e desapareça... (Bicho de Sete Cabeças) Bicho de Sete Cabeças! E alternam-se dizeres sobre Austregésilo Carrano e da situação da saúde mental brasileira à época:1 1 O filme Bicho de sete cabeças, de Laís Bodanzky, é de 2001, ano da aprovação da Lei Paulo Delgado, que trata da Reforma Psiquiátrica. Miolo_Ensaio-filmico_(GRAFICA).indd 58Miolo_Ensaio-filmico_(GRAFICA).indd 58 14/01/2014 10:11:3014/01/2014 10:11:30 ENSAIO-FÍLMICO 59 Este filme é inspirado em fatos reais vividos por Aus- tregésilo Carrano. Carrano contou sua história no livro Canto dos Malditos. Hoje Carrano é um ativista do movimento antima- nicomial. Neste momento existem 70.000 pessoas internadas em hospitais psiquiátricos no Brasil. Falecido recentemente, Carrano foi um dos maiores símbolos da luta antimanicomial no Brasil. O motivo de sua internação foi seu pai ter encontrado um cigarro de maconha em sua jaqueta. Ficou internado anos em hos- pitais psiquiátricos (no Rio de Janeiro e em Curitiba) e com muitas sequelas... Sequelas... e... Sequelas Sequelas, não acabam com o tempo... amenizam. Quando passa em minha mente as horas de espera, sinceramente, tenho dó de mim. Nó na garganta, choro estagnado, revolta acompa- nhada de longo suspiro. Ainda hoje, anos depois, a espera é por demais agonizante. Horas, minutos, segundos, são eternidades martiri- zantes. Não começam hoje, haviam adormecido, com muito custo... co- migo. Esta espera, oh Deus!... É como nunca pagar o pecado original, Miolo_Ensaio-filmico_(GRAFICA).indd 59Miolo_Ensaio-filmico_(GRAFICA).indd 59 14/01/2014 10:11:3014/01/2014 10:11:30 60 RAFAEL CHRISTOFOLETTI E sim, ser condenado a morte várias vezes. Quem disse que só se morre uma vez? Sentidos se misturam, batidas cardíacas invadem a audição. Aspirada não é a respiração... é introchada. Os nervos já Não tremem... dão solavancos. A espera está acaban- do. Ouço barulho de rodinhas. A todo custo, quero entrar na parede. Esconder-me, fazer parte do cimento do quarto. Olhos na abertura da porta rodam a fechadura. Já não sei quem e o que sou. Acuado, tento fuga alucinante. Agarrado, imobili- zado,.. escu- to parte do meu gemido. Quem disse que só se morre uma vez? (Austregésilo Carrano, poema de abertura do livro Canto dos malditos) Quais os efeitos de um cigarro de maconha perto das violências, do sofrimento e das sequelas decorrentes da internação psiquiátrica? No caso de Carrano, tal discussão se estende para a questão da guerra às drogas, que há um bom tempo já vem mostrando seu grau de esgotamento, tanto por sua ineficácia quanto por sua perversidade, em relação à qual a experiência de Carrano é emblemática. Há mais de cinquenta anos, em 1961, a Organização das Nações Unidas convencionou o fracasso do proibicionis- mo, mas ele perdura como base de atuação de diversos países na América latina, influenciados, sobretudo, pelos Estados Unidos. Miolo_Ensaio-filmico_(GRAFICA).indd 60Miolo_Ensaio-filmico_(GRAFICA).indd 60 14/01/2014 10:11:3014/01/2014 10:11:30 ENSAIO-FÍLMICO 61 Inicialmente, merece atenção a maneira equivocada como é utilizado o termo “droga”, que já traz consigo um modo moral no trato da questão. Colocada sob o manto do dilema do que é bom ou mau, ela é diretamente associada ao ilícito e à dependência química, em prática de juízo de valor tão pobre que assusta quanto à sua demonização. Curiosamente, isso ocorre em meio a um crescente assus- tador abuso de drogas lícitas, que tem levado milhões de pessoas à dependência química de fato. É o que mostra a Junta Internacional de Fiscalização a Entorpecentes (Jife), da ONU, em relatório divulgado recentemente,2 sobre drogas, ao afirmar que: As pessoas tendem a achar que o abuso de medicamen- tos prescritos é apenas um uso inadequado de sustâncias para tratar