UNIVERSIDADE ESTADUAL PAULISTA “JULIO DE MESQUITA FILHO” INSTITUTO DE GEOCIÊNCIAS E CIÊNCIAS EXATAS Trabalho de Conclusão de Curso Curso de Graduação em Geografia PERCEPÇÃO DA PAISAGEM URBANA DO BAIRRO LIBERDADE (SÃO PAULO - SP): A PERSPECTIVA DAS DIFERENTES GERAÇÕES NIPO-BRASILEIRAS FRENTE ÀS TRANSFORMAÇÕES URBANAS Renata Felício Boitar Paes Dias Prof. Dr. Thiago Sanna Freire Silva Rio Claro (SP) 2016 UNIVERSIDADE ESTADUAL PAULISTA Instituto de Geociências e Ciências Exatas Câmpus de Rio Claro RENATA FELÍCIO BOITAR PAES DIAS PERCEPÇÃO DA PAISAGEM URBANA DO BAIRRO LIBERDADE (SÃO PAULO - SP): A PERSPECTIVA DAS DIFERENTES GERAÇÕES NIPO-BRASILEIRAS FRENTE ÀS TRANSFORMAÇÕES URBANAS Trabalho de Graduação apresentado ao Instituto de Geociências e Ciências Exatas - Câmpus de Rio Claro, da Universidade Estadual Paulista Júlio de Mesquita Filho, para obtenção do grau de Bacharel em Geografia. Rio Claro - SP 2016 AGRADECIMENTOS À minha mãe, que tornou possível minha formação longe de casa e que sempre me ergueu nos momentos difíceis dentro desses quatro anos para que desistir nunca fosse uma opção. Com ela aprendo constantemente sobre dignidade, generosidade, coragem e como viver a vida com mais leveza porque tudo se encaminha. São muitos e grandiosos os traços nos quais me espelho. Sou eternamente grata pela vida e pelo amor. À minha avó, poetisa de refinada singeleza, influente no meu gosto pela escrita, e ao meu avô que me ensinou desde os primeiros passos a respeitar e proteger a diversa riqueza da Terra, das raízes do solo às vivas asas que atravessam o céu. Mesmo ambos não estando mais aqui para ter participado dessa fase, muito do que valorizo, escolho e sou é devido a sua influência. Ao Prof. Thiago, por ter encontrado tempo para uma aluna com um projeto abandonado, concedendo a oportunidade de colocar novas ideias em prática com liberdade. Agradeço pela solicitude, confiança e compreensão, que permitiram que esse trabalho nascesse e se desenvolvesse. Ao Prof. Paulo Godoy, que me auxiliou significativamente neste trabalho, disponibilizando tempo e atenção. Muito obrigada pelos direcionamentos e também pela competência no ensino, tão importante para a nossa formação. Ao meu namorado, Leonardo, que também foi um grande companheiro e amigo. Tantos foram os momentos que vivemos nessa cidade... Eu agradeço imensamente pelas risadas proporcionadas quando isso era o mais difícil, pela tranquilidade que eu sempre encontrei em você, pela paciência e pelo amor, resistente como um diamante! Um agradecimento especial à Sayu-chan! Querida amiga que contribuiu muito para este trabalho. Mesmo com o tempo curto, foi atenciosa e paciente com as mensagens ansiosas que recebeu. “Muito obrigada” não é o suficiente. Eu aprendi muito e adorei a experiência de poder me aproximar mais do Japão junto de alguém de quem gosto tanto e sempre prezarei. A todos os solícitos descendentes de japoneses que possibilitaram a construção deste trabalho, me proporcionando conhecimento e aprendizado. Não me esquecerei das conversas, dos momentos onde fui mais bem apresentada a essa cultura encantadora de tão única e das oportunidades que tive de demonstrar meu respeito e admiração. Agradeço especialmente ao nissei que, no momento em que vi tudo por um fio e segurava a vontade de chorar, me deu força para seguir em frente e não desistir. As lágrimas então caíram, mas por ouvir o incentivo mais importante para me sentir confiante de novo. Tetsudatte kurete, doumo arigatou. Ao Museu Histórico da Imigração Japonesa no Brasil, por todo o atendimento que recebi quando foi necessário, pelos materiais disponibilizados e pelas entrevistas que pude realizar com os funcionários, que enriqueceram não só meu trabalho, mas a minha pessoa, com seus relatos e conhecimento. Às boas amizades que adquiri e vou levar comigo com muito carinho e zelo e, aos meus colegas de curso e de universidade, com os quais compartilhei momentos descontraídos e conversas intelectuais, onde cada um sempre aprende algo novo. E claro, aos meus amigos de fora da universidade, que com sua “presença remota” me mantiveram firme aqui e segura de que lá eu sempre terei com quem contar. Aos meus cães, Beto e Niko, que atenuaram minhas preocupações com toda lealdade e doçura, convertendo tensões em momentos felizes e engraçados. Aos professores da UNESP de Rio Claro, pois meus agradecimentos pelo aprendizado, interesses despertados e incentivo não se resumem aos professores da Geografia. E aos professores de antes da universidade, aqueles que me ajudaram a enxergar o que eu poderia ser como pessoa e profissional, que me inspiraram e ensinaram coisas inesquecíveis. Aos funcionários da UNESP de Rio Claro que compartilham esse espaço com tantos estudantes, de maneira sempre amigável e colaborativa. RESUMO O presente trabalho buscou compreender o efeito das transformações na paisagem urbana do bairro Liberdade sobre a identidade cultural da comunidade nipo-brasileira sob a perspectiva da percepção da percepção da paisagem pelas diferentes gerações. Para tanto, partiu-se da consideração de que a paisagem é, por natureza, sucessivamente transformada, apresentando-se distinta e carregada de diversos valores, sentimentos, lembranças, e símbolos para cada indivíduo. No bairro da Liberdade, uma nova fase iniciou-se a partir da década de 60, com o intenso processo de urbanização na cidade de São Paulo, onde a inserção das estações Liberdade e São Joaquim do metrô acarretou em diversas transformações, como crescimento do comércio local, aumento no fluxo de pessoas e a entrada das colônias chinesa e coreana. É dentro desse contexto de mudanças que a pesquisa se insere, com o intuito de averiguar novos significados e valores na percepção da paisagem urbana local, sendo o produto dessa investigação um importante instrumento de planejamento e gestão do bairro no presente e futuro. A realização dos trabalhos de campo compreendeu registros fotográficos, observações e caracterização da paisagem atual do bairro. A fim de apreender a percepção da paisagem urbana do bairro foi elaborado um conjunto de sete questões, direcionadas às experiências e perspectivas individuais, destinadas a isseis e descendentes de japoneses que tivessem familiaridade com o bairro Liberdade, constituindo dois grupos; um de faixa etária de 18 a 35 anos e o outro, acima de 35 anos. Neste trabalho, optou-se por uma abordagem humanista sob a óptica da fenomenologia que valoriza a percepção e experiência individual na descrição de um fenômeno. Como resultados, pudemos observar que a paisagem do bairro passou por transformações de duplo caráter que geraram subprodutos até os dias atuais, como aumento da violência, aumento do número de moradores de rua e maior necessidade de assistência por parte da prefeitura municipal. Contudo, pouco mais de um século após a chegada dos primeiros imigrantes japoneses, a identidade cultural, com todas as modificações que o tempo e a metrópole impuseram, ainda é muito viva e valorizada. As gerações no papel de observadores da paisagem urbana do bairro demonstraram homogeneidade em sua percepção. Ambas identificam-se plenamente com o bairro e apontaram construtivamente situações que o ameaçam, reconhecendo que o espaço, embora não seja mais só dos japoneses, ainda lhes pertence, devendo ser compartilhado com as outras culturais orientais. Palavras chave: identidade cultural, imigração japonesa, geografia cultural. ABSTRACT This work aims to understand the effect of the changes in the urban landscape of the Liberdade neighborhood upon cultural identity of Brazilian-Japanese community, through the perspective of the perception of the landscape of different Japanese-Brazilian generations. Therefore, it primarily considered that the landscape is, by nature, successively transformed, presenting itself distinctively and filled by different values, feelings, memories, and symbols to each individual. In the Liberdade neighborhood, a new phase began since the sixties, with the intense process of urbanization in the city of São Paulo, where the insertion of the Liberdade and São Joaquim subway stations resulted in several changes, such as the growth of local trade, increase in the flow of people and the establishment of Chinese and Korean colonies. It is within this context of changes that the research is inserted, in order to find out about new meanings and values from the perception of the neighborhood urban landscape, making the product of this investigation an important tool for planning and managing the neighborhood in the present and in the future. In the methodological step, the performed fieldworks allowed for photographic records, observations and characterization of the current neighborhood landscape. In order to assimilate the perception of the neighborhood urban landscape, it was developed a set of seven questions, directed to individual experiences and perspectives, aimed at Isseis and descendants of Japanese who were familiar with the Liberdade neighborhood, consisting of two groups; an age group of 18-35 years olds and another one, of over 35 years olds. In this work, a humanistic approach was chosen, from the perspective of phenomenology that values perception and individual experience in the description of a phenomenon. As results, the neighborhood landscape faced a dual character transformation, which has generated subproducts to the present day, such as an increase in violence and in the number of homeless people, and the need for more assistance from the city government. However, just over a century after the arrival of the first Japanese immigrants, the cultural identity, with all the changes time and the metropolis imposed, it is still very much alive and appreciated. The generations on the paper of the researchers regarding the urban landscape of the neighborhood showed homogeneity in the perception of it. Both identified solely with the neighborhood and pointed constructively at the situations that threaten it, acknowledging that space, even though it is not of the Japanese anymore, it still belongs to them, having to be shared alongside the other Eastern cultures. Keywords: cultural identity, Japanese immigration, cultural geography. LISTA DE ILUSTRAÇÕES QUADRO 1 - Descrição das atividades em campo........................................................... 38 FIGURA 1 - Praça da Liberdade, lanternas suzurantou e comércio no lado esquerdo. No centro a feira de alimentos e a Capela dos Enforcados e no extremo direito o metrô Liberdade........................................................................................................................... 43 FIGURA 2 - Movimentação habitual no metrô Liberdade................................................ 44 FIGURA 3 - Fachada do Banco Bradesco......................................................................... 46 FIGURA 4 – Fachada do MacDonald’s............................................................................. 46 FIGURA 5 - Lado comercial da Praça da Liberdade......................................................... 47 FIGURA 6 - Vitrine de uma loja de acessórios e decoração na Praça da Liberdade........ 47 FIGURA 7 - Legumes, verduras e castanhas dispostos na entrada da loja e embalados por peso.............................................................................................................................. 48 FIGURA 8 - Bentô House, restaurante oriental que vende iguarias japonesas, pratos feitos e por quilo................................................................................................................ 49 FIGURA 9 - Loja chinesa de decoração............................................................................ 49 FIGURA 10 - Feira Oriental.............................................................................................. 50 FIGURA 11 - Movimentação de visitantes que também transitam nas ruas do entorno.. 