ADOTE O ARTISTA NÃO DEIXE ELE VIRAR PROFESSOR (Ivald Granato)lllllldddd GGGGGGGGGGrrrrrraaaaaaaan ato) DENISE PEREIRA RACHEL Orientação: Profª. Dra. Carminda Mendes André. Programa de Pós Graduação do Instituto de Artes da UNESP ((((IIIIIIvvvvvvvvvaaaaaall ii DENISE PEREIRA RACHEL Dissertação apresentada ao Instituto de Artes da Universidade Estadual de São Paulo como requisito parcial para obtenção do Título de Mestre em Artes. Área de concentração: Arte Educação. Orientadora: Profª. Dra. Carminda Mendes André. SÃO PAULO 2013 ADOTE O ARTISTA NÃO DEIXE ELE VIRAR PROFESSOR: REFLEXÕES EM TORNO DO HÍBRIDO PROFESSOR PERFORMER iii R119a Rachel, Denise Pereira, 1980- Adote o artista não deixe ele virar professor: reflexões em torno do híbrido professor performer / Denise Pereira Rachel. - São Paulo, 2013. 177f. Orientadora: Profa Dra Carminda Mendes André Dissertação (Mestrado em Artes) – Universidade Estadual Paulista, Instituto de Artes, 2013. 1. Arte – Educação. 2. Performance (Arte) - Metodologia. 3. Metodologia da performance. I. André, Carminda Mendes. II. Universidade Estadual Paulista, Instituto de Artes. III. Título Título em inglês: “Adopt the artist did not let him turn a teacher: reflections about the hybrid professor performer.” Palavras-chave em inglês (Keywords): Art; Education; Performance Pedagogy. Titulação: Mestre em Artes. Banca examinadora: Profª. Dra. Carminda Mendes André. Prof. Dr. Lucio José de Sá Leitão Agra. Profª. Dra. Naira Neide Ciotti. Prof. Dr. Marcos Aurélio Bulhões Martins. Prof. Dr. José Manuel Lázaro de Ortecho Ramirez. Data da Defesa: 27-06-2013 Programa de Pós-Graduação: Artes. Ficha catalográfica preparada pelo Serviço de Biblioteca e Documentação do Instituto de Artes da UNESP (Fabiana Colares CRB 8/7779) CDD707 iv BANCA EXAMINADORA ________________________________ Profª. Dra. Carminda Mendes André ________________________________ Prof. Dr. Lucio José de Sá Leitão Agra ________________________________ Profª. Dra. Naira Neide Ciotti v AGRADECIMENTOS A todos aqueles que me acompanharam e ainda acompanham, nessa desafiadora caminhada, como verdadeiros pedagogos. À Carminda que esteve presente em tantos momentos artísticos e pedagógicos de minha trajetória. À Naira Ciotti, Lucio Agra, Marcos Bulhões, Bia Medeiros, Ivald Granato, Michel Groisman e Gaby Imparato pela colaboração imprescindível. Aos estudantes que transformam minha vida a cada dia. A toda equipe do CIEJA Ermelino Matarazzo que me acolheu e apoiou incrivelmente neste, talvez insólito, processo de ensino aprendizagem. Aos amigos irmãos, companheiros de jornada, que compartilham o dia-a-dia desta caminhada e me incentivaram e apoiaram performaticamente neste e em tantos outros momentos tão significativos, criando vínculos: Taís Teixeira em sua amorosa compreensão, Luiz Otávio Paixão pelas formalidades debordianas, Bárbara Kanashiro ao escovar a contra-pelo, Eliane Andrade tramando cidades, Flora Rouanet africanizando performances, Thalita Duarte dando à luz a novas realidades (uma delas chamada Gregório) e Diego Marques, o imprevisível promovedor de encontros mergulhados na poética dos vaga-lumes. Ao meu irmão Gustavo, constantemente preocupado com o rumo que isso tudo vai tomar e à Marília e sua barriguinha em devir. Ao legado artístico e pedagógico deixado por meus pais que partiram, mas não sem antes permitirem que colocasse meus dois pés, mesmo que hesitantes, no chão. vi RESUMO É possível atuar como artista e professor na sala de aula? Pode a sala de aula constituir-se como espaço de experimentação artística? Horizontalizar a relação professor-aluno é uma preocupação que concerne ao ensino de artes? Estas são algumas das questões que me fizeram retornar à academia, como uma possibilidade de reflexão a respeito de minha atuação como artista e educadora, como forma de organizar experiências e apreender outras concepções de arte/educação dentro e fora da instituição escolar. Desse modo, pude rever e reelaborar discussões e inquietações que surgiram desde o período em que cursava o magistério, a respeito da organização do espaço da sala de aula, das metodologias tradicionais de ensino e do lugar reservado à arte na escola. Pude também relacionar e buscar uma aproximação cada vez maior entre o meu trabalho como artista, performer integrante do Coletivo Parabelo e o ofício de professora na rede municipal de ensino da cidade de São Paulo; aproximação esta permeada por uma série de conflitos, dificuldades e, ao mesmo tempo, realizações, experiências, um aprendizado que não se limita ao âmbito da academia e da escola de ensino fundamental, mas que constitui uma trajetória de vida. Para compor esta reflexão, contei com a colaboração de Naira