UNIVERSIDADE ESTADUAL PAULISTA “JULIO DE MESQUITA FILHO” FACULDADE DE FILOSOFIA E CIÊNCIAS – CÂMPUS MARÍLIA PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM CIÊNCIAS SOCIAIS NATÁLIA CRISTINA SGANZELLA DE ARAUJO GÊNERO E SOCIOLOGIA NO ENSINO MÉDIO: ENTRE ENSINAR E APRENDER MARÍLIA – SP 2019     UNIVERSIDADE ESTADUAL PAULISTA “JULIO DE MESQUITA FILHO” FACULDADE DE FILOSOFIA E CIÊNCIAS – CÂMPUS MARÍLIA PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM CIÊNCIAS SOCIAIS NATÁLIA CRISTINA SGANZELLA DE ARAUJO GÊNERO E SOCIOLOGIA NO ENSINO MÉDIO: ENTRE ENSINAR E APRENDER Tese apresentada para o Programa de Pós-Graduação em Ciências Sociais, da Faculdade de Filosofia e Ciências, Universidade Estadual Paulista “Júlio de Mesquita Filho”, Campus de Marília-SP, como requisito final para a obtenção do título de Doutora em Ciências Sociais. Orientadora: Prof.ª Dr.ª Lídia Maria Vianna Possas MARÍLIA-SP 2019 A663g ARAUJO, NATÁLIA CRISTINA SGANZELLA DE GÊNERO E SOCIOLOGIA NO ENSINO MÉDIO: ENTRE ENSINAR E APRENDER / NATÁLIA CRISTINA SGANZELLA DE ARAUJO. -- Marília, 2019 156 p. Tese (doutorado) - Universidade Estadual Paulista (Unesp), Faculdade de Filosofia e Ciências, Marília Orientadora: LIDIA MARIA VIANNA POSSAS 1. Educação e sociologia. 2. Identidade de gênero na educação. 3. Ensino médio. I. Título. Sistema de geração automática de fichas catalográficas da Unesp. Biblioteca da Faculdade de Filosofia e Ciências, Marília. Dados fornecidos pelo autor(a). Essa ficha não pode ser modificada.     GÊNERO E SOCIOLOGIA NO ENSINO MÉDIO ENTRE ENSINAR E APRENDER Tese para obtenção do título de Doutora em Ciências Sociais, da Faculdade de Filosofia e Ciências, da Universidade Estadual Paulista – UNESP – Câmpus de Marília, na área de concentração Ciências Sociais. BANCA EXAMINADORA Orientadora: ______________________________________________________ Prof.ª Dr.ª Lídia Maria Vianna Possas. UNESP – Marília (SP). 1º Examinadora: ___________________________________________________ Prof.ª Dr.ª Sueli Guadelupe de Lima Mendonça, UNESP – Marília (SP). 2º Examinadora: ___________________________________________________ Prof. Dr.ª Tania Suely Antonelli Marcelino Brabo, UNESP – Marília (SP). 3º Examinadora: ___________________________________________________ Prof.ª Dr.ª Lílian Henrique de Azevedo, UNIP, Bauru (SP) 4º Examinador: ___________________________________________________ Prof. Dr. Daniel Henrique Lopes, UFMS – Naviraí (MS). Marília, 27 de junho de 2019.     Dedico às mulheres da minha vida: minha mãe Geny, às minhas avós, à minha sogra Arlete, às minhas tias e às minhas sobrinhas Valentina e Lorena. À minha madrinha Dirce (in memoriam). A todos/as os/as estudantes que possam ser livres.     AGRADECIMENTOS Durante o processo de escrita de uma tese há um longo caminho que percorremos, mas nunca sozinhos; muitas são as pessoas que andaram lado a lado para que tudo fosse tomando forma, inclusive vamos mudando como pessoa. Digo isso porque parece que essa foi uma das experiências mais intensas que entraram no rol das minhas vivências. Escrever exigiu coragem para não desistir e para persistir no caminho, para buscar força e foco, pois em meio à tese se entrelaçava também a vida cotidiana com suas urgências como o trabalho com os planejamentos escolares, as provas, os TCC. A vida da gente se envolvendo na vida dos/as alunos/as. Intervieram também as outras partes da vida – os afetos, a família, os amigos. E a tese. E nesse processo de quatro anos e meio, nesse emaranhado de gente e palavras, entre pesquisar professores/as e atuar como professora foi se desenrolando esse texto. Com a gratidão de chegar ao fim de um processo é que percebemos que muitas vezes focamos no que nos falta, como tempo, concentração, percepção, presença, maturidade e habilidade para escrever – ao focar no que faltava, quantas vezes não percebi a abundância das coisas que recebi. Ao levar a memória para o ano de 2015, quando ingressei no curso de doutorado, notei que a vida foi muito mais abundante comigo do que escassa e que tenho mesmo é que agradecer. Agradeço às Forças Superiores sejam elas qual nome desejemos dar, mas que movem a vida para um sentido de superação e de presença. Agradeço à minha orientadora Prof.ª Dr.ª Lídia Maria Vianna Possas por sua presença em minhas ausências e por ser a pessoa a me despertar para as questões de gênero. Foi um longo percurso até tê-la como minha orientadora e que importante foi no final de um ciclo de pós-graduação que nossos caminhos puderam andar lado a lado. Além da admiração profissional, ela é uma mãezona, pois quantas foram orientações em casa, os e-mails, as conversas por Skype, as caronas até Bauru, “puxões de orelha”, todas as experiências foram de acolhimento e só fizeram aumentar a admiração que se estende por essa mulher respeitável. Obrigada pelo afeto e por ser incrível! Agradeço ao Programa de Pós-Graduação em Ciências Sociais pelo acolhimento, pela disposição em me ajudar a resolver as pendências a distância. Ao coordenador Prof. Marcos Del Roio pela prontidão em sempre responder às dúvidas     e a todos os funcionários sem os quais minha vida a 200 km longe de Marília seria mais difícil. Agradeço a todos os/as professores/as do programa que contribuíram para as reflexões desta tese, mas em especial à Prof.ª Larissa Pelucio que ministrou a disciplina de Saberes Subalternos e que desestabilizou minhas reflexões com os deslocamentos teóricos necessários para enxergar mais longe, borrar as fronteiras dos padrões das identidades de gênero, as ferramentas para compreender que o pessoal é político e que o corpo é uma zona de guerra entre o controle e liberdade. Obrigada pelas caronas até Bauru e pelas conversas que foram muito valiosas sobre todos os aspectos da vida. Agradeço o cuidado das professoras Lilian Azevedo e Valéria Barbosa durante minha qualificação, pois a leitura atenta e os apontamentos necessários contribuíram significativamente para dar norte à minha tese. Contar com vocês nesse momento foi imprescindível para que eu pudesse achar a minha tese e levá-la adiante. Minha imensa gratidão. Agradeço as considerações atentas dos/as professores/as Sueli Mendonça, Tânia Brabo e Daniel Lopes pelo cuidado e exatidão na leitura desta versão final da tese por compreenderem todas as entrelinhas e iluminarem o trajeto final deste trabalho que foi feito com paixão e convicção pela educação. Os/às colegas/as do curso de doutorado foram partes imprescindíveis para a caminhada, graças às trocas acadêmicas, às vivências, às caronas que tornaram a permanência em Marília bem mais agradável. Citar nomes é uma tarefa inglória, mas há pessoas importantes nesta caminhada a quem não poderia deixar de manifestar meu carinho: Tamires Barbosa, Juliana Jardim, Guto Mugnai, Lays Mazoti Corrêa, Patrícia Corrêa Mazoti, Alex Eleotério, Thalyzze Góes, Franz Cezarinho, Jefferson e Árife Mello. Em especial, agradeço a Zuleika Câmara Pinheiro o acolhimento e por sempre estar perto e ajudando generosamente. Agradeço também aos/às alunos/alunas de todas as escolas em que atuei. Vocês são as peças fundamentais desta engrenagem; sem eles não haveria uma professora, tampouco uma tese. As trocas e experiências ao longo destes quase dez anos como professora universitária e de educação básica me fizeram ser uma pessoa diferente, espero que melhor. Aula é sempre troca e muitos foram os aprendizados que me trouxeram e que levaram de mim. Em especial, agradeço aos/às alunos/as de Areiópolis e de Botucatu, pois eles têm sido grandes interlocutores e grandes apoiadores desta aventura acadêmica com seus olhares atentos e apoio diário.     Agradeço aos/as professores/as das diversas escolas em que atuei ao longo dos anos. O ofício de docente exige um know-how e posso dizer que pude conviver com bons/as professores/as que me ensinaram desde preencher diários de classe até estratégias de como não “enlouquecer” em meio à precariedade e ao desmonte da educação pública que vivenciamos diariamente. Nesta caminhada profissional pude colecionar, além de colegas de trabalho, pessoas queridas que foram imprescindíveis nestes anos, como Tânia Fetchir, quem foi muito mais do que a professora coordenadora de Sociologia da D.E. de Botucatu; ela é minha grande amiga e parceira neste projeto. Obrigada por acreditar mais em mim do que eu mesma, obrigada pela serenidade com que vê a vida, obrigada por comprar as minhas idas à selva de pedras paulistana e tornar São Paulo mais cheia de amor. Outro presente deste caminho foi meu amigo e coordenador pedagógico Pedro Orlandini, um profissional convicto de que a educação nos salva. Obrigada por estar sempre perto. Em especial agradeço também aos/às professores/as das escolas de Areiópolis e de Botucatu, pelas risadas e pela fé na conclusão desse projeto. Agradeço aos/às meus/minhas diretores/as, coordenadores/as, enfim a todas as pessoas que ajudam e dão suporte ao cotidiano escolar e que têm papel fundamental na partilha do ensino. Há amigos imprescindíveis nesta caminhada que fizeram a vida ser mais leve e equilibrada: Andrea, Camila, Flávia, Melissa, Luciane, Analuci, Yara, Edvania, Ju Neri e Danyo. Vocês são incríveis. Agradeço por estarmos juntos/as. Em especial, agradeço à minha companheira de nome, de signo, de humor, à minha irmã de vida, Natália Dorini. Obrigada pela presença em todas as mensagens e conversas, por encher minha vida de música e por andar junto com força e coragem! Muitas pessoas fizeram esta caminhada única, mas tenho muito a agradecer aos meus pais Geny e Adauto o apoio, a compreensão, o exemplo, as visitas rápidas, os jantares e todo o suporte para que esta tese saísse. Minha mãe Geny, agradeço sempre seu colo pronto para me acolher, suas mãos para abençoar e todas as orações para que esta tese saísse. Todo o carinho também ao meu irmão César e à minha cunhada Natália, que nestes anos também participaram desta jornada e compreenderam a ausência. Eles me deram o maior presente e têm o meu maior amor, a Lorena, sobrinha querida. Às minhas avós, tias e tios que torceram, aconselharam e rezaram... Esta conquista é de vocês também.     Ao meu sogro João e minha sogra Arlete também agradeço imensamente todas as idas e vindas a rodoviárias e à UNESP para quebrar os “galhos” da distância, todo o carinho, a compreensão nos finais de semana que ficavam com idas curtas. Valeu a pena! Esta tese tem o carinho e participação de vocês. À minha sobrinha Valentina, queridinha, também, que sabia que a tia estava estudando e deixou de brincar para escrever. Agora vamos brincar mais. Demora para crescer. Meu agradecimento também ao meu cunhado Romeu pela prontidão da ajuda com seus conhecimentos nessa fase final do trabalho! De todos os agradecimentos, falta o mais importante, ele sempre esteve junto nesta jornada, cada passo e cada palavra desta tese tem uma história compartilhada. Ângelo, meu querido, eu agradeço tudo isto que nós compartilhamos secretamente na calma do nosso lar, que é o melhor lugar do mundo, o mais seguro e para onde tenho sempre a confiança de voltar com e para você. Eu te quero comigo em todas as vidas que existirem, pois juntos transbordamos afeto. Com certeza, a memória é falha e caminhar por estes agradecimentos só me fez entender que sou uma privilegiada! Agradeço tudo que esta vida me oferece!     