50 FIGURA 12 - Avenida da Liberdade (sentido São Joaquim)............................................ 51 FIGURA 13 - Faculdade FMU.......................................................................................... 52 FIGURA 14 - Agência dos Correios.................................................................................. 52 FIGURA 15 - Casa de Portugal......................................................................................... 52 FIGURA 16 - Catedral Metodista de São Paulo................................................................ 53 FIGURA 17 - Igreja Santa Cruz das Almas dos Enforcados............................................ 53 FIGURA 18 - Sogo Plaza Shopping.................................................................................. 54 FIGURA 19 - Largo da Pólvora entre a Av. da Liberdade e a R. Américo de Campos... 55 FIGURA 20 - Estátua em homenagem a Shuhei Uetsuna................................................. 56 FIGURA 21 - Torii, na Rua Galvão Bueno....................................................................... 57 FIGURA 22 - Mercado Marukai........................................................................................ 58 FIGURA 23 - Galeria de lojas (“stand shopping”)............................................................ 58 FIGURA 24 - Vitrine com lanternas, artigos budistas e asiáticos..................................... 59 FIGURA 25 - Nikkei Palace Hotel.................................................................................... 60 FIGURA 26 - Decoração no Tanabata Matsuri................................................................. 61 FIGURA 27 - Rua Galvão Bueno às cores do festival...................................................... 61 FIGURA 28 - Pedidos pendurados nos bambus................................................................ 62 FIGURA 29 - Vista do viaduto Mie-kem para o viaduto Osaka; o Jardim localiza-se atrás deste, no lado direito da imagem. Abaixo a Radial Leste-Oeste....................................... 62 FIGURA 30 - Fachada do Jardim Oriental........................................................................ 63 FIGURA 31 - Lago artificial com carpas em um dia comum durante a semana............... 63 FIGURA 32 - Passagem interna do Jardim....................................................................... 64 FIGURA 33 - Lago com moedas no fundo, atiradas pelos visitantes durante o Tanabata Matsuri, em julho de 2016.................................................................................................. 64 FIGURA 34 - Rua dos Estudantes com a Rua da Glória................................................... 65 FIGURA 35 - Capela Nossa Senhora dos Aflitos do antigo Cemitério dos Aflitos......... 66 FIGURA 36 – Símbolo mitsudomoe nas calçadas............................................................. 66 FIGURA 37 - Torii no semáforo........................................................................................ 67 FIGURA 38 - Sinalização de pedestres............................................................................. 67 FIGURA 39 - Rua da Glória, à frente a Praça Almeida Júnior, no lado direito da imagem 68 FIGURA 40 - Karaokê Liberdade..................................................................................... 68 FIGURA 41 - Estacionamento na Rua da Glória............................................................... 69 FIGURA 42 - Glória Plaza Hotel...................................................................................... 70 FIGURA 43 - Prédio da Sociedade Cultural Japonesa e de Assistência Social................. 71 FIGURA 44 - Entrada do templo Busshinji....................................................................... 72 FIGURA 45 - Fachada do templo, construído em madeira com técnica de encaixe......... 72 FIGURA 46 - Cruzamento entre a Rua Conselheiro Furtado e a Rua Barão de Iguape... 73 FIGURA 47 - Centro Social Chinês de São Paulo............................................................ 74 FIGURA 48 - Templo Lohan Shaolin Kung Fu................................................................ 75 FIGURA 49 - Rua Conde de Sarzedas.............................................................................. 76 FIGURA 50 - Ladeira da R. Conde de Sarzedas............................................................... 77 FIGURA 51 - Museu do Tribunal de Justiça junto ao prédio............................................ 77 FIGURA 52 - Vista para a Catedral da Sé e para o Palácio da Justiça de São Paulo........ 78 LISTA DE TABELAS Tabela 1 - Paisagens urbanas.............................................................................................. 82 Tabela 2 - Mudanças observadas pelos participantes......................................................... 90 SUMÁRIO 1 INTRODUÇÃO........................................................................................................... 12 2 FUNDAMENTAÇÃO TEÓRICA............................................................................. 15 2.1 A paisagem na história da Geografia cultural............................................................. 15 2.1.1 A Geografia Cultural da Escola de Berkeley........................................................... 15 2.1.2 A Nova Geografia Cultural...................................................................................... 16 2.2 Fenomenologia e percepção ambiental........................................................................ 17 2.2.1 A paisagem percebida............................................................................................... 19 2.2.2 Um olhar sobre a paisagem urbana........................................................................... 21 2.3 Contextualização da imigração japonesa no Brasil...................................................... 22 2.4 Histórico do bairro Liberdade...................................................................................... 25 2.4.1 Origem do nome “Liberdade”.................................................................................. 27 2.4.2 Caracterização geográfica do bairro Liberdade....................................................... 28 2.5 Os imigrantes japoneses em São Paulo........................................................................ 28 2.5.1 Os impactos da Segunda Guerra Mundial na vida dos imigrantes japoneses........... 30 2.6 Transformações na paisagem urbana do bairro............................................................ 32 2.6.1 A entrada de outras colônias..................................................................................... 35 3 MATERIAIS E MÉTODOS......................................................................................... 37 3.1 Trabalhos de campo..................................................................................................... 38 3.2 Elaboração e aplicação do questionário online............................................................ 39 3.2.1 Análise dos dados..................................................................................................... 41 4 RESULTADOS E DISCUSSÃO.................................................................................. 43 4.1 Observação e caracterização da paisagem atual do bairro Liberdade.......................... 43 4.2 Percepção da paisagem do bairro Liberdade............................................................... 78 4. 2.1 Dados gerais dos participantes................................................................................. 78 4.2.2 O bairro Liberdade para os participantes.................................................................. 79 4.2.3 As paisagens urbanas mais importantes.................................................................... 81 4.2.3.1 Praça da Liberdade................................................................................................ 83 4.2.3.2 Rua Galvão Bueno................................................................................................ 84 4.2.3.3 Mercado Marukai.................................................................................................. 84 4.2.3.4 Sogo Plaza Shopping............................................................................................ 85 4.2.3.5 Museu Histórico da Imigração Japonesa no Brasil................................................ 85 4.2.3.6 Restaurantes e demais elementos citados.............................................................. 85 4.2.4 Cultura japonesa no bairro........................................................................................ 86 4.2.5 Transformações urbanas........................................................................................... 89 4.2.6 Consequências da construção das estações do metrô............................................... 92 4.2.7 Perspectivas futuras.................................................................................................. 94 5 CONSIDERAÇÕES FINAIS....................................................................................... 95 6 REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS....................................................................... 98 12 1 INTRODUÇÃO A geografia já foi considerada “a ciência das paisagens”, por este ser um de seus mais antigos conceitos (MELO, 2001). Enquanto categoria de análise da geografia, a paisagem em determinados períodos históricos foi capaz de conferir identidade à ciência geográfica, e até mesmo fornecer unicidade a ela, enquanto em outros períodos permaneceu em segundo plano, cedendo sua hegemonia a outras categorias de análise como as de “território” e “região”. Ainda assim, a paisagem está associada a essas formas, sendo sempre presente na superfície na Terra e, portanto, recebe diversos conceitos (CABRAL, 2000). Segundo Dardel (1952, apud CABRAL, 2000, p. 39) a paisagem é “um conjunto, uma convergência, um momento vivido; há uma ligação interna, uma ‘impressão’, unindo todos os elementos”. Logo, entende- se que a paisagem nunca pode ser compreendida como algo isolado, mas integrada a um espaço maior. É uma unidade contemplada pelo olhar, comunicando-se com o seu observador através da disposição e da dinâmica de seus elementos, além das demais experiências sensoriais que proporciona em sua interação constante com os indivíduos. Desde o início do século XX o bairro Liberdade é conhecido pela presença dos imigrantes japoneses. Até os dias atuais, após mais de um século de sua chegada, o bairro mantém características nipônicas que, agora, unem-se às chinesas e coreanas (ARAGAKI et al, 2004). A imigração japonesa, enquanto processo que possibilitou a atual “orientalidade” característica do bairro da Liberdade iniciou no ano de 1907, e é oficialmente reconhecida no ano seguinte, com a chegada do navio Kasato-Maru ao porto de Santos no dia 18 de junho de 1908. O navio trouxe 781 imigrantes japoneses destinados ao trabalho nas fazendas de café. A convivência amigável com brasileiros em sua rotina difícil de trabalho proporcionou novas perspectivas para a vida no Brasil e com o passar dos anos os imigrantes expandiram suas áreas de atuação para outros setores da economia brasileira, como a indústria e o comércio1. Os arredores da Rua Conde de Sarzedas, localizada em um antigo bairro central do município de São Paulo, logo representaram um refúgio para os imigrantes que vieram direto à capital paulista; esses, dotados de esperança teriam, então, fácil locomoção para o centro, bem como para os locais de trabalho (ARAGAKI et al, 2004). A “zona conde” iniciou a constituição de toda uma comunidade, sendo ali instalados os primeiros estabelecimentos 1 Informação disponível em painel informativo no Museu Histórico da Imigração Japonesa no Brasil, em abril de 2016. 