Ciotti, a qual discute o conceito de híbrido professor-performer; Valentin Torrens, o qual traz exemplos de diferentes abordagens relacionadas à pedagogia da performance; Judit Vidiella e Fernando Hernández, que discutem a pluralidade de narrativas em torno da educação e a implicação das ideias de performance, performatividade e arte da performance em abordagens diferenciadas para o ensino/aprendizagem em artes, na constante reformulação pessoal da artista/educadora. Palavras-chave: arte; educação; pedagogia da performance. vii ABSTRACT Is it possible to act like artist and teacher in classroom? Can classroom compose itself as an artistic experimental space? These are some questions that made me return for academy, as a possibility to though about my actuation like artist and educator, as a form to organize experiences and perceive other conceptions of art/education in and out of the school institution. To compose this reflection, I counted on the contribution of Naira Ciotti, with discussion about the concept hybrid teacher-performer and Valentin Torrens that brings examples of different approaches related to performance pedagogy, with constant personal reformulation of artist in relation to teacher. In this way, I could review and reframe discussions and concerns with emerges since I was in the magisterium, about organization of classroom space, traditional methodology and the place reserve for art in the school. I could also relate and seek an ever higher approach with my work as an artist, performer and member of the Collective Parabelo, and my work as teacher in municipal schools in São Paulo; this approach permeated by a series of conflicts, difficulties and at the same time, achievements, experiences, learning that is not restricted to the realm of academia and elementary school, but it is a life path. To compose this reflection, I counted on the contribution of Naira Ciotti, with discussion about the concept hybrid teacher- performer; Valentin Torrens that brings examples of different approaches related to performance pedagogy; Judit Vidiella and Fernando Hernandez, who discuss the plurality of narratives around education and the implications of the ideas about performance, performativity and performance art in different approaches to teaching/learning in the arts, with constant personal reformulation of the artist/teacher. Keywords: art; education; performance pedagogy. viii Caminhando em tropeço contínuo Mergulho no caos... ix x SUMÁRIO Introdução............................................................................................................ 1 Capítulo 1 – Adote o artista não deixe ele virar professor – primeiros traços...... 7 1.1 – Entre a artista e a professora....................................................................... 15 1.2 - Cartografando as performances do professor............................................... 25 1.2.1 Professor-profeta.......................................................................................... 25 1.2.2 Professor-mediador/provocador................................................................... 27 1.2.3 Professor-pesquisador/reflexivo................................................................... 29 1.2.4 Professor-artista............................................................................................ 32 1.2.5 Professor-performer...................................................................................... 34 Capítulo 2 – Pedagogia(s) da performance.......................................................... 43 2.1 Que escola é essa?......................................................................................... 48 2.2 Trajetórias na(s) pedagogia(s) da performance.............................................. 57 2.3 Deambulações em torno da aula espetacular................................................. 68 2.3.1 Deambulações em torno de uma aula de performance e uma aula performática........................................................................................................... 87 Capítulo 3 – Narrativas entre os muros da escola................................................ 95 Considerações finais........................................................................................... 128 Anexos.................................................................................................................. 134 Referências bibliográficas.................................................................................. 