Eu tenho pressa e eu quero ir pra rua Quero ganhar a luta que eu travei Eu quero andar pelo mundo afora Vestida de brilho e flor Mulher, a culpa que tu carrega não é tua Divide o fardo comigo dessa vez Que eu quero fazer poesia pelo corpo E afrontar as leis que o homem criou pra dizer (Todxs Putxs- Ekena)     RESUMO A presente pesquisa tem como objetivo apresentar a pertinência do ensino de temáticas de gênero na disciplina de Sociologia para jovens do Ensino Médio. O problema central é compreender como as relações de gênero constituem uma questão educacional e as relações escolares em uma escola pública no interior do Estado de São Paulo. As bases teóricas da pesquisa obtêm seus fundamentos nos estudos sobre gênero na perspectiva do feminismo pós-estruturalistas de Louro (2008;2015), Butler (2003) e Scott (1995). Através dos métodos de observação participante e pesquisa-ação buscamos compreender a relação de ensino e aprendizagem dos/as jovens estudantes do Ensino Médio sobre as temáticas de gênero abordadas nos Cadernos de Sociologia, distribuídos pelo projeto São Paulo Faz Escola da SEE/SP. Entre os resultados que pudemos analisar na pesquisa, percebemos que as temáticas de gênero promovem uma naturalização de identidades de gênero centrada nos papéis masculino e feminino a partir do sexo biológico, não problematizando outras possibilidades de identidades de gênero, resultantes das experiências culturais que fogem à coerência sexo e gênero. Outros conceitos, como violência de gênero e movimentos sociais de mulheres são abordados, problematizando o lugar periférico das mulheres na sociedade brasileira, mas não compreendem que a violência de gênero pode ser construída também na perspectiva do masculino e exploram superficialmente a existência do movimento LGBT como movimento político importante. Na escola pesquisada, tais temáticas ficavam restritas à disciplina de Sociologia, não havendo por parte dos demais membros da equipe escolar um trabalho pedagógico claro de enfrentamento à reprodução dos discursos e práticas sexistas. Em nossa atual conjuntura política, esta pesquisa encontra relevância, pois a natureza conservadora defendida pela presidência eleita (2019-2022), que propala como política educacional a ‘Escola sem Partido’, coloca-se veementemente no combate à existência de uma ‘ideologia de gênero’. Os resultados desta pesquisa mostraram que há um hiato entre os conteúdos ensinados e as práticas cotidianas dos jovens no ambiente escolar, de modo que esta lacuna só se torna menor à medida que os jovens se apropriam dos espaços e reconfiguram com suas estratégias e agências os sentidos do que é ensinado e aprendido. Palavras-chave: Educação e sociologia. Identidade de gênero na educação. Ensino médio.     ABSTRACT This research aims to present the relevance of teaching gender issues in the sociology discipline for high school youth. The central problem is to understand how gender relations constitute an educational and school relations issue in a public school in the interior of the State of São Paulo. The theoretical foundations of the research derive their foundations from gender studies from the perspective of poststructuralist feminism by Louro (2008; 2015), Butler (2003) and Scott (1995). Through participant observation and action research methods, we seek to understand the teaching and learning relationship of young high school students on gender issues addressed in the Cadernos de Sociologia, distributed by the São Paulo do Escola project of SEE/SP. Among the results we were able to analyze in the research, we noticed that gender themes promote a naturalization of gender identities centered on male and female roles from biological sex, not problematizing other possibilities of gender identities, resulting from cultural experiences that escape gender and gender coherence. Other concepts such as gender violence and women's social movements are approached problematizing the peripheral place of women in Brazilian society, but do not understand that gender violence can also be built from the male perspective and superficially explores the existence of the LGBT movement as a political movement. important. In the researched school, such themes were restricted to the discipline of Sociology and there was no clear pedagogical work by the other members of the school team to cope with the reproduction of sexist discourses and practices. In our current political conjuncture, this research is relevant because the conservative nature defended by the elected Presidency (2019-2022), which promotes the ‘Escola sem Partido’ as its educational policy, is strongly opposed to the existence of a ‘gender ideology’. The results of this research showed that there is a gap between the contents taught and the daily practices of young people in the school environment, so that this gap only becomes smaller as the young people appropriate the spaces and reconfigure their senses with their strategies and agencies. of what is taught and learned. Keywords: Education and sociology. Gender identity in Education. High School.     LISTA DE ILUSTRAÇÕES Figura 1 - Quadro de conteúdos de Sociologia Do Ensino Médio ............................. 70  Figura 2 - Disposição dos alunos na sala Alfa ........................................................... 92  Figura 3 - Situação de aprendizagem 6 - gênero e desigualdade ............................. 95  Figura 4 - Situação de aprendizagem 6 - estereótipos .............................................. 97  Figura 5 - Situação de aprendizagem 6 - definição de sexo e gênero ...................... 98  Figura 6 - Biscoito sexual ........................................................................................ 103  Figura 7 - Situação de aprendizagem 6 - gênero e estratificação ........................... 106  Figura 8 - Situação de aprendizagem 6 - Mercado de Trabalho ............................. 107  Figura 9 - Situação de aprendizagem 6 - rendimento salarial por gênero e cor ...... 108  Figura 10 - Disposição dos alunos na sala Beta ..................................................... 111  Figura 11 - Situação de aprendizagem 6 (2ª Série) - violência ............................... 116  Figura 12 - Situação de aprendizagem 6 (2ª Série) - violência de gênero .............. 117  Figura 13 - Situação de aprendizagem 6 (2ª Série) - lição de casa ........................ 118  Figura 14 - Disposição dos alunos da sala Gama ................................................... 125  Figura 15 - Situação de aprendizagem 7 (3ª Série)- Definição de movimento de mulheres ................................................................................................................. 126  Figura 16 - Situação de Aprendizagem 7 (3ª Série)- Texto sobre ondas do Feminismo ................................................................................................................................ 127  Figura 17 - Situação de Aprendizagem 7 (3ª Série) - Continuação do texto ondas do Feminismo ............................................................................................................... 127  Figura 18 - Quadro para preencher conquistas feministas ...................................... 129  Figura 19 - Quadro para preencher conquistas feministas(continuação) ................ 130  Figura 20 - Situação de Aprendizagem 9 - novos movimentos sociais ................... 133  Figura 21 - Movimento LGBT .................................................................................. 134  Figura 22 - Lição de casa - movimento LGBT ......................................................... 135  Figura 23 - Pátio da Escola– Dia Internacional da Mulher (2018) ........................... 142  Figura 24 - Muro de Entrada dos Alunos– Dia Internacional da Mulher (2018) ....... 142  Figura 25 - Porta do sanitário feminino– Dia Internacional da Mulher (2018) ......... 143  Figura 26 - Porta do sanitário masculino– Dia Internacional da Mulher (2018) ....... 144      LISTA DE ABREVIATURAS SEE-SP Secretaria Estadual de Educação de São Paulo CNE Conselho Nacional de Educação CEE Conselho Estadual de Educação CONAE Conferência Nacional de Educação PCN Parâmetros Curriculares Nacionais PCNEM Parâmetros Curriculares para o Ensino Médio DCNEM Diretrizes Curriculares Nacionais para o Ensino Médio OCEM Orientações Curriculares Nacionais do Ensino Médio OCN Orientações Curriculares Nacionais INEP Instituto Nacional de Estudos e Pesquisas Educacionais Anísio Teixeira MEC Ministério da Educação e da Cultura LGBT Lésbica, Gays, Bissexuais, Travestis e Transgêneros LDB Lei de Diretrizes e Bases da Educação SARESP Sistema de Avaliação do Rendimento Escolar de São Paulo. BNCC Base Nacional Comum Curricular ABECS Associação Brasileira de Ensino de Ciências Sociais ENESEB Encontro Nacional de Ensino de Sociologia da Educação Básica. SAEB Sistema de Avaliação da Educação Básica PNLD Programa Nacional do Livro Didático SBS Sociedade Brasileira de Sociologia     SUMÁRIO INTRODUÇÃO .......................................................................................................... 23 1 GÊNERO E EDUCAÇÃO: AS BASES TEÓRICAS DA PESQUISA. ................... 36 1.1 REFLETINDO SOBRE A CATEGORIA GÊNERO ....................................................... 36 1.2 MOVIMENTO FEMINISTA E A EDUCAÇÃO NO BRASIL ............................................. 44 1.3 ‘IDEOLOGIA DE GÊNERO’ ................................................................................... 50 2 A SOCIOLOGIA NO ENSINO MÉDIO NO BRASIL – UM HISTÓRICO DE IDAS E VINDAS ..................................................................................................................... 53 2.1 ORIENTAÇÕES CURRICULARES NACIONAIS DE SOCIOLOGIA (OCN-SOCIOLOGIA) ...... 60 2.2 PROPOSTA CURRICULAR DE SÃO PAULO DE 2008 ................................................. 62 2.3 CURRÍCULO DE SOCIOLOGIA DE SÃO PAULO .......................................................... 66 2.4 OS CONTEÚDOS E OS DOCENTES NOS CADERNOS DE SOCIOLOGIA. .......................... 72 3 MAPEANDO O ESPAÇO ESCOLAR E AS RELAÇÕES DE GÊNERO .............. 77 3.1 A ESTRUTURA ESCOLAR ................................................................................... 77 3.2 PERFIL DOS PROFESSORES/AS, DIREÇÃO E AGENTES DE ORGANIZAÇÃO ESCOLAR 82 3.3 PERFIL DOS/AS ALUNOS/AS .............................................................................. 86 3.4 CASO DA TURMA – 1ª SÉRIE ALFA ..................................................................... 91 3.5 CASO 2- SEGUNDO BETA ............................................................................... 110 3.6 CASO 3 – TERCEIRO GAMA ............................................................................ 124 4 DIA INTERNACIONAL DA MULHER ................................................................ 139 5 CONSIDERAÇÕES FINAIS .............................................................................. 148 REFERÊNCIAS ....................................................................................................... 153 23      INTRODUÇÃO A primeira vez que compreendi a dimensão de que ‘o pessoal é político’1 foi em 2004, na graduação em Ciências Sociais na UNESP, câmpus de Marília, durante a disciplina de História do Brasil, momento em que entrei em contato com alguns textos sobre a História das Mulheres2 e me dei conta da imensa lacuna na presença das mulheres como objeto de conhecimento histórico em minha vida escolar. As figuras femininas conhecidas se limitavam a seres mitológicos, literários ou figuras isoladas, como Joana D'Arc, ou pintoras, como Tarsila do Amaral e Frida Kahlo; apenas como personagens em seus contextos. No entanto, não demorei a descobrir que não somente em minha vida escolar, mas também na formação universitária, a presença de leituras sobre estudos de gênero e estudos feministas ficaria relegada a alguns/mas professores/as que introduziriam em seus programas de ensino no curso. Motivada por essa disciplina, ao longo da graduação, passei a pesquisar as experiências de mulheres que se prostituíam nas ruas centrais da cidade de Marília, SP, através de suas histórias de vida, que resultaram na monografia Ser mulher e ser prostituta, histórias de vidas das mulheres3. Depois, durante o mestrado, a pesquisa se estendeu para a dissertação “Feita só por mãe!” Sentidos de maternidade e família entre mulheres prostitutas”4 com recorte para as memórias e as experiências de maternidade e família narradas das minhas interlocutoras. O gatilho para essas pesquisas vinha justamente em busca da compreensão desses silenciamentos e invisibilidades das mulheres como objeto e sujeitos de conhecimento. À medida que compreendia os diversos papéis que minhas interlocutoras desempenhavam como mulheres, mães, parceiras afetivas e como   1 Esse termo foi popularizado por Carol Hanisch em 1969 em um texto que leva o mesmo nome da frase. A ideia geral do texto problematiza as fronteiras entre o público e o privado, desejo e poder. 