problemas de saúde. Mas esses incidentes são frequentemente resultado de um vício que pode ser tão letal como a dependência de drogas como a heroína ou a cocaína. (Jife, 2012) Por isso, o uso da expressão “substâncias psicoativas” talvez seja mais adequado, no sentido de se tratar de subs- tâncias que de alguma maneira mobilizam ou alteram o organismo, a sensibilidade, e que não necessariamente implicam um mau encontro, como bem lembra o grande artista e ex-ministro Gilberto Gil – que afirma em entre- vista comemorativa de seu aniversário de setenta anos que utilizou frequentemente maconha até seus cinquenta anos, ressaltando seus benefícios à música popular brasileira e à bossa nova.3 2 Relatório de junho de 2012 3 Entrevista realizada em comemoração de seus setenta anos de idade, disponível em: . Miolo_Ensaio-filmico_(GRAFICA).indd 61Miolo_Ensaio-filmico_(GRAFICA).indd 61 14/01/2014 10:11:3114/01/2014 10:11:31 62 RAFAEL CHRISTOFOLETTI Desconsidera-se que substâncias como a maconha sempre estiveram presentes nas mais diferentes culturas e que não existe relato de nenhum povo sequer cujo uso não faça parte de sua história. Na verdade, foi apenas no século XX que a questão se transformou em um problema de polícia, com o combate ao tráfico e, sobretudo, ao usuário, postulando-lhe as alternativas: a prisão ou a internação. A despeito dos avanços da Reforma Psiquiátrica brasileira, há uma série de políticas repressivas em ple- na expansão, como no Estado de São Paulo, seja com a experiência da Cracolândia, seja em razão dos impres- sionantes números acerca da internação compulsória de dependentes químicos.4 4 Segundo levantamento realizado pelo jornal O Estado de S. Paulo, nos últimos oito anos, 5.103 pessoas foram internados em razão de dependência química (crack, cocaína, heroína e maconha). Número esse que aumenta para 32.719 se forem considerados demais casos psiquiátricos. Ainda segundo o jornal, esses dados são do Ministério Público Estadual, que deve ser notificado quando da internação compulsória mediante aprovação da família em um prazo de 72 horas, mas que, no entanto, não considera a existência de muitas clínicas clandestinas que não fazem tal notificação (justamente por serem irregulares – sem estrutura física e médica), o que aumenta sobremaneira esses números. Miolo_Ensaio-filmico_(GRAFICA).indd 62Miolo_Ensaio-filmico_(GRAFICA).indd 62 14/01/2014 10:11:3114/01/2014 10:11:31 Plano-fragmento: conversando com o Bicho de sete cabeças O filme sugerido pelos usuários para dar início à sessão de cinema que, em um primeiro momento, anteciparia as produções imagéticas no Caps, curiosamente, foi Bicho de sete cabeças. Com o objetivo de fazer um making of da sessão de cinema, que acabou por disparar muitas con- versações no grupo de oito usuários, fiz duas filmagens: uma antes e outra depois do filme. Atenho-me aqui à segunda, pelas intrigantes questões mobilizadas. No vídeo, a câmera balança desajeitadamente. Pos- tura pouco convencional para alguém que vai trabalhar com produção de imagens em seu mestrado. Os créditos sinalizam o fim do filme e com ele o silêncio logo inter- rompido por Simone: (1) Simone: Aconteceu tudo isso aí comigo. (2) Pesquisador: Oi!? Miolo_Ensaio-filmico_(GRAFICA).indd 63Miolo_Ensaio-filmico_(GRAFICA).indd 63 14/01/2014 10:11:3114/01/2014 10:11:31 64 RAFAEL CHRISTOFOLETTI O zoom in e o zoom out5 grosseiramente manejados entregam que, definitivamente, a técnica nas filmagens não é o forte do pesquisador. (1) Simone: Tudo o que aconteceu com esse moço aconte- ceu comigo. Tudo isso aí comigo. (2) Paula: Você não tentou se matar não, né?! (3) Simone: Só não tentei me matar. Me falavam... Não se consegue ouvir ao certo o que Simone diz, já que depois do silêncio dos