UNIVERSIDADE ESTADUAL PAULISTA “JÚLIO DE MESQUITA FILHO” FACULDADE DE CIÊNCIAS Programa de Pós-Graduação em Psicologia do Desenvolvimento e Aprendizagem Luiz Antonio Lourencetti POLÍTICAS PÚBLICAS DE DESENVOLVIMENTO URBANO: UMA ANÁLISE COMPORTAMENTAL DA GESTÃO DEMOCRÁTICA DA CIDADE BAURU 2020 Luiz Antonio Lourencetti POLÍTICAS PÚBLICAS DE DESENVOLVIMENTO URBANO: UMA ANÁLISE COMPORTAMENTAL DA GESTÃO DEMOCRÁTICA DA CIDADE Tese apresentada como requisito para a obtenção do título de Doutor à Universidade Estadual Paulista “Júlio de Mesquita Filho” – Programa de Pós- Graduação em Psicologia do Desenvolvimento e Aprendizagem, área de concentração Aprendizagem e Ensino, sob orientação do Prof. Dr. Kester Carrara. BAURU 2020 Lourencetti, Luiz Antonio. Políticas públicas de desenvolvimento urbano : uma análise comportamental da gestão democrática da cidade / Luiz Antonio Lourencetti, 2020 273 f. Orientador: Kester Carrara Tese (Doutorado)–Universidade Estadual Paulista. Faculdade de Ciências, Bauru, 2020 1. Políticas públicas. 2. Política urbana. 3. Gestão democrática. 4. Participação popular. 5. Planejamento urbano. I. Universidade Estadual Paulista. Faculdade de Ciências. II. Título. O presente trabalho foi realizado com apoio da Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior - Brasil (CAPES) - Código de Financiamento 001. Dedico este trabalho às minhas irmãs Carol e Fernanda, por todo apoio, incentivo e paciência ao longo desses anos. AGRADECIMENTOS Chegar a este momento é ter a certeza de que esta tese não é produto individual. Ao longo desses quase quatro anos de doutorado muita coisa aconteceu, muitas pessoas cruzaram minha vida e há muito a agradecer. Seria arriscado nomear cada um, pois seria injusto ao esquecer alguém. Entretanto, seria igualmente injusto não mencionar alguns daqueles que tiveram papel marcante nesse processo. Por isso, através deles agradeço de forma simbólica a cada pessoa que contribuiu de alguma maneira para a chegada deste momento. Inicialmente, agradeço à minha família, ao meu pai Luiz Paulo, à minha mãe Neuza (in memoriam) e às minhas irmãs Carol e Fernanda, por todo o apoio e incentivo aos meus estudos e por criar condições favorecedoras às escolhas que fiz ao longo desses anos. Muito obrigado! Ao amigo e orientador Kester Carrara sou grato pela amizade, parceria e orientação ao longo desses anos. Muito obrigado por todas as conversas, pela paciência e por compartilhar de forma tão generosa e humilde, conhecimentos e ensinamentos, não só sobre ciência e docência, mas sobre a vida. Me sinto honrado e imensamente grato pela oportunidade de ser seu orientando ao longo desses quase dez anos. À minha namorada Carol, agradeço por ter me acompanhado ao longo de todo esse doutorado, pelo cuidado e carinho que teve comigo durante essa etapa difícil e importante. Obrigado por toda paciência, parceria, companheirismo e por me ajudar a seguir adiante em cada momento de crise e dificuldade. Obrigado por dar uma bagunçadinha carinhosa na minha vida, meus dias não seriam os mesmos sem você! Agradeço aos professores Marina Souto Lopes Bezerra de Castro, Diego Zilio e Camila Muchon de Melo que gentilmente se dispuseram a participar da banca avaliadora deste trabalho. Aos professores Diego e Camila, também agradeço por toda atenção e gentileza nas contribuições e recomendações feitas no exame de qualificação. Agradeço também aos professores Alexandre Dittrich, Dafne Oliveira e Fábio Leyser pela gentileza em aceitar o convite para suplência na banca avaliadora. Agradeço aos colegas e amigos do GEPEDEC (Grupo de Estudos e Pesquisas em Delineamentos Culturais), por todos os momentos de partilha e aprendizado que tivemos juntos. De forma especial, agradeço aos amigos Cassiana Versoza, Diego Fernandes, Taísa Guazi e Vitor Araujo que partilharam dos perrengues do doutorado. Agradeço aos amigos da JAC Bauru e UNESP. Em especial, agradeço à Bárbara Campos e Taís Chiodelli pelas conversas e desabafos sobre a vida acadêmica na “salinha da Olga”; à amiga Ana Paula Ciantelli que acompanhou a caminhada na graduação, mestrado e doutorado; também agradeço ao amigo Raphael Teixeira pela amizade, parceria e suporte ao longo desses anos. A todos os professores e professoras que cruzaram meu caminho ao longo deste doutorado, obrigado por toda a partilha e ensinamentos. Em especial, agradeço ao professor Bernard Guerin que, entre uma xícara e outra de café, deu importantes contribuições para este trabalho (Thanks, Bernard. I'm waiting for my koala hat!). Aos amigos professores do UNISAGRADO (USC, para os íntimos) sou grato por todo acolhimento em meu início de carreira docente e pelo apoio e paciência na reta final do doutorado. Em especial, agradeço aos amigos Ana Carla, Tatiane, Cleiton e Luciana pelas diversas trocas positivas (e desabafos) sobre como conciliar carreira docente e doutorado. Agradeço à CAPES – Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior, por apoiar e subsidiar a realização deste estudo por meio da bolsa de doutorado recebida. Por fim, agradeço a todos aqueles que lutam diariamente para construir uma sociedade democrática, com equidade e justiça social. Em especial, agradeço aos conselheiros municipais de Bauru que se voluntariaram a participar deste estudo. O presente trabalho foi realizado com o apoio da Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior – Brasil (CAPES) – Código de financiamento 001. “(...) a formação do analista comportamental deve orientá-lo para a identificação, descrição e formulação de procedimentos de mudança nas interações entre organismo e ambiente [...] Seu perfil, para ser nomeado como o de um analista comportamental, exige um compromisso com mudanças, mas especialmente as contextuais ou consequentes ao comportamento. Nesse sentido, torna-se irrenunciável seu compromisso com a proposição de alternativas para instalação e consolidação de práticas culturais para uma sociedade interessada na justiça social e disposta a experimentar tal dinâmica sob uma modulação ético-moral mais interessada em quais regras de controle social que, concomitantemente, alcançarão o comportamento dos controladores do que, propriamente, em quem serão os controladores (...)” (CARRARA, 2016, p. 92-93) LOURENCETTI, Luiz Antonio. Políticas públicas de desenvolvimento urbano: uma análise comportamental da gestão democrática da cidade. 2020. 273f. Tese (Doutorado em Psicologia do Desenvolvimento e Aprendizagem) – Universidade Estadual Paulista (UNESP), Faculdade de Ciências, Bauru, 2020. RESUMO A promulgação da Constituição Federal de 1988 representa marco importante no contexto político brasileiro, sobretudo para a democratização do processo de elaboração de políticas públicas. Dentre as mudanças resultantes estão a descentralização político-administrativa e a institucionalização de espaços de participação representativa, possibilitando novas estratégias à interação entre Estado e sociedade na identificação e enfrentamento de problemas público. Nesse contexto, passam a ser instaladas novas práticas voltadas para à gestão democrática dos municípios, caracterizada pela participação da população e associações representativas dos vários segmentos da sociedade na formulação, execução e acompanhamento de planos, programas e projetos, como tentativa de desenvolver os municípios de forma planejada e com garantias aos interesses sociais. O desenvolvimento de políticas públicas que atendam aos interesses da população compreende um contexto de relações entre diferentes indivíduos, relações essas que se estabelecem entre os próprios indivíduos e desses com seu ambiente. Nesse sentido, propõe-se que a Análise do Comportamento, em sua mediação teórica, metodológica e de aplicação da Psicologia, poderia contribuir para a compreensão dos processos de desenvolvimento e implantação de políticas públicas, assim como fornecer subsídios para que os municípios se desenvolvam de maneira a equilibrar suas consequências em curto e longo prazo. Diante disso, esta pesquisa objetivou verificar em que medida e com que características ocorre a participação popular, por meio da gestão democrática da cidade, no processo desenvolvimento das políticas urbanas. Para isso, o estudo se dividiu em duas etapas independentes e complementares que envolveram: 1) levantamento documental e interpretação analítico-comportamental das prescrições comportamentais apresentadas em 24 documentos legislativos da esfera federal e do município de Bauru/SP, e a posterior descrição das práticas associadas à participação popular; 2) levantamento e categorização de relatos verbais por meio de entrevistas com seis representantes da sociedade civil no conselhos gestores de políticas públicas do município de Bauru/SP. Os resultados da análise documental possibilitaram identificar que a legislação tem estabelecido contingências para a instalação e fortalecimento de práticas relacionadas à participação popular, bem como feito prescrições aos atores envolvidos nesse processo. Os relatos provenientes das entrevistas evidenciaram correspondência com essas prescrições, entretanto também foram observadas inconsistências entre a prescrição e o relato da prática no contexto dos conselhos municipais. Por fim, este estudo evidencia contribuições da Análise do Comportamento em diálogo com o campo das Políticas Públicas, para a descrição e modificação de contingências de contextos sociais que resultem em benefícios coletivos. Palavras-chave: Políticas públicas. Política urbana. Gestão democrática. Participação popular. Planejamento urbano. LOURENCETTI, Luiz Antonio. Urban development public policies: a behavioral analysis of the democratic management of the city. 2020. 273p. Thesis (Doctorate in Psychology of Development and Learning) – São Paulo State University (UNESP), School of Sciences, Bauru, 2020. ABSTRACT The Brazil's Federal Constitution of 1988 represents a historical national political mark specially for the democratization of the public policy-making process. Among the changes are the political and administrative decentralization and the institutionalization of representative participation which enabled new strategies for interaction between the State and society in facing public problems. In this context, new practices focusing the democratic management were initiated. This process is characterized by popular participation in the formulation, execution and monitoring of plans, programs and projects, in order to develop the municipalities with guarantees to social interests. The development of public policies comprises a context of relations between different individuals and these with their environment. Thus, this study proposes that the Behavior Analysis as a theoretical mediation, methodology and application of Psychology, could contribute to understand and to provide inputs to the development process and implementation of public policies, helping municipalities to obtain the developing, balancing its consequences in short and long terms. This research aims to verify the extent and how popular participation acts in the process of development of urban policies. The study was divided into two independent and complementary steps that involved: 1) documentary research and behavioral analysis interpretation of the behavioral prescriptions presented in 24 legislative documents from the federal sphere and the municipality of Bauru, SP, and the subsequent description of the popular participation practices and 2) categorization of verbal reports through interviews with six representatives of civil society in the public policy management councils in the city of Bauru, SP. The documentary research identified that the legislation has established contingencies for the installation and strengthening of popular participation practices, as well as making prescriptions for the actors involved in this process. The interviews showed correspondence with these prescriptions, however, inconsistencies were also observed between the prescription and the practice report in the context of