161 1 INTRODUÇÃO Ivald Granato, o plural, o ambiental, o fantástico, o catastrófico. Capricórnio. Carioca de qualquer lugar. (Paulo Leminski, Diário do Paraná, 1977) ADOTE O ARTISTA NÃO DEIXE ELE VIRAR PROFESSOR. Frase emblemática de panfleto impresso em 1977 por Ivald Granato1, estética e política caminhando lado a lado. Um anúncio performático, pois convocava e ainda convoca para algum tipo de ação, atitude frente a uma discussão lançada há mais de três décadas, mas que ainda permanece atual. Seria nefasto para o artista o fato de tornar-se professor? Seria 1 O plural, o urubu eletrônico, performancista, pintor, desenhista, gravador, sonhador, são algumas das denominações atribuídas ao artista Ivald Granato, com o qual tive oportunidade de conversar a respeito das relações entre arte e educação. Mais informações a respeito da vida e obra de Ivald Granato disponíveis no site: http://www.art-bonobo.com/ivaldgranato/. Acesso em: 15 jul. 2012. 2 impossível conciliar os ofícios de professor e artista? Qual o sentido ou, quais os sentidos deste panfleto lançado por um artista contemporâneo que, durante certo período de sua vida também exerceu o ofício da docência? Granato, durante entrevista concedida para o presente trabalho, afirma que este panfleto não necessita de explicação, pois é autoexplicativo. E, talvez, esta abertura a inúmeras interpretações, juntamente com a força exercida por tal afirmação tenha surtido um efeito em mim, me afetado a ponto de servir como mote ou tema gerador – como Paulo Freire (1981) preferia chamar – para a organização de uma série de inquietações com as quais tenho me debatido desde o momento em que decidi exercer os ofícios de professora (de artes) e artista (performer). Ao compreender a performance como uma linguagem artística de difícil definição, principalmente para os moldes cientificistas da academia, a qual preza pela clareza, pela determinação exata ou praticamente exata das fronteiras que delineiam o conceito abordado em tal perspectiva; não pretendo delimitar o que seria a arte da performance. Pois talvez seja inerente a esta prática artística justamente escapar à rigidez imposta pelo modelo científico de conhecimento, o qual busca quantificar, qualificar, padronizar o saber. E, neste sentido poderia, por exemplo, pensar na afirmação impressa por Granato como uma possível recusa dele, como artista, em se enquadrar aos padrões cientificistas associados à figura do professor em detrimento de um caráter experimental que o saber/fazer artístico pode fazer emergir através do ato criativo. Esta leitura do panfleto de Granato se potencializa se levarmos em conta o contexto em que este foi elaborado: durante o período do regime militar no Brasil e em outros países latino-americanos, em que a violência de natureza diversa provocou respostas veementes não só, mas também no campo das artes. E, como parte destas “veementes respostas” é que, entre os períodos de 1960-70, cunhou-se o termo performance para designar experiências artísticas híbridas, entre as artes visuais e as artes cênicas, as quais enfatizam a ação do corpo no tempo-espaço presente (COHEN, 2009). Esta ênfase na ação corporal traz consigo diversos aspectos que podem compor a arte da performance, como o desenvolvimento de trabalhos que envolvem narrativas pessoais, a utilização do recurso da colagem, mistura e sobreposição de referências diversas que podem ser desde uma música popular ou a figura emblemática de um 3 apresentador de TV, até uma memória de infância ou uma fotografia, os quais podem ser reunidos na composição de ações performáticas exemplificadas e discutidas principalmente nos dois últimos capítulos desta dissertação. * A procura por definições, a necessidade de ordenar, classificar, padronizar, ler, escrever, falar, significar, orientar são parte de um ideário que costuma ser vinculado ao ofício do professor. Buscar incertezas, promover ações que deslocam, almejam discutir e desconstruir padrões, provocam, aparecem e logo desaparecem e muitas vezes parecem não fazer sentido são parte de um ideário que costuma ser vinculado ao trabalho do artista da performance. Por este viés, educar e performar se apresentam como atividades quase que diametralmente opostas. Em um exercício de reflexão em torno do contexto educacional que tenho vivenciado cotidianamente como professora da rede municipal de ensino de São Paulo e que, provavelmente, se repete em outras partes do Brasil ao longo da história da educação no país; pude perceber uma convergência, em grande parte, para este ideário logocêntrico da figura do professor como detentor e transmissor exclusivo de conhecimento que, segundo Silvio Gallo (2002), se aproxima da figura do profeta – aquele que sempre vê além dos outros, aquele que guia, que sabe qual o melhor caminho a seguir, a melhor decisão a tomar, o melhor método, o melhor livro. Dessa forma, a