créditos, o filme voltou à tela inicial do menu do DVD e, com ele, a música “Fora de si”, de Arnaldo Antunes. eu fico louco eu fico fora de si eu fico assim eu fica fora de mim eu fico um pouco depois eu saio daqui eu vai embora eu fico fora de si eu fico oco eu fico bem assim eu fico sem ninguém em mim Apesar da compreensão das falas em si ficar compro- metida, de alguma maneira, o acaso fora de si da música compõe com as conversações... (1) Simone: Fiquei quatro vezes internada. Entre a vida e a morte. Daí meu marido pedia pra tirar eu de lá... Me 5 Expressões do cinema utilizadas para definir um zoom para frente e/ou para trás. Miolo_Ensaio-filmico_(GRAFICA).indd 64Miolo_Ensaio-filmico_(GRAFICA).indd 64 14/01/2014 10:11:3114/01/2014 10:11:31 ENSAIO-FÍLMICO 65 internaram lá no Bezerra.6 Eu ia pelo plano médico depois eu ia pelo governo. Tudo isso que aconteceu com o moço, aconteceu comigo. Davam serra leão em mim! Amarrava eu, sabe?! Largava lá na casa abandonada! Não se pretendia estabelecer um debate acerca da Refor- ma Psiquiátrica, mesmo porque a escolha do filme coube ao próprio grupo, mas o encontro com o filme disparou relatos e discussões, sobretudo acerca da internação e da violência nos hospitais psiquiátricos por muitos ali experienciadas. A incessante produção de imagens na TV, no cine- ma, na internet marca nossa época e tem implicado uma significativa ampliação de trabalhos ligados à imagem, e, como dito anteriormente, essa relação tem sido marcada principalmente pelo viés da utilidade. Na educação, por exemplo, ela tem sido utilizada como um recurso pedagógi- co, uma ferramenta para se alcançar determinado objetivo (ou meta) previamente estipulado. Assim, o professor exibe um filme com objetivo de melhorar a eficiência do processo de aprendizagem dos alunos. Um processo de aprendizagem concebido de maneira uniforme e padroni- zada, no qual as pessoas aprendem (ou deveriam aprender) todos da mesma forma – massificadamente. Simplesmente desconsidera-se o fato de que cada um experiencia o filme de uma forma e é afetado de um jeito diferente, o que produz em cada um diferentes sentidos; na verdade não há possibilidade de controle sobre o processo de aprendizagem dos alunos. Na verdade, a questão da utilidade não está presente apenas no âmbito da problemática da imagem: ele perse- vera há tempos na Educação, mas hoje se encontra mais acentuada retificando uma concepção positivista, na qual 6 Bezerra de Menezes é um hospital psiquiátrico do município de Rio Claro (SP). Miolo_Ensaio-filmico_(GRAFICA).indd 65Miolo_Ensaio-filmico_(GRAFICA).indd 65 14/01/2014 10:11:3114/01/2014 10:11:31 66 RAFAEL CHRISTOFOLETTI os professores são vistos como os especialistas técnicos que devem aplicar essas tecnologias pedagógicas. Na perspectiva de pensar outras possibilidades na relação entre educação, cinema e arte, alguns trabalhos de Leite (O enredo que encena a educação: a construção de olhares a partir da infância, do cinema e da formação do professor e Ação, câmera, luz: entre imagens e olhares, experiência de infância e montagens), sobretudo, Infância, experiência e tempo: [...] possuem como eixo central refletir a “força” da ima- gem, e mais especificamente do cinema, nos espaços de formação, a princípio a formação docente e posteriormente a formação nos processos de produção de subjetividade e, mais diretamente, da criança. (Leite, 2011, p.19) Trata-se de uma superação desse modo utilitário e cien- tificista na perspectiva de pensar “a educação e a arte como lócus potente de produção de sentidos e subjetividades” (ibidem) e a educação como experiência. Essa proposta de pensar a pesquisa como experiência acabou se desdobrando em novos trabalhos com diferentes grupos, o que levou à constituição, em 