municipal councils. Finally, this study highlights the contributions of Behavior Analysis in dialogue with the Public Policies’ field for the description and modification of contingencies of social contexts that result in collective benefits. Keywords: Public policy. Urban policy. Democratic management. Popular participation. Urban planning. LISTA DE ABREVIATURAS E SIGLAS ABNT – Associação Brasileira de Normas Técnicas BNH – Banco Nacional da Habitação CAPES – Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior CAPS – Centro de Atenção Psicossocial CF – Constituição Federal CMB – Conselho do Município de Bauru CMDH – Conselho Municipal de Direitos Humanos CMH – Conselho Municipal de Habitação CMM – Conselho de Mobilidade CNDU – Conselho Nacional de Desenvolvimento Urbano COHAB – Companhia de Habitação Popular de Bauru COMAD – Conselho Municipal de Políticas Públicas sobre Álcool e outras Drogas COMSEA – Conselho Municipal de Segurança Alimentar e Nutricional Sustentável COMUDE – Conselho Municipal dos Direitos da Pessoa com Deficiência ConCidades – Conselho das Cidades CONDEMA – Conselho Municipal de Defesa do Meio Ambiente e Desenvolvimento Sustentável de Bauru CRAMI – Centro Regional de Registro e Atenção aos Maus Tratos à Infância CREA – Conselho Regional de Engenharia e Agronomia CRESS – Conselho Regional de Serviço Social CRP – Conselho Regional de Psicologia DE – Decreto Executivo DF – Decreto Federal ECA – Estatuto da Criança e do Adolescente EIV – Estudo de Impacto de Vizinhança EMDURB – Empresa Municipal de Desenvolvimento Urbano e Rural de Bauru IBGE – Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística IES – Instituição de Ensino Superior LBA – Legião Brasileira de Assistência LDB – Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional LDO – Lei de Diretrizes Orçamentárias LF – Lei Federal LM – Lei Municipal LO – Lei Orgânica LOA – Lei Orçamentária Anual LOS – Leis Orgânicas da Saúde MNRU – Movimento Nacional pela Reforma Urbana MOPS – Movimento Popular de Saúde OAB – Ordem dos Advogados do Brasil OMS – Organização Mundial da Saúde ONG – Organização Não–governamentais OP – Orçamento Popular Participativo PBF – Programa Bolsa Família PDI – Programa de Desenvolvimento Industrial PEC – Proposta de Emenda à Constituição PMMC – Política Municipal de Mudanças Climáticas PNAD – Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios PNASPI – Política Nacional de Atenção à Saúde dos Povos Indígenas PND – Plano Nacional de Desenvolvimento PNDU – Política Nacional de Desenvolvimento Urbano PNMU – Política Nacional de Mobilidade Urbana PPA – Plano Plurianual RM – Resolução Municipal SFH – Sistema Financeiro da Habitação SMPG – Sistema Municipal de Planejamento e Gestão SUS – Sistema Único de Saúde TSE – Tribunal Superior Eleitoral UBS – Unidade Básica de Saúde UNESP – Universidade Estadual Paulista ZEIS – Zonas Especiais de Interesse Social LISTA DE FIGURAS Figura 1 – Hierarquia de poder entre os atores governamentais................................................ 44 Figura 2 – Ilustração do Ciclo das Políticas Públicas................................................................ 45 Figura 3 – Fluxograma de composição da amostra de legislação municipal............................. 92 Figura 4 – Fluxograma do procedimento de análise dos dados................................................ 101 Figura 5 – Contingência da Constituição relacionada à promulgação da Lei Orgânica........... 114 Figura 6 – Contingências da Constituição relacionadas aos projetos de lei de iniciativa popular.................................................................................................................................... 115 Figura 7 – Contingências da Constituição relacionadas ao plano diretor municipal.................118 Figura 8 – Contingências do Estatuto da Cidade relacionados ao processo de elaboração do plano diretor municipal........................................................................................................... 122 Figura 9 – Contingências da Lei Orgânica de Bauru relacionados à participação popular no processo decisório municipal.................................................................................................. 128 Figura 10 – Contingências da Lei Orgânica de Bauru relacionados à iniciativa popular de regulamentar as disposições da lei orgânica............................................................................ 129 Figura 11 – Contingências da Lei Orgânica de Bauru relacionados conselhos populares....... 132 Figura 12 – Contingências da Lei Orgânica de Bauru relacionada à órgãos de assoreamento e consulta................................................................................................................................... 133 Figura 13 – Contingências do Plano Diretor de Bauru sobre o estabelecimento da gestão democrática............................................................................................................................ 136 Figura 14 – Contingências do Plano Diretor de Bauru sobre o estabelecimento da gestão democrática............................................................................................................................ 138 Figura 15 – Contingências do Plano Diretor de Bauru sobre o uso do solo e propriedade urbana..................................................................................................................................... 139 LISTA DE QUADROS Quadro 1 – Documentos de legislação municipal que passaram pelas etapas de seleção para composição da amostra final..................................................................................................... 93 Quadro 2 – Documentos de legislação federal selecionados para compor a amostra do estudo...................................................................................................................................... 100 Quadro 3 – Classificação das consequências identificadas nas contingências sobre a gestão democrática............................................................................................................................ 149 Quadro 4 – Caracterização dos participantes.......................................................................... 166 Quadro 5 – Categorias e subcategorias de análise................................................................... 168 Quadro 6 – Relatos dos participantes sobre a categoria percepção sobre como ocorre a participação popular............................................................................................................... 170 Quadro 7 – Relatos dos participantes sobre a categoria origem e motivação dos membros dos conselhos................................................................................................................................ 176 Quadro 8 – Relatos dos participantes sobre a categoria conhecimentos e informações para atuação no Conselho............................................................................................................... 179 Quadro 9 – Relatos dos participantes sobre a categoria opinião sobre a participação popular nos conselhos gestores.................................................................................................................. 185 Quadro 10 – Relatos dos participantes sobre a categoria interação entre os membros............ 188 Quadro 11 – Relatos dos participantes sobre a categoria interação com o Poder Público....... 192 Quadro 12 – Relatos dos participantes sobre a categoria estratégias de fomento à participação popular.................................................................................................................................... 196 Quadro 13 – Relatos dos participantes sobre a categoria estratégias de coleta de informações e demandas da sociedade........................................................................................................... 198 Quadro 14 – Relatos dos participantes sobre a categoria benefícios da participação popular. 201 Quadro 15 – Relatos dos participantes sobre a categoria problemas e dificuldades resultantes da participação popular........................................................................................................... 204 Quadro 16 – Relatos dos participantes sobre a categoria problemas e dificuldades para implementação da participação popular.................................................................................. 208 Quadro 17 – Relatos dos participantes sobre a categoria conhecimento da população quanto aos conselhos gestores.................................................................................................................. 211 Quadro 18 – Relatos dos participantes sobre a categoria conhecimento da população quanto aos benefícios................................................................................................................................ 214 Quadro 19 – Relatos dos participantes sobre a categoria aspectos importantes para a tomada de decisões.................................................................................................................................. 217 Quadro 20 – Relatos dos participantes sobre a categoria opinião sobre os efeitos da participação popular nas políticas públicas................................................................................................. 220 Quadro 21 – Relatos dos participantes sobre a categoria opinião sobre o fomento à participação popular.................................................................................................................................... 222 Quadro 22 – Relatos dos participantes sobre a categoria contribuições particulares para a participação popular............................................................................................................... 223 Quadro 23 – Relatos dos participantes sobre a categoria benefícios particulares em participar dos conselhos.......................................................................................................................... 226 SUMÁRIO 1 APRESENTAÇÃO E CONSIDERAÇÕES PRELIMINARES.............................. 19 1.1 OBJETIVOS DA PESQUISA E ESTRUTURAÇÃO DO TRABALHO .................... 22 2 INTRODUÇÃO E CONTEXTUALIZAÇÃO DOS REFERENCIAIS TEÓRICOS..............................................................................................................................24 2.1 POLÍTICA, ESTADO E PODER ................................................................................. 28 2.2 OS SENTIDOS DA POLÍTICA PÚBLICA E SEU CICLO DE VIDA ...................... 38 2.3 A PARTICIPAÇÃO POPULAR COMO RECURSO DE INFLUÊNCIA NO PROCESSO DE POLÍTICA PÚBLICA .................................................................................. 47 2.4 CONTEXTOS PARA A COMPREENSÃO DA PARTICIPAÇÃO POPULAR NO ÂMBITO DAS POLÍTICAS PÚBLICAS BRASILEIRAS ..................................................... 55 2.5 FUNDAMENTOS PARA UMA COMPREENSÃO ANALÍTICO- COMPORTAMENTAL DAS POLÍTICAS PÚBLICAS ........................................................ 68 2.6 INTERPRETAÇÕES ANALÍTICO-COMPORTAMENTAIS DE POLÍTICAS PÚBLICAS ............................................................................................................................... 78 3 MÉTODO E DELINEAMENTO DO ESTUDO ...................................................... 89 3.1 ETAPA 1: SELEÇÃO E ANÁLISE DE DOCUMENTOS LEGAIS .......................... 89 3.1.1 Procedimento de coleta de dados .................................................................................. 90 3.1.2 Procedimento de análise de dados .............................................................................. 101 3.2 ETAPA 2: ANÁLISE DE RELATO VERBAL DE MEMBROS DOS CONSELHOS GESTORES DE POLÍTICAS PÚBLICAS MUNICIPAIS ................................................... 104 3.2.1 Participantes ................................................................................................................ 