13 comerciais e tornando-se campo de atividades dos imigrantes japoneses, iniciando a caracterização nipônica do bairro da Liberdade (HANDA, 1987). Os imigrantes japoneses vivenciaram diversos momentos no país. Precisamente no bairro da Liberdade, uma nova fase iniciou-se a partir da década de 60 marcada pela entrada de colônias chinesas e coreanas, e pelo crescimento do comércio, com a inserção da estação Liberdade e São Joaquim do metrô (ARAGAKI et al, 2004). É dentro desse contexto que a pesquisa se insere, com objetivo de compreender o efeito das transformações na paisagem urbana do bairro Liberdade, ocorridas a partir da década de 60 com o intenso processo de urbanização da cidade de São Paulo, sobre a identidade-cultural da comunidade nipo- brasileira. Para tanto utilizamos a perspectiva da percepção da paisagem pelas diferentes gerações de descendentes nipo-brasileiros vivendo no local. Nosso trabalho, parte da consideração de que a paisagem é sucessivamente transformada, apresentando-se distinta e carregada de diversos valores, sentimentos, lembranças, e símbolos para cada indivíduo. Esse conjunto de elementos tem como resultado a percepção da paisagem, das múltiplas paisagens pertencentes a uma só. Além disso, foram investigadas eventuais diferenças nessa percepção nas diferentes gerações de cidadãos nipo-brasileiros. Logo, a pesquisa enquadra-se na abordagem humanista sob a ótica da fenomenologia por valorizar experiências individuais e permitir subjetividade ao apreender o conhecimento. Guimarães (2002) afirma que conforme os grupos pertencentes a uma determinada cultura compreendem o espaço enquanto extensão de sua identidade, as relações estabelecidas no mesmo sofrem um processo de interiorização, o que resulta, de forma simultânea, na construção, destruição e recuperação de diversas paisagens. Tal constatação evidencia o caráter de herança – cultural ou terrestre – presente em todas as paisagens e a sua natureza em constante transformação. Na interpretação da paisagem estas transformações temporais e espaciais são de relevante significado, pois nos permitem compreender não só a gênese de seus componentes ou conjuntos, as relações entre estes, mas também a permanência de traços, vestígios e relictos que persistem (GUIMARÃES, 2007, p. 85) Tendo em vista o processo de urbanização a partir da década de 60 e a consequente inserção de novos elementos na paisagem do bairro Liberdade, não só a dinâmica local é extremamente passível de ser modificada, mas sua valoração. No presente trabalho, as consequências dessas modificações na paisagem sobre a percepção das gerações nipo- 14 brasileiras foram identificadas e consideradas enquanto importante instrumento de planejamento e gestão do bairro no presente e futuro. A presente pesquisa está estruturada em 6 seções. Na primeira são abordados os principais conceitos e contextos dentro da temática trabalhada e os objetivos da pesquisa. A segunda aborda a fundamentação teórica oriunda do levantamento bibliográfico acerca de noções sobre percepção ambiental, histórico da abordagem dos aspectos culturais e imateriais da paisagem pela geografia cultural, a maneira como fenomenologia trata a relação entre indivíduo e meio ambiente e ainda, tópicos referentes ao bairro Liberdade, à imigração japonesa no Brasil e as transformações que o bairro sofreu em meio ao processo de urbanização da cidade de São Paulo. Na terceira seção, são descritos os procedimentos metodológicos utilizados para a realização da pesquisa. Na quarta seção são apresentados e discutidos os resultados provenientes dos trabalhos de campo e da análise dos dados, seguida das considerações finais. Por fim, na última seção, está a bibliografia consultada no desenvolvimento deste trabalho. 15 2 FUNDAMENTAÇÃO TEÓRICA 2.1 A paisagem na história da Geografia Cultural De acordo com Melo (2001) o aspecto cultural do conceito de paisagem começou a ser trabalhado pelos geógrafos alemães no início do século XX, sendo na década de 20 incorporado na Geografia Cultural pelo geógrafo americano Carl Ortwin Sauer, da escola de Berkeley. Contudo, essa abordagem tinha como foco as relações entre o homem e meio ambiente, estudando as diversidades regionais através de descrições técnicas, considerando apenas a materialidade da cultura (análise morfológica) e permaneceu até os anos 1940 (MELO, 2001). Essa forma de análise sofre renovação através da abordagem cultural dos anos 1970; a partir de então, não é levada em conta apenas a materialidade das culturas, mas a condição de que só é possível compreender a realidade social, inserindo-se nela como se dela fizesse parte, quando toda realidade social é “fundamentalmente cultural” (ROSENDAHL, 2001). 2.1.1 A Geografia Cultural da Escola de Berkeley Durante 50 anos, de 1925 a 1975, a Escola de Berkeley, na Califórnia, criada por Carl Ortwin Sauer, formou geógrafos influentes que deixaram sua marca na Geografia Cultural, que nessa escola exerceu grande papel na história do pensamento geográfico proporcionando o entendimento da ação humana sobre a superfície da Terra e tornando a paisagem um dos conceitos-chave na ciência geográfica (CORRÊA, 2001). Segundo Melo (2005), os estudos geográficos de Sauer tinham como finalidade a análise das paisagens culturais, considerando sua morfologia física como um meio sujeito a transformações através do agente cultura. Devido à impossibilidade de mensuração e classificação dos aspectos subjetivos da paisagem para a composição de um contexto científico, estes não eram considerados na Geografia Cultural Tradicional (MELO, 2005). Sauer, filho de imigrantes alemães, nasceu em Warrenton, uma pequena cidade do estado de Missouri, nos EUA. Seu pai teve influência em seu apreço pela História e também por Goethe, ao ter sido membro da associação literária Goethenia Society. Tal influência goetheana é presente em sua obra The morphology of Landscape de 1925, onde as formas são compreendidas como objetos de expressão tanto cultural como individual, representando manifestações naturais, espirituais e humanas (CORRÊA, 2001). 16 Alguns dos métodos utilizados por Sauer, segundo Corrêa (2001), foram descrição, comparação, indução, e generalização sintética; o tradicionalismo e moralismo; a contemplação, apreciação e estética; e a sucessão de fatos. 2.1.2 A Nova Geografia Cultural O homem mantém diversas relações com o meio natural que transcendem o material, uma vez que um grupo social e cada indivíduo guardam um significado importante de caráter psicológico, correspondendo ao bem-estar, memória, utilidade, conhecimento e sentimento. Ele se utiliza de tal significado para suprir suas necessidades materiais e energéticas e para construir sua identidade a partir do lugar onde vive e de seu convívio social (ROSENDAHL et al, 2001). A transformação que começa a afetar os estudos culturais conduzidos pelos geógrafos a partir do início da década de 1970 (...) nasceu da constatação de que as realidades que refletem a organização social do mundo, a vida dos grupos humanos e suas atividades jamais são puramente materiais. São a expressão de processos cognitivos, de atividades mentais, de trocas de informação e de ideias (CLAVAL, 2001, p. 39). A renovação que a Geografia Cultural sofreu a partir do final de 1970 foi proveniente das diversas críticas que a Escola de Berkeley recebeu. Algumas delas vieram de Richard Hartshorne que contestava o fato de que para os geógrafos culturais a cultura era o único foco, desconsiderando assim os demais elementos de uma área e, ainda houve críticas dos geógrafos teorético-quantitativos que diziam que o passado era mais importante para a geografia cultural, não comportando uma visão de desenvolvimento (CORRÊA, 2001). A Nova Geografia Cultural não abstrai o sujeito da paisagem, visando compreender a paisagem pelas seguintes perspectivas: primeiro, ela é apreendida por uma consciência valorizada a partir de uma experiência, que é julgada por uma estética e uma moral que, por sua vez, são geradas por uma política. Na segunda perspectiva a paisagem é a matriz determinante do olhar, da consciência, da experiência, da estética, da moral e da política. Ou seja, a paisagem não é compreendida enquanto objeto apenas, mas em conjunto com o sujeito (BERQUE, 2004). Era exatamente isso que faltava à antiga geografia cultural, onde a descrição do mundo não acompanhava uma explicação e a paisagem era trabalhada sob um olhar exclusivamente estético (CLAVAL, 2001). As críticas direcionaram, então, uma nova abordagem dentro da geografia, na qual os homens são interrogados: 17 “[...] sobre a experiência que tem daquilo que os envolve, sobre o sentido que dão à sua vida e sobre a maneira pela qual modelam os ambientes e desenham as paisagens, para neles afirmar sua personalidade, suas convicções e suas esperanças” (CLAVAL, 2001, p. 42) Então, sob influência da fenomenologia, essa nova abordagem na geografia, de caráter humanista, exaltou em seus estudos dimensões antes não trabalhadas, como a dos valores sociais e culturais, valorizando a história e o mundo vivido, no qual os indivíduos não apenas percebem e vivem o espaço de forma diferente, mas também o interpretam (LENCIONI, 2009). Segundo Luchiari (2001), o imaginário coletivo adquire com o passar do tempo uma nova concepção de natureza que é então transformada em cultura através de artefatos simbólicos e materiais. As paisagens valorizadas carregam em si a estrutura social de sua sociedade conformando lugares a territórios (LUCHIARI, 2001). Consequentemente, a paisagem tem um papel social, pois dispõe material que farão emergir lembranças e símbolos comuns que então consolidam em si a união de um grupo, permitindo que esse se comunique internamente (LYNCH, 1997). Diante do exposto, o meio ambiente deve ser compreendido enquanto palco de sobrevivência, vivência e experiência. Ele não é diferenciado apenas por sua paisagem, mas também por aquilo que o marca, por seu povo, pelo significado que este carrega, e por sua atuação (ROSENDAHL; CORRÊA, 2001). 2.2 Fenomenologia e percepção ambiental Ponty (1994) considera a fenomenologia o estudo das essências; a essência da percepção, da consciência, da própria existência. A compreensão de mundo e do homem para essa filosofia somente é possível através de sua facticidade, na qual o mundo precede a reflexão e através da qual se busca descrever de maneira direta nossas experiências, ou seja, puramente quanto àquilo que compõe sua gênese. O esforço na fenomenologia é “reencontrar esse contato ingênuo com o mundo para dar-lhe enfim um estatuto filosófico. [...] é também um relato do espaço, do tempo, do mundo ‘vividos’” (PONTY, 1994, p. 2). De acordo com Husserl (2006, p. 25) “ela se denomina uma ciência de ‘fenômenos’”. O autor não exclui, porém, que muitas outras ciências, inclusive mais antigas que a Fenomenologia já lidassem com fenômenos; a Psicologia lida com fenômenos psíquicos, as Ciências da Natureza com fenômenos físicos, e a História com fenômenos históricos. A 18 maneira como a Fenomenologia aborda os fenômenos de todas as esferas do conhecimento é o que a difere em relação às ciências que os detém e os estuda. O sentido do fenômeno é modificado para adentrá-la (HUSSERL, 2006). A fenomenologia adquire um papel de “doutrina eidética descritiva dos vividos transcendentais”, que como toda ciência descritiva, não se utiliza de idealização e tem um caráter legítimo. Aquilo que a caracteriza é tudo que seja capaz de ser apreendido de forma eidética (na essência) nos vividos, seja como um correlato real ou intencional (HUSSERL, 2006). Essa apreensão representa uma grande fonte de conhecimento absoluto, segundo Husserl (2006). Entende-se logo que para a fenomenologia, o mundo detém em si mais do que o alicerce que suporta matéria e sua existência vai além de um sistema que nos circunda; esse sistema é percebido por nós. O mundo, na fenomenologia, é compreendido como o contexto onde se revela a consciência, não sendo apenas um mundo constituído unicamente por fatos, mas também por valores e bens. Nele cada indivíduo constrói seu próprio horizonte, que se baseia em um passado e direciona-se a um futuro (BUTTIMER, 1982). Para essa filosofia, o espaço logo representa em si mais do que o alicerce que suporta matéria. Quer dizer, em lugar de imaginá-lo como uma espécie de éter no qual todas as coisas mergulham [...], devemos pensá-lo como potencia universal de suas conexões. Portanto, ou eu não reflito, vivo nas coisas e considero vagamente o espaço ora como ambiente das coisas, ora como seu atributo comum, ou então eu reflito, retomo o espaço em sua fonte, penso atualmente as relações que estão sob essa palavra, e percebo então que elas só vivem por um sujeito que as trace e as suporte, passo de espaço espacializado ao espaço espacializante” (PONTY, 1994, p. 328) Todo o conhecimento de mundo advém de uma visão própria do indivíduo, da sua experiência de mundo, mesmo o conhecimento científico que igualmente é construído no espaço vivido, sendo, de acordo com Ponty (1994), secundário a tais experiências. O real, portanto, deve ser descrito sem construção ou constituição, considerando que o mundo é uma existência antes de quaisquer análises que dele se possa fazer. O mundo não é um objeto do qual possuo comigo a lei de constituição; ele é o meio natural e o campo de todos os meus pensamentos e de todas as minhas percepções explícitas. A verdade não “habita” apenas o “homem interior”, ou, antes, não existe homem interior, o homem está no mundo, é no mundo que ele se conhece (PONTY, 1994, p. 6). 