2010, do I-mago: laboratório da imagem, experiência e cri[@]ção, um grupo de professores e alunos da graduação e pós-graduação ligados ao programa de pós-graduação em Educação da Unesp Rio Claro – um laboratório de multiplicidades. Laboratório não no sentido de experimento, algo que é passível de testes comprobatórios que encontram sempre o mesmo resultado (por repetição), mas algo da ordem da experiência, do singular, do único, do inédito. Compreende-se aqui experiência como um percurso, uma travessia que [...] não é o caminho até um objetivo previsto, até uma meta que se conhece de antemão, mas é uma abertura para Miolo_Ensaio-filmico_(GRAFICA).indd 66Miolo_Ensaio-filmico_(GRAFICA).indd 66 14/01/2014 10:11:3114/01/2014 10:11:31 ENSAIO-FÍLMICO 67 o desconhecido, para o que não se pode antecipar nem “pré-ver” nem “pré-dizer”. (Larrosa, 2001, p.28) Crianças, usuários de saúde mental, professores da rede pública municipal e idosos são alguns dos diferentes grupos com os quais o I-mago desenvolveu oficinas de produção imagéticas, abarcando diferentes domínios, como música, poesia, dança, infância e, agora, com o presente trabalho, a questão da loucura e da saúde mental. Talvez essa diversidade esteja de certa forma vinculada à forma aberta de se pensar a metodologia com a pesquisa como experiência. Uma pesquisa que não fecha, não acaba, não termina (intermezzo), mas se conecta por rizoma na medida em que novos caminhos vão se criando no decorrer da travessia da pesquisa. Miolo_Ensaio-filmico_(GRAFICA).indd 67Miolo_Ensaio-filmico_(GRAFICA).indd 67 14/01/2014 10:11:3114/01/2014 10:11:31 Plano-fragmento: a internação na Idade Clássica e a Cracolândia no século XXI “O gesto que aprisiona não é mais simples: também ele tem significa- ções políticas, sociais, religiosas, econômicas e morais.” (Foucault, 2008, p.53) Segundo Foucault (2008), a internação surge na Idade Clássica, na Europa, desvinculada da ordem médica, ao contrário do que costumeiramente se imagina hoje. Antes de serem o lugar da doença propriamente dita, tais espaços onde se davam as internações eram pensados originalmente com outros propósitos. Em relação aos internos, não havia nenhuma discriminação quanto a sexo, local de origem ou mesmo se se tratava de portadores de doenças curáveis ou incuráveis, como atesta o decreto de 26 de fevereiro de 1656, do rei da França, que criou o Hospital Geral de Paris – uma referência simbólica do processo de internação na época, que vai delimitar, com os séculos seguintes, um novo lugar social para o louco e a loucura. Miolo_Ensaio-filmico_(GRAFICA).indd 68Miolo_Ensaio-filmico_(GRAFICA).indd 68 14/01/2014 10:11:3114/01/2014 10:11:31 ENSAIO-FÍLMICO 69 Já existiam, na França, diversos estabelecimentos com tais características de isolamento, mas foi com o respectivo decreto que eles passaram a ser agrupados sob uma única administração e com uma destinação específica: alojar os pobres. Aliás, o termo hospital, em latim, significa hospedagem, hospedaria, hospitalidade, e foi criado para denominar as instituições religiosas de caridade da Idade Média. O médico é um personagem, de fato, presente no Hos- pital Geral. Eles visitam cada uma das casas da instituição duas vezes por semana, mas o papel deles ali é, antes de qualquer coisa, evitar a transmissão de doenças entre os internos. Ou seja, não é “porque se tem consciência de que aí são internados doentes, é porque se teme a doença naqueles que já estão internados” (Foucault, 2008, p.115), o que reforça o fato de que antes de ser uma instituição médica, o Hospital é uma instância da ordem monárquica e burguesa francesas; uma espécie de entidade semijurí- dica que, junto a outros poderes, decide, julga e executa desempenhando um duplo papel de