105 3.2.2 Procedimento de Coleta de Dados .............................................................................. 105 3.2.3 Procedimento de Análise de Dados ............................................................................ 108 3.3 ASPECTOS ÉTICOS ................................................................................................. 108 4 ANÁLISE DAS RELAÇÕES COMPORTAMENTAIS PRESCRITAS NOS DOCUMENTOS LEGAIS ................................................................................................... 109 4.1 CARACTERIZAÇÃO DA GESTÃO DEMOCRÁTICA DO PLANEJAMENTO URBANO NOS DOCUMENTOS ANALISADOS ............................................................... 109 4.2 A GESTÃO DEMOCRÁTICA NO ÂMBITO MUNICIPAL DE BAURU .............. 127 4.3 DESCRIÇÃO DA PRÁTICA DE PARTICIPAÇÃO POPULAR COMO ESTRATÉGIA DE GESTÃO DEMOCRÁTICA DAS POLÍTICAS PÚBLICAS BRASILEIRAS ...................................................................................................................... 139 4.3.1 Finalidade do projeto em relação à prática cultural – primeiro item do checklist ......139 4.3.2 Avaliação da história comportamental das práticas atuais – segundo item do checklist..................................................................................................................................142 4.3.3 Identificação de reforçadores de curto e longo prazo e os possíveis efeitos na prática proposta – terceiro item do checklist ...................................................................................... 148 4.3.4 Planejamento e disponibilidade de reforçadores à população – quarto item do checklist..................................................................................................................................154 4.3.5 Considerações preliminares para a nova prática cultural – quinto item do checklist....160 5 ANÁLISE DOS RELATOS VERBAIS DOS MEMBROS DOS CONSELHOS MUNICIPAIS ....................................................................................................................... 165 5.1 CARACTERIZAÇÃO DOS PARTICIPANTES E TRAJETÓRIAS PARTICULARES DE PARTICIPAÇÃO POPULAR ......................................................................................... 165 5.2 ANÁLISE E DISCUSSÃO DO RELATO VERBAL SOBRE AS PRÁTICAS NO CONTEXTO DOS CONSELHOS MUNICIPAIS ................................................................. 168 5.2.1 Práticas relacionadas à participação popular .............................................................. 169 5.2.2 Consequências da participação popular ...................................................................... 201 5.2.3 Concepções particulares sobre a participação popular ............................................... 216 6 SÍNTESE COMPARATIVA DO RELATO VERBAL DOS CONSELHEIROS MUNICIPAIS E AS PRESCRIÇÕES COMPORTAMENTAIS ..................................... 229 7 CONSIDERAÇÕES ADICIONAIS ........................................................................ 240 REFERÊNCIAS ................................................................................................................... 243 APÊNDICE A – Checklist adaptado de CARRARA et al. (2013) .................................... 269 APÊNDICE B – Roteiro Norteador .................................................................................... 271 APÊNDICE C – TERMO DE CONSENTIMENTO LIVRE E ESCLARECIDO ......... 273 19 1 APRESENTAÇÃO E CONSIDERAÇÕES PRELIMINARES A temática central na qual este estudo foi desenvolvido consiste na interface entre o campo das políticas públicas e a psicologia, mais especificamente, no contexto de desenvolvimento de políticas públicas voltadas para o planejamento urbano brasileiro, tendo como referencial de análise pressupostos embasados nas ciências comportamentais, sob um viés behaviorista radical. O interesse pelo estudo dessa interface temática, entre políticas públicas e ciências do comportamento, teve início quando do desenvolvimento da dissertação de mestrado intitulada “Descrição e Análise de Contingências Presentes em Legislações Referentes à Mobilidade Urbana”, desenvolvida pelo autor no período de 2013 a 2015 (LOURENCETTI, 2015). Naquela oportunidade, utilizando metodologia analítico-comportamental, que compreendeu o uso da contingência de três termos como unidade básica de análise para a descrição de relações funcionais entre eventos ambientais e/ou entre eventos comportamentais e ambientais prescritos em três documentos de leis1, foi possível identificar, descrever e analisar prescrições comportamentais, direta ou indiretamente referenciadas nos documentos legislativos alvo de análise, que descrevem ações esperadas tanto de agentes públicos e políticos, como da sociedade civil. No referido estudo observou-se que as políticas públicas analisadas representam importantes instrumentos no sentido de descrever contingências relacionadas ao uso dos mecanismos da política urbana, representando avanço em relação ao modo como o planejamento e o desenvolvimento urbano foram estruturados nas últimas décadas (BRASIL, 2004; MARICATO, 2013, 2014; ROLNIK, 2009, 2013). Entretanto, ainda que representem avanços em relação ao histórico das políticas públicas brasileiras, notou-se naquela ocasião que as leis analisadas não garantiram o cumprimento de todas as suas prescrições por parte dos agentes públicos, uma vez que não foram executadas determinadas ações previstas na lei (LOURENCETTI, 2015). Tal dado expôs a necessidade de novos estudos que busquem avaliar a abordagem dada pelos diferentes indivíduos (agentes públicos, políticos, sociedade civil, dentre outros) que participam do processo de desenvolvimento das políticas públicas. Os achados de Lourencetti (2015) indicaram que para uma melhor compreensão das prescrições comportamentais presentes nos documentos legislativos é importante que se 1 Os três documentos de leis analisados foram: o Estatuto da Cidade – Lei nº 10.257/2001 (BRASIL, 2001), a Política Nacional de Mobilidade Urbana – Lei nº 12.587/2012 (BRASIL, 2012) e o Plano Diretor Participativo do Município de Bauru-SP – Lei nº 5.631/2008 (BAURU, 2008). 20 compreenda todo um conjunto, representado por uma série de documentos que se entrelaçam e compõem o sistema legislativo. Igualmente importante seria compreender as variáveis que controlam os comportamentos dos envolvidos nesse sistema. O referencial analítico- comportamental compreende as leis como sendo regras que deveriam descrever relações entre eventos ambientais e comportamentais, indicando prescrições comportamentais quanto aos contextos em que determinados comportamentos devem ocorrer e as consequências que produzem. Uma explanação detalhada desses princípios comportamentais é apresentada no capítulo 2, adiante. Ainda que uma lei deva descrever essas relações, aumentando a probabilidade de ser efetiva, Lourencetti (2015) observou que tomar uma lei isoladamente poderia produzir análises e compreensões restritas das relações comportamentais. Os aspectos relativos ao processo legislativo evidenciam que para a compreensão de um fenômeno relacionado ao sistema legislativo, há a necessidade de que sejam tomados um conjunto de documentos legais que versem sobre a mesma temática. Assim, a escolha deste estudo por promover a análise de um conjunto de documentos objetiva dar conta dos apontamentos de Lourencetti (2015). Além da importância em descrever contingências relacionadas às práticas comportamentais historicamente estabelecidas, os documentos legais e as políticas públicas também podem consistir em recursos que visam modificar ou instaurar novas práticas aos diferentes indivíduos envolvidos. Um exemplo disso é a política urbana brasileira, contexto em que as recentes políticas públicas desenvolvidas, sobretudo após a década de 1980 (MARICATO, 2014; ROLNIK, 2009), constituem-se como proposta de mudanças das práticas em vigor, objetivando contribuir para o planejamento e desenvolvimento urbano sustentável e que atenda aos interesses da sociedade (LOURENCETTI; CARRARA, 2017). Assim, quanto à participação da sociedade civil no contexto das políticas públicas, ficou evidente a constatação de que o Estatuto da Cidade (BRASIL, 2001) e as políticas subsequentes representaram importantes avanços na proposição de norteadores para uma política urbana que atenda aos interesses da população, definindo diretrizes gerais para que ocorra a participação popular em todos os âmbitos da política, sendo tal participação constituída, sobretudo, via conselhos gestores de políticas públicas. No entanto, identificou-se que a lei apenas detalha a obrigatoriedade de que ocorra um modelo de gestão conjunto à sociedade civil, mencionando a necessidade de que se garantam espaços para a participação popular no sentido de avaliar e fornecer opiniões sobre a política, porém faculta aos Estados, Municípios e Distrito Federal o modo como essas disposições serão regulamentadas e executadas em cada uma dessas instâncias administrativas, o que 21 poderia ocasionar problemas de incompatibilidade entre ações dessas diferentes instâncias (LOURENCETTI, 2015; LOURENCETTI; CARRARA, 2017). Frente a esse dado, indaga-se sobre como, de fato, tem ocorrido a participação popular por meio dos diferentes instrumentos de gestão democrática existentes no âmbito das políticas públicas de planejamento e desenvolvimento urbano. Compreende-se que a disposição metodológica do estudo basilar (LOURENCETTI, 2015) oferecia recursos razoavelmente limitados para afirmações sólidas e consistentes nesse sentido, uma vez que foi considerado apenas um conjunto de documentos de lei, analisados isoladamente e em conjunto, bem como dados incidentais de reportagens que apontavam alguma inconsistência entre o prescrito nas leis e o que de fato havia sido feito pelos responsáveis pelo desenvolvimento das políticas urbanas. Assim, diante do exposto, este estudo configura-se como um desdobramento do estudo promovido por Lourencetti (2015), partindo dos questionamentos outrora levantados, quanto à não correspondência das ações públicas com aquilo que está prescrito em leis. Além disso, neste momento agregam-se as hipóteses de que os atores representantes da sociedade civil e da administração pública envolvidos no processo de elaboração, planejamento, execução e avaliação de políticas públicas de planejamento urbano no município de Bauru/SP, têm seu comportamento sob controle de variáveis prescritivas presentes nas leis; entretanto têm atuação pautada em outras variáveis que agem sobre seus próprios comportamentos, de maneira particular, influenciando suas ações nos contextos de políticas públicas e fazendo com que nem sempre sigam o prescrito em lei, sendo comum que apresentem ações que se mostram divergentes daquilo que é preconizado pela lei. Para dar conta de tais hipóteses, tomou-se um referencial teórico-metodológico analítico-comportamental, no qual foram conduzidas análises de documentos legislativos e entrevistas com representantes de diferentes instâncias de conselhos municipais para a verificação de tais hipóteses. As características do aparato metodológico são mais bem descritas no capítulo 3 que trata do Método e Delineamento do estudo. A opção por partir de referencial analítico-comportamental, se deu pela premissa de que a Análise do Comportamento, como disciplina e matriz no âmbito da Psicologia, poderia auxiliar no subsídio e instrumentalização dos envolvidos na formulação, planejamento e execução de leis e políticas públicas voltadas para o desenvolvimento urbano. Além disso, avaliou-se que tal abordagem ao estudo do contexto das políticas públicas, permitiria compreender as relações estabelecidas a partir das prescrições relacionadas à gestão democrática da cidade, compreendendo a natureza comportamental das práticas e das variáveis que eventualmente 22 controlam o comportamento daqueles envolvidos na elaboração, implantação e fiscalização dessas leis. 1.1 OBJETIVOS DA PESQUISA E ESTRUTURAÇÃO DO TRABALHO Diante da contextualização apresentada