19 O que é perceptível compõe um “campo”, está sempre entre outra coisa; uma superfície inteiramente homogênea nada oferece a nenhuma percepção, logo, identificar o perceber se faz somente a partir da estrutura da percepção efetiva (PONTY, 1994). Esse campo perceptivo é composto por coisas e “vazios entre as coisas”; mesmo o que está atrás de nossas costas detém presença visual, e cada objeto percebido é compreendido a partir de seu próprio contexto, sem necessariamente estar associado aos demais em sua significação (PONTY, 1994). Ao discorrer sobre o processo perceptivo, o autor coloca como exemplo um jornal, que às avessas passaria a ser ilegível; o mesmo vale para uma paisagem com elementos dispostos de maneira diferente que então seria irreconhecível, atestando o pressuposto de que a percepção exterior precede a percepção interior, não só no conhecimento, mas no reconhecimento de uma paisagem. É que, para vir a completar a percepção, as recordações precisam ser tornadas possíveis pela fisionomia dos dados. Antes de qualquer contribuição da memória, aquilo que é visto deve presentemente organizar-se de modo a oferecer um quadro em que eu possa reconhecer minhas experiências anteriores (PONTY, 1994, p. 44). Um objeto uma vez percebido é consequentemente constituído e é entendido como causa do conjunto de experiências dele adquiridas ou possíveis de adquirir (PONTY, 1994). 2.2.1 A paisagem percebida Percepção é tanto a resposta dos sentidos aos estímulos externos como a atividade proposital, na qual certos fenômenos são claramente registrados, enquanto outros retrocedem para a sombra ou são bloqueados. Muito do que percebemos tem valor para nós, para a sobrevivência biológica, e para propiciar algumas satisfações que estão enraizadas na cultura (TUAN, 2012, p. 18) A percepção é entendida por Gibson (1966 apud DEL RIO et al, 1996) como um processo mental onde o indivíduo interage com o meio ambiente por meio de mecanismos propriamente perceptivos, representados pelos cinco sentidos com destaque para a visão, e por mecanismos cognitivos. Esses últimos mecanismos, por sua vez, recebem a contribuição da inteligência, considerando que a mente não recebe de forma passiva as sensações e que o sujeito é ativo no processo perceptivo a partir de julgamentos, valores e motivação, entre outros (FISKE & TAYLOR, 1991 apud DEL RIO et al, 1996). A percepção varia de acordo com a posição relativa do observador, e seres perceptivos que percebem um mesmo objeto nunca terão uma percepção exatamente igual (HUSSERL, 1980). O autor ilustra essa afirmação ao associar as expressões “Um melro voou” e “Isto é 20 preto, esse animal preto voou, subiu”, considerando a observação de um jardim; o sentido das expressões é o mesmo, mas a percepção, não. Além de mudar, a percepção também é passível de desaparecer, mantendo, no entanto, significativa a expressão; ao ler os dois enunciados a respeito do jardim, o leitor é capaz de compreender a proposição sem estar no jardim, sem observá-lo de qualquer outra forma a não ser intuitivamente e, mesmo sem percepção, ele pode confiar na veracidade do que foi dito a partir de sua própria representação (HUSSERL, 1980). Os indivíduos buscam criar e possuir suas paisagens particulares e o significado da paisagem vivida e valorizada está exatamente no criar e possuir, segundo Burgess & Gold (1982 apud BLEY, 1996). Nesse sentido, os autores explicam que a paisagem é criada quando dotada de significado pessoal e o pertencimento surge quando ela oferece recursos que atendem as necessidades. Através da experiência, os significados de espaço e lugar se fundem, uma vez que o lugar é dotado de valor à medida que o conhecemos mais, é sob essa perspectiva que para Relph (1979 apud ROSENDAHL et al, 2001) o espaço indiferenciado se torna lugar, cenário de relações. Relph (2001) define o espaço existencial/vivido como: A estrutura íntima do espaço tal qual nos aparece em nossas experiências concretas de mundo como membros de um grupo cultural. Ele é intersubjetivo e, portanto, permeia todos os membros daquele grupo, pois todos foram socializados de acordo com o conjunto de experiências, signos e símbolos (RELPH, 2001, p. 106). Assim, o lugar relacionaria as experiências do espaço de maneira particular, uma vez que os lugares, ao gerar atração e manifestar intenções, são tidos como singulares porque o significado de espaço vivido vem através de nossa “experiência imediata” (Rosendahl et al, 2001). Há formas diretas, indiretas e passivas de experienciar, desde aquelas que envolvem o uso dos sentidos paladar, olfato e tato até por meio da simbolização; o ver e o pensar são compreendidos pelo autor como processos intimamente relacionados (TUAN, 1983). Enquanto exemplo da forma direta e íntima de experienciar, Tuan (1983) coloca a casa de um indivíduo que esse conhece muito mais em comparação com o país onde vive, do qual ele pode conhecer algo. Da mesma forma, um habitante antigo de uma cidade a conhece de maneira distinta da de um motorista que conhece suas ruas ou da maneira de um geógrafo que a conhece conceitualmente (TUAN, 1983). Em suma, a experiência não ocorre de maneira similar entre os indivíduos e sua formação e caráter se dá em decorrência da forma como se 21 vivencia, há quanto tempo se vivencia, das relações estabelecidas, da função que se atribui ao espaço, e de fatores culturais, entre outros que circundam a realidade de cada um com determinado meio. Essa particularidade também é presente na maneira como cada um reage a um meio ambiente, na sua visão de mundo, onde alguns aspectos são selecionados, outros evitados, de acordo com o conhecimento, muitas vezes advindo de um exame superficial, sobre determinado objeto e espaço (LOWENTHAL, 1982). Isso demonstra que além de escolher nossa visão de mundo ou acerca de um objeto, podemos também estar condicionados a ver de determinada forma conforme nosso conhecimento individualizado. “Cada imagem e ideia sobre o mundo é composta [...] de experiência pessoal, aprendizado, imaginação e memória” e recebem contribuições dos lugares onde estivemos, daqueles em que vivemos e dos mundos presentes na imaginação, nas obras de arte e de ficção (LOWENTHAL, p. 141, 1982). O autor conclui então que das experiências distantes às muito próximas é formado o quadro individual da realidade. 2.2.2 Um olhar sobre a paisagem urbana Lynch (1997) afirma ser a cidade uma construção do espaço, a qual somente é percebida no decorrer de um longo tempo, por se tratar se uma construção em grande escala. Espaço compartilhado, onde a percepção individual é fragmentária, influenciada por diversos fatores; a cidade é objeto percebido por milhões de pessoas de distintas características que convivem com suas modificações e seu crescimento em uma contínua sucessão de fases (LYNCH, 1997). Paisagem urbana, a visão da rua, é o que a maioria de nós capta das cidades a maior parte do tempo. As ruas podem parecer óbvias porque são vulgares, mas de fato envolvem uma complexidade de estruturas materiais, objetos de arte e bancos, automóveis e peões, assim como os espaços das estradas e dos passeios (RELPH, 1990, p. 211). A existência de uma imagem pública da cidade, seja ela qual for, é considerada por Lynch (1997), aquela formada pela sobreposição de muitas imagens individuais ou também por um conjunto vasto de imagens públicas criadas por um número considerável de seus cidadãos. Essas últimas imagens seriam úteis a um indivíduo quando uma ação de sucesso e cooperação em um ambiente é pretendida, considerando assim, os demais cidadãos. Já a imagem individual é única e de acordo com Lynch (1997) detém conteúdo que em raras 22 ocasiões é comunicado, sendo muito particular, mas podendo ainda se aproximar da imagem pública. Tuan (2012) diferencia os olhares de um visitante e de um nativo sobre uma paisagem e ambos apresentam fragilidades e potencialidades, uma vez que, ao mesmo tempo em que o visitante pode olhar de forma muito estética e filtrada como um típico turista, tal superficialidade não o impede de notar detalhes já despercebidos pelos habitantes e esses, por estarem imersos naquele ambiente apresentam atitude completamente diferente devido àquilo que valoriza e suas experiências. Quanto às vivências dos indivíduos, Lynch (1997) afirma que nada é vivenciado pontualmente, mas sim em relação ao seu entorno, a um conjunto de sequências de elementos conduzidos por ele e também à memória, convocando experiências passadas. Todo cidadão de uma cidade possui uma imagem da mesma que se apresenta preenchida por significados e lembranças. A ideia generalizada acerca do mundo exterior é tida pelo autor como “imagem ambiental” que se configura enquanto produto simultâneo da sensação imediata e de experiências passadas (LYNCH, 1997). A utilização da imagem ambiental visa à interpretação de informações e orientação de ações e possui grande importância prática e emocional, uma vez que o “reconhecer” nosso ambiente e mesmo padronizá-lo está intimamente relacionado ao passado (LYNCH, 1997). 2.3 Contextualização da imigração japonesa no Brasil Ao chegar ao Porto de Santos, em 18 de junho de 1908, no navio Kasato-Maru: [...] 