assistência e repressão. Já na Inglaterra, a internação se remete ao nascimento das chamadas casas de correção que tinham como objetivo dar “punição aos vagabundos e alívio aos pobres”. Mais tarde se abriram à exploração da empresa privada (em moinho, fiação, tecelagem) tendo em vista a mão de obra barata que representavam os internos e a emergência da Revolução Industrial. Nesse sentido, não é o louco a figura central da inter- nação na Idade Clássica, mas sim uma nova relação com a miséria e com os deveres da assistência, que é fruto de “novas formas de reação aos problemas econômicos do desemprego e da ociosidade, uma nova ética do trabalho e também do sonho de uma cidade onde a obrigação moral se uniria à lei civil, sob as formas autoritárias de coação” (Foucault, 2008, p.56). Miolo_Ensaio-filmico_(GRAFICA).indd 69Miolo_Ensaio-filmico_(GRAFICA).indd 69 14/01/2014 10:11:3114/01/2014 10:11:31 70 RAFAEL CHRISTOFOLETTI Diferentemente da perspectiva da igreja na Idade de Média, de glorificação da miséria e da caridade (com a sua promessa de salvação), a partir da Reforma protestante e, em especial com Martinho Lutero, emerge o caráter de predestinação – de uma vontade particular de Deus para explicar a miséria e a caridade. Agora, a pobreza é vista como castigo. A miséria não mais deve ser exaltada, mas suprimida, e cabe às cidades e aos Estados substituírem a Igreja nessa função de prover assistência a partir de im- postos, coletas e doações. O homem, na sua obrigação em relação à sociedade, deve eliminar a miséria (vista como um efeito da desordem – e um obstáculo da ordem). Para combater a mendicância e a vagabundagem, criam- -se as casas de trabalho forçado. Antes vistas sob a óptica da humilhação e da glória, essas pessoas são compreendidas, nesse momento, como uma desordem da sociedade, pas- sando de uma perspectiva religiosa (que as santifica) para uma perspectiva moral (que as condena). A internação era determinada por autoridades reais e judiciárias e cabia ao diretor do hospital o poder absoluto sobre todas as pessoas que se configuravam potenciais in- ternos da instituição. Ou seja, instaurou-se uma dinâmica de controle e vigilância dos miseráveis que deveriam ser registrados e recolhidos, seja para internação, seja para as casas de trabalho. Com a mudança do discurso da santificação da mi- séria, a Igreja católica passou a dividir o mundo cristão entre o bom pobre (aqueles que aceitam a internação e são submissos à ordem) e o mau pobre (aqueles que se recusam e que por isso mesmo mais que justificam sua própria internação), perpetuando um duplo jogo de be- nefício e punição que justifica a utilidade da internação conforme a contingência que se apresenta (ou melhor, a pessoa a quem se aplica) – dicotomia que coloca a pessoa no campo de uma valoração moral. Miolo_Ensaio-filmico_(GRAFICA).indd 70Miolo_Ensaio-filmico_(GRAFICA).indd 70 14/01/2014 10:11:3114/01/2014 10:11:31 ENSAIO-FÍLMICO 71 Essa valoração moral vai caracterizar a estrutura e a significação da internação e repercutir, inclusive, de forma decisiva em uma concepção (dividida) da própria loucura. Na medida em que há uma dessacralização da miséria, ou seja, a miséria passa a ser encarada no âmbito da moral, há também uma dessacralização da própria loucura e do louco, que passam a ser vistos sob a óptica: [...] de um problema de “polícia” referente à ordem dos indivíduos na cidade. Outrora ele era acolhido porque vi- nha de outro lugar; agora, será excluído porque vem daqui mesmo, e porque seu lugar é entre os pobres, os miseráveis, os vagabundos. A hospitalidade que o acolhesse tornará, num novo equívoco, a medida de saneamento que o põe fora do caminho. De fato, ele continua a vagar porém não mais no caminho de uma estranha