e como linha de base para eventuais intervenções comportamentais, este estudo almeja compreender em que medida, de que maneira e com que características ocorre a participação popular, por meio da gestão democrática da cidade, no processo de planejamento, formatação e implantação de políticas públicas de planejamento e desenvolvimento urbano. Para que tal objetivo seja alcançado, foram definidos os seguintes objetivos específicos: 1) Descrever e analisar os processos comportamentais prescritos por legislação (federal e municipal) relacionada ao planejamento e desenvolvimento urbano, avaliando como contemplam em seu conteúdo descrições relacionadas à participação popular; 2) Descrever e analisar a participação popular como prática cultural no contexto da gestão pública, a partir da análise das prescrições comportamentais presentes nos documentos legislativos; 3) Identificar, por meio do relato verbal de representantes da sociedade civil nos conselhos municipais de Bauru, quais variáveis que potencialmente controlam o comportamento destes no desenvolvimento da gestão democrática; 4) Identificar e analisar diferenças e similaridades entre o relato verbal dos representantes da sociedade civil nos conselhos municipais de Bauru, bem como entre as prescrições da legislação e aquelas relatas pelos membros desses grupos. Considerando tais objetivos, optou-se por estruturar esta tese percorrendo o seguinte itinerário: no Capítulo 2 – Introdução e contextualização dos referenciais teóricos, é conduzida a apresentação e discussão de aspectos conceituais acerca dos referenciais teóricos utilizados no estudo, reunindo literatura dos campos da Ciência Política, Políticas Públicas e Análise do Comportamento. Na sequência parte-se para o capítulo, intitulado Método e delineamento do estudo, onde é apresentada a descrição detalhada sobre os aspectos e decisões metodológicas que embasaram a pesquisa, descrevendo as fontes de dados documentais e de relatos verbais, os cuidados éticos considerados, os instrumentos e procedimentos de coleta e análises dos dados documentais e relativos aos relatos verbais. No Capítulo 4, intitulado Análise das relações comportamentais prescritas nos documentos legais, desenvolve-se a apresentação dos aspectos comportamentais referentes à 23 análise dos documentos legislativos, indicando suas prescrições comportamentais, bem como é feita a descrição da participação popular como prática cultural a partir de instrumental próprio da Análise do Comportamento (CARRARA et al., 2013). No Capítulo 5, intitulado Análise dos relatos verbais dos membros dos conselhos municipais, é apresentada a síntese e discussão da categorização dos relatos verbais dos participantes entrevistados, objetivando descrever as práticas comportamentais destes nos contextos de gestão democrática. Por fim, antes das últimas considerações, há o Capítulo 6, intitulado Síntese comparativa do relato verbal dos conselheiros municipais e as prescrições comportamentais, que visa estabelecer síntese entre as prescrições presentes na legislação quanto ao funcionamento da participação popular e os relatos verbais dos participantes, bem como são tecidas considerações adicionais quanto estudo. 24 2 INTRODUÇÃO E CONTEXTUALIZAÇÃO DOS REFERENCIAIS TEÓRICOS A noção de “política pública” se relaciona a diversas acepções e compreensões, variando de acordo com o referencial utilizado. A literatura especializada (FREY, 1999, 2000b; NOGUEIRA, 2015; SARAIVA, 2007; SECCHI, 2017b; SOUZA, 2006, 2007) aponta que tal aspecto se relaciona a complexidade dos fenômenos a que o termo abrange, caracterizando como polissêmico e sem consenso preciso quanto a definição conceitual do que seja uma política pública. Adicionalmente, o termo tem se mostrado cada vez mais presente no cotidiano da população, sobretudo em razão da efervescência do cenário político contemporâneo, tanto no Brasil como no restante do mundo, que é caracterizado por notícias relacionadas a impeachment, corrupção e outros elementos próximos aos governantes públicos (HARVEY et al., 2012; ROLNIK, 2013). Especificamente no Brasil, as mobilizações e manifestações sociais ocorridas em meados de 2013 e que ficaram conhecidas como Jornadas ou Revoltas de Junho (ROLNIK, 2013) podem ser consideradas um referencial interessante para ilustrar e observar esse fenômeno. Nesse contexto, os movimentos levantaram bandeiras anticorrupção e pela reivindicação por políticas públicas que atendessem as reais necessidades da população (GOMES, 2013), sobretudo no âmbito da mobilidade e planejamento urbanos. Rolnik (2013) assemelha esse movimento a um terremoto “que perturbou a ordem de um país que parecia viver uma espécie de vertigem benfazeja de prosperidade e paz, e fez emergir não uma, mas uma infinidade de agendas mal resolvidas, contradições e paradoxos” (p.13). No epicentro do terremoto estariam as malconduzidas agendas de mudança e efetivação de direitos sociais (BRAGA, 2013; ROLNIK, 2013), pautas da antiga luta contra a ditadura e pelo processo de redemocratização, que retomaram o direito de ter direitos posto pela Constituição de 1988 (ROLNIK, 2013) e fizeram a população questionar os precários serviços ofertados pelo Estado (BRAGA, 2013). A questão envolvida na luta popular veio à tona em junho de 2013, sobretudo por seu epicentro ter ocorrido na principal metrópole do país, São Paulo. Entretanto, “como um fantasma que ronda as cidades deixando marcas vivas no espaço e na memória, as revoltas populares em torno do transporte coletivo assaltam a história das metrópoles brasileiras desde sua formação” (MPL-SP, 2013, p. 28). O ocorrido em São Paulo não foi fato inédito, pelo menos 10 anos antes, com a “Revolta do Buzu” em Salvador, os movimentos populares já faziam reivindicações contra os aumentos das tarifas do transporte coletivo e denunciavam as 25 dificuldades da vida urbana (MPL-SP, 2013), reivindicações e denúncias que não geram estranheza alguma em quem vivencia diariamente a vida nas médias e grandes cidades brasileiras (MARICATO, 2013). A Constituição de 1988 traduziu em direitos sociais diversos anseios da população, como aqueles elencados em seu art. 6º e que tocam em aspectos como saúde, habitação e educação, sendo que esses direitos corresponderiam às carências e necessidades que devem obrigatoriamente ser providas pelo Estado (BRASIL, 1988). Entretanto, essas necessidades sociais poderiam se diferenciar entre os vários indivíduos e grupos que compõem à sociedade. Ainda, poderiam não contemplar as demandas sociais, reivindicações que a população ou cada sujeito reconhecem como necessário. No sentido dessas necessidades, o próprio art. 6º da Constituição apontaria como direitos sociais elementos como a qualidade de vida e o bem- estar, conceitos que certamente se relacionam às necessidades reconhecidas por cada sujeito, variando de indivíduo para indivíduo e de grupo para grupo. Na execução das diretrizes constitucionais, os executores de políticas públicas podem se guiar e desenvolver ações sob controle de necessidade sociais, de demandas sociais ou de ambos. Um gestor público pode propor políticas habitacionais que atendam ao direito constitucional de moradia, porém essas políticas podem não apresentar alinhamento entre o que a população apresenta e reconhece como carência ou necessidade. Essa falta de correspondência entre ambos, demandas e necessidades, poderia ser catastrófica para a política, resultando no não acesso aos direitos sociais por pela população. Um aspecto importante é que nem sempre necessidades e demandas coincidem e uma das funções das mobilizações populares é favorecer o alinhamento dessas demandas e necessidades sociais. Em âmbito internacional, as denúncias contra o cenário político também têm se materializado em movimentos populares no contexto urbano, reivindicando políticas públicas que atendam às necessidades sociais e demandas sociais. O movimento Occupy Wall Street2, que teve início em 2011, em Nova York, deu origem ao Occupy (cf. HARVEY et al., 2012), caracterizado como um conjunto de manifestações que se alastrou pelo mundo em defesa de pautas que envolviam questionamentos às estruturas verticais e centralizadas de poder político, propondo a descentralização e formas horizontais de decisão (ROLINK, 2013), além do próprio modelo político-econômico capitalista (ŽIŽEK, 2013), contribuindo para reflexões sobre essas questões no âmbito de desenvolvimento de políticas públicas. 2 “Ocupe Wall Street” em tradução livre. 26 O que se observa é que tais aspectos de popularização das discussões sobre o contexto político têm dado aos termos “política” e “política pública” uma relativa plasticidade, caracterizando-o como uma espécie de termo “guarda-chuva” que abrange diferentes conceitos, sentidos e significados que podem, ocasionalmente, apresentar compatibilidades e incompatibilidades entre si e/ou ainda se associar a noções do senso comum. Uma compreensão geral de políticas públicas e da própria concepção de política, tem se tornado cada vez mais presente nas sociedades contemporâneas, sendo que, em muitos casos, acabam tratados como sinônimos. Em uma análise ampla, é seguro afirmar que no Brasil a discussão, interpretação e opinião sobre os fatos políticos e problemas sociais têm ganhado maior visibilidade e espaço, algo impensável décadas atrás quando da existência de regimes políticos totalitários e/ou antidemocráticos, onde a crítica pública à política e às suas instituições era algo estranho ao cidadão comum. Nas últimas décadas, a forma de organização da sociedade tem se modificado e se tornado cada vez mais complexa (HARVEY et al., 2012; MARICATO, 2008). A dinâmica com que as informações são disseminadas se tornou mais rápida e acessível. Atualmente, há na mídia um caráter globalizante, onde agora a população tem acesso não apenas ao que acontece com seus vizinhos, de forma local, mas a fatos em escala global. Somado a isso, modificaram-se as formas de comunicação midiática, antes restritas à comunicação impressa (jornais e revistas) ou falada (rádio e televisão). Hoje é possível fazer uso de tais meios de comunicação já tradicionais e que, normalmente, possuem seções específicas para discussão política proposta por uma figura comentadora, bem como também é possível fazer uso de mídias diversas para escolher qual conteúdo vai acessar e consumir, além de ter contato com conteúdo produzidos por outros cidadãos comuns, bem como emitir, publicar e veicular suas próprias opiniões em blogs e mídias sociais (MIRANDA, 2017). De forma geral, a facilidade no acesso à comunicação acabou servindo como catalisador de todo esse processo. Se antes a televisão e o rádio eram acessíveis majoritariamente no âmbito residencial ou durante o percurso para o trabalho, hoje os celulares ocupam essa posição, estão nas mãos da maior parte da população e são o recurso que comumente viabiliza acesso interativo a qualquer informação em instantes. Devido a isso, mas não apenas, os diversos problemas sociais, e a crítica a eles, têm se tornado presentes no cotidiano do cidadão. Tais problemas acabam por envolver tanto elementos estruturais, como, por exemplo, a ausência de infraestrutura relacionada ao saneamento básico em uma determinada região do país, assim como aqueles considerados de ordem gerencial, que tratariam mais diretamente da gestão e do uso dos recursos públicos 27 necessários para minimizar ou solucionar os problemas sociais (ex. políticas de subsidio ao tratamento de esgoto) em escala nacional. Nesse sentido, tais aspectos têm contribuído para a formação, no ideário comum da sociedade – de maneira mais ou menos precisas – a concepção de que “políticas públicas” tratariam de ações desenvolvidas pelo poder público – talvez, mais especificamente, gestores e legisladores públicos – tendo por objetivo organizar o funcionamento e dar conta dos problemas da sociedade (CHRISPINO, 2016; SECCHI, 2017b). Com relação à apontada ausência de consenso na literatura quanto à definição de “políticas públicas”, tal aspecto parece