800 imigrantes (781 imigrantes sob contrato, 10 imigrantes espontâneos e outros) agitavam-se num turbilhão de excitação embriagadora à idéia da proximidade das fazendas e de seus cafeeiros, as árvores dos frutos de ouro. Às vésperas de São João os rojões subiam, explodindo estrondosamente. E, ainda, balões navegavam no céu. Contemplando comovidos o espetáculo os imigrantes tiveram a ilusão de que o povo brasileiro lhes estava dando as boas-vindas. (YONJÛNENSHI apud HANDA, 1987, p. 4) No dia 28 de abril de 1908, o navio Kasato-Maru partiu do Porto de Cobe, na Província de Hyogo em direção ao Brasil. A duração da viagem era de no mínimo 45 dias via Canal do Panamá ou ainda, 60 dias via África do Sul. As despedidas tristes eram atenuadas com a vida a bordo e eventos festivos durante tantos dias de viagem, mas conforme o desembarque se aproximava, a adquirida tranquilidade perdia-se em meio à tensão, às 23 expectativas de cada um com relação ao que seria dali para frente em um país totalmente diferente2. O chamado “Tratado de Amizade, Comércio e Navegação entre o Japão e o Brasil”, assinado pelos dois países em 1895, marca o início de sua relação. No entanto, antes dessa oficialização, em visita às Américas do Sul e Central, o parlamentar membro da Sociedade Colonizadora, Shô Nemoto, afirmou ser o Brasil um país “propício” a receber imigrantes japoneses, havendo, nos anos seguintes, tentativas de trazê-los ao Brasil. Para que isso se realizasse, foi necessária a divulgação de um relatório por Fukashi Sugimura, o então ministro do Japão no Brasil que, nele, manifesta esperança com relação às fazendas de café paulistas; esperança que despertou a atenção dos japoneses através dos jornais e motivou a vinda não só do navio Kasato-Maru, pelas mãos do presidente da Companhia Imperial de Emigração, Ryo Mizuno, mas também dos funcionários da primeira casa comercial japonesa em território brasileiro, a Casa Fujisaki (MUSEU HISTÓRICO DA IMIGRAÇÃO JAPONESA NO BRASIL et al, 2008). A conjuntura japonesa com o fim da Guerra Russo-Japonesa era de crise econômica. O desemprego chegou a 80%3 e os japoneses passaram a exigir iniciativas emigratórias em massa em busca de trabalho que pudesse lhes conferir melhores condições de vida. Os países que recebiam os imigrantes japoneses, como o Canadá e os Estados Unidos, passaram a repelir cada vez mais sua imigração devido a formações de grupos anti-japoneses. Ao mesmo tempo, no Brasil, o contexto era de suspensão da imigração italiana pelo governo da Itália, por conta do conhecimento e reprovação das condições de semi-escravidão as quais os italianos eram submetidos nas fazendas de café, o que, por sua vez, ocasionou queda da força de trabalho (MUSEU HISTÓRICO DA IMIGRAÇÃO JAPONESA NO BRASIL et al, 2008) Muitas famílias japonesas dispersaram-se pelas fazendas de café na condição de colonos (trabalhadores contratados), com o anseio de um retorno ao Japão após acumular riquezas (MUSEU HISTÓRICO DA IMIGRAÇÃO JAPONESA NO BRASIL et al, 2008). O trabalho, a comida, a moradia e tantos outros aspectos presentes no cotidiano das fazendas de café foram estranhados, em especial o manejo dos instrumentos e as próprias condições precárias de trabalho. Com o tempo, foram incorporando às suas vidas práticas e utensílios do Japão. Uma maneira de se sentir-se perto da terra natal, mas também mais confortados em 2 Informação disponível em painel informativo no Museu Histórico da Imigração Japonesa no Brasil, em abril de 2016. 3 Informação adquirida em conversa com Sérgio Yagami, em julho de 2016. 24 suas novas vidas4. Habitações precárias, servindo essencialmente de abrigo, eram construídas pelos imigrantes japoneses em pequenos lotes adquiridos através de poupanças, quando possível nas fazendas. Esses lotes correspondiam a porções de mata virgem e eram destinados ao plantio de café4 . As festas tradicionais e outras manifestações culturais realizadas na colônia a princípio voltavam-se inteiramente à nacionalidade japonesa, mas com o tempo, receberam diversos toques brasileiros, tornando-se mistas. A introdução do Brasil em seus modos de vida, no entanto, não se restringiu apenas nas festividades, mas na forma dos utensílios de trabalho e do dia a dia e na alimentação. A maior preocupação dentro das colônias era a educação, efetivada através da construção de escolas que ensinassem o idioma japonês devido à falta de instituições oficiais próximas4. Dentre as recreações dos imigrantes, inseridas para humanizar a rotina na frente pioneira, estavam os jogos de beisebol, o sumo e a undokai (gincana em família), mas a preferida era o cinema japonês. Essas formas de recreação tornavam os dias menos pesados, uma vez que podiam preenchê-los com atividades coletivas que garantiam momentos de integração da colônia4. Sob uma perspectiva geral, o clima quente, as duras experiências de trabalho fiscalizado nas fazendas, que tirava a liberdade das famílias não acostumadas a isso e, seu caráter muito semelhante ao escravagista e a própria realidade de uma cultura totalmente diferente, surpreendeu negativamente os imigrantes (HANDA, 1987). Além disso, havia a barreira da língua, a distinção de costumes, os conflitos entre imigrantes e fazendeiros e a própria frustração de não se obter com facilidade o dinheiro esperado. Tais surpresas desagradáveis na terra da “árvore do ouro” (pé de café) fizeram com que muitos imigrantes abandonassem o trabalho nas fazendas para se tornarem proprietários independentes (MUSEU HISTÓRICO DA IMIGRAÇÃO JAPONESA NO BRASIL et al, 2008). Essa terra que, segundo o governo japonês em uma reconhecida propaganda enganosa5, os imigrantes japoneses deixariam após dois anos de trabalho munidos de riquezas de volta ao Japão. Com isso e através do tempo, a renda apresentou sensível crescimento e núcleos coloniais de japoneses foram formados, dedicando-se ao cultivo de diversas espécies, com destaque inicial ao arroz, alimento base de sua alimentação. Esses núcleos, no entanto, já existiam desde o primeiro período da imigração japonesa, mas só ganharam considerável 4 Informação disponível em painel informativo no Museu Histórico da Imigração Japonesa no Brasil, em abril de 2016. 5 Informação adquirida em conversa com Sérgio Yagami, em julho de 2016. 25 força com o declínio dos grandes latifúndios e com a queda da fertilidade nos cafezais paulistas (MUSEU HISTÓRICO DA IMIGRAÇÃO JAPONESA NO BRASIL et al, 2008). Nem todos os imigrantes que buscaram alternativas ao trabalho nos cafezais se direcionaram ao trabalho agrícola independente. Muitos foram buscar empregos nas cidades, e através das poupanças geradas conseguiam abrir seus próprios negócios. O crescimento dos núcleos e o surgimento das metrópoles garantiram adesão a esses estabelecimentos comerciais (restaurantes, armazéns, alfaiates, lavanderias, livrarias, entre outros) destinados a japoneses. A língua japonesa também passou a circular através de jornais em todos os ajuntamentos e então as portas se encontraram abertas para novos caminhos profissionais (MUSEU HISTÓRICO DA IMIGRAÇÃO JAPONESA NO BRASIL et al, 2008). Entre 1928 e 1934, a emigração passou a constituir parte da política nacional, no momento em que esse período correspondeu à fase áurea da imigração japonesa no Brasil que, então, recebeu cerca de 30 mil imigrantes. Em um contexto geral, a partir da chegada do navio Kasato-Maru, 250 mil imigrantes emigraram ao Brasil e depois da Segunda Guerra, mais 60 mil (MUSEU HISTÓRICO DA IMIGRAÇÃO JAPONESA NO BRASIL et al, 2008). As contribuições dos imigrantes japoneses ao Brasil encontram-se em diversos setores, como nas artes plásticas, economia, cultura e religião, mas especialmente na agricultura através da introdução de novas culturas e sementes (alface, alho, batata, tomate), inovação nas técnicas de produção, como a técnica da agricultura de periferia, e criação de cooperativas agrícolas que tem como exemplo a Cooperativa Agrícola de Cotia, a maior da América Sul (MUSEU HISTÓRICO DA IMIGRAÇÃO JAPONESA NO BRASIL et al, 2008). 2.4 Histórico do bairro Liberdade Originalmente, o bairro, antes de receber imigrantes japoneses, recebeu imigrantes italianos e portugueses e a instalação de cada colônia provocou muitas transformações na configuração do espaço (SÃO PAULO, 1987). Toda a região assistida hoje pela subprefeitura Sé possuía chácaras dispersas e pastagens no passado, porém os bairros Liberdade e Cambuci apresentavam uma considerável predominância de chácaras que cobriam grandes áreas até o início do século XX, quando os loteamentos das mesmas iniciaram a formação desses bairros, criando seus traçados definitivos (ARAGAKI et al, 2004; SÃO PAULO, 1987). Elas se erguiam em meio ao Caminho do Mar (atual Rua da Glória), que estabelecia comunicação entre São Paulo e 26 Santos, e ao Caminho do Carro para Santo Amaro que conectava o centro da capital a Santo Amaro e à Zona Sul e que, atualmente, compreende a extensão das avenidas Liberdade e Vergueiro. Através desses caminhos produtos eram escoados de São Paulo para Santos, Santo Amaro e outras localidades, com destaque ao transporte de gado, principal atividade econômica da cidade na época (SÃO PAULO, 1987). O Caminho do Carro para Santo Amaro junto ao Caminho do Mar foram os mais importantes para o posterior povoamento da região, que se manteve semipovoada durante todo o século XVII (SÃO PAULO, 1987). No século XVIII, a área era conhecida como Bairro da Pólvora devido à construção da Casa de Pólvora em 1754, e permaneceu com essa denominação até 1833, quando passou a ser chamado Distrito Sul, pertencente ao então Distrito da Sé (SÃO PAULO, 1987). Em 1779, foi instalado o primeiro cemitério público da cidade de São Paulo no local que atualmente compreende as ruas da Glória e Galvão Bueno na altura da Rua dos Estudantes. O cemitério era destinado aos mortos por suplício, indigentes e pobres e funcionou até 1858. No entanto, existe um vestígio de sua existência, a Capela Nossa Senhora dos Aflitos na Rua dos Aflitos, pertencente ao antigo cemitério, representando com sua arquitetura eclesiástica o período colonial (SÃO PAULO, 1987). Schimidt (1954 apud ARAGAKI et al, 2004) ressalta que a criação da Junta da Justiça na cidade de São Paulo no ano de 1820 carecia curiosamente de uma forca, meio de execução dos condenados da época. Ela foi construída no ano seguinte, por determinação da Câmara Municipal, localizando-se próximo ao cemitério “dos aflitos” e permaneceu erguida no chamado Largo da Forca (atual Praça da Liberdade) até 1891 quando o local passou a se chamar Largo da Liberdade (SÃO PAULO, 1987). Na conformidade espacial atual, sua localização compreende o Largo da Liberdade e o quarteirão da Avenida da Liberdade com as ruas Américo de Campos e Galvão Bueno (ARAGAKI et al, 2004). Por conta da presença da Casa de Pólvora e da forca, nos documentos da Câmara Municipal dos séculos XVII e XVIII a região que atualmente é central era considerada periférica (SÃO PAULO, 1987). Alguns anos depois, em 1834, um pelourinho foi instalado, sendo esse uma coluna de madeira onde delinquentes e escravos recapturados de tentativas de fuga sofriam castigos físicos e de onde partiam a Rua da Forca - atual Avenida da Liberdade - e o antigo Caminho do Mar (SCHIMIDT, 1954 apud ARAGAKI et al, 2004). Do início do século XVII ao fim do século XIX - período que compreende o Brasil Colonial até o fim do Brasil Império - o bairro foi palco desses castigos e também dos enforcamentos (ARAGAKI et al, 2004). 27 O fator de grande importância na formação não só do bairro Liberdade, mas de muitos outros bairros da Zona Sul, foi o crescente processo de venda, revenda e concessão de terras iniciado no Bairro da Pólvora em 1813 devido ao progresso da economia cafeeira, gerando significativo aumento populacional (SÃO PAULO, 1987). No entanto, foi a partir de 1850 que a consequente expansão urbana do centro paulistano pressionou definitivamente os proprietários das chácaras a ceder espaço para a abertura de novas ruas, alamedas e largos. Essa ação foi motivada unicamente pela então latente necessidade de locomoção e acesso, sem ter havido um planejamento direcionado (SÃO PAULO, 1987). Ao mesmo tempo em que chácaras eram substituídas por vias de circulação, muitas habitações passam a ocupar as encostas das colinas e os vales. Os caminhos abertos passaram a ser ruas oficialmente reconhecidas e nomeadas pela Câmara Municipal, assim como as casas que receberam numeração. Nesse contexto nasciam as ruas Conselheiro Furtado, Conde de Sarzedas, Fagundes, Avenida Brigadeiro Luís Antônio, entre outras. Até então, o bairro tinha caráter residencial, constituindo “ponte” entre o centro urbano e os bairros da Zona Sul, esses são: Paraíso, Vila Mariana, Jabaquara, Saúde, Santo Amaro e Vila Clementino; todos em processo de formação (ARAGAKI et al, 2004). Em 20 de dezembro de 1905, o então Distrito Sul da Sé é desmembrado por meio da Lei municipal nº 975 que marca a instituição do bairro Liberdade (Nippo-Brasil, [199-]). 