peregrinação: ele perturba a ordem do espaço social. Despojada dos direitos da miséria e de sua glória, a loucura, com a pobreza e a ociosidade, doravante surge, de modo seco, na dialética imanente dos Estados. (Foucault, 2008, p.63) A familiaridade com que a loucura era tratada na Ida- de Média é reduzida ao silêncio, na era clássica, com a internação. O autor refere-se ao fato de que na Renascença os loucos eram colocados em barcos e navios (Nau dos loucos) e levados de uma cidade a outra: “navios altamente simbólicos de insanos em busca da razão” (ibidem, p.10). E, agora, eram vistos como um problema de polícia, no sentido clássico do termo, devido ao imperativo do trabalho. A demanda pela internação viria antes de um imperativo do trabalho que de um sentido médico propriamente dito. Miolo_Ensaio-filmico_(GRAFICA).indd 71Miolo_Ensaio-filmico_(GRAFICA).indd 71 14/01/2014 10:11:3114/01/2014 10:11:31 Plano-fragmento: “É a economia (e a moral), estúpido!” “It’s economy, stupid!” (James Carville) A epígrafe de James Carville, estrategista de campanha eleitoral do ex-presidente norte-americano Bill Clinton, “fez história”. Na ocasião, o democrata se elegeu, der- rotando George H. Bush (que disputava sua reeleição), insistindo na tecla da economia ante a recessão econômica, mesmo apesar da então recente vitória norte-americana na Guerra no Golfo. A célebre frase chama a atenção para a importância que as questões econômicas, muitas vezes, adquirem na definição de políticas e mesmo na criação de determinadas instituições. Foucault (2008, p.66) aponta, por exemplo, em A histó- ria da loucura, que por trás da internação no século XVII estaria a crise econômica pela qual passava a Europa. Seria uma resposta à “diminuição dos salários, desemprego, escassez de moeda, devendo-se este conjunto de fatos, Miolo_Ensaio-filmico_(GRAFICA).indd 72Miolo_Ensaio-filmico_(GRAFICA).indd 72 14/01/2014 10:11:3114/01/2014 10:11:31 ENSAIO-FÍLMICO 73 muito provavelmente, a uma crise na economia espanhola”. O receio em relação a essa nova praga, que era o aumento do número de pobres, era de tal ordem que datam dessa época as proposições de mandá-los às Índias Orientais e Ocidentais recém-descobertas. A internação seria uma possibilidade de responder à problemática do desemprego e, ao mesmo tempo, ocul- tar os efeitos sociais mais visíveis decorrentes da crise diretamente sobre o mercado de mão de obra e os preços de produção, pois os internos seriam vistos como uma alternativa de “mão de obra barata nos tempos de pleno emprego e de altos salários; e, em período de desemprego, reabsorção dos ociosos e proteção social contra a agitação e revoltas” (ibidem, p.67). A estratégia de colocar as pessoas em ateliês obrigatórios mostrou-se, no entanto, um fracasso, na medida em que retirou os empregos de regiões vizinhas (e de setores simi- lares) e criou uma artificialidade na formação dos preços dos produtos manufaturados, já que não computavam os custos decorrentes da própria internação. Essa relação estabelecida entre internação e trabalho se deu pela óptica econômica, mas também, e sobretudo, pela moral. Mesmo o Hospital Geral não tinha apenas o aspecto de um ateliê de trabalho forçado, mas antes de uma institui- ção moral encarregada de castigar, de corrigir uma certa “falha” moral que não merece o tribunal dos homens mas que não poderia ser corrigida apenas pela severidade da penitência. (ibidem, p.74) A virtude se torna assunto de Estado e deve ser objeto de leis e decretos cuja finalidade era garantir a sua exe- quibilidade. Ou seja, tem-se na ideia da internação uma garantia (do mito) da felicidade social da família burguesa. Miolo_Ensaio-filmico_(GRAFICA).indd 73Miolo_Ensaio-filmico_(GRAFICA).indd 73 14/01/2014 