ser elucidado devido à inerente multidisciplinaridade e interdisciplinaridade que as caracterizam. Além disso, mais especificamente no Brasil, o interesse pelo estudo acadêmico-científico do conceito parece ter se intensificado de forma recente, tendo se estruturado como conteúdo acadêmico nas últimas décadas (CHRISPINO, 2016). Um terceiro aspecto relevante é que historicamente diferentes áreas e disciplinas têm apresentado e desenvolvido distintos usos e visões sobre o termo. Políticas públicas têm sido objeto de diferentes áreas, tais como a Administração Pública, Ciência Política, Ciências Sociais, Economia, Sociologia, Psicologia, dentre outras que se interessam por seu estudo, compreensão e aplicação. Assim, não é estranho supor que tais áreas empreguem diferentes visões e concepções de acordo com seus pressupostos teóricos e epistemológicos, sendo que tais entendimentos podem ser divergentes entre si, assim como apresentarem aspectos comuns e complementares. Parece seguro afirmar que tratar de sua definição consiste em tarefa complexa, sendo um conceito que não surge de forma isolada, não havendo uma única ou melhor definição (SOUZA, 2006) e que qualquer definição apresentada se daria de modo arbitrário, devendo se considerar o contexto e referencial que embasa sua compreensão (CHRISPINO, 2016). Isto posto, ao constituir-se como polissêmico, possuindo múltiplas definições possíveis, observa- se que o termo “política pública” requer apontamentos acerca dos possíveis entendimentos pelos quais será utilizado. Nesse sentido, este capítulo tem por objetivo principal introduzir os conceitos básicos no campo das políticas públicas e também do referencial teórico da Análise do Comportamento, que irá sustentar o ponto de vista do presente estudo. Além disso, objetiva a contextualização da temática e de estudos que eventualmente proveram articulações entre políticas públicas e Análise do Comportamento. Sendo assim, optou-se por estruturá-lo em seis seções, que percorrem o seguinte itinerário: na primeira seção traça-se um resgate dos conceitos de política, Estado e poder, destacando as múltiplas relações entre eles no 28 desenvolvimento das políticas públicas e da sociedade. A segunda seção objetiva apresentar, a partir da exploração dos sentidos aplicáveis ao termo política, aspectos relativos à definição e ao ciclo de vida das políticas públicas, expondo as diferentes etapas e indivíduos envolvidos em seu processo de elaboração, implementação e avaliação. A terceira seção visa expor a participação popular como recurso de influência no processo de política pública. Já na quarta seção há o destaque para o desenvolvimento da participação popular nas políticas públicas brasileiras. As duas últimas seções são dedicadas a apresentar o referencial analítico- comportamental, sendo a seção cinco responsável por introduzir alguns de seus fundamentos básicos, e na sexta seção é apresentada uma breve revisão da literatura quanto a estudos que tenham conduzido análises ou intervenções via políticas públicas pelo viés comportamentalista. 2.1 POLÍTICA, ESTADO E PODER Aprofundando nas bases de origem e desenvolvimento histórico, originalmente a noção de política pública surge na Europa fortemente associada às teorias que tratavam do papel do Estado e das instituições que o compõe. Posteriormente, nos EUA, se desenvolveu como área de conhecimento e estudo, tornando-se gradualmente independente das teorias sobre o Estado, tratando mais diretamente das ações dos governos (SOUZA, 2006). Nesse contexto, a política pública é comumente associada a outros elementos centrais a ela e que, inerentemente, servem de base para sua compreensão, tais como as noções de política, poder, governo e Estado (SCHMITTER, 1965; SECCHI, 2017b). As compreensões sobre a definição e terminologia da palavra “política” remetem às experiências gregas da Antiguidade, sendo o termo entendido por muito tempo como sinônimo da “arte do bem viver”, e como o instrumento articulador de poder e dominação sobre a população, sendo favorecedor da segurança e convivência humana entre o final da Idade Média e início da Idade Moderna, período em que começa a ganhar significados fornecidos pela concepção de Estado Moderno (D’ENTREVES, 1998). Nesse sentido, parece seguro afirmar que as noções atribuídas ao termo política se associam aos contextos em que foi praticada. A gênese e raízes da “política” (polítikos) estariam na Grécia Antiga, sendo derivada do termo grego pólis, conceito que em aspectos históricos remete às cidades-estado gregas, 29 tais como Esparta, Atenas e Tróia, que apesar de serem consideradas como cidades3, extrapolavam as características básicas das demais cidades gregas em razão de sua forte autonomia (NOGUEIRA, 2015). Ainda que se refira a cidade, o termo contempla mais do que apenas os elementos que compõem o espaço urbano, considerando aspectos inerentes à vida cotidiana naquele espaço e, sobretudo sua organização social, dizendo respeito também às noções de espaço público, civil e social (BOBBIO, 1998; BONINI, 1988). As pólis, como eram denominadas essas cidades-estado, se caracterizavam pela rígida organização política e militar, além da autossuficiência de recursos, o que garantia a gestão autônoma e independente de outras cidades. Grosso modo, sua administração e gestão estavam a cargo do demos4, espaço composto por parcela politicamente ativa de cidadãos considerados qualificados a deliberar nas assembleias (BONINI, 1998; NOGUEIRA, 2015). Aristóteles foi um dos primeiros a discutir a organização das pólis em sua obra intitulada A Política5 (ARISTÓTELES, 2006), na qual, a partir do estudo de diversas formas de organização social, apresentou e descreveu alguns dos elementos precursores das noções de Estado e governo, bem como as diferentes formas de organização e poderes exercidos em âmbito político. Na concepção aristotélica, a Política é abordada como a arte de governar as pólis, tratando-a como resultante da ação de cidadãos virtuosos, aqueles dotados de poder e aptos a estabelecer regras para garantir a vida em coletividade. Para o autor, a política dizia respeito a um aspecto moral da vida em comunidade, correspondendo à “arte do bem- viver” meio pelo qual se buscaria o bem-estar geral dos cidadãos. É possível observar que a pólis abarcava a organização social praticada por um conjunto de indivíduos que compunham uma dada comunidade, sendo esta sujeita às deliberações coletivas formuladas por um grupo menor de cidadãos aptos a isso – os chamados demos – e que possuíam alguma autoridade formalmente instituída para direcionar ou governar a comunidade, determinando seus rumos e formas de organização. Notamos, assim, que a pólis representava o exercício de algum tipo de poder, por parte de um grupo específico, sobre uma coletividade. Em aspectos gerais, apresentava muita semelhança com a estrutura de organização dos modelos de governo contemporâneos. De certa forma, ainda que atualmente o conceito geral de política possa apresentar conotações muito variadas, é possível identificar similaridade entre o exercício político nas 3 Em tradução livre o termo pólis refere-se a cidade. 4 Em tradução livre o termo demos refere-se a povo. 5 Ao longo dos anos foram publicadas inúmeras versões do livro, sendo traduzido para diferentes idiomas. Nessas versões é possível encontrar o título grafado como “Política” ou como “A Política”, sendo este o caso da obra consultada. 30 pólis e aquilo que na contemporaneidade tem se compreendido por política. Ao longo de seu desenvolvimento o conceito de política adquiriu novos recortes que ampliaram gradativamente seu sentido, sendo que a noção de política como organização social da pólis se ramificou para compreensões que passaram a abarcar a ideia de uma ciência ou área que compreende a atividade ou o conjunto de atividades humanas no contexto do Estado (RODRIGUES, 2011; BOBBIO, 1998). Nogueira (2015) discute que a dificuldade na compreensão e consenso acerca do termo reside na complexidade dos fenômenos a qual objetiva abranger, consistindo de um termo polissêmico e de semântica densa. Ainda segundo o autor, o conceito de Estado desdobra-se em três facetas articuladas e indissociáveis, as quais nem sempre são assimiladas e compreendidas nas diferentes abordagens do tema. Em síntese, essas facetas se relacionam ao: Estado como sistema institucional, representado pelo governo e sistema político – corresponde ao aparato administrativo que reúne instrumentos de governo, gestão e organização com o qual a sociedade administra, regula e dirige os interesses e demandas de seus integrantes; Estado como agente de dominação, representado pelo legítimo monopólio de uso da força e violência – diz respeito a noção de que é o único agente e espaço de dominação e exercício de autoridade e poder sobre aqueles que a ele estão submetidos; Estado como sistema jurídico, associado à existência de um ambiente ético e sociocultural – um conjunto de regras, valores, práticas e tradições de uma comunidade organizada, responsáveis por estabelecer acordos e pactos essenciais para garantir a existência e a sobrevivência coletiva. Assim como o termo Política, a noção de Estado também evoluiu historicamente desde a Antiguidade, passando por diversas estruturas e concepções como as pólis e civitas romanas6, além da incorporação de mitos e figuras alegóricas, não se caracterizando como um conceito universal. Em geral, o Estado tem servido como indicador de formas de ordenamento político que passaram a ser utilizadas com a modernidade e a ascensão da burguesia na Europa após o século XIII, e aproximando-se do sentido atual a partir do século XV no qual está 6 Ambos os termos fazem referência a ideia de cidades, sendo que as civitas apresentavam características relativamente diferentes, com uma estrutura mais complexa, representando a cidade não como um território, mas uma comunidade que comungava de ideias, costumes e leis comuns que se convertiam em práticas de organização social para que promovessem uma sociedade entendida como justa. 31 associado à ideia de uma estrutura de poder soberano por parte de um governo sobre um povo e/ou território (BOBBIO, 1985/19877, 1988; WEBER, 1999, 2000). Esse período, correspondente ao final do século XIII e início do século XV, é caracterizado como um contexto de grandes e importantes mudanças nas comunidades europeias, como a queda de monarquias, ascensão da burguesia, fim de sistemas feudais e regimes absolutistas, fortalecimento do mercantilismo e início do capitalismo. Adicionalmente, ocorreram eventos marcantes da transição de períodos históricos, como a queda de Constantinopla, tomada pelo Império Bizantino, que culminaram nos eventos relacionados às Grandes Navegações que, por sua vez, promoveram a expansão dos limites globais e descobertas de novos povos (HOBSBAWM, 1977). Nesse sentido, é possível supor que esses e outros eventos históricos acarretaram a mudança da forma de organização social e, por consequência, nas relações por ele estabelecidas. Bobbio (1985/1987) faz um apontamento importante sobre o conceito de Estado, tratando de seu uso e concepção como produtos de invenções da modernidade, segundo o autor: Sejam quais forem os argumentos pró ou contra a continuidade de uma organização política da sociedade, a questão de saber se o Estado sempre existiu ou se se pode falar de Estado apenas a partir de uma certa época é uma questão cuja solução depende unicamente da definição de Estado da qual se parta: se de uma definição mais ampla ou mais estreita. A escolha de uma definição depende de critérios de oportunidade e não de verdade. Sabe- se que quanto mais numerosas são as conotações de um conceito tanto mais se restringe o campo por ele denotado, isto é, a sua extensão. Quem considera como elemento constitutivo do conceito de Estado também um certo aparato administrativo e o cumprimento de certas funções que apenas o Estado moderno desempenha, deverá necessariamente sustentar que a polis grega não é um Estado, que a sociedade feudal não tinha um Estado etc. (p. 69) O argumento do autor se pauta na ideia de que o termo Estado, palavra carregada de sentidos, passa a ser utilizado com maior frequência na linguagem política a partir de um determinado período histórico – final da Idade Média e início da Idade Moderna –, mas toda a noção e sentidos que são envoltos pelo termo não têm um ponto estanque de origem, mas sim a ideia de um processo de evolução histórica. O autor pontua ainda sobre a importância 7 Nos casos em que for aplicável, optou-se por apresentar na citação a data de publicação original, seguida da data da edição consultada. 