2.4.1 Origem do nome “Liberdade” Aragaki (2004) afirma que o nome “Liberdade” primeiramente pertenceu a um chafariz no Largo São Francisco, registrado como tal desde o dia 4 de maio de 1831, pelo vereador Candido Gonçalves Gomide. Sua motivação era a criação de um marco histórico que lembrasse a abdicação de Dom Pedro I em 7 de abril do mesmo ano. Segundo a autora, do chafariz, o nome passou a referenciar à rua, depois ao largo e finalmente ao bairro. Contudo, o nome “Liberdade” passou a constar em documentos escritos somente a partir de 1871, não havendo como afirmar sua origem ao certo. Pode estar associado às ações abolicionistas de moradores, como as do advogado Antônio Bento de Souza e Castro, editor das folhas “A Liberdade” e “A Redenção” e também pode configurar oposição ao termo do antigo Largo da Forca que mudou de nome em 1891 após a abolição da escravatura no Brasil em 1888 (SÃO PAULO, 1987). 2.4.2 Caracterização geográfica da área de estudo 28 O bairro Liberdade está localizado na região central do município de São Paulo. Apresenta como distritos limítrofes: Sé ao Norte, Vila Mariana ao Sul, Cambuci a Leste e Bela Vista a Oeste. O bairro possui uma área total de 3,7 km² e junto aos bairros Cambuci, Bom Retiro, Santa Cecília, Consolação, Sé, Bela Vista e República, é assistido pela subprefeitura Sé (SÃO PAULO, 2016). O número total de habitantes era de 61.875 em 2010, com densidade demográfica de 16.723 hab/km² (IBGE - Censo Demográfico 2010 apud SÃO PAULO, 2016). 2.5 Os imigrantes em São Paulo No alto da rua íngreme, onde era possível observar a residência do Conde de Sarzedas, assemelhando-se a um castelo cor de ferrugem, muitos imigrantes japoneses se instalaram (HANDA, 1987). Todo o lado esquerdo da rua foi ocupado, tendo o outro lado cerca de três moradias ocupadas (Feira da Liberdade, [200-]). A existência de um porão e o aluguel barato dos quartos no subsolo, que então eram utilizados apenas como dispensas e alugados para grupos, representou fatores importantes na escolha desses locais para morar (HARTT, 2002). Por estar localizada em um bairro central do município de São Paulo, a Rua Conde de Sarzedas (“a rua dos japoneses”) logo representou um refúgio para esses imigrantes dotados de esperança que, teriam fácil locomoção para o centro, bem como para os locais de trabalho. Ali, através de suas reuniões durante o preparo do misso-shiru6, das sardinhas assadas para as refeições, em meio a esses aromas tão familiares e característicos, esses imigrantes formaram uma pequena sociedade (HARTT, 2002). Eis a conotação “rua dos japoneses”. A partir disso, a Rua Conde de Sarzedas viria a se tornar o centro das atividades dos imigrantes japoneses com o surgimento dos primeiros estabelecimentos comerciais. Segundo Handa (1987) o ponto de partida para tanto foi o início da produção do shoyo, que proporcionou aos imigrantes saciar a falta que sentiam da comida de sua terra natal. O shoyo fez com que surgisse uma fábrica de tofu (queijo de soja), que por sua vez, acarretou na fabricação do udon7. Até mesmo as hospedarias surgiram a partir da fabricação desses produtos. Além da casa para a fabricação de tofu e udon, houve a casa de manju8, um empório e ainda, sugiram os agenciadores de emprego. Em 1914, foi fundado na Rua Tomás de Lima o 6 Sopa de misso, uma espécie de massa a base de soja cozida com sal e um tipo de cereal fermentado (arroz ou cevada). 7 Macarrão japonês servido como sopa. 8 Doce tradicional japonês recheado com anko (doce de feijão). 29 Hotel Ueji, o primeiro hotel japonês em São Paulo. Nesse cenário, a expansão do bairro japonês tomava face (HANDA, 1987). Pouco depois, em 1915, é fundada a Escola Primária Taisho (Taisho Shogakko), atrás do atual prédio da Sociedade Brasileira de Cultura Japonesa e Assistência Social, na Rua São Joaquim, tendo grande importância na educação dos filhos dos imigrantes japoneses, que então somavam aproximadamente 300 pessoas (HANDA, 1987). No mesmo ano, no dia 14 de julho, o Consulado Geral do Império do Japão foi criado na Rua Augusta, localizada na região central de São Paulo (Cerqueira César). Em 1916, um clube destinado à prática de yakyu9 foi inaugurado na parte mais baixa da Rua Conde de Sarzedas, representando mais um elemento local para a integração e vivência dos japoneses (Feira da Liberdade, [200-]). Desde a criação da escola japonesa Taisho, por volta de 1914, a mesma mudou-se várias vezes de local até se instalar em 1916 na Rua Conde de Sarzedas. Tinha como professor Shinzo Miyazaki e foi reconhecida como escola particular em 1919 pelo estado de São Paulo (HANDA, 1987). Segundo Negawa (2007) a escola oferecia as seguintes disciplinas: Japonês, Aritmética, Geografia, História, Ciências, Educação Moral e Cívica, aulas de canto e ginástica, além das atividades extracurriculares como sumō e o beisebol. Os primeiros estabelecimentos comerciais japoneses abertos para o público em geral foram criados em 1918, sendo eles a Casa Mikado e a Casa Tokio, lojas de móveis de fabricação própria (HANDA, 1987). A integração dos imigrantes japoneses junto à cidade de São Paulo já se apresentava plena nas décadas de 1920 e 1930. Eles tinham trabalho, moradia, comida, ensino em japonês para os seus filhos, o divertimento de fim de semana com os jogos de yakyu e suas atividades no município, também constantemente alimentadas pelo intenso fluxo de japoneses do campo para a cidade (Feira da Liberdade, [200-]). Dos 2.000 imigrantes japoneses que residiam em São Paulo em 1932, 600 deles concentravam-se nas ruas que compreendiam a “região da Conde” no bairro Liberdade (Rua Conde de Sarzedas, Irmã Simpliciana, Tabatinguera, Conde do Pinhal, Conselheiro Furtado, Rua Bonita, Estudantes e Rua São Paulo). As maiores concentrações estavam na R. Conde de Sarzedas com 300 moradores, R. Conselheiro Furtado com 140 e Rua Bonita com 40. (ARAGAKI et al, 2002). 9 Palavra japonesa para o beisebol. 30 Em todas elas, diferentes atividades comerciais eram praticadas, como costura, lavanderia, tinturaria, casas de móveis, hospedarias, bares, restaurantes e a então recente venda de produtos agrícolas devido à expansão dos agricultores japoneses no interior do Estado de São Paulo; nesse período, 15 mil famílias japonesas dedicavam-se à horticultura (ARAGAKI et al, 2004). Embora a presença dos japoneses fosse massiva nessa região, era a parte alta da rua Conde, na rua Conselheiro Furtado, que exibia reconhecíveis características nipônicas na fachada das docerias, hospedarias e restaurantes, através dos letreiros em japonês dispostos verticalmente como bandeiras. A atmosfera típica da paisagem de ruas japonesas também era vivenciada nas ruas Conde do Pinhal e Irmã Simpliciana (ARAGAKI et al, 2004). Paralelo à adaptação dos imigrantes japoneses no bairro Liberdade, ocorre a partir da década de 30 o início de sua estruturação urbana por conta de “um processo e progresso atravessado pela cidade de São Paulo, principalmente após a proclamação da república” (GUIMARÃES, p. 43, 1979). A autora demonstra uma relação direta entre esse progresso e a expansão da cultura do café, uma vez que São Paulo torna-se centro das atividades comerciais do Estado, trazendo, por consequência, novos padrões sociais, comerciais, artísticos, educacionais, e também políticos. Outra transformação, responsável pelo início do processo de metropolização da cidade, foi o aumento dos fluxos migratórios; a cidade passou a receber grandes contingentes nacionais e estrangeiros. São Paulo também passou a representar a residência de famílias ricas e, paralelo à metropolização, a industrialização também ditava novos padrões na dinâmica da cidade, concentrando a mão de obra nos bairros periféricos, como Brás e Barra Funda (ARAGAKI et al, 2004). Com isso, a paisagem urbana nos bairros da capital, o que inclui o bairro Liberdade, passava por significativas mudanças estruturais, onde antigas edificações cederam lugar às novas (ARAGAKI et al, 2004). 2.5.1 Os impactos da Segunda Guerra Mundial na vida dos imigrantes japoneses Os japoneses sempre se orgulharam do sentimento patriótico. Achavam que os nisseis deveriam amar e servir ao Brasil, conforme suas tradições. E um brasileiro inconsciente negou-lhes justamente um dos sentimentos de que os japoneses mais se orgulhavam (HANDA, 1987, p. 639). Com a eclosão da Segunda Guerra Mundial em 1939 ocasionando a divisão Aliados (Inglaterra, EUA e antiga União Soviética) e Eixo (Alemanha, Itália e Japão), grandes transtornos foram vividos pelos imigrantes japoneses no Brasil. O então governo nacionalista 31 de Getúlio Vargas, embora mantivesse relações comerciais com lados antagônicos (Estados Unidos e Alemanha), não manteve sua neutralidade para com os imigrantes. Em 15 de janeiro de 1942, já iniciada a Guerra do Pacífico, o intercâmbio comercial entre Brasil e Japão é suspendido no Congresso Pan-Americano de Chanceleres. No fim do mesmo mês, os representantes japoneses se retiraram do país, havendo em seguida o rompimento das relações diplomáticas entre os dois países (ARAGAKI et al, 2004). Após o congelamento dos bens dos japoneses, na região da rua Conde de Sarzedas, os próximos passos do governo brasileiro já eram previstos pelos imigrantes japoneses que andavam em silêncio pelas ruas. Logo foi expedida a ordem de evacuação a ser cumprida em apenas 10 dias pelos isseis10, sem nenhuma assistência do governo; apenas nisseis poderiam permanecer onde estavam. Em 1943, casas de japoneses nos arredores da rua Conde de Sarzedas começam a ser revistadas à procura de armas clandestinas e indícios documentados de qualquer ligação dos moradores com o governo japonês. Em meio a essas revistas, objetos de valor e dinheiro eram “levados” pelos oficiais e reclamações quanto a isso acarretariam em prisão. As fiscalizações também afetaram lojas e cooperativas agrícolas (HANDA, 1987). No mesmo ano, jornais, revistas e livros impressos em língua japonesa foram confiscados e proibidos de circular, além de estar também proibido o uso da língua japonesa e a realização de reuniões. Além das novas restrições, mais uma intimação para a desocupação da região da rua Conde de Sarzedas, atingindo 350 famílias tendo os mesmos 10 dias para o cumprimento. Foi nesse período onde outros bairros, considerados periféricos na época, obtiveram crescimento considerável da população nipo-brasileira, entre eles estão Tatuapé, Morumbi, Jabaquara, Freguesia do Ó, Saúde, Ipiranga e Pinheiros (ARAGAKI et al, 2004). Após a rendição do Japão, que então também contava com um nacionalismo marcante, um novo desconforto surge entre a população imigrante: o conflito entre o grupo kachigumi - não-conformados com a derrota japonesa - e makegumi – conformados (ARAGAKI et al, 2004). Esse conflito levou à morte de mais de 20 pessoas e somente quando essa triste fase terminou, a tranquilidade voltou a estar presente entre os imigrantes japoneses que decidiram por fixar-se no Brasil, país compreendido como aquele onde seus filhos e netos poderiam alcançar a prosperidade. Ainda nessa época, os nisseis11 já ocupavam diversos setores no 10 Plural de issei (1ª geração); o japonês que emigra para outro país. 11 Plural de nissei (2º geração); filho de imigrante japonês. 32 mercado. Foi o momento em que os japoneses que residiam no Brasil passaram a ser os nipo- brasileiros inseridos e integrados a ele12. 2.6 Transformações na paisagem urbana do bairro Com o término da Segunda Guerra, muitos japoneses retomaram suas vidas no bairro Liberdade. Em paralelo, a cidade de São Paulo, em meio ao processo de industrialização e urbanização oferece outras opções além do centro da cidade e houve significativa adesão. A Rua Conde de Sarzedas do pós-guerra já exibia muitas mudanças quanto às pessoas que circulavam, dessa vez, mais paulistanos, perdendo seu antigo ar japonês (ARAGAKI, 2004). Por outro lado, a Rua Galvão Bueno recebe o Cine Niterói em 23 de julho de 1953. O prédio de cinco andares com salão, restaurante, hotel e sala de projeção de filmes no térreo, inaugurado por Yoshikazu Tanaka, exibia semanalmente filmes produzidos no Japão para mais de 1.500 espectadores japoneses por sessão. O Cine Niterói passou a ser o centro do crescimento do bairro, tendo acolhido alguns comerciantes expulsos da Rua Conde de Sarzedas, além de representar afetuosamente um fragmento do Japão para que os imigrantes pudessem se sentir mais próximos de sua terra natal (Cultura Japonesa, [200-]). O cinema também atraiu a comunidade que residia em outras localidades da cidade, especialmente aos fins de semana e, tamanho foi o prestígio à forma preferida de lazer dos japoneses que resultou na abertura de muitos pontos comerciais no bairro, tendo como foco produtos japoneses importados ou nacionais (ARAGAKI, 2004). Além do entretenimento, a presença da Escola Japonesa e da Associação de Pais e Mestres na Rua Galvão Bueno atraiu muitos japoneses, assim como ofertas de trabalho oferecidas por seus conterrâneos (SÃO PAULO, 1987). A origem da construção do Templo Busshinji – Templo do Coração-Mente de Buda - no bairro também tem relação direta com o período pós-guerra e a opção dos imigrantes japoneses por fixar-se no Brasil definitivamente, representando mais um elemento de integração da colônia e proximidade com a terra natal. Foi solicitada por eles a vinda de missionários budistas de seu país de origem conforme a escola ou tradição a qual pertenciam. A Soto Zen é uma dessas escolas e foi instalada no Brasil no ano de 1955 durante a visita do Abade Superior Rosen Takashina que iniciou a missão a pedido dos imigrantes. Primeiramente, o templo instalou-se em uma casa alugada no bairro Liberdade para depois ser 12 Informação disponível em painel informativo no Museu Histórico da Imigração Japonesa no Brasil, em abril de 2016. 33 transferido para a Rua São Joaquim. Por fim, o templo, a princípio instalado para a comunidade nipo-brasileira, atraiu interesse de ocidentais, tendo posteriormente se transformado em um centro divulgador do Zen (Soto Zen, [200-]). O período entre as décadas de 1930 e 1950, preenchido com a crise do café, Revoluções de 1924, 1930 e 1932 e ainda, com a Segunda Guerra Mundial, com todos os percalços que poderia ter imposto, não impediu o contínuo progresso de urbanização da cidade de São Paulo. Em 1960, como evidência dessa continuidade, a cidade já apresentava praticamente a configuração atual. Em dados estatísticos de população, a cidade detinha 1 milhão de habitantes em 1930, 3 milhões em 1954, 8 milhões em 1978, e 10 milhões em 2003 (ARAGAKI et al, 2004). Segundo dados do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) a população estimada em 2015 foi de 11.967.825 habitantes. Dentro desse contexto de intensa urbanização em São Paulo, o bairro sofreu inúmeras transformações. Grandes setores do Largo Sete de Setembro e da Praça Almeida Júnior, importante ponto pela arborização, foram destruídos para a abertura da Radial Leste-Oeste, construída entre 1968 e 1971, seccionando e então tornando descontínuas duas grandes áreas do bairro. Muitos quarteirões tiveram de ser demolidos, abrangendo a antiga Praça São Paulo e seu teatro (SÃO PAULO, 1987). O antigo prédio do Cine Niterói foi um dos demolidos para a passagem da Radial Leste-Oeste, tendo que ser transferido para a Avenida da Liberdade com a Rua Barão de Iguape. Lá enfrentou um novo percalço com a posterior interdição da avenida por dois anos para a execução das obras do metrô, onde foram construídas as estações Liberdade e São Joaquim, inauguradas em 1975 (ARAGAKI et al, 2004). No âmbito populacional, em 1960, o número de habitantes no bairro era de 55.873 habitantes, na década seguinte sobe para 59.790 e em 1978, soma 200 mil pessoas (ARAGAKI et al, 2004). Rodolfo Marques Lobato elaborou o plano paisagístico em 1969, este tinha como modelo cidades norte-americanas ao estilo chinatown, como Seattle, Boston e Nova York, no momento em que não só japoneses habitavam o bairro desde o início da década, quando coreanos passaram a se instalar. O plano também teve o intuito de amenizar as conseqüências das obras do metrô na linha Norte-Sul, remodelando as vias principais: Rua Galvão Bueno, Rua da Glória, Rua dos Estudantes e Avenida da Liberdade (PAVONE, 1998). Na comissão onde o plano de “orientalização” foi anunciado estavam presentes representantes locais da comunidade japonesa, chinesa, membros de ambos os consulados, além de representantes municipais (ARAGAKI et al, 2004). 34 Foi desse projeto, segundo Aragaki (2004) que adveio a construção do torii vermelho na Rua Galvão Bueno, junto ao viaduto Osaka em 1974. O torii de 9 m de altura representou o início da caracterização oriental no bairro. Esse elemento é típico nas entradas de santuários xintoístas e na Rua Galvão Bueno acabou simbolizando o “portão” do bairro Liberdade. Depois da construção do torii vermelho, houve a substituição dos postes comuns pelos postes com três lanternas (chamadas de suzurantou) e as calçadas ganharam os símbolos heráldicos mitsudomoe (ARAGAKI et al, 2004). No dia 4 de novembro de 1974, o bairro oriental (Toyogai) foi então inaugurado para 40 mil pessoas presentes no evento e foi a partir daí que ele também deixaria de ser residencial de forma permanente (MIZUTA et al, 2004). Por outro lado, manifestações culturais eram expressas em festas tradicionais promovidas pela então Associação dos Lojistas da Liberdade, hoje Associação Cultural e Assistencial da Liberdade (ACAL), junto à secretaria municipal de turismo. A ACAL teve como precursora a Associação de Confraternização dos Lojistas do Bairro da Liberdade, fundada em 1965, cujo presidente foi o Sr. Yoshikazu Tanaka. O intuito da criação da associação foi o de assegurar os interesses da colônia japonesa no bairro diante das autoridades municipais e estaduais, estabelecendo vínculo com as secretarias, bem como com a Polícia Militar e Civil (Cultura Japonesa, [200-]). As ações de cunho cultural promovidas pela associação alçaram parte da cultura japonesa para além dos limites do bairro por meio da divulgação e mesmo adesão de não descendentes que receberam e ainda recebem atualmente, certamente em maior proporção. Vale ressaltar a Feira de Arte, Artesanato e Cultura da Praça da Liberdade (conhecida como Feira Oriental), que ocorre aos domingos desde 1975 (ARAGAKI et al, 2004). A década de 80 trouxe mudanças significantes ao bairro, a incidência de roubos passou a ameaçar a segurança. Os chamados “trombadinhas” promoveram ataques contra a população oriental nesse período e com isso, muitas lojas foram transferidas para outras localidades de São Paulo, já sob administração da segunda e terceira geração (ARAGAKI et al, 2004). Nesse contexto que Aragaki et al (2004) coloca, na mesma medida em que a comunidade nipo-brasileira se espalhou pela cidade, da mesma forma ocorreu com os negócios; muitos restaurantes foram para perto da clientela, na região do bairro Jardins uma vez que, na época, recebiam muitos japoneses devido à instalação recente de multinacionais, assim como havia uma clientela crescente de não descendentes. Em 1988, o Cine Niterói, importante local de integração da comunidade nipo-brasileira, fechou as portas (ARAGAKI et al, 2004). Na região da Rua Galvão Bueno também havia os cines Nippon, Jóia e Tokyo, 35 todos esses inexistentes hoje. Os últimos dois deram lugar a igrejas evangélicas e o primeiro é a atual sede da Associação Aichi Kenjin Kai (Cultura Japonesa, [200-]). Mais uma mudança no bairro nessa década foi a moda com relação à culinária japonesa vinda da Europa e EUA. Muitos produtos chegavam ao Brasil do Paraguai e junto com eles, muitos de origem chinesa e taiwanesa, mudando o caráter do comércio no bairro Liberdade. Essa importação diferenciada também altera a configuração das lojas, fazendo com que as aquelas dos anos 60 dessem lugar a pequenas lojas dispostas lado a lado (“stand shopping”) a partir dos anos 90. Os produtos chineses, japoneses, coreanos e de outras origens passam a se misturar e muitas lojas de nomes japoneses apenas mantiveram o nome (ARAGAKI et al, 2004). O bairro nos anos 90 tem a presença marcante de comerciantes chineses e da clientela não oriental vinda não só da cidade de São Paulo, mas de todo o país. Com a instalação de outras colônias, a comunidade nipo-brasileira então busca uma convivência colaborativa. Muitas festividades permanecem no bairro e a Rua Galvão Bueno, em meio a tantas alterações, se mantém “o coração do mundo japonês” (ARAGAKI et al, 2004). 2.6. 1 A entrada de outras colônias Os chineses, que emigraram ao Brasil a partir de 1949, devido à implantação do socialismo na China, começam a se instalar no bairro a partir da década de 70, motivados pelas características orientais presentes (BONFIM, 2005). Já a imigração coreana iniciou em 1963, com essa população primeiramente instalando-se no bairro Baixada do Glicério, vizinho ao bairro Liberdade, devido à área facilitar construções na época e pela proximidade com o antigo Parque Xangai (SÃO PAULO, 1987). Com isso, ocorre a perda de espaço dos japoneses, não sendo essa, no entanto, a única razão para tal (BOMFIM, 2005). Conforme a colônia japonesa foi adquirindo maior poder aquisitivo, muitas famílias deslocaram-se para outros bairros, além de haver eventuais problemas de falta de um sucessor para gerenciar os empreendimentos familiares devido à emergência de outras opções de trabalho a eles, que receberam forte investimento em sua educação. Essa mudança fez com que a estimativa em 2005 apontasse como mais da metade dos empreendimentos no bairro sendo administrados por chineses (BONFIM, 2005). 36 3 MATERIAIS E MÉTODOS As técnicas de investigação empregadas nos estudos de percepção ambiental, considerando os aspectos subjetivos envolvidos, ainda possuem desafios quanto aos procedimentos metodológicos devido à complexidade de fatos e da variedade de representações do meio ambiente passíveis de investigar, não havendo, portanto, uma metodologia considerada a mais adequada (DEL RIO, 1996). Neste trabalho, optou-se por uma abordagem humanista sob a ótica da fenomenologia que valoriza a percepção e a experiência individual na descrição de um fenômeno. Na geografia cultural, ela esteve presente nos trabalhos de Yu-Fu Tuan e Eric Dardel, onde o espaço, destituído de valores e sentimentos, distingue-se do lugar, que ganha unicidade e significado, sendo, portanto, a paisagem compreendida não apenas como suporte à vida dos grupos humanos, mas como integrante dos indivíduos, significante e influente na percepção dos mesmos (DEL RIO, 1996). De acordo com Lencioni (p. 150, 2009), além de método, a fenomenologia é “uma forma de pensar, nos quais a ‘intencionalidade da consciência’ é considerada chave. Essa intencionalidade se refere à relação entre os atos da consciência, os objetos e a como esses objetos aparecem na consciência”. O indivíduo só entra em contato com o mundo dos objetos exteriores por meio da experiência vivida e supera seu inicial subjetivismo através da consciência no processo de construção de uma compreensão racional dessa experiência, alcançando assim, a essência dos objetos tal como eles são apreendidos (LENCIONI, 2009). Tratando-se de um estudo de percepção ambiental, considera-se aqui o percebido, concedendo lugar à subjetividade presente na percepção dos indivíduos, sendo essa incorporação da subjetividade uma etapa metodológica de grande contribuição à ciência geográfica, para que essa compreendesse o espaço também como espaço vivido; contribuição advinda especialmente por parte do fenomenológico Maurice Merleau-Ponty, Como meios de desenvolvimento de trabalho, seguiram-se as seguintes etapas metodológicas: 1) levantamento bibliográfico pertinente ao tema; 2) Trabalhos de campo nas principais vias do bairro que, além do registro fotográfico e observações em caderneta de campo, incluiu visitas ao Museu Histórico a Imigração Japonesa no Brasil, o qual foi importante fonte de informações para esta pesquisa; 3) Elaboração e aplicação do questionário online, escolhido como instrumento de pesquisa mais adequado ao público alvo, após tentativas de entrevistas e; 4) Análise dos dados obtidos, utilizando princípios básicos da 37 Análise do Discurso, buscando identificar a maneira com que os sujeitos constroem os sentidos em seu discurso. 3.1 Trabalhos de campo A realização dos trabalhos de campo no bairro Liberdade permitiu reconhecimento da área, registros fotográficos, observações e caracterização da paisagem atual das principais vias do bairro, assim como a apreensão da realidade e dinâmica locais através de uma vivência atenta que difere daquela de um simples passante. Os trabalhos de campo foram realizados no bairro da Liberdade nos dias 22 de abril, 18, 19 e 31 de julho e, 25 de agosto de 2016. A seguir as atividades realizadas: Quadro 1. Descrição de atividades realizadas em campo DATAS ATIVIDADES 22/04/2016 - 1ª visita ao Museu Histórico da Imigração Japonesa para coleta de dados disponíveis ao público. Foi feito também contato com a secretaria a fim de obter autorização para posteriores entrevistas com 2 funcionários nisseis e acesso ao acervo bibliográfico do Museu, agendados posteriormente por e-mail. - Início do registro fotográfico das principais vias do bairro, elementos culturais e registro de observações em caderneta de campo. 17/07/2016 Participação como visitante no Tanabata Matsuri, o Festival das Estrelas, que celebra, conforme uma lenda japonesa, o encontro entre um príncipe e uma princesa que após ser transformados em estrelas foram separados nos extremos da Via Láctea, se encontrando uma vez por ano. No evento foram registradas observações em um dia de evento e fotografias do festival de origem japonesa. - Observação da dinâmica local em diferentes ruas e seus diversos elementos. 19/07/2016 - Conversa e aplicação das questões aos funcionários do Museu e coleta de dados do acervo bibliográfico disponibilizado pela Biblioteca. - Continuidade das observações de campo. 38 Quadro 1 (cont.) Descrição de atividades realizadas em campo 3.2 Elaboração e aplicação do questionário online Para o alcance do objetivo da presente pesquisa foi elaborado um conjunto de 7 questões destinadas a isseis e descendentes de japoneses que tivessem considerável familiaridade com o bairro Liberdade, constituindo dois grupos; um de faixa etária de 18 a 35 anos e o outro com faixa etária acima de 35 anos. A escolha por participantes acima dos 18 anos levou em consideração a colocação de Tuan (2012), que afirma que para uma paisagem ter significado é necessário que o indivíduo saiba distinguir o eu dos outros, sendo essa habilidade pouco desenvolvida nas crianças. As questões foram disponibilizadas em um questionário aberto online, de caráter anônimo, devido à praticidade e mais ainda à facilidade de adesão, uma vez que tentativas de entrevistas falharam por não ter sido possível a construção de um vínculo para que as pessoas pudessem falar abertamente. Com respeito a esse aspecto cultural, optou-se então pelo questionário online, que foi encaminhado entre conhecidos e familiares através de diferentes fontes, entre os meses de agosto e setembro, compondo o total de 32 participantes. Ao responder o questionário online, os participantes forneceram primeiramente os seguintes dados:  Grau de descendência (nissei, sansei...) ou issei. A descendência é compreendida através da palavra da seguinte forma: sei significa geração em japonês e os prefixos “i”, “ni”, “san” e “yon” referem-se aos números 1, 2, 3 e 4 em japonês (ichi, ni, san, yon), compreendendo 1ª, 2ª, 3ª e 4ª geração. De forma facilitada, entendem-se as gerações, respectivamente, como: pais (imigrantes japoneses), filhos, netos e bisnetos da 1ª geração, cuja nacionalidade é japonesa, conferindo os graus de descendência.  Seleção de faixa etária: entre 18-35 anos ou acima de 35 anos.  Tempo de residência ou familiaridade com o bairro. DATAS ATIVIDADES 31/07/2016 - Registro fotográfico de estabelecimentos comerciais e gastronômicos que ilustrassem a cultura oriental no bairro. 25/08/2016 - Término do registro fotográfico, dessa vez, direcionado a elementos históricos da paisagem urbana do bairro. 39 As 7 questões seguintes, disponibilizadas em português e japonês, foram direcionadas às experiências e opiniões individuais a fim de apreender a percepção da paisagem urbana do bairro, uma vez que toda paisagem é preenchida por lembranças, sentimentos e significado, estabelecendo vínculos com os indivíduos. 1) O que o bairro Liberdade representa para você? / Anata ni totte wa, Riberudaade wa dou iyuu imi ga arimasuka? 2) Quais são as suas relações com o bairro? (Trabalho, estudo, passeio) / Riberudaade to dou iyuu kankei wo motteimasuka? 3) Escolha dois locais que apresentem importância para você e justifique as escolhas. / Riberudaade de futatsu no “daiji na basho” wo erande, shoshite, doushite sono futatsu no basho wo eranda ka itte kudasai. A Questão 3 objetivou a identificação dos elementos mais representativos da paisagem urbana do bairro Liberdade e a escolha de dois possibilita maior amplitude no sentido de haver mais de um olhar sobre a paisagem. 4) Na sua opinião, a cultura japonesa sempre se manteve bem representada no bairro? Se não, por que? / Anata ni totte, Nihon no Bunka (mata wa, Nihon no Rekishi) wa Riberudaade de “miru” koto wa dekimasuka? Essa questão objetivou identificar possíveis locais ou costumes que os participantes sintam falta ou que foram significativamente modificados. 5) Você observou/vivenciou alguma mudança no bairro? Se sim, quais? Elas foram negativas ou positivas para você? Justifique. / Anata wa Riberudaade de nanika kawatta koto nado ni kizukimashitaka? Moshi kizuitemashitara, doko de sono kawari wo mitandesuka? Soshite, sono kawari wa ii koto, mata wa, warui koto dotti deshouka? A Questão 5 objetivou identificar o ponto de vista de quem é diretamente atingido pelas transformações. 40 6) Imagine o bairro Liberdade daqui a 20 anos. Na sua opinião, como seria com relação à segurança, festividades e demais manifestações ligadas à cultura japonesa? / Riberudaade wo nijyuunen go to shite kangaetara, anata ni totte, Nihon no bunka, Nihon no Matsuri nado, dono youni natteirundeshouka? Na questão 6 o objetivo foi identificar o grau de segurança dos participantes quanto à manutenção da identidade cultural do bairro da Liberdade. 7) A inserção da estação do metrô na década de 60 promoveu crescimento do comércio no bairro, mas também a entrada de outras colônias como a chinesa e a coreana. Para você, o caráter foi positivo ou negativo? Justifique. / Jikan to tomoni, Riberudaade wa yuumei na tokoro ni nasrimashita. Demo, sono “yuumei” wa Nihon no hoka no tokoro (Tyuugoku, Kankoku, nado) mo Riberudaade ni kurasu youni narimashita. Kono jijitsu wa anata ni totte ii koto desuka? Warui koto desuka? Anata no kotae wo setsumei wo shite kudasai. A última questão buscou identificar a opinião individual sobre as conseqüências da construção da estação Liberdade do metrô sobre a identidade cultural do bairro, enquanto maior reduto da comunidade japonesa fora do Japão. 3.3 Análise dos dados Considerando que as informações adquiridas através do formulário aberto online envolveram experiências e opiniões individuais acerca do bairro, as mesmas descritas por cada indivíduo com suas próprias palavras, os dados foram analisados considerando princípios básicos da Análise do Discurso. Essa análise qualitativa considera que todo discurso é estabelecido através da relação com um discurso anterior que ainda apontará para outro, logo, o discurso é entendido como um processo. A Análise do Discurso, de acordo com Orlandi (2001, p. 59) propõe então a construção de um dispositivo de interpretação que objetiva “colocar o dito sobre o não dito, o que o sujeito diz em lugar do que é dito em outro lugar, o que é dito de um modo com o que é dito de outro”. Em suma, na Análise do Discurso pretende-se apreender também o que não se ouviu a partir dos sentidos das palavras do sujeito. Estudar o discurso, ainda segundo Orlandi (2001) é apreender o significado dimensionado das práticas do homem no tempo e no espaço. 41 Portanto, os dados foram tratados buscando relações de sentido expressas em respostas de participantes, selecionadas e dispostas nesta pesquisa de acordo com a pertinência à sua temática e objetivo, considerando o sujeito do discurso (perfil individual construído nas colocações feitas no questionário online), o grupo cultural ao qual pertence, sendo a cultura seu meio de identidade e comunicação, aspectos ideológicos manifestados, tempo de vivência com o bairro, a natureza dessas vivências, memória e os possíveis processos na construção dos sentidos sugeridos em seu discurso, com o objetivo de entender “como” o texto significa, não “o que”. Segundo Orlandi (2001, p. 43) o sentido é o gesto de interpretação que realiza a relação do sujeito com a língua e com a história e “todo discurso se delineia na relação com outros: dizeres presentes e dizeres que se alojam na memória”. 42 4 RESULTADOS E DISCUSSÃO 4.1 Observação e caracterização da paisagem atual do bairro Liberdade PRAÇA DA LIBERDADE Em uma cidade, segundo Lynch (1997), os bairros são considerados as regiões médias ou grandes de extensão bidimensional e são reconhecíveis pelas características que os marcam, também reconhecidas externamente. Essa colocação é inteiramente coerente com o bairro da Liberdade, uma vez que é ele continua sendo referência da comunidade nipo- brasileira no Brasil, certamente já reconhecível e ilustrado mentalmente pela maioria dos paulistanos ao simplesmente ouvir seu nome. A atual Praça da Liberdade (Figura 1) por quase um século carregou em suas denominações anteriores a realidade de um período histórico onde enforcamentos era a forma de punição aos condenados; já foi o Largo da Forca, em 1822 e Morro da Forca de 1870 até a abolição da escravatura (ARAGAKI et al, 2004). Figura 1. Praça da Liberdade, lanternas suzurantou e comércio no lado esquerdo. No centro a feira de alimentos e a Capela dos Enforcados e no extremo direito o metrô Liberdade. Fonte: Elaborada pela autora O local onde essa obscura atmosfera se concentrou entre inúmeras execuções, considerando o longo período de atividade, se tornou palco das principais festividades da comunidade nipo-brasileira. Se algumas das manifestações culturais se concentram mais nas ruas próximas, a Praça sempre é uma extensão por ser o “primeiro passo” de quem chega ao bairro através do metrô, que se encontra em seu centro. 43 Hoje é difícil imaginar que antes da construção da Avenida 23 de Maio, no fim dos anos 60 e, posteriormente da estação do metrô, a Praça da Liberdade era um local, segundo Mizuta et al (2004), conhecido por sua tranquilidade, onde havia um lago com pequenos barcos e um morro. Seguramente o bairro Liberdade é mais conhecido por representar culturas orientais, que extrapola a decoração, mas é também cenário da vida cotidiana na cidade de São Paulo, da movimentação usualmente apressada dos passageiros do metrô (Figura 2) que, entre embarques e desembarques na Praça da Liberdade, conferem aos arredores das estações Liberdade e São Joaquim a função de corredor. Figura 2. Movimentação habitual no metrô Liberdade Fonte: Elaborada pela autora Nas visitas ao bairro em diferentes dias da semana, foi constatado que a movimentação no metrô Liberdade é sempre intensa. A Figura 2 mostra o início dessa movimentação depois de um desembarque e é possível observar que ela será maior conforme as pessoas deixam a estação. O movimento nos arredores, certamente por consequência, é igualmente marcante. As ruas sempre muito preenchidas de tal forma que às vezes tirar fotografias menos poluídas ou com reflexos desse movimento é uma tarefa de paciência, mas sem esforços devido a tantos atrativos que o comércio extremamente diversificado oferece. Sem mencionar a riqueza de diferentes culturas que muitas pessoas representam ao simplesmente passar. No entanto, o bairro não está isento da desigualdade social tão nítida em toda São Paulo; muitos moradores de rua são vistos na Praça da Liberdade, principalmente. Os moradores de rua observados estavam na condição de pedintes na praça, não ten