10:11:3114/01/2014 10:11:31 74 RAFAEL CHRISTOFOLETTI Em relação à homossexualidade, por exemplo, essa passa a ser extremamente condenada nesse momento e a moral da família se sobrepõe à questão da sexualidade diferentemente da Renascença. As velhas formas do amor ocidental são substituídas por uma nova sensibilidade: a que nasce da família e na família; ela exclui, como pertencendo à ordem do desatino, tudo aquilo que não é conforme à sua ordem ou ao seu interesse. (ibidem, p.91) A internação é o lugar onde condutas condenadas pela família burguesa são agrupadas, formando um “halo de culpabilidade em torno da loucura” (ibidem, p.92). Mesmo a feitiçaria, a magia e a alquimia também são acometidas por essa moral que acaba por defini-las como da ordem das intenções maléficas – “ilusão do espírito a serviço das desordens do coração” (ibidem, p.97). A internação tem o sentido de conduzir de volta a ver- dade mediante a coação moral, como lembra Foucault ao citar o caso de Forcroy, que ficou internado seis anos por criticar a religião. A libertinagem era vista como erro, uma falta, e era estigmatizada como insanidade. Nesse sentido, devia-se puni-la para que a verdade de fato aparecesse. Ao condenar o pensamento livre, estabelecia-se, então, uma divisão entre razão e loucura. A loucura concebida como irracionalidade. Em suma, o hospital, que antes era tido como uma instituição de caridade (religiosa), passou a incorporar funções sociais e políticas, principalmente com a ida dos médicos a essas instituições que tinham como objetivo inicial a humanização e adequação dessas instituições ao novo espírito moderno da Revolução Francesa, mas que, com o tempo, transformou-as em instituições médicas. Miolo_Ensaio-filmico_(GRAFICA).indd 74Miolo_Ensaio-filmico_(GRAFICA).indd 74 14/01/2014 10:11:3114/01/2014 10:11:31 CENA II A LOUCURA Plano-fragmento: a moral, a medicina e os contos proibidos do Marquês de Sade Com o fim das Cruzadas e da lepra, os doentes vené- reos foram os primeiros a ocupar os antigos leprosários. Posteriormente, juntaram-se a eles os loucos, devassos, libertinos, cujo agrupamento desses indivíduos passou a configurar um espaço moral de exclusão. A terapêutica utilizada para com os doentes venéreos nos auxilia a com- preender um pouco das próprias terapêuticas utilizadas em relação à loucura no século XIX. Vista antes como impureza do que doença de fato, a doença venérea traz uma ideia de purificação que vai potencializar a aliança entre a medicina e a moral, sobretudo, em relação à loucura. [...] se é preciso cuidar do corpo para eliminar o contágio, convém castigar a carne, pois é ela que nos liga ao pecado e não apenas castigá-la, mas pô-la à prova e mortificá-la, não recear deixar nela vestígios dolorosos, porque a saúde transforma muito facilmente nosso corpo em ocasião para o pecado. (Foucault, 2008, p.86) Miolo_Ensaio-filmico_(GRAFICA).indd 75Miolo_Ensaio-filmico_(GRAFICA).indd 75 14/01/2014 10:11:3114/01/2014 10:11:31 76 RAFAEL CHRISTOFOLETTI O filme Contos proibidos do Marquês de Sade, de Phi- lip Kaufman (2000), traz um pouco desse universo do século XVIII em que a relação entre a medicina e a moral se intensifica; o conflito entre ciência e religião propicia uma mudança de discurso em relação à miséria; e ganha importância o ideal do trabalho (com a emergência das casas de trabalho). A obra é baseada na história do aristocrata francês e escritor libertino Donatien Alphonse François de Sade, mais conhecido como Marquês de Sade, que foi perseguido pela monarquia do Antigo Regime, pelos revolucionários de 1789 e pelo próprio Napoleão, em razão de suas críticas à moralidade dos bons costumes da sociedade da época, como se nota em um trecho recortado do filme. Caro leitor: Tenho um conto p