2 A disciplina de História inseriu a História das Mulheres em conjunto com a Nova História Cultural, desenvolvida ao longo dos anos 1950 e 1970. Esta modalidade historiográfica foi popularizada como “História de baixo”, que se contrapunha às vertentes tradicionais da historiografia, pois trabalhava com dimensões culturais e políticas (práticas e representações), trazendo relações com outros campos como antropologia, linguística, psicologia ou ciência política. O uso de fontes diversificadas, como diários, oralidade, entre outros, trazia para esta modalidade historiográfica a presença de novos sujeitos e vozes, promovendo um olhar microscópico para o social. 3 Para mais informações, é possível acessar a monografia em SGANZELLA, Natália C.M. Ser mulher e ser prostituta, histórias de vidas das mulheres. 2007. Trabalho de Conclusão de Curso (Graduação em Ciências Sociais) - Faculdade de Filosofia e Ciências - Unesp - Campus de Marília. 4 É possível acessar a dissertação como SGANZELLA, Natália C.M. “Feita só por mãe! ” Sentidos de maternidade e família entre mulheres prostitutas, em 2011, financiada pela Fundação de Amparo à Pesquisa de São Paulo, UFSCar. Disponível em: https://repositorio.ufscar.br/bitstream/handle/ufscar/202/3921.pdf?sequence=1 24      lidavam com os estereótipos pela sua profissão à luz dos estudos de gênero, percebia que a escolha do meu objeto de estudo foi, portanto ao mesmo tempo política e teórica. Concluído o mestrado, passei a ministrar aulas de Sociologia5 na rede pública de ensino como professora efetiva em São Manuel6, SP, minha cidade de origem. Não era uma expectativa lecionar para estudantes de Ensino Médio, pois até o final da graduação não havia uma deliberação sobre a presença da disciplina de Sociologia na grade curricular. Já havia lecionado na condição de professora temporária em diversas disciplinas em várias escolas públicas e também como monitora em uma escola privada para composição de minha renda. Esse trânsito por muitas escolas permitia algumas observações e impressões sobre a organização das escolas quanto às relações de gênero: disposição arquitetônica como banheiros, distribuição dos estudantes nas salas, grupos de meninos e meninas que se formavam nos intervalos ou na classificação disciplinar das condutas de meninas e meninos, mas nada se comparou à experiência de atuar cotidianamente em uma escola e estar inserida no contexto do espaço. Nesta pesquisa sujeito e objeto se constituíram ao mesmo tempo, assim delimitamos um caráter presente de que a produção do conhecimento sobre o objeto de estudos é também autoconhecimento, uma vez que o objeto é síntese entre as inquietações biográficas do sujeito que pesquisa para compreender a experiência de ser e estar no mundo. De acordo com Santos (1988), nas teorias e nos estudos que são realizados, em tudo há a perspectiva de quem faz o estudo, visto que as escolhas dos temas, dos modelos teórico-metodológicos, das formas de discussão acabam por evidenciar que a investigação científica é subjetivamente produzida. Como professora efetiva, eu frequentava diariamente a escola, em pelo menos um dos períodos matutino ou noturno, pois lecionava em todas as turmas de Ensino   5No ano de 2008, houve a reinserção das disciplinas de Sociologia e Filosofia no Ensino Médio pela Lei n°11.684, que possibilitou, em 2011, o concurso público para minha efetivação como docente. Ao longo da tese apresentaremos o contexto de inserção do ensino de Sociologia no Ensino Médio no Brasil para situar a situação da disciplina. 6A escola em que me efetivei pertence à Diretoria de Ensino de Botucatu e tem jurisdição sobre 15 cidades (Anhembi, Areiópolis, Bofete, Botucatu, Cesário Lange, Conchas, Itatinga, Laranjal Paulista, Pardinho, Pereiras, Porangaba, Pratânia, Quadra, São Manuel, e Torre de Pedra). A Diretoria é responsável por escolas da Secretaria de Estado da Educação, municipais, particulares, federais e Secretaria de Estado de Ciência e Tecnologia. O recorte desta pesquisa são as escolas da Secretaria de Estado da Educação, que representam um universo de 45 escolas com Ensino Fundamental e Ensino Médio. Disponível em: https://see-diretorias.azurewebsites.net/debotucatu/localizacao/ 25      Médio7. Sentia um estranhamento ou desconforto que se dava (e ainda se dá) diante do fato de que, nos espaços em que circulava entre os/as novos/as colegas de profissão ou entre os alunos/as, havia um constante tratamento pejorativo evidenciado por comentários e provocações sobre a forma como as alunas mexiam o corpo, ao dançarem funk nos intervalos, os excessos de afeto manifestados pelos casais de namorados heterossexuais8 no pátio ou comentários sobre trejeitos e roupas dos/as que pudessem caracterizar homossexualidade, entre muitos outros comentários. Todos esses elementos circulantes manifestavam a compreensão de relações de poder presente nas relações de gênero na escola, nas quais um grupo garantia sua posição de poder e privilégio através de comentários e ações que criavam marcas identitárias entre sujeitos, apontando o controle sobre corpos, sentimentos ou ações. Esses silenciamentos, provocações e invisibilização intencional de certos sujeitos na vida diária da escola não eram combatidos ou mesmo problematizados pelos gestores e professores, mas pareciam fluir em um grau de normalidade imperceptível como sendo toleráveis e comuns, salvo para aqueles que eram atingidos pelas provocações. Essas experiências conflituosas entre os indivíduos eram resolvidas como problemas disciplinares individuais de conduta e, em muitos casos, a vítima era culpada. Essas situações, quando não tratadas e acompanhadas, podem trazer sofrimento, baixa frequência ou abandono escolar do estudante hostilizado. Seguindo as mesmas razões de Louro (2015), para compreender sua relação com seu objeto de estudos, percebia que esses elementos observados que reforçavam as desigualdades de gênero presente no cotidiano passaram a ser intoleráveis. Ao transformar a escola em um laboratório, buscava refletir sobre como problematizar essas cenas cotidianas e, ao mesmo tempo, como ensinar gênero na sala de aula, de modo que os estudantes fossem empáticos às temáticas e pudessem encontrar espaço para diálogo sobre essas questões nas aulas de Sociologia. A Secretaria Estadual de Educação de São Paulo oferecia Cadernos 9 de Sociologia a alunos e professores, pertencentes ao programa São Paulo Faz Escola,   7 Nessa escola, as aulas para as turmas de Ensino Médio regular eram nos períodos matutino e noturno. Eram duas aulas de Sociologia semanalmente para cada turma do Ensino Médio. No período diurno a duração da aula é de 50 minutos e no período noturno, de 45 minutos. 8 Os casais de namorados homossexuais não manifestavam publicamente suas relações a não ser ao andarem de mãos dadas. 9 Estes cadernos fazem parte do Projeto São Paulo Faz Escola e ficaram conhecidos na rede pública de educação. Apresentam as temáticas a serem desenvolvidas por professores e aluno/as ao longo 26      e em todas as séries abordava temáticas de gênero a partir de uma dimensão cultural e sociológica, o que se tornou um ponto de partida para pensar as relações de gênero na escola em que dava aula. A definição conceitual de gênero tem sido amplamente discutida nas Ciências Sociais, desde estudos pioneiros, como aqueles desenvolvidos pelos estudos feministas e também estudos de gênero10. Neste trabalho, porém, limitamo-nos as explicações que parecem proveitosas para a discussão que nos propomos, sendo elas compostas por autoras11 como Scott (1995), Louro (2008) e Butler (2003). O conceito de gênero pode ser compreendido como um dispositivo cultural, constituído ao longo da história, que classifica e cria arranjos para os sujeitos no mundo a partir da relação entre o que se entende por feminino e masculino. Essa categoria opera criando sentido para as diferenças percebidas em nossos corpos, organizando e hierarquizando pessoas, emoções e práticas dentro de uma estrutura de poder. Muitas práticas sociais são naturalizadas, simbolizadas e, na aparente estabilidade da divisão entre sexo/gênero natureza/cultura, invisibilizam outras possibilidades de performances, ou seja, criam desigualdades e não só diferenças. (LOURO, 2008) A abordagem de temas sobre gênero e sexualidade em uma dimensão educacional problematiza as marcas das diferenças sociais, que são parte do processo de construção das identidades no interior de um ambiente cultural. As pessoas e as coisas ganham sentido em meio ao processo de constituição de diferentes posições no interior de um processo classificatório. A diferença não aparece   dos anos letivos. O caderno do professor possui instruções claras de como conduzir as diversas temáticas propostas em todas as disciplinas do Ensino Fundamental e Médio, desde a forma de abordar iniciar a aula até o processo de avaliação. Nos primeiros anos, esses conteúdos apresentavam-se como uma sugestão de abordagem das temáticas, visto que a rede de São Paulo é heterogênea e os tendo em vista que professores não possuíssem formação específica da disciplina pudessem conduzir as aulas. No entanto, houve uma mudança da SEE/SP que tem apresentado com insistência o uso desse material didático, condicionando-o aos resultados da avaliação do SARESP. Esses Cadernos serão apresentados ao longo da tese.  10 No texto Recriando a (categoria) mulher (2002) Adriana Piscitelli apresenta o percurso do campo de estudos feministas e dos estudos de gênero ao longo dos séculos XIX e XX e pontua as redefinições desse campo de estudos das mulheres até ampliação do termo para os estudos de gênero. Nos importa apenas pontuar que as relações entre militância dos movimentos de mulheres e as pesquisas acadêmicas, embora possuam clivagens promoveram uma rasura na produção e conhecimento, abrindo espaço para novos sujeitos sociais. Da mesma maneira, o impacto sobre as formas de compreender a política e as relações de poder foram redesenhadas pela organização das mulheres. Hoje tratamos em feminismos, pois as pautas ampliaram-se e diversificaram-se. 11 Ao longo da tese, vamos mencionar “autores e autoras”, “alunos e alunas”, “professores e professoras”, sem usar o sujeito neutro ou universal, pois também a linguagem é marcada por relações assimétricas. 27      como oposta à identidade, ao contrário, estas são complementares e fabricadas em meio a sistemas simbólicos a fim de produzir um sistema de representação e também de exclusão. (SILVA,2014). No contato cotidiano com as pessoas era cada vez mais comum observar a escola como lugar oportuno de produção de diferenças, mas também como lugar em que as diferenças, quando construídas negativamente, criavam fronteiras e exclusão, ao estabelecerem o que é normal e aceitável para certo momento (LOURO, 2011). Em relação às diferenças de gênero, notava-se que se igualava o que é considerado feminino a inferior hierarquicamente, atribuindo sentido pejorativo através do uso do diminutivo aos termos mulherzinha12 e florzinha e referindo-se a outros homens ou aja como um homem. Essas questões revelavam-se mais sutis quando comparadas ao teor preocupante que se encontrava no crescente envio entre jovens de nudes13, que pode resultar na divulgação do conteúdo em redes sociais, ocasionando pornografia por vingança14, que acabava por expor a adolescente que passava de vítima da exposição a responsável e culpada por ter divulgado suas fotos íntimas a terceiros, mesmo que esse fosse seu ex-namorado. Nesses casos, os ex-namorados não eram responsabilizados; a culpa se insere na figura feminina, que se torna alvo de acusações, punições, trazendo sérias complicações para sua permanência no ambiente escolar, uma vez que a marca fica registrada em relação ao seu nome. A importância de se abordar temáticas de gênero na educação dos/as estudantes fica compreendida para que a escola se construísse como um espaço plural em que as diferenças pudessem existir com liberdade e respeito e em que as desigualdades possam ser problematizadas. Portanto, “se o que pretendemos é que a escola seja inclusiva, é urgente que seus planos se redefinam para uma educação voltada para a cidadania global, plena, livre de preconceitos e que reconhece e valoriza as diferenças” (MANTOAN, 2003, p. 13)   12 Os termos em negrito ao longo do texto visam dar ênfase aos campos de tensão em torno das questões de gênero 13 O termo nudes é usado pelos e pelas jovens e adolescentes e consiste no envio privado de fotos/imagens pessoais com partes seminuas ou nuas do corpo através das redes sociais para parceiros afetivos ou de interesse. 