32 de se compreenderem os elementos que estão contidos no conceito, sendo eles mais importantes do que o conceito em si de modo a que não se caia em uma visão reducionista. Compreendendo essa evolução histórica do conceito e a busca pelos elementos nele contidos, pode-se partir para os marcos iniciais de seu uso. Um dos primeiros a se referir ao Estado, em recortes embrionários dos usos atuais do termo, foi Nicolau Maquiavel no século XVI8, na obra “O Príncipe” (MAQUIAVEL, 2010) no qual, de forma geral, discorre sobre as formas de arranjo e manutenção do poder sobre a organização social. A ideia de Estado é apresentada logo no primeiro capítulo “Todos os Estados9, todos os domínios que tiveram e têm poder sobre os homens foram e são repúblicas ou principados” (MAQUIAVEL, 2010, p.32, destaque incluído). Para o autor, estas seriam as duas formas básicas de governo e organização do Estado, sendo, basicamente, a República o modo de governo desenvolvido por mais de uma pessoa, e os Principados que corresponderiam às Monarquias Absolutistas, no qual o poder é concentrado na figura de um único sujeito. Maquiavel inicia sua obra prestando reverência e dedicatória ao príncipe Lourenço de Médici, e tece uma série de argumentações favoráveis acerca da monarquia. Entretanto, o autor não poderia ser considerado um monarquista, mas sim que a monarquia seria um degrau que a sociedade deveria percorrer para ser alçada a um novo status. Sobre isso, Pinzani (2004), esclarece que O ideal de Maquiavel consiste, portanto, na criação de um Estado independente por mão de um príncipe capaz de dar a essa sua criação uma constituição republicana passível de lhe garantir a estabilidade. Nesse sentido, poder-se-ia dizer que O Príncipe trata de como criar um novo Estado e identifica o príncipe como o único sujeito capaz dessa tarefa (p. 15). Nesse sentido, observa-se que as teses defendidas por Maquiavel correspondem a ideia de que toda sociedade, para chegar ao status de organização social no formato de uma República, com poder partilhado entre os membros, deveria antes passar por um momento no qual o poder político seria centralizado em uma figura única e absoluta, de um monarca forte, 8 Acredita-se que o livro tenha sido escrito por volta de 1514, entretanto só foi publicado de forma póstuma em 1532, cinco anos após a morte de Maquiavel (PINZANI, 2004) 9 Ao longo do tempo “O Príncipe” teve diversas edições e traduções publicadas o que resultou em diferentes traduções para o termo “Estado” (BOBBIO, 1985/1987; CORTINA, A.; 2000; PINZANO, 2004). Como aponta Bobbio (1985/1987) no contexto original, Maquiavel não utilizou o termo “Estado”, pois ainda não era um termo corrente na linguagem da época. Naquele contexto a palavra utilizada seria “stato” que foi gradualmente substituída traduções subsequentes pelo termo “Estado”, conceito moderno que expressaria da mesma forma o conjunto de ideias originais de Maquiavel (cf. PINZANO, 2004). 33 capaz de unificar10 e ordenar o funcionamento da sociedade, para que então essa passasse a caminhar nos moldes de uma república. Ou seja, para o autor, o Regime Absolutista seria um caminho que a sociedade deveria percorrer para ser alçada ao status de república. Outras formas de conceber o surgimento do Estado remetem aos chamados teóricos contratualistas, tais como Thomas Hobbes (1588-1679), John Locke (1632-1704) e Jean- Jacques Rousseau (1712-1778) que, por meio da utilização de mitos e alegorias, discorrem sobre as formas de governo e organização da sociedade. No entendimento apresentado por eles, originalmente as pessoas viviam em um Estado de Natureza, caracterizado pela ausência de sociedade, onde organizariam tal qual os outros animais, seguindo as leis da natureza, em um estado de natural ausência de regras e normas de organização dos interesses individuais e coletivos. A superação desse Estado Natural se daria por meio do estabelecimento de um pacto social, no qual as pessoas renunciariam a parcela de suas liberdades individuais em favor de uma figura forte e soberana que garantiria a manutenção do acordo social e a emancipação de sua condição de natureza. Nesse contexto, Thomas Hobbes estabelece uma teoria do contrato social, no qual trata da estrutura da sociedade e do governo. Hobbes entendia que as pessoas possuíam natureza individualista que os fazia guerrear entre si e que, para manter a paz, deveriam estabelecer um contrato social sujeito a controle por parte de um governo forte e soberano em condições de garantir o cumprimento desses contratos e reprimir aqueles que não se adequassem à ordem social: A única maneira de instituir um tal poder comum, capaz de defendê-los das invasões dos estrangeiros e das injúrias uns dos outros, garantindo-lhes assim uma segurança suficiente para que, mediante seu próprio labor e graças aos frutos da terra, possam alimentar-se e viver satisfeitos, é conferir toda sua força e poder a um homem, ou a uma assembléia de homens, que possa reduzir suas diversas vontades, por pluralidade de votos, a uma só vontade. O que equivale a dizer: designar um homem ou uma assembléia de homens como representante de suas pessoas, considerando-se e reconhecendo-se cada um como autor de todos os atos que aquele que representa sua pessoa praticar ou levar a praticar, em tudo o que disser respeito à paz e segurança comuns; todos submetendo assim suas vontades à vontade do representante, e suas decisões a sua decisão. Isto é mais do que consentimento, ou concórdia, é uma verdadeira unidade de todos eles, numa só e mesma pessoa, realizada por um pacto de cada homem com todos os homens, de um modo que é como se cada homem dissesse a cada homem: Cedo e transfiro meu direito de governar-me a mim mesmo a este homem, ou a esta assembléia de homens, com a condição de transferires a ele teu 10 A concepção de unificação se relaciona ao contexto político-social no qual a obra foi escrita, onde a Itália apresentava grande fragmentação política e territorial (PINZANI, 2004). 34 direito, autorizando de maneira semelhante todas as suas ações. Feito isto, à multidão assim unida numa só pessoa se chama Estado, em latim civitas. É esta a geração daquele grande Leviatã, ou antes (para falar em termos mais reverentes) daquele Deus Mortal, ao qual devemos, abaixo do Deus Imortal, nossa paz e defesa. Pois graças a esta autoridade que lhe é dada por cada indivíduo no Estado, é-lhe conferido o uso de tamanho poder e força que o terror assim inspirado o torna capaz de conformar as vontades de todos eles, no sentido da paz em seu próprio país, e ela ajuda mútua contra os inimigos estrangeiros (HOBBES, 1651/2006, [S.I.]) Hobbes (1651/2006) recorre a figura do Leviatã, personificado no monarca absolutista, uma espécie de divindade na Terra e o único capaz de garantir a ordem social e o cumprimento dos contratos. A teoria do contrato social seria complementada pelas ideias de John Locke (LOCKE, 1689/1988), que defendia a necessidade de estabelecimento do contrato como uma forma de garantir a segurança dos membros da sociedade, sendo um papel do governo garantir o direito à vida, a liberdade e a propriedade11. Entretanto, a posição de Locke era em favor de um governo consentido pelos governados. Esta noção é, de certa forma, próxima a tese defendida por Jean-Jacques Rousseau de que o contrato social não deveria consistir em uma relação de submissão entre os indivíduos, mas sim um acordo no qual estes se associariam para garantir as liberdades individuais, o bem-estar e a segurança dos seres humanos (ROUSSEAU, 1762/2000). Em síntese, a posição dos contratualistas quanto ao surgimento do Estado, recaem na ideia de que ele surge como uma forma de controle social por meio do exercício formal do poder por parte dos membros da sociedade. Haveria um acordo entre os indivíduos nos quais estes abdicariam de parte de seus direitos, liberdades e controle sobre as próprias vidas, em favor de uma figura única, de um Estado, com autoridade legítima e capaz de garantir, por meio do uso da força, o cumprimento e a manutenção da ordem social. Essas teses contratualistas acabaram por influenciar as chamadas revoluções burguesas, ocorridas entre o final da Idade Média e início da Idade Moderna, tais como a Revolução Francesa, na França, e as Revoluções Gloriosa e Puritana, na Inglaterra, que marcam uma mudança no ordenamento social, abandonando a antiga sociedade estamental do modelo feudal regido, basicamente, pela dominação de nobres e religião, em favor de uma sociedade burguesa, organizada em distinções de classes e com o pressuposto da possibilidade de mobilidade social (HOBSBAWM, 1977). Nesse contexto, se estabeleceram os moldes da noção de Estado que se tem atualmente, caracterizado pela reunião de um conjunto de 11 Os aspectos relativos à propriedade fazem referência às propriedades privadas, como fruto da ascensão da burguesia em um cenário relacionado à Revolução Francesa. 35 instituições próprias que envolvem múltiplas relações de poder com a população de um território delimitado. Esse cenário resultou no surgimento do conceito de Estado-nação, tido como o principal instrumento para a ascensão da burguesia ao poder, e sua estrutura seria composta pela delimitação de três elementos: território, governo e população. Nesse processo, as formas de poder no âmbito do Estado também se fragmentaram, sendo desenvolvidas três formas de poder: executivo (administrativa), legislativo (normativo) e judiciário (jurisdicional). Bobbio (1985/1987) aponta que “Estado” e “política” têm em comum a referência ao poder, e que todos os conceitos forjados no âmbito da teoria política partiriam dessa referência. Para ele o Estado estaria constituído por instituições que formalmente organizam o poder no âmbito do Estado, sendo ele agrupado em três instâncias: poder executivo, poder judiciário e poder legislativo. Por essa compreensão, no seio do Estado o poder seria, de alguma forma, fragmentado, partilhado e distribuído por instituições que fariam seu exercício de maneiras próprias, garantindo a ordem e o interesse social. Ao Poder Executivo caberia a função administrativa do Estado, responsável pela aplicação de leis e condução da ordem interna. O Poder Legislativo é responsável pela edição de normas e leis que estabelecem a ordem jurídica, bem como têm o poder de aperfeiçoá-las ou revogá-las. O Poder Judiciário trata do julgamento e resolução de conflitos de interesses, avaliando transgressões às normas e divergências civis. Como destaca Mascaro (2013), essa estrutura característica do Estado Moderno não nasce única, como primeira representação de Estado, uma vez que importa nomenclaturas para suas instituições a partir de outros modelos de Estado que existiram no passado. Segundo o autor, há um processo de ruptura, transformação e reconfiguração das instituições políticas que se sucedem, sendo que os atuais rituais, simbologias e procedimentos exercidos no âmbito das instituições estatais se transformaram. Um exemplo disso, é o chamado “Senado”, presente no modelo moderno e que se baseia na ideia do Senado Romano. Entretanto, apesar de reproduzir a nomenclatura utilizada no sistema político romano, pouco equivale ao modelo de Senado praticado naquele contexto. No Império Romano, o Senado consistia em um espaço distinto, cujas decisões eram tomadas em função da vontade e interesses de um pequeno e seleto grupo de cidadãos (MASCARO, 2013). Além disso, sua