escola e, por extensão a universidade, a princípio assumiria o papel de principal instituição responsável pela formação e adequação dos indivíduos às normas e regras convencionadas socialmente. Contudo, a rapidez com que os meios de comunicação e os recursos tecnológicos tomam parte do dia a dia de uma metrópole como São Paulo, povoada por uma profusão de informações, torna-se difícil elencar o que teria maior relevância na formação de uma criança, um jovem e até um adulto, o contexto escolar ou as experiências que permanecem apartadas pelos muros da escola, na cisão entre o que Giroux denominou pedagogia escolar e pedagogia cultural (apud Hernández, 2007, p. 32). Assim, a escola acaba por assumir muitas vezes uma postura autárquica, conduzida por leis, parâmetros e orientações curriculares formuladas por intelectuais da educação que desconhecem as particularidades de cada 4 unidade escolar, a qual, de maneira quase compulsória, assumirá este discurso como prática pedagógica durante o ano letivo, sem grandes preocupações com o que os alunos – seres sem luz – têm a dizer e mesmo com o que os professores poderiam contribuir para a organização desta prática. Onde entraria a aula de artes nesta instituição que parece tão preocupada em reproduzir discursos e sedimentar padrões? Seria o espaço para a bagunça, para extravasar as emoções? Seria o espaço para a decoração das paredes, muros, datas comemorativas e festas escolares? Seria o espaço para a releitura de obras de artistas reconhecidos histórica e mercadologicamente? No fluxo destes questionamentos lanço a provocação do artista intermídia, Nelson Leirner que diz ter sido professor sem nunca ter ensinado artes, pois para ele arte não se ensina. O choque entre ambas, instituição escolar e a prática artística da performance começa a se tornar cada vez mais claro se considerarmos que grande parte dos pressupostos destes trabalhos artísticos se delineiam justamente como reflexão crítica relacionada aos mecanismos de funcionamento do sistema sócio-político-econômico ao qual estamos submetidos, ao promover uma aproximação entre arte e vida e utilizar como extensões do próprio corpo e da ação deste, materiais comuns como por exemplo sacolas plásticas, lixo, alimentos, objetos de uso pessoal, entre outros; valorizando o caráter processual, a efemeridade, a desmaterialização da obra como forma de resistência à mercantilização da arte. Renato Cohen, professor performer e teórico brasileiro compreende o performer como um ritualizador do instante presente (2009), ao propor uma ação que pode ser apreciada, questionada, realizada coletivamente, impedida, enfim, aberta à pluralidade da vida. Uma ação que está em relação e promove um acontecimento. Na performance o corpo está presente, a interação com a obra é direta e efêmera, algumas vezes não se tem certeza de quando começa e se termina, confunde-se com o fluxo do cotidiano. Entretanto, nem toda performance nega a forma espetacular, a qual divide artista e público – divisão esta que pode ser comparada à relação professor-aluno – e pode ocorrer em espaços institucionais em que há um horário para que a ação artística aconteça, da mesma forma em que na escola existem horários reservados para se ministrar cada disciplina. 5 Em meio ao processo de inserção da performance, dentre as múltiplas expressões artísticas contemporâneas, no mercado de artes e, em decorrência disto, a preocupação dos teóricos da educação em introduzir esta linguagem nos currículos escolares; a brasileira Naira Ciotti, em 1999, apontou evidências de que tais atividades (lecionar e performar) não seriam completamente inconciliáveis e cunhou o termo híbrido professor performer em sua dissertação de mestrado defendida na PUC-SP. Nesta dissertação, realizada por uma professora performer distante das preocupações dos teóricos da educação interessados em desenvolver discursos reformistas e muitas vezes miraculosos em relação à docência, Ciotti utiliza como exemplo deste híbrido professor performer dois artistas que também lecionavam: o alemão Joseph Beuys (1921-1986) e a brasileira Lygia Clark (1920-1988); além da prática da própria autora desenvolvida junto a estudantes do curso de arquitetura. Ambos os artistas são exemplos emblemáticos do período considerado de transição entre a Arte Moderna e a Arte Contemporânea, nas décadas de 1950-1960. Apesar de possuírem poéticas e viverem em contextos diferentes, encaravam o ato de lecionar como obra de arte, como espaço de experimentação de proposições artísticas que transitavam por diversas linguagens (pintura, escultura, instalação, objetos relacionais...), inclusive a performance. Ao imergirem no contexto da sala de aula, compondo a