14 Pornografia por vingança ou porn revenge consiste na exposição de fotos íntimas que o casal envia um para o outro. Com o fim do relacionamento pode haver a divulgação de fotos/imagens para terceiros, trazendo sérios problemas, geralmente as adolescentes em maior grau. 28      Essa perspectiva se associa à discussão mais ampla na cultura brasileira, que se faz presente nos Parâmetros Curriculares Nacionais – Temas Transversais15, desde o final da década de 1990, reforçando a necessidade de se construir uma educação básica que adote em sua estrutura a inclusão, buscando dessa forma uma perspectiva de ensino-aprendizagem que fomente valores de cidadania, baseados na cooperação e em igualdade de direitos. A incorporação desses temas ao cenário da educação nacional recebeu forte influência dos movimentos sociais, tais como o movimento feminista e LGBT, que apresentavam a educação como um meio para diminuir problemas sociais como a violência, disparidade em oportunidades de emprego e tratamento entre os homens e mulheres. Sob essa ótica a realidade da educação escolar apontava para que quanto mais o pensamento e a prática educacionais se situassem no campo dos direitos sociais, mais do que leis seriam necessárias seria para se garantir a integração das diversas identidades no espaço escolar. (ALTMANN, 2001). Há quase duas décadas no século XXI, vemos que essas temáticas de gênero ainda se constituem em temas de ensino pouco explorados na educação básica. Ao longo dos anos, os temas transversais sobre gênero, sexualidade e orientação sexual têm sido tratados majoritariamente em aulas de Ciências no Ensino Fundamental, nas quais são priorizados temas relacionados com saúde, tais como apresentação dos sistemas reprodutivos, infecções sexualmente transmissíveis, prevenção da gravidez, entre outros que correlacionam o tema à reprodução humana. Também são reforçados no Ensino Médio nas mesmas áreas, o que não contribui para uma discussão mais ampliada da dimensão social das relações de gênero e sexualidade no que diz respeito às oportunidades no mercado de trabalho, às formas de violência, aos direitos reprodutivos, entre outros temas relevantes socialmente. A experiência com o ensino de Sociologia em escolas diferentes, públicas ou privadas, apresentou itinerários próximos quanto à reprodução de falas que expressavam uma masculinidade idealizada e cheia de estereótipos e exclusões que nos levaram ao ponto de partida desta tese, quando nos perguntamos por quê e como   15 Os Parâmetros Curriculares Nacionais – Temas Transversais (1997) para o Ensino Fundamental constituiu-se de um conjunto de propostas em dez volumes com temas como Ética, Meio Ambiente, Pluralidade Cultural e Orientação Sexual com o objetivo de promover ações de inclusão de temas relevantes para o desenvolvimento da cidadania na dimensão da educação básica. Essas temáticas são chamadas de transversais, pois têm como função perpassar todas as disciplinas. 29      ensinar temáticas de gênero na escola. Essa pergunta se tornou central para esta pesquisa, uma vez que, atuando como professora de Sociologia em escolas de Ensino Médio, eu buscava meios para problematizar essas questões que pareciam naturalizadas nas práticas e falas dos estudantes. Diante desse cenário, o foco inicial desta pesquisa buscava compreender como os professores de Ensino Médio de Sociologia16 da rede pública da Diretoria de Ensino de Botucatu (SP) lidavam com o ensino de temáticas de gênero para jovens do Ensino Médio presentes nos Cadernos do Aluno e do Professor, sendo elas: a construção social do gênero, as desigualdades de gênero, definições de violência contra mulheres e o movimento social de mulheres no âmbito da aquisição de direitos no Brasil. Os temas abordados no currículo de Sociologia nos levaram às hipóteses iniciais sobre a relação entre autonomia e formação docente sobre os Cadernos de Sociologia do professor a respeito das temáticas de gênero. Conforme aponta Cação (2010), a obrigatoriedade em trabalhar com esses materiais didáticos apontou a perda do grau de autonomia docente17. Na pesquisa buscávamos estabelecer relação entre formação inicial e continuada dos professores e suas experiências com o uso de um material didático oferecido pela SEE/SP, que aborda temáticas de gênero e sexualidade. Os Cadernos do Professor descreviam detalhadamente para cada disciplina os conteúdos a serem desenvolvidos, metodologias e formas de avaliação. A análise dos Cadernos de Sociologia do aluno e do professor justificou-se, portanto, pela ênfase dada pela SEE-SP na utilização desses materiais didáticos. Mesmo havendo livros didáticos na escola 18 , os/as supervisores/as, diretores/as,   16 É importante compreender que no período anterior à realização desta pesquisa (2013-2014), a SEE/SP oferecia reuniões para formação continuada dos professores das diversas áreas sobre o material didático do projeto São Paulo Faz Escola. Em um levantamento informal, realizado a partir dessas reuniões, na Diretoria de Ensino de Botucatu havia apenas dois professores efetivos de Sociologia, com formação em Ciências Sociais, além da professora coordenadora do Núcleo Pedagógico, cuja sigla, PCNP, é de Sociologia. Grande parte dos professores que assumiram as aulas possuíam formação em História, Geografia, Pedagogia, Direito, Filosofia ou complementações, como era possível em períodos anteriores. 17 O SARESP corresponde a uma avaliação feita anualmente, desde 1996, aplicada pela SEE/SP, com questões de múltipla escolha, que avalia o rendimento dos estudantes nos ciclos finais dos Ensinos Fundamental (7.º e 9.º anos) e Médio (3.ª série). A prova baseia-se em questões que avaliam as habilidades em Língua Portuguesa e Matemática. São definidos níveis de proficiência de conhecimento como abaixo do básico, básico, adequado e avançado. 18 Os livros didáticos fazem parte do Programa Nacional do Livro Didático (PNLD), responsabilidade do Ministério da educação e Cultura (MEC) destinado a alunos e professores da educação básica de escolas públicas, que recebem livros didáticos para a utilização como recurso pedagógico. Para mais informações podemos consultar https://www.fnde.gov.br/programas/programas-do-livro 30      coordenadores/as e professores/as eram orientados nos planejamentos 19 para a utilização dos Cadernos como prerrogativa para preparar os estudantes nas habilidades e competências exigidas nas Avaliações de Rendimento Escolar. Em alguns encontros com professores/as que lecionavam Sociologia 20 promovidos pela Diretoria de Ensino de Botucatu21, chamadas orientações técnicas22, foi possível dialogar com professores/as sobre como trabalhavam as temáticas de gênero presentes no material didático e a eficácia dos conteúdos para os/as estudantes. Em suas falas apareciam muitas dúvidas, pois assim como eu, sua formação inicial não abordava essas linhas de estudo ou, quando eram tratadas, eram vistas superficialmente, o que os fazia sentir-se também desconfortáveis em falar de temas por parecerem polêmicos ou mesmo subjetivos. À medida que avançávamos na análise dos materiais didáticos de Sociologia para a pesquisa, percebíamos que era preciso não só problematizar o material didático e a experiência de formação dos docentes que lecionavam Sociologia, mas para alcançar os objetivos da pesquisa era importante apresentar o fazer pedagógico desenvolvido em meu percurso de formação docente com práticas complementares às situações de aprendizagem para dialogar sobre as temáticas de gênero em sala de aula. Os métodos e técnicas de pesquisa-ação e observação participante foram os que julgamos mais adequados para compreender a relação entre o desenvolvimento das temáticas de gênero e a compreensão dos estudantes para refletirmos sobre seu cotidiano escolar. Nesse processo de pesquisa, o pesquisador mostra-se como alguém com uma intenção clara de mediação com o meio pesquisado, visando avaliar   19 Os planejamentos correspondem a reuniões semestrais que antecedem o início das aulas. Nesse processo discutem-se as expectativas para o ano letivo em relação às metas estabelecidas pelo governo federal. 20 Na Diretoria de Ensino de Botucatu havia apenas dois professores titulares de Sociologia. Até 2014 chegaram mais quatro professores através de processo de remoção de cargo e novo concurso público, totalizando seis titulares para 45 escolas. A maioria dos professores que ministravam aulas de Sociologia eram formados nas disciplinas de História, Geografia, Pedagogia e eram bacharéis em Direito ou Psicologia.  21 Nesses encontros era possível perceber a quantidade escassa de professores formados em Sociologia ou Ciências Sociais na Diretoria de Ensino de Botucatu. Até 2014 havia apenas dois professores efetivos para 45 escolas públicas de Ensino Médio. A maioria dos professores/as que ministravam aulas de Sociologia eram formados nas disciplinas de História, Geografia, Pedagogia e eram bacharéis em Direito ou Psicologia. Pelo processo de remoção de cargo e chamada do concurso entraram mais quatro professores, totalizando seis titulares de cargos. Um número que reflete a realidade do ensino de Sociologia na educação básica no País. 22 As orientações eram oferecidas para todo o Estado e o objetivo era promover formação para os docentes acerca dos conteúdos dos Cadernos do Aluno e do Professor de Sociologia. 31      como a proposição de temas é incorporada pelos outros agentes presentes na pesquisa, que atuam diretamente na produção desse conhecimento, neste caso, os alunos e alunas.23 (MINAYO,2001). A pesquisa foi realizada durante o período de 2016 a 2018 com turmas de Ensino Médio na cidade de Areiópolis24, no interior do Estado de São Paulo, no período diurno, nas turmas em que lecionava como professora de Sociologia. A escola funciona nos três períodos e possui os segmentos de educação regular e educação de jovens e adultos. Os/As alunos/as são residentes dos diversos bairros da cidade e também da zona rural. 25 Foram selecionadas três turmas, sendo cada uma pertencente a um dos anos do Ensino Médio em diferentes anos e períodos, a partir do registro realizado em forma de notas das falas e apontamentos e avaliações que puderam ser coletados durante as aulas. Houve também um processo de avaliação dos/as alunos/as por meio de atividades escritas para que pudessem, a partir de uma questão levantada na aula, expressar suas reflexões e dúvidas sobre os temas abordados em aula. Nessa pesquisa procuramos responder às seguintes questões: O que pensam/conhecem os estudantes a respeito das temáticas de gênero apresentadas no Caderno do Aluno de Sociologia oferecido pela SEE/SP? Abordar essas temáticas de gênero e sexualidade promove algum impacto nas práticas do cotidiano escolar? A formação docente em gênero poderia contribuir para o projeto de uma escola inclusiva? Em face do que foi exposto até aqui, percebemos que há um longo caminho para se construir uma escola inclusiva e que apoie as diferenças. A relevância desta tese encontra-se na reflexão da atuação docente no ensino de Sociologia e sobre as temáticas de gênero para estudantes do Ensino Médio Esses temas tem se tornado um campo de disputas na educação, que não se limita ao cotidiano escolar, mas aparecem com elementos de disputa em nossa atual conjuntura política, pois temos vivenciado o crescimento de discursos conservadores por parte de representantes   23 Para a realização da pesquisa, os alunos e alunas foram consultados e esclarecidos das intenções e dos objetivos das atividades durante as aulas. Os que consentiram e se propuseram voluntariamente a contribuir com suas opiniões e ideias foram inseridas ao longo do texto. Serão usadas apenas as iniciais dos nomes, pois importa mais o conteúdo descrito do que as pessoas ao longo da investigação. 