política era exercida em função de simbolismos, por meio da invocação de mitos e vontades divinas como justificativas para a tomada de decisões (MASCARO, 2013). Não que hoje as decisões senatoriais não estejam sujeitas a simbolismos divinos ou aos interesses de um pequeno e seleto grupo, entretanto, a 36 estruturação da sociedade e o modelo de representatividade eleitoral permite, em maior ou menor grau, mobilidade suficiente para participação nesses contextos de decisão. Ao refletir sobre o conceito histórico e científico de política, Schmitter (1965) aponta que, como estrutura formalmente constituída, a política pode ser compreendida por meio de quatro categorias gerais, a saber: 1) as instituições que a compõem, tais como Estado e Governo; 2) os recursos e meios utilizados para exercer poder ou autoridade sobre uma coletividade; 3) os processos de decisão pelos quais é desenvolvida; e 4) por sua função, ou seja, pelas consequências que a atividade política produz à sociedade (SCHMITTER, 1965). Os dois primeiros componentes apontados por Schmitter (1965) que caracterizam a política se aproximam dos elementos explorados até feitos até aqui. Política estaria ligada a instituições, como o Estado, e corresponderia ao exercício de poder sobre uma sociedade. O Estado reuniria um conjunto de instituições próprias que envolvem múltiplas relações de poder com a população de um território delimitado. Nesse sentido, Reed (2013) aponta que, no contexto político, a noção de poder representa um conceito central para sua compreensão, porém assim como os demais conceitos abordados até aqui, não encontra consenso e nutre a mesma polissemia de outros conceitos centrais da teoria política. Retomando Schmitter (1965), este aponta que não se pode incorrer no erro de restringir a política a uma única instância ou relação de dominância. Para ele, o poder político deve ser compreendido como uma pluralidade de tipos de dominação, dentro dos quais também estariam a coerção e a violência, assim como também abrigaria a capacidade de influenciar e de exercer autoridade. Esse conjunto plural seria responsável por constituir as diferentes facetas do poder político que permitiriam o desenvolvimento da capacidade de influenciar. Em um artigo clássico no qual conceitua poder, Dahl (1957) expõe que este seria definido a partir da relação entre pessoas e que o nível de poder entre elas poderia ser classificado por critérios de graduação. Na compreensão apresentada por Dahl (1957)12, o poder compreenderia uma dimensão relacional e seria representado na relação entre duas pessoas, no qual uma pessoa A exerce poder sobre uma pessoa B de modo que consegue que a pessoa B faça algo que não faria em outra circunstância. Nessa concepção, entendido como uma instância de caráter relacional, o poder parece estar atrelado à capacidade que um indivíduo possui para influenciar ou determinar o comportamento de outros indivíduos, em outras palavras, pode-se entender como a capacidade 12 No original Dahl (1957, p. 202-203) menciona: “My intuitive idea of power, then, is something like this: A has power over B to the extent that he can get B to do something that B would not otherwise do.” 37 de agir e produzir efeitos sobre o comportamento de outras pessoas. Nesse sentido, Stoppino (1988) concorda ao apontar o caráter social e relacional do poder, indicando que “pode ir desde a capacidade geral de agir, até a capacidade do homem em determinar o comportamento do homem: Poder do homem sobre o homem” (p. 933), e exemplifica o poder social como “a capacidade que um pai tem para dar ordens a seus filhos ou a capacidade de um Governo de dar ordens aos cidadãos” (p.933). Essa noção de poder relacional amplia a proposta de poder político apresentada pelos teóricos contratualistas que restringiam o poder a uma posição estática sobre a natureza e para o alcance de um determinado fim almejado, ou seja, o meio pelo qual se obterá a satisfação de uma necessidade (STOPPINO, 1988). Segundo Stoppino (1988), Sem dúvida, como acabamos de mostrar, o Poder pode ser exercido por meio de instrumentos ou de coisas. Se tenho dinheiro, posso induzir alguém a adotar um certo comportamento que eu desejo, a troco de recompensa monetária. Mas, se me encontro só ou se o outro não está disposto a comportar-se dessa maneira por nenhuma soma de dinheiro, o meu Poder se desvanece. Isto demonstra que o meu Poder não reside numa coisa (no dinheiro, no caso), mas no fato de que existe um outro e de que este é levado por mim a comportar-se de acordo com os meus desejos. O Poder social não é uma coisa ou a sua posse: é uma relação entre pessoas (p. 934). Esse aspecto relacionado à influência pode ser observado na clássica definição de Lasswell (1936/1950) ao qual resume as diferentes tensões políticas na frase “Política: quem recebe o que, quando e como”13 que é também o título de seu livro homônimo publicado em 1936 (LASSWELL, 1936/1950), em que aponta que o estudo da política consistiria na compreensão do jogo de influências que são estabelecidas entre os diferentes indivíduos presentes no contexto político. Outro aspecto relativo ao poder diz respeito à autoridade, que também consistiria em uma forma de poder relacional e de influência, porém nesse espectro estariam formas de exercício de um poder legitimado por aqueles que são controlados e que o fazem voluntariamente (SCHIMITTER, 1965). Ainda no que toca as concepções relacionais de influência e de autoridade do poder político, Arendt (2002, 2007) retira da definição o aspecto restritivo do indivíduo e o aponta para a coletividade, uma vez que para ela o poder não se caracterizaria como algo restrito a um único indivíduo, mas sim como algo que pertence a um grupo, e esse poder só permaneceria existindo enquanto esse grupo tiver capacidade de se manter unido. 13 No original em inglês: “Politics: who gets what, when, how”. 38 Como se pôde observar até aqui, a noção do que é o Estado e de sua forma de organização sofreu modificações ao longo do processo histórico. Desde a antiguidade até o presente, foram agregados elementos associados à sua composição e organização das instâncias de poder (SCHIMITTER, 1965). A política, igualmente, sofreu evolução em sua compreensão, representando uma forma de exercício de poder no âmbito do Estado, sendo ele exercido nas diversas instâncias que o compõe. Nesse processo, os núcleos de poder também mudaram, da centralidade na figura única, passaram ao coletivo (ARENDT, 2002, 2007), ampliando os contextos e processos de decisão pelos quais o Estado é gerido. Observa-se que uma parcela do poder político passa a ser direcionada à resolução de conflitos e problemas existentes no contexto social (SCHIMITTER, 1965). Essa compreensão é fundamental para o entendimento sobre o funcionamento do aparelho estatal e das políticas públicas. Esses aspectos serão retomados na seção seguinte, abordando os sentidos aplicáveis da política ao contexto da sociedade, mais especificamente no refinamento da definição de política pública, de sua função e de seu processo geracional. 2.2 OS SENTIDOS DA POLÍTICA PÚBLICA E SEU CICLO DE VIDA Conforme apontado por Schmitter (1965), além das instituições e de seus recursos de poder, outros dois componentes caracterizam o contexto político: os processos de decisão pelos quais a política é desenvolvida, e sua função, relacionada às consequências que a atividade política produz à sociedade. Os processos de decisão corresponderiam às linhas de conduta das ações desenvolvidas no âmbito da política, ou seja, a identificação de como a política foi formulada, quem participou de sua elaboração e implantação, quais resultados produziu e os determinantes associados. Com relação a sua função, a política estaria relacionada à resolução pacífica de conflitos, compreendendo um conjunto de procedimentos formais e informais que expressariam relações de poder para tal fim (RUA, 1998). Sua consequência última seria a resolução de conflitos entre indivíduos e grupos (SCHMITTER, 1965). Esses elementos serão mais bem elucidados e desenvolvidos ao longo desta seção. Neste ponto, é possível destacar que alguns dos equívocos que comumente se cometem, sobretudo, no senso popular do uso dos termos “política” e “políticas públicas” estão em atribuir a eles noções restritivas relacionadas apenas ao poder por parte de um grupo sobre uma coletividade, exercido por um governo na qualidade de instância formalmente constituída a qual é, de certa forma, alçada à prerrogativa de gerenciar a sociedade. Como apontado, no cotidiano popular têm se atribuído significados e sentidos múltiplos, sendo um 39 equívoco comum restringir as definições ao sentido stricto de ação de governos, representados por seus governantes. Aparentemente, pelo exposto na seção anterior, política pode sim estar relacionada a ação dos governantes, mas não deve de maneira alguma se personificar ou se reduzir a ela, incorrendo riscos à sua compreensão. No Brasil, a literatura que trata da análise de políticas públicas (FREY, 1999, 2000b; SECCHI, 2017b; SOUZA, 2006, 2007) parece elucidar, ainda que parcialmente, tal equívoco, expondo que a dificuldade de compreensão pode estar relacionada a especificidades idiomáticas da língua portuguesa, onde uma mesma palavra pode compreender múltiplos sentidos. Esses autores apontam que em idiomas como a língua portuguesa o termo “política” assume conotações diferentes, algo que em outros idiomas, como a língua inglesa, é facilmente solucionado por meio do uso de diferentes termos que promovem a diferenciação dos sentidos atribuídos a política. No português é comum que o termo “política” seja dotado de sentidos que vão desde o exercício de poder das pessoas sobre outras pessoas por meio de atos de regulação e ordenação, até sentidos associados aos processos relacionados a planos para a resolução de problemas da sociedade. É mais próxima desta última compreensão que a “política pública” está inserida, algo que veremos adiante. O primeiro sentido e que talvez seja aquele que mais comumente faz parte do imaginário comum (SECCHI, 2017b) pode ser aglutinado sob o termo em inglês politics e se refere à disputa ou resolução de conflitos, à ação ou atividade das pessoas voltadas para o exercício de poder sobre as próprias pessoas (BOBBIO, 1998; FREY, 1999, 2000b; SECCHI, 2017b; SOUZA, 2006, 2007). Nesse sentido, a noção de política se associa estreitamente à ideia de poder, apresentada na seção anterior, compreendendo o meio pelo qual se obterá alguma vantagem ou se alcançará um efeito desejado (BOBBIO, 1998). Um segundo sentido para a política, corresponde ao termo em inglês policy e estaria relacionado à orientação para a ação ou tomada de decisão, compreendendo conteúdos que se relacionam a decisões políticas (politics) (FREY, 1999, 2000b; SECCHI, 2017b). O sentido atribuído ao termo policy pode ser entendido como uma diretriz que norteará uma decisão. De modo ilustrativo, pode-se exemplificar esse sentido por meio de uma determinada empresa do ramo moveleiro e que tem como política – no sentido de policy – a diretriz de adquirir apenas madeiras, sua principal matéria-prima, de fornecedores com certificação de proteção ambiental. Ou seja, as decisões tomadas pelo setor de compras da empresa deverão seguir tais orientações. O terceiro sentido atribuído, e aparentemente menos utilizado no senso comum, é representado pelo termo polity e que se refere à organização e à estrutura institucional do 40 sistema político, seus elementos hierárquicos e as entidades que o compõem, como o sistema administrativo e jurídico (FREY, 1999, 2000b). Um aspecto importante ressaltado por Frey (1999, 2000b) é que os três sentidos de política atribuídos na língua inglesa – politics, policy e polity – compreendem dimensões distintas da política dentro de um campo de análise de políticas públicas, entretanto essa diferenciação em categorias tem apenas um caráter didático e teórico de estudo, sendo que “na realidade política essas dimensões são entrelaçadas e se influenciam mutuamente” (p. 