relação professor-aluno com suas poéticas pessoais, estes professores performers experienciaram junto aos estudantes modos de saber/fazer artísticos que divergem do parâmetro da aula de artes como aprendizado de técnicas, elaboração de produtos sob a supervisão e avaliação de uma figura externa, acúmulo e cristalização de conceitos. A ideia de mesclar as figuras do professor e do performer traz contribuições relevantes para o exercício permanente de reflexão em torno do ensino de artes, que gera espaços para a construção do saber/fazer artístico implicado ao ato de escuta, expressão e problematização das múltiplas vozes que compõem as relações em sala de aula. Outro aspecto relevante que pude constatar a partir do contato com este conceito de híbrido professor performer, é que uma possível genealogia da performance pode ser erigida através do levantamento de artistas que exercem e/ou exerceram o ofício de professor como possibilidade para elaborar, experimentar, 6 refletir, divulgar e reconhecer a arte da performance como integrante das manifestações artísticas contemporâneas. Assim, destaco alguns nomes como: Joseph Beuys, John Cage, Alan Kaprow, Adrian Piper, Lygia Clark, Lygia Pape, Naira Ciotti, Lucio Agra, Bia Medeiros, Thaise Nardim, Guillermo Gomez-Peña, Nelson Leirner, Coco Fusco, Ivald Granato, Michel Groisman, Grasiele Sousa, Samira Borovik, Otávio Donasci, Rodrigo “Amor Experimental” Munhoz, Guadalupe Neves, Marina Abramovic, Bruce Barber, entre outros nomes que também foram elencados pelo espanhol Valentin Torrens em seu livro Pedagogia de la Performance, no qual faz um importante levantamento de práticas pedagógicas em performance, desenvolvidas em diferentes regiões do mundo. Nesta perspectiva, o presente trabalho se apresenta como um exercício de escrita, que almeja problematizar justamente os entrecruzamentos entre ambas as profissões, de professora e artista da performance, com o intuito de discutir algumas das inúmeras possibilidades de hibridizar estas atividades, evitando subtraí-las ou separa-las, buscando trabalhar sempre no sentido de soma-las e enriquece-las. Como ponto de partida para esta práxis, a qual não foi nem está sendo fácil de ser construída e reconstruída diariamente, retomo e utilizo este panfleto produzido por Ivald Granato, em 1977, em um primeiro momento para introduzir uma breve contextualização a respeito da figura do professor e mais especificamente do arte educador nas escolas da rede pública de ensino da cidade de São Paulo. A partir desta introdução, apresento um esboço do que poderia ser uma genealogia da arte da performance na educação, para então desenvolver duas propostas que tenho experimentado como professora performer: a aula de performance e a aula performática. Ao percorrer esta trajetória de pesquisa, sem que esta se caracterize como uma busca por convicções e verdades que podem enrijecer o jogo de cintura necessário para lidar com os desafios inerentes à vida, permaneço a procura por tantas outras inquietações que podem se constituir como parte destes desafios que dão sentidos (percepção, interpretação, emoção, intuição, afeto) à existência, como forma de resistência a um saber/fazer/viver padronizado. 7 CAPÍTULO 1 ADOTE O ARTISTA NÃO DEIXE ELE VIRAR PROFESSOR – Primeiros traços Western art actually has two avant-garde histories: one of artlike art and the other of lifelike art. They’ve been lumped together as parts of a succession of movements fervently committed to innovation, but they represent fundamentally contrasting philosophies of reality… artlike art holds that art is separate from life and everything else, whereas lifelike art holds that art is connected to life and everything else. In other words, there is art at the service of art and art at the service of life. The maker of artlike art tends to be a specialist; the maker of lifelike art, a generalist. (Allan Kaprow) 2 Muitas podem ser as motivações para o trabalho em forma de panfleto lançado pelo artista brasileiro Ivald Granato (1949), o qual contém a frase que dá título à presente dissertação. Se considerarmos o período em que ocorreu o lançamento, em 1977, podemos traçar relações com o contexto contracultural que se constituía no Brasil (e também em outras partes do mundo, inclusive em países sul-americanos que se encontravam em contextos similares ao nosso) como resposta ao regime ditatorial (1964-1985) que comandava o país. A impossibilidade de exercer a liberdade de expressão não só nas artes, mas em qualquer âmbito, sob a ameaça das ordens de perseguição, prisão, tortura e exílio daqueles que contrariavam os pressupostos do governo militar, deflagraram a invenção de diversas formas de resistência às