24  Fiz o pedido de remoção para esta escola e percebi que as mesmas questões cotidianas apresentadas na escola em que ingressei como efetiva se mantinham; por conseguinte houve a possibilidade de realização da pesquisa com um maior número de estudantes, pois na escola funcionavam muitas salas de Ensino Médio e Educação de Jovens e Adultos. 25 Ao longo da tese apresentaremos uma descrição da escola e um perfil dos/as alunos/as e das salas pesquisadas. 32      políticos26 e membros da sociedade civil que têm distorcido o campo dos estudos de gênero, apresentando-o como ´ideologia de gênero´ 27 (MISKOLCI e CAMPANA, 2017). Esses segmentos problematizam a existência de temáticas de gênero e sexualidade como conteúdos de ensino para crianças e jovens. A disseminação de informações distorcidas pela mídia 28 sobre o que representa gênero, associando-o à sexualização de crianças29 ou ao incentivo à homossexualidade, tem promovido o boicote do termo em documentos como o Plano Nacional de Educação30 e outros documentos oficiais que mencionavam políticas afirmativas sobre as questões relacionadas com as temáticas de gênero e sexualidade na educação. Houve um refreamento de termos nos documentos oficiais de educação que mencionassem gênero ou orientação sexual. (LUNA, 2017). O embate público não se tem limitado ao combate aos estudos de gênero, mas também tem apresentado a Filosofia e a Sociologia31 como as disciplinas em que se realiza doutrinação ideológica nos estudantes. No foco das denúncias do grupo Escola sem Partido32 aponta que essas disciplinas promoveriam em seus conteúdos   26  São deputados/as que se apresentam pelas frentes evangélicas e católicos, entre outros parlamentares conservadores.  27 O termo ´ideologia de gênero´ será utilizado nesta tese entre aspas, pois refere-se a uma forma de apropriação indevida dos estudos de gênero. Esse tema será melhor desenvolvido ao longo da tese.  28 A maior parte dos eleitores de Bolsonaro acreditavam no momento da eleição de que o kit gay foi distribuído nas escolas brasileiras. A matéria está disponível no site Congresso em Foco, em 01/11/2018. https://bit.ly/2SBUQdY  29 No debate da campanha presidencial entre Jair Bolsonaro (PSL) e Fernando Haddad (PT) no Jornal Nacional de 08/10/2018, o candidato do PSL levou para o debate o livro de Titeuf chamado Aparelho Sexual e Cia, traduzido pela Cia das Letras” como parte do kit gay. Disponível no vídeo https://bit.ly/2VYMzBj e também no material Brasil sem Homofobia, desenvolvido pelo Ministério da Saúde e Conselho Nacional de Combate à Discriminação que, sugeria o candidato do PSL, foi distribuído durante o Governo Dilma Roussef (2012-2016) para crianças de 6 anos nas escolas do País. O site está disponível no link https://bit.ly/2qBwbKg  30 Os planos nacional, estadual e municipal de educação são documentos que estabelecem diretrizes, metas e estratégias que devem reger as iniciativas na área de educação pelo prazo de uma década com a finalidade de direcionar investimentos na melhoria da educação. Os planos são feitos a partir de índices de avaliações externas que medem a alfabetização, formação continuada de professores, adequação dos/as estudantes em idade certa nas séries escolares, ensino profissionalizante para adolescentes, entre outros. No ano 2014, o Plano Nacional de Educação (PNE) sofreu fortes pressões para a supressão dos termos gênero e orientação sexual por parte dos setores partidários conservadores, como a Frente Evangélica. O site De olho nos planos tem organizado e sistematizado essas informações no site http://www.deolhonosplanos.org.br/bncc-aprovada-genero-orientacao- sexual/   31Em 26/4/2019, o presidente anunciou em sua rede social a descentralização de verbas para os cursos de Filosofia e Sociologia para ampliar os investimentos em áreas como Veterinária, Engenharia, entre outros. A postagem pode ser acessada em https://bit.ly/2QzMoLM . 32 O projeto Escola Sem Partido é um movimento político criado em 2004 no Brasil e divulgado em todo o País pelo advogado Miguel Nagib. Esse movimento afirma representar pais e estudantes contrários ao que chamam de "doutrinação ideológica nas escolas”. Em 2015, foi transformado em associação. Para maiores informações é possível consulta o site: https://www.programaescolasempartido.org/.  33      didáticos um viés político e ideológico relacionado com o pensamento marxista. Além da exposição de uma visão distorcida sobre as disciplinas, sua permanência no currículo escolar do Ensino Médio fica incerta, pois há mudanças nos rumos da educação previstas na Lei 13.415/2017, que propõe uma Reforma do Ensino Médio33 através da proposta de uma Base Nacional Comum Curricular (BNCC)34. Nessa proposta as disciplinas de Sociologia e Filosofia, antes obrigatórias, tiveram sua oferta foram flexibilizadas na forma de oficinas, diluídas como habilidades e competências dentro das disciplinas de História e Geografia. Essa reforma tem causado forte oposição entre setores que apoiam as mudanças da BNCC. Outros repudiam a proposta tratando como um retrocesso em termos de dimensões das conquistas educativas. (MENDONÇA, 2017). Diante das sucessivas críticas à imposição da BNCC, realizada sem ampla consulta à população (estudantes, professores/as, familiares, organizações não governamentais, conselhos de educação, entre outros) que é a interessada no impacto social das mudanças promovidos pela lei, o texto da reforma do Ensino Médio já sofreu algumas alterações, por exemplo, tornando explicita a presença de estudos e práticas de Artes, Educação Física, Sociologia e Filosofia, que ficavam omitidas no texto original. Ao longo desta última década, as disciplinas de Sociologia e Filosofia, assim como as temáticas de gênero e sexualidade, vêm sofrendo avanços e retrocessos nas políticas de educação, o que nos leva a compreender a importância de sua discussão e compreensão, mas acima de tudo de sua pertinência como disciplinas e temáticas de ensino. Esses conceitos impactam diretamente as vivências dentro e fora do ambiente escolar. Nas relações de ensino e aprendizagem explicitam-se as   33 A reforma do Ensino Médio foi votada pelo Governo Temer e tem como propostas ampliação da carga horária, implementação da escola de tempo integral, oferta de ensino técnico e flexibilização do currículo – abrindo mão da Sociologia, Filosofia, Artes e Educação Física. O Ministério da Educação apresentou as mudanças sem dialogar com os/as estudantes, que se têm mobilizado em diversos estados do País para exigir o direito à participação na construção de uma escola de melhor qualidade. 34A Base Nacional Comum Curricular (BNCC) é o documento que define os conhecimentos essenciais que todos os alunos da Educação Básica devem aprender. Prevista em lei, deve ser obrigatoriamente observada na elaboração e implementação de currículos das redes públicas e privadas, urbanas e rurais. Na proposta para o Ensino Médio, em linhas gerais, mudaram as competências e houve a inclusão de uma nova área, Linguagens e suas Tecnologias (Língua Portuguesa, Arte, Educação Física e Língua Inglesa), Matemática e suas Tecnologias, Ciências da Natureza e suas Tecnologias (Biologia, Física e Química), Ciências Humanas e Sociais Aplicadas (História, Geografia, Sociologia e Filosofia) e Formação Técnica e Profissional. Somado a isso, houve uma redistribuição da carga horária, na qual o/a estudante terá 60% de carga comum à sua sala e 40% corresponderá ao itinerário formativo baseado nas escolhas individuais do aluno ao longo dos 3 anos. Para mais informações é possível consultar o domínio: http://basenacionalcomum.mec.gov.br/ 34      experiências individuais e coletivas entre alunos/as e professores/as, que negociam estratégias e vivências a partir das diversas identidades que se conformam no espaço escolar. A forma de apresentação desta tese está dividida em cinco capítulos: no capítulo 1 buscamos apresentar os aspectos teóricos que nortearão esta pesquisa, evidenciando o gênero enquanto categoria analítica no campo das relações de poder e de produção das diferenças no ambiente escolar. Procuramos também apresentar a importância das temáticas no campo das políticas educacionais para educação básica e também apresentar as investidas que têm desqualificado os estudos de gênero como um campo de pesquisa, nomeado e reduzido a ‘ideologia de gênero’. No capítulo 2, procuramos situar em Sociologia no Ensino Médio no Brasil – um histórico de idas e vindas, um breve contexto histórico da Sociologia no Ensino Médio. Procuramos apresentar com ênfase o período em que a disciplina se tornou obrigatória no Ensino Médio com a Lei nº11.684/08. A partir dela houve a criação do currículo de Sociologia para as escolas públicas da SEE-SP, em que constam temáticas de gênero. No capítulo 3 – Mapeando o espaço escolar e as relações de gênero, buscamos apresentar a descrição da escola e dos sujeitos que compartilham o ambiente escolar com a finalidade de situar-nos no contexto de uma escola de Ensino Médio no interior do Estado de São Paulo e como as relações de gênero estão presentes nas falas cotidianas dos diversos agentes que circulam no ambiente escolar e reproduzem estereótipos que nos ajudam a compreender o papel de formação inicial e continuada dos docentes para a construção de um ambiente em que a diversidade de pessoas possa circular e ser respeitada. Buscamos, também, explorar os recursos de ensino sobre temáticas de gênero nos Cadernos do aluno e do professor de Sociologia e a forma como gráficos, imagens e fragmentos de texto são construídos nas situações de aprendizagem para a formação do jovem do Ensino Médio e apresentar a recepção dessas situações de aprendizagem através do relato de casos em três salas de aulas nessa escola. Buscamos evidenciar e detalhar a pertinência das temáticas de gênero na relação de ensino e aprendizagem com os/as alunos/as e como estes avaliam essas temáticas. Nas discussões dessas temáticas buscou-se demonstrar a carga de reprodução de preconceitos, as rupturas, as cargas emocionais 35      que rondam os depoimentos dos/as alunos/as, as fricções geracionais entre alunos/as (jovens e adolescentes) e professores/as e funcionários/as. No capítulo 4, analisamos o evento do Dia Internacional da Mulher e os efeitos de organização dos alunos/as na forma de expressão das questões relacionadas com os temas trabalhados em sala de aula. Nesse sentido, buscamos observar sua ação e envolvimento no processo de construção de uma narrativa própria sobre o dia, mas também as reações no entorno da equipe escolar, uma vez que as atividades acabaram por movimentar os/as alunos/as para fora da sala de aula, os quais atuaram no pátio, nos murais e nas paredes. A experiência resultou na percepção de como um espaço de uso comum para a circulação de turmas e profissionais do corpo escolar, quando ocupado com frases sobre as temáticas de gênero como violência, direitos ao corpo, gerou reações opositivas que reproduziam as assimetrias vivenciadas nas experiências das mulheres e daqueles que fogem aos padrões heteronormativos. 36      1 GÊNERO E EDUCAÇÃO: AS BASES TEÓRICAS DA PESQUISA. Este capítulo tem por objetivo apresentar as principais bases teóricas que fundamentam esta pesquisa. Na estrutura do capítulo buscamos apresentar os aspectos teóricos que nortearão esta pesquisa, evidenciando o gênero enquanto categoria analítica no campo das relações de poder e de produção das diferenças no ambiente escolar. Procuramos também apresentar a importância das temáticas de gênero no campo das políticas educacionais para a educação básica e também apresentar as investidas que têm desqualificado os estudos de gênero como um campo de pesquisa, nomeado e reduzido a ‘ideologia de gênero’. 