4). Segundo Secchi (2017b) é no sentido do termo policy que as políticas públicas estariam associadas, e tratariam “do conteúdo concreto e do conteúdo simbólico de decisões políticas, e do processo de construção e atuação dessas decisões” (p.1), correspondendo a diretrizes elaboradas com função de nortear as ações de enfrentamento e resolução dos problemas avaliados como públicos. Ou seja, por essa definição se observa que uma política pública (policy) é um produto da atividade política (politics) e se manifesta por meio da existência de uma ação, baseada em diretrizes, para a resolução de problemas que envolvem toda uma coletividade. Essa caracterização da política pública se aproxima das ideias de Schmitter (1965) e Rua (1998) sobre a função da política. Nesse momento, alguns questionamentos poderiam surgir quanto ao que se compreenderá como ação política e sobre o que seria um problema público: Políticas públicas envolveriam apenas governantes ou outros agentes da sociedade civil? Todas as ações governamentais poderiam ser entendidas como políticas públicas? Todas essas ações visam resolver um problema público? Qual seria o limite de um problema do tipo público e não- público? O objetivo deste estudo não consiste em responder a esses questionamentos que são recorrentes e implicam em “nós conceituais” (SECCHI, 2017b, p.2) na literatura do campo das políticas públicas. Como aponta Secchi (2017b) “qualquer definição de política pública é arbitrária. Na literatura especializada não há consenso quanto à definição do que seja uma política pública, por conta da disparidade de respostas para alguns questionamentos básicos” (p. 2). Quanto ao primeiro questionamento “políticas públicas envolveriam apenas governantes ou outros agentes da sociedade civil?”, a literatura (FREY, 2000b; SECCHI, 2017b; SOUZA, 2007) aponta para a existência de diferentes abordagens relacionadas às políticas públicas. Duas abordagens têm sido comumente aceitas, a Estadocêntrica e a Multicêntrica; a diferença entre elas, basicamente, recai sobre a identificação de quem é o protagonismo quanto às decisões (SECCHI, 2017b). A abordagem Estadocêntrica ou Estatista, está centrada nos agentes estatais e atribui a política pública como um monopólio 41 do Estado (e seus atores14 institucionais). Essa abordagem centrada no Estado admite a possibilidade de participação de outro atores não-estatais, entretanto, entende que a influência exercida por estes é limitada e não teriam poder de decisão sobre o processo de política pública (SECCHI, 2017b). Nessa perspectiva, a política se relaciona ao seu caráter Institucional, sendo elaborada e decida pela instância que possui autoridade formal e legal (SARAIVA, 2007). A segunda abordagem, Multicêntrica ou Policêntrica, retira do processo de políticas pública o monopólio dos atores estatais, concebendo a existência de uma rede de influências composta por diferentes membros e níveis da sociedade civil, sejam eles governamentais ou não. Essa abordagem entende que as políticas públicas são elaboradas e desenvolvidas no seio das instituições que compõem o Estado, mas as decisões envolveriam múltiplos centros (SECCHI, 2017b). Nessa perspectiva, é reconhecida a existência de vários centros de decisão. Ambas as abordagens parecem coerentes ao se pensar políticas públicas e são justificáveis a partir de seus pressupostos, entretanto neste estudo foi adotada a compreensão multicêntrica, por entender que o Estado tem o poder de centralizar instrumentos e mobilizar recursos úteis ao processo de elaboração, planejamento e implementação de políticas públicas, mas o processo decisório e de execução dessas etapas se dá por meio de outros agentes, sobretudo, se considerarmos o modus operandi da política brasileira após a promulgação da Constituição Federal de 1988 (cf. seção 2.4 deste capítulo que trata sobre a estruturação das políticas públicas brasileiras). Esse aspecto leva ao segundo ponto, a definição do que seria ou não um problema público e quem definiria seus limites. Como apontado anteriormente, uma política pública estará relacionada à resolução de um problema público, sendo que nesse sentido o “público” pode ser entendido como algo que afetaria uma coletividade, mas a sua interpretação seria subjetiva e interpretativa (SECCHI, 2017b). O problema público consistira na diferença entre uma situação ideal e a situação real e dependeria da interpretação dos agentes envolvidos. O aspecto subjetivo do problema entraria nesse ponto, onde uma situação para ser considerada problemática teria de contar com o reconhecimento dos agentes, daqueles que têm poder para isso. Secchi (2017b) aponta que os problemas tendem a ser definidos sob duas condições, sendo que o problema é aquele que é reconhecido por uma quantidade e/ou qualidade de 14 O termo “ator” utilizado ao longo deste trabalho é importado da literatura da ciência política, sendo comumente utilizado para designar os indivíduos que participam de forma ativa do processo de construção das políticas públicas. Como elucidado por Secchi (2017b), a concepção de ator é baseada na dramaturgia e corresponde àqueles indivíduos que se comportam ativamente na encenação de uma peça. 42 atores. Ou seja, para que uma situação seja entendida como um problema público ela deve afetar uma grande quantidade de pessoas, mobilizando os envolvidos. Além disso, a situação poderia afetar um conjunto muito restrito de atores, mas estes serem detentores de poder (qualidade) de decisão e reconhecê-la como tal. Essa situação poderia ser ilustrada, hipoteticamente, da seguinte forma: imagine o leitor que exista um país que tem como diretriz (condição ideal) o oferecimento de recursos de saúde em condição de equidade em todas as suas regiões, garantido igualdade no acesso a partir das demandas regionais. Na situação real, esse país pode apresentar discrepâncias regionais na disposição de aparelhos de saúde (hospitais, clínicas, recursos humanos) entre suas diferentes regiões, sendo que uma das regiões (região A) comporta 30% da população nacional, mas conta com apenas 15% dos aparelhos de saúde. A falta de recursos de saúde poderia ser vista como um problema e reconhecido por muitos atores, isso poderia mobilizar um contingente de ações (políticas) públicas para a solução desse problema, pois há nítida discrepância em relação à situação ideal. Agora, imagine que uma outra região do país (região B) contemple 20% da população, mas conte com 25% dos recursos em saúde. Em uma comparação simples, a região A encontraria déficit em relação a B e estaria qualitativamente desfavorecida. Em termos quantitativos, a região A teria maior urgência por políticas do que a região B. Continuando, conceba que a região B contribui com 50% da economia nacional e é a região onde se concentram os principais veículos de comunicação em nível nacional. Pode ser que esses fatores contribuam para a região B contar com a colaboração de atores com “maior poder”, sendo em termos econômicos e midiáticos qualitativamente mais relevante do que A, o que faria com que as demandas da região B fossem atendidas com maior urgência. Conforme Secchi (2017b), a noção do problema público é subjetiva e problemas podem ser interpretados como públicos ou não de acordo com os atores que o reconhecem: A quantidade e a qualidade das pessoas que ensejam uma política pública também são suscetíveis a interpretações. Um exemplo: a situação de desamparo de três mil trabalhadores demitidos de uma empresa privada é geralmente interpretada como problema público por algumas vertentes políticas, enquanto outras consideram esse mesmo desamparo um problema particular de cada um dos trabalhadores (p. 10). A tensão entre quantidade e qualidade dos atores no reconhecimento dos problemas públicos pode trazer agravos, um exemplo disso pode ser representado pelas políticas de assistência social brasileiras do final do século XIX até final do século XX, onde às ações de atenção aos economicamente desfavorecidos, pessoas com deficiência ou transtornos 43 psicológicos se resumiam à institucionalização e isolamento social. Esse contexto é retratado no livro “Holocausto Brasileiro” (ARBEX, 2013), que descreve situações vivenciadas no Hospital Colônia de Barbacena/MG, instituição onde pessoas com transtornos mentais ou população em situação de rua eram depositados sob o pretexto de tratamento, mas acabavam por viver em situação precária. Tal episódio resultou na morte de mais de 60 mil pessoas, estando as claras da sociedade brasileira e dos governantes do Estado. Em termos numéricos, representou uma situação que afetou uma grande quantidade de pessoas, porém estas não detinham poder de decisão para influenciar no desenvolvimento de estratégias de superação daquelas condições. A situação só passa a se modificar e ser reconhecida como um problema público quando, no final da década de 1970, trabalhadores da área da saúde e organizações internacionais denunciaram a situação do Hospital Colônia, sendo ele comparado a um campo de concentração nazista (ARBEX, 2013). Tais eventos estão no bojo do movimento que posteriormente ficou conhecido como Reforma Psiquiátrica brasileira (LIMA, 2018). Como visto até aqui, o Estado existe na qualidade de instância responsável pelas ações políticas. Entretanto, no dia a dia não é ele que se comporta produzindo essas ações, são os diferentes indivíduos que o integram que produzem as ações. Esses diferentes indivíduos tendem a ser denominados atores, correspondendo a todos aqueles que, individualmente ou coletivamente, atuam e possuem poder para, de alguma forma, influenciar nos processos relativos às políticas públicas. Nessa linha, Draibe (2001) argumenta: As políticas e os programas também têm, em contrapartida, carne e osso, melhor, têm corpo e alma. São decididas e elaboradas por pessoas, são dirigidas às pessoas ou ao seu habitat, são gerenciadas e implementadas por pessoas e, quando isso ocorre, são avaliadas também por pessoas. Ora, as pessoas ou os grupos de pessoas que animam as políticas, fazem-no segundo seus valores, seus interesses, suas opções, suas perspectivas, que não são consensuais, nem muito menos unânimes, como sabemos. Ao contrário, o campo onde florescem as políticas e programas pode ser pensado como um campo de força, de embates, de conflitos, que se sucedem e se "resolvem" ao longo do tempo (p. 26). São esses atores que definiriam a chamada agenda formal de políticas que serão desenvolvidas pelo Estado, ou seja, são eles que definem qual problema será ou não prioridade em um dado momento. Os atores podem receber diferentes rótulos que os classificariam arbitrariamente a partir da natureza de sua atuação e das diversas variáveis as quais respondem. Qualquer divisão em categorias seria arbitrária, sendo requisito apenas elencar as características que compõem essa categoria. Neste estudo, optou-se por trabalhar com uma proposta de classificação baseada na apresentada por Secchi (2017b) que trabalha com duas 44 categorias, de governamentais e não-governamentais, definidas a partir do vínculo estabelecido com a gestão pública. Cada uma dessas categorias agruparia outras subcategorias, com especificidades da natureza de suas atividades. Os atores governamentais reuniriam aqueles sujeitos vinculados diretamente com a estrutura de governo por meio de vínculos formais sendo, basicamente, composto por indivíduos no exercício de cargos eletivos (políticos), funcionários públicos de carreira (burocratas) e comissionados em cargos de confiança (designados politicamente). Cada uma dessas três instâncias possui papéis diferentes, bem como seu potencial de influência é relativo à função que ocupa. Esse modelo representativo seria aplicável a sistemas de governo em regimes políticos democráticos como o brasileiro. Tais aspectos são sintetizados na Figura 1 que ilustra a hierarquia de poder entre os atores governamentais, estando no topo da pirâmide aqueles com maior poder de influência e na base aqueles que, mesmo em maior quantidade numérica, exercem meno