1.1 Refletindo sobre a categoria gênero Com base nos estudos de Scott (1995), Louro (2008) e Butler (2003), utilizo gênero como uma categoria analítica que nos permitirá pensar o masculino e o feminino produzidos no campo das relações que envolvem o cotidiano escolar e também analisar os materiais didáticos oferecidos aos/as estudantes e professores/as. O conceito de gênero nasce nas discussões do movimento feminista. A história do feminismo apresenta diversas dimensões temporais, políticas e outras perspectivas. No século XXI, falamos em feminismos diante da pluralidade e especificidades dos sujeitos políticos que constituíram suas identidades e diferenças a partir do amadurecimento do embate na arena política. É fundamental pontuar a presença dos movimentos feministas no processo de transformação social, econômica, política e cultural, pois acentuaram a dimensão de gênero nesse processo. As mulheres promoveram uma rasura política e epistemológica, ao questionarem o silenciamento, exclusão e esquecimento a que foram submetidas como sujeitos históricos, rompendo com os padrões domésticos, a maternidade, entre outros, associados à condição feminina. Buscaram nas mais diferentes perspectivas questionar as causas das opressões e da subordinação feminina como elemento construído, promovendo um campo teórico e político em que suas vozes foram ouvidas. (ADELMAN,2009); Neste cenário de significativas mudanças culturais, os campos de estudo feministas, gays, lésbicos, queer, estudos de sexualidade constituíram-se como campos teóricos e políticos, portanto são vertentes de estudo articuladas aos movimentos sociais que privilegiam uma forma de conhecer a partir de decisões sobre o quê, para quê 37      conhecer e também sobre quem está autorizado a conhecer, o que será conhecido e a forma de se chegar a conhecer (LOURO, 2007, p. 211). Assim como as autoras, compreendemos o sexo em uma perspectiva política e que o gênero pode ser compreendido como um dispositivo que produz formas de desigualdades e opressões, dadas as suas dimensões social, política e histórica. O conceito de gênero, de acordo com Scott (1995), foi emprestado dos termos gramaticais pelas feministas americanas e inglesas, com a finalidade de afastar a noção de que as diferenças biológicas, presentes nos corpos sexuados, pudessem ser explicativas das diferenças sociais entre homens e mulheres. “[...] elemento constitutivo de relações sociais fundadas nas diferenças percebidas entre os sexos [e] um primeiro modo de dar significado às relações de poder” (SCOTT, 1995, p.21), o conceito se afirmou como categoria de análise e que contribuiu para a compreensão dos mecanismos de criação, manutenção e naturalização das desigualdades, sob uma perspectiva relacional entre homens e mulheres. As diversas correntes feministas contribuíram para o questionamento da produção das identidades de gênero e sexuais a partir dos campos de força que visam manter e classificar o corpo. De acordo com Scott (1995), os sentidos das palavras não podem ser fixados, pois como resultado da criatividade e da invenção humana possuem uma história. Desta forma, a categoria gênero apresenta-se como referencial analítico e de compreensão de um conjunto de relações sociais entre o masculino e o feminino delimitados no âmbito da cultura e da história. De acordo com Scott (1995, p.21): enfim, precisamos substituir a noção de que o poder social é unificado, coerente e centralizado por alguma coisa que esteja próxima do conceito foucaultiano de poder, entendido como constelações dispersas de relações desiguais constituídas pelo discurso nos “campos de forças”. No seio desses processos e estruturas, tem espaço para um conceito de realização humana como um esforço (pelo menos parcialmente racional) de construir uma identidade, uma vida, um conjunto de relações, uma sociedade dentro de certos limites e com a linguagem – conceitual – que ao mesmo tempo coloque os limites e contenha a possibilidade de negação, de resistência e de reinterpretação, o jogo de invenção metafórica e de imaginação. A partir de uma visão construcionista e relacional do gênero compreendemos que as posições dos sujeitos, de suas experiências e identidades são a provisórias, instáveis e múltiplas. Quando se estabelece essa relação de poder que estabelece posições fixas para os sujeitos e suas experiências de gênero e a percebemos como uma construção histórica, podemos incluir as experiências borram as fronteiras de gênero, reconfigurando as identidades. Nas relações de poder não há só uma condição repressora, mas o conflito 38      produz sujeitos, pois apresentam a marca da resistência, criando linhas de fuga aos mecanismos de repressão. O poder hegemônico não se estabelece de forma monolítica, mas as lutas contínuas reconfiguram as relações de poder. As concepções de masculino e feminino tratam de categorias construídas socialmente. Ao redor delas forma-se uma constelação de significados, que envolvem os fenômenos sociais. No sistema sexo-gênero há, então, um conjunto complexo de significados, interesses econômicos, políticos, linguísticos e culturais envolvidos. Desse modo, o gênero [...] tem duas partes e várias subpartes. Elas são ligadas entre si, mas deveriam ser analiticamente distintas. O núcleo essencial da definição baseia-se na conexão integral entre duas proposições: o gênero é um elemento constitutivo de relações sociais baseado nas diferenças percebidas entre os sexos, e o gênero é uma forma primeira de significar as relações de poder. (SCOTT, 1995, p. 21). Tendo como base o gênero como categoria relacional, é possível pensar que para entender a perspectiva do feminino é necessária a articulação do masculino no plano conceitual e interpretativo do cotidiano. Ao propor-se este método de análise conceitual, busca-se pensar que o gênero é uma forma de relação de poder e que não deve ser estudado apenas à luz da história das mulheres ou de temas relacionados com sexualidade, família ou crianças. O propósito do gênero como ferramenta de análise é: Fazer emergir uma história que oferecerá novas perspectivas a velhas questões (como, por exemplo, é imposto o poder político, qual é o impacto da guerra sobre a sociedade) redefinirá as antigas questões em termos novos (introduzindo, por exemplo, considerações sobre a família e a sexualidade no estudo da economia e da guerra), tornará as mulheres visíveis como participantes ativas e estabelecerá uma distância analítica entre a linguagem aparentemente fixada do passado e nossa própria terminologia. Além do mais, essa nova história abrirá possibilidades para a reflexão sobre as estratégias políticas feministas atuais e o futuro (utópico), porque ela sugere que o gênero tem que ser redefinido e reestruturado em conjunção com a visão de igualdade política e social que inclui não só o sexo, mas também a classe e a raça. (SCOTT, 1995, p.30) A categoria gênero torna-se política, pois escancara a necessidade de reescrita da História, de modo que possa proporcionar lugar para a diferença, para a desconstrução do outro e perceba a relação entre as categorias, o que viabiliza que as subjetividades que estavam nas fronteiras da legitimidade de existência ou subalternizada por saberes hegemônicos não sejam ocultadas e que novas identidades floresçam como sujeitos políticos. 39      O conceito do gênero é compreendido como um dispositivo cultural, constituído ao longo da História, que classifica e cria arranjos para os sujeitos no mundo a partir da relação entre o que se entende por feminino e masculino. Opera criando sentido nas diferenças percebidas em nossos corpos, organizando e hierarquizando pessoas, emoções e práticas dentro de uma estrutura de poder. Cada cultura constrói símbolos e significados com base na percepção da diferença sexual e nas hierarquizações das diferenças e as tornando naturalizadas para que as práticas sociais sejam compreendidas na forma de uma aparente dualidade estável, invisibilizando outras possibilidades de performances, ou seja, criando desigualdades e não só diferenças. (LOURO, 2008). Os/As estudiosos/as de gênero e sexualidade, embora disputem sobre a compreensão da forma como se estabelecem os processos de nomeação e classificação do gênero no corpo, convergem em um ponto fundamental de que não é no nascimento dos corpos de macho e fêmea que se faz o sujeito masculino e feminino, mas no esforço continuado em construir esses gêneros ao longo de toda a vida. Para Butler (2003), não só o gênero (masculino/feminino) se constitui como meio discursivo/cultural que opera na diferenciação dos corpos, também o sexo (macho/fêmea) é criado pela linguagem através da enunciação. Não nascemos mulheres ou homens, mas somos chamados a assumir o nosso sexo “O gênero não deve ser meramente concebido como a inscrição cultural de significado num sexo previamente dado”, “[…] tem de designar também o aparato mesmo de produção mediante o qual os próprios sexos são estabelecidos. Resulta daí que o gênero não está para a cultura como o sexo está para a natureza ” (BUTLER,2003, p. 25). Butler (2003), ao questionar a naturalidade do sexo como princípio que estabilizava no corpo as diferenças (macho e fêmea) e sob as quais as diferenças culturais (masculino e feminino) seriam inscritas pelo gênero, mostra-nos que não há sujeitos preexistentes, as identidades de gênero vão sendo incorporadas pelos atos repetidos no interior de um quadro regulatório rígido que, ao longo do tempo, se cristaliza para produzir uma condição de aparente estabilidade no corpo. Assim, gênero e sexualidade se constituem materialmente através de atos performativos, ou seja, são atos de linguagem que não descrevem, mas constituem os sujeitos dentro de campos discursivos de saber e poder. Adotando esse viés metodológico presente nos estudos feministas pós- estruturalistas35, buscamos compreender que mecanismos engendrados nas relações de   35 O termo feminismo pós-estruturalista ou feminismo da diferença emerge em meados da década de 1990 e volta o olhar para as micropolíticas, pois a diversidade de mulheres representadas pela sua cor, 40      poder estão em jogo no ambiente escolar. Este espaço não está isento da reprodução e do engessamento dos binarismos reforçados nas identidades de gêneros, pois atividades simples da prática escolar reforçam sentidos para classificar e posicionar o masculino e o feminino em estruturas de poder. As atividades físicas, a identificação dos sanitários, a escrita dos materiais didáticos ou o fracasso e sucesso escolar vão sendo definidos nos arranjos de gêneros de modo que os contornos excludentes e restritivos vão naturalizando relações constituídas por discursos. (CARVALHO, 2012). A construção de gênero se dá através de inúmeras práticas e aprendizagens silenciosas que das mais distintas formas e situações são empreendidas a fim de estabelecer que os corpos de machos e fêmeas se convertam em experiências masculinas e femininas. De forma explícita ou dissimulada, ordens, pequenas censuras, conselhos vão nos pedagogizando sobre modos de ser, pensar, agir e sentir através dos gêneros. A mídia, os anúncios de televisão e o cinema promovem mecanismos que sutilmente controlam e educam nossa forma de ser e perceber o mundo, dando um caráter de estabilidade e normalidade, invisibilizando as raízes culturais e históricas dessas experiências e dando-lhes feições essencialistas e trans-históricas. (LOURO, 2008, p.20). Seguindo a proposta de Butler (2003), que mostra que tanto nosso sexo quanto nosso gênero são nomeados nas inscrições culturais que se constituem pela linguagem, torna-se viável pensar que a escola possa ser construída como um lugar plural e subversivo à medida que as performances de gênero vão borrando as fronteiras e os diferentes corpos vão reinscrevendo estratégias para se constituírem no espaço e no tempo e apontam, mesmo que nas entrelinhas, para as resistências que rompem com a coerência heterossexual vivenciadas intensamente no âmbito escolar. É só a partir da compreensão que os corpos são classificados e hierarquizados no âmbito da cultura e que as diferenças não são naturais, mas são naturalizadas, pois são ensinadas a partir de discursos repetidos pela mídia, Igreja, ciência, leis, que nas sutilezas se constrói o modo de conceber a normalidade. A compreensão do que é normal é construída e reconstruída através de discursos e é a base para compreender a diferença, pois ela só tem sentido quando se constituiu na relação com o outro. Seguindo a trilha de Foucault (2005) em A História da Sexualidade, a sexualidade é compreendida como um   sexualidade e religião são fatores que interseccionam e singularizam as experiências femininas, hierarquizando-as socialmente, são centrais para se compreender essa vertente, pois inserem as temáticas de gênero no âmbito das teorias sobre linguagem e relações de poder, entre outros. 41      dispositivo histórico no qual um conjunto de discursos heterogêneos, instituições, leis, medidas administrativas, enunciados científicos e proposições morais têm o intuito de controlar/regular ações. Através dos discursos a normalidade vai se tornando presumida, a diferença vai sendo invisibilizada com a penetração de regras continuamente reforçadas. Deve-se compreender quem e o que é reconhecido como normal e quem está em oposição a esse sujeito. A escola é um ambiente onde, desde crianças, participamos em diversas situações e realizamos atividades que nos expõem às diferenças entre meninos e meninas, seja pela divisão em filas, uso dos banheiros, práticas esportivas e brincadeiras. Rapidamente se vai construindo a percepção de que o mundo é dividido em dois lados. Aos poucos se vai construindo e incorporando uma percepção binária do mundo, que classifica e simboliza pessoas e coisas através da divisão de gênero, de modo que relacionamos elementos culturais como casa, delicadeza, coração, limpeza, capricho, letra bonita, enfeites, maquiagem, esforço das meninas para aprender como características pertencentes à mulher e à feminilidade e que futebol, corrida, desleixo, força, notas baixas, letra garranchada, indisciplina ou meninos gostam de matemática são características atribuídas aos homens e à masculinidade. Essas distinções, incorporadas no interior do processo educativo e através de outras instituições da vida cotidiana, tais como família, religião e mídia, organizam o mundo através das relações de gênero, tornando-as relações naturalizadas. (CARVALHO,2012). A escola aparece, portanto, como um local privilegiado para que conceitos e práticas em relação ao gênero sejam discutidos no processo de formação de crianças e jovens, pois esses passarão grande parte de suas vidas no ambiente escolar. Esse espaço revela-se como essencial para uma formação inclusiva, pautada nos direitos humanos, uma vez que as diferenças de gênero se vão convertendo em desigualdades e sendo reproduzidas na vida escolar na forma de exclusão, de preconceitos e de estereótipos. Assim compreendemos que a discussão sistemática e a problematização dos mecanismos que engendram essas desigualdades favorecem a formação das identidades. As práticas sociais organizadas a partir dos arranjos de gênero exercem uma força sobre toda a vida cotidiana. Inúmeras são as expectativas criadas segundo as quais, ao nascer, a criança se depara com repertório cultural que a coloca em contato com o que pode ser, sentir, brincar, o que se espera dela e o que pode desejar. A formação dos sujeitos em um ambiente cultural acontece de forma plural, através de muitos agentes 42      sociais, tais como família, escola, Igreja, mídia e leis, que reforçam as posições dos sujeitos através das experiências, práticas e identidades. As marcas de diferenças sociais são parte do processo de construção das identidades no interior de um ambiente cultural. As pessoas e as coisas ganham sentido em meio ao processo de constituição de diferentes posições no interior de um processo classificatório. A diferença não é oposta à identidade, ao contrário, são complementares e fabricadas em meio a sistemas simbólicos a fim de produzir um sistema de representação e também de exclusão. (SILVA, 2014). As diferenças sociais e simbólicas, em partes, são constituídas por meio de um sistema classificatório que funciona para ordenar as coisas e assim produzir os significados que mantêm a ordem social. A própria exclusão social funciona como elemento da organização social, pois delimita a fronteira do que é anormal, excêntrico e diferente. (LOURO, 2003). A partir disso, a diferença pode ser construída negativamente no interior da sociedade, sendo verificada na forma de exclusão e marginalidade das pessoas que são consideradas diversos ou outros. De acordo com Miskolci (2014, p. 35): [...] a diferença é uma característica própria da cultura, é aquilo que de novo aparece na criação, que difere do já existente. Se não a percebemos, é devido aos mecanismos de fixação de sentido que tentam conformar o que é criado ao que já existia, domesticar a diferença como diversidade. Os padrões remetem às expectativas de comportamento para o masculino e o feminino. As marcas corporais indicam a quais convenções corresponderão as normativas de gênero. As barreiras identitárias socialmente estabelecidas criam experiências nos sujeitos. Quando os corpos fogem à coerência entre o sexo e o gênero por se desviarem de padrões pensados pela relação hegemônica entre as masculinidades e feminilidades, estabelece-se uma espécie de desconforto entre os que operam dentro do padrão. Assim, a experiência dos sujeitos fica inviabilizada, conforme aponta Butler (2000), ao chamar essas experiências inviáveis de corpos abjetos, ou seja, são corpos na fronteira, intoleráveis, pois transgridem as experiências normativas. Na educação, quando os corpos transgridem a fronteira do que é convencionado como normal socialmente, vemos a ação de sanções normalizadoras que funcionam através de práticas discriminatórias ou preconceituosas, de modo que se elabora um sistema de recompensa e punição no qual os corpos que agem fora do controle do que é imposto recebem reforço de comportamento para que se adéquem às práticas rotineiras. Vestimentas ou trejeitos que não pertencem a determinado sexo, que rompem com as 43      expectativas de gênero, recaem nos estereótipos e são punidos pelos olhares e comentários pejorativos. (LOURO,2008). Identidade e diferença são relacionais, são criadas por nós dentro do campo da cultura e nas relações sociais e, portanto, inseparáveis. Ao pensarmos essas experiências de identificação e diferenciação no campo das relações de poder, encontramos meios para questionar os mecanismos de fixação dos binarismos em torno dos quais elas se organizam, possibilitando a configuração de novas formas de se expressar, que vão além dessas dicotomias. Portanto, ao buscar uma escola que desconstrua os essencialismos resultantes desses mecanismos de fixação das identidades, trataríamos da pluralidade de experiências identitárias, da circulação e fluidez, abrindo espaço na escola para uma multiplicidade de posições para os sujeitos no contexto das relações de gênero. Como aponta Brah (2006, p. 371) “as identidades são marcadas pelas multiplicidades de posições dos sujeitos que constitui o sujeito. Portanto, a identidade não é fixa, nem singular, ela é uma multiplicidade relacional em constante mudança.” As questões de identidade estão ligadas a experiências inscritas no interior das culturas. Os sujeitos passam por processos de dar sentido ao mundo, de modo que os corpos são flexíveis e não há nada sedimentado ou fixo, pois as diferentes posições dos sujeitos ganham significados nessas experimentações com os marcadores como sexo, nacionalidade, religião, raça, gênero ou geração, que criam relações entre os sujeitos. A questão encontra-se na normalização das identidades buscando fixar um “eu”, que relacionalmente produz o outro, que é ignorado, hostilizado, marginalizado, invisibilizado, conflitante e alvo de violências. Ao pensar a incapacidade de conceber o diferente ou a diversidade como possibilidades de existência enriquecedoras, mantém-se a rigidez que padroniza e produz preconceitos, conflitos, crenças e representações distorcidas do outro com a finalidade de se manter um padrão de sociedade. Louro (2015) aponta que a escola pode ser lida como um lugar paradoxal, pois exerce uma função de controle sobre os corpos, introduzindo mecanismos de homogeneização cultural e práticas prescritivas e normativas, mas também possibilita a politização dos sujeitos e a problematização da diferença, o que pode fazer dela um lugar desconstrutivo e como lugar de produção de resistência. Nesse lugar de disputa, conflito e também de resistência, os sujeitos, ao compreenderem a diversidade de possibilidades de experiências identitárias como seres no mundo, flexionam as normas, empurrando as linhas de força da legitimidade e da normalidade. Essas ações que tensionam as experiências problematizam o que é aceitável e tolerável para existir. 44      O currículo escolar, elemento que contextualiza as relações sociais entre comunidade e escola, é um produto específico do reflexo da realidade da escola, situada em um contexto mais amplo que a influência e que pode ser, por ela, influenciado. Assim também problematiza Miskolci (2014, p. 36): A escola desconstrutiva precisa desfazer esses mecanismos, historiando a construção e explicitando o poder que subjaz à tentativa de controle dos sentidos. Como o poder é inerradicável e sempre haverá novos fechamentos, dos quais precisamos para nos entendermos, trata-se de uma tarefa que nunca terá fim. Há uma contínua produção de significados que não ficam isolados na ação dos sujeitos, mas são compartilhados socialmente e organizam as práticas de agir, falar e pensar no interior das relações. O currículo escolar está permeado de um conjunto de interações sociais, que não se restringem ao espaço escolar, mas que circulam em outros campos culturais. Dessa forma podemos pensar as continuidades e descontinuidades que perpassam a formação das subjetividades através das experiências dos/as jovens e adolescentes. É preciso pensar essa arena de disputas presente no espaço escolar como um lugar de desconstrução e de potencialidade para as existências dos sujeitos em sua diversidade de estratégias e de agência. A única forma de construir um espaço público de direitos é exercitando a diferença nas experiências da vida diária e, quando a escola reforça e reproduz lugares, papéis e estereótipos para ambos os sexos, contribui para a desigualdade de gênero. (BRABO,2008). Quando a escola assume o papel como um espaço político para se discutir caminhos para a equidade de gêneros entre homens e mulheres, através da problematização das relações vividas nas salas de aula, mas também fora delas, há uma possibilidade de constituição de identidades de crianças e jovens com maior sensibilidade aos problemas que envolvem as relações de gênero. A partir dessa constatação, procuraremos compreender brevemente o papel dos movimentos sociais na construção de uma agenda associada à educação como meio para problematizar assuntos tão pertinentes à sociedade de maneira mais ampla, visando à construção de bases mais justas e democráticas para homens e mulheres. 1.2 Movimento feminista e a educação no Brasil   O movimento feminista no Brasil passou por ondas feministas, ou seja, por períodos e agendas de luta específicas em busca de avanços para consolidar o lugar da mulher e 45      do seu direito de ter voz e ser ouvida no espaço público. Como afirma Piscitelli (2002), o movimento de mulheres por direitos de igualdade e cidadania mobilizou no século XIX mulheres em vários países do mundo36. As primeiras décadas do século XX romperam marcadamente com as desigualdades quanto ao direito de voto, à propriedade e à educação. Nesse cenário já bastante conhecido do movimento feminista, formulou-se uma questão fundamental com base na desconfiança da origem da subordinação feminina, uma vez que não se constituía justa e nem natural. No Brasil, com os movimentos pela emancipação feminina no final do século XIX, começavam os primeiros movimentos de reconhecimento do direito da mulher à educação no Nordeste com a fundação da escola para meninas por Nísia Floresta, que compreendia que a emancipação feminina passava pelo processo de aquisição de educação. (LOURO, 2004). A educação oferecida a meninos e meninas eram processos substancialmente diferentes em relação ao conjunto de saberes ofertados a esses diferentes gêneros, tanto mais se esses se diferenciassem quanto à origem social ou grupos étnicos africanos ou indígenas. De acordo com Louro (2004, p. 373), as meninas “aprendiam a ler, a escrever, aritmética, costura, cozinha e todos os ramos úteis de trabalho cotidiano”. A educação feminina, mesmo após a Proclamação da República, ligava-se à ideia de moral cristã e de maternidade. Em grande parte, o recorte dado à educação feminina era compreendido como extensão para a vida doméstica, maternidade e casamento. A feminização do magistério apontava que a educação infantil seguia a lógica de uma formação para as jovens mulheres que seriam futuras esposas e mães. De acordo com Pinto (2010), a primeira onda do movimento feminista no Brasil, no início do século XX, esteve ligada à aquisição de direitos políticos a partir da conquista do voto feminino em 1932 e de sua consolidação no Estado Novo com a Constituição de 1946. Em 1928, as conquistas do primeiro voto e da eleição para prefeito no Rio Grande do Norte foram anuladas. Assim também o movimento de mulheres operárias de ideologia anarquista que buscavam regularização do trabalho feminista, igualdade no pagamento salarial, entre outras reivindicações, mas também compreendiam e reforçavam como projeto que a educação era o meio necessário para que as mulheres conseguissem sua liberdade em relação aos homens.   36 Nesse primeiro momento do movimento social de mulheres, os centros de organização estão centralizados no Continente Europeu e na América do Norte e pontualmente em outros países. 46      Entre os períodos ditatoriais no Brasil o movimento feminista se enfraqueceu, segundo Pinto (2010, p.16): Portanto, enquanto na Europa e nos Estados Unidos o cenário era muito propício para o surgimento de movimentos libertários, principalmente aqueles que lutavam por causas identitárias, no Brasil o que tínhamos era um momento de repressão total da luta política legal, obrigando os grupos de esquerda a irem para a clandestinidade e partirem para a guerrilha. Foi no ambiente do regime militar e muito limitado pelas condições que o país vivia na época que aconteceram as primeiras manifestações feministas no Brasil na década de 1970. O movimento feminista brasileiro, a partir da década de 1960, começava a se realinhar diante da conjuntura política do regime de exceção da Ditadura Militar. Os anos 1970 marcavam o endurecimento do regime contra a oposição ao governo e nesse mesmo período foram se formando as bases para a segunda onda do feminismo no Brasil. O movimento feminista entrava em uma etapa de discussão interna das diferenças e identidades entre as mulheres em suas especificidades de luta, pois as experiências sobre ser mulher eram bastante distintas, quando relacionadas com contextos como classe ou etnia. Tais diferenças, no entanto, foram deixadas para segundo plano e as mulheres participaram unidas no movimento de redemocratização, indo até as ruas em campanhas pela anistia, pelo fim da violência, mais tarde pelo retorno das eleições diretas. As ruas foram verdadeiras arenas políticas em que sujeitos excluídos encontraram lugar para ter voz, escutar e ser ouvidos. Eram novas formas de dialogar com o Estado (BRABO,2008). Com o processo de redemocratização brasileiro nos anos 1980, foram criadas condições para políticas para mulheres. De acordo com Pinto (2010), o movimento feminista entrou em uma fase de grande efervescência na luta pelos direitos das mulheres: inúmeros grupos e coletivos em todas as regiões tratavam de uma gama muito ampla de temas – violência, sexualidade, direito ao trabalho, igualdade no casamento, direito à terra, direito à saúde materno-infantil, luta contra o racismo, opções sexuais. Como parte dessa movimentação social, vimos em São Paulo a criação do Conselho Estadual da Condição Feminina e alguns anos mais tarde a criação da Delegacia de Defesa da Mulher, em 1985. Os campos da educação e a saúde foram os serviços que tiveram maior exigência dos movimentos sociais quanto a melhorias de acesso para todas as classes sociais. A Constituição de 1988, conhecida como Constituição Cidadã, garantia meios para que a sociedade brasileira combatesse as problemáticas decorrentes das desigualdades de gênero e da sexualidade. As formas ousadas e novas de dialogar com o Estado através de campanhas nas ruas apontaram a força de intervenção dos movimentos sociais que pressionaram o Estado para que seus direitos sociais fossem respeitados e garantidos e 47      que a construção de uma sociedade mais cidadã passasse pelo campo das políticas públicas na área de educação. (VIANNA; UNBEHAUM, 2004). Nos anos 1990, os documentos oficiais de educação foram marcados pela presença de temáticas de gênero e sexualidade, assim como das questões raciais nos currículos escolares, resultado de um campo de contínuas disputas nacionais e internacionais para que se estabelecessem políticas educacionais para o enfrentamento das violências contra grupos socialmente vulneráveis na sociedade brasileira, tais como mulheres, crianças, afro-brasileiros, homossexuais, idosos, entre outros segmentos. No final dos anos 1990, em conjunto com a LDB, foram organizados os Parâmetros Curriculares Universais – Temas Transversais sobre Orientação Sexual. Nesse documento, consta na introdução que desde os anos 1980 os educadores revelavam forte preocupação com o crescimento da gravidez entre jovens adolescentes e também com o risco de proliferação de infecções sexualmente transmissíveis. A abordagem desses temas pelas famílias era difícil, pois nem todos promoviam abertura para o diálogo. Esse documento recebeu ampla adesão popular, pois implicou políticas educacionais e de saúde coletiva, pois promoviam as diretrizes sobre educação sexual, sexualidade e relações de gênero. Essas questões estavam na ordem do dia no cenário da escola pública, pois diziam respeito não só à esfera da intimidade e da construção dos corpos, mas serviam aos ‘negócios de Estado’, pois a forma como a população conduzia sua vida sexual reflete- se em políticas públicas na área de saúde (natalidade, mortalidade, povoamento, abortos, entre outros). Também exerce forte influência em termos econômicos a disciplina dos corpos. (ALTMANN, 2001). Esses documentos, no entanto, expressavam uma contradição latente no país após a redemocratização, pois havia uma inflexão entre a possibilidade em alcançar os direitos previstos na Constituição de 1988 e um plano de ajustes econômicos que adotou reformas educacionais centradas em uma modernização do sistema administrativo baseada em avaliações externas, compra de material didático, capacitação dos professores, mas sem recuperação da defasagem salarial dos professores, que foram afastados do projeto de formação para a cidadania. (BRABO,2008). No ano 2000, O Brasil foi um dos governos signatários da Declaração de Dakar, elaborada na Cúpula Mundial Educação para Todos, em Dakar, Senegal, que sinalizava como meta a ser alcançada a igualdade de gênero e o empoderamento das mulheres, bem como as medidas indispensáveis para a melhoria das condições de vida propostas 48      pela Organização das Nações Unidas (ONU). Esses documentos indicavam o compromisso do governo brasileiro a reduzir os índices de violência e discriminação contra a mulher. Diante da pressão dos acordos internacionais para a implementação de ações para combate às desigualdades vivenciadas pelas mulheres no Brasil no segundo governo de Fernando Henrique Cardoso (2000-2002), o currículo escolar passa a ser considerado central nas reformas e documentos e ações são implementados pelas políticas educacionais voltadas para a perspectiva de gênero/sexualidade. A ênfase na Orientação Sexual também pode ser notada nas políticas de prevenção nas escolas e temas a ela referentes. (VIANNA, 2006). Durante os dois mandatos do governo Lula (2003-2011), houve formulação de uma agenda para combate à violência contra a mulher e promoção da Igualdade de Gênero e para as questões raciais, com a criação de secretarias, tais como a Secretaria Especial de Direitos Humanos (SEDH), a Secretaria Especial de Política para Mulheres (SPM), a Secretaria Especial da Promoção da Igualdade Racial (SEPPIR) e a Secretaria Nacional da Juventude (SNJ). As políticas públicas sobre enfrentamento a violências contra as mulheres e a homofobia caminharam durante esse governo. A Lei 11.340/2006, conhecida como Lei Maria da Penha, correspondeu a um importante marco legal para a educação, pois obriga os sistemas de ensino a difundir valores éticos de incondicional respeito à dignidade da pessoa humana na perspectiva de gênero e étnico-racial, bem como a inclusão nos currículos escolares de todos os níveis de ensino de conteúdos relativos aos direitos humanos, à equidade de gênero e étnico- racial, às violências domésticas e familiares contra as mulheres, com vistas à prevenção, tanto para o público escolar, como para a sociedade em geral. Em 2007 foi desenvolvido o Plano Nacional de Educação em Direitos Humanos. As políticas educacionais nacionais associaram as questões das minorias sociais ao direito à educação para os direitos humanos com a finalidade de garantir, através de marcos legais, o conhecimento dos direitos fundamentais, do respeito à pluralidade e à diversidade de nacionalidade, etnia, gênero, classe social, cultura, crença religiosa, orientação sexual e opção política, ou qualquer outra diferença, combatendo e eliminando toda forma de discriminação. A Resolução CNE n.º 2 de 30/01/2012, que definiu as Diretrizes Curriculares Nacionais para o Ensino Médio no título III, capítulo 1, artigo 15, inciso XV, refere-se aos projetos políticos pedagógicos escolares, à valorização e promoção dos direitos humanos 49      mediante temas relativos a gênero, identidade de gênero, raça e etnia, religião, orientação sexual, pessoas com deficiência, entre outros, bem como às práticas que contribuam para a igualdade e para o enfrentamento de todas as formas de preconceito, discriminação e violência sob todas as formas (Brasil, 2012, p.7) e reforça as Diretrizes Nacionais para a Educação em Direitos Humanos (Resolução CNE Nº 1, de 30 de maio de 2012): a inclusão das temáticas de gênero, orientação sexual e direitos humanos nos marcos da educação. Esses documentos, que garantiram a discussão de gênero e os feminismos refletem, a intensa disputa que se estabelece nas relações de gênero. De forma específica, a organização dos movimentos feministas foi essencial em busca de questionar a condição feminina para que deixasse seu lugar de esquecimento e acessasse formas de fazer política não só pelas instituições políticas, mas pela utilização das ruas como forma de negociação com o Estado a fim de melhorar o canal de diálogo daqueles que são excluídos na sociedade brasileira, pois fortalecem a cena pública para o enfrentamento das desigualdades de gênero. No século XXI, encontramos os feminismos em sua pluralidade ainda em processo de reivindicações para o acesso das mulheres na sociedade brasileira. As marcas das diferenças quanto a renda, etnia, religião, sexualidade são fatores que pluralizam as agendas dos movimentos feministas em busca de condições equânimes no mercado de trabalho, dos direitos reprodutivos sobre seus corpos e em muitos outros espaços. Contudo, não podemos deixar de apontar o quanto esses movimentos refletem uma mudança na experiência feminina quanto à redução do número de filhos, inserção no mercado de trabalho e maior grau de liberdade quando comparadas há 30 anos. Há, também, uma longa caminhada no que diz respeito à efetivação das leis para enfrentamento da violência, da possibilidade de que tenham direitos para decidir sobre seus corpos quanto a direitos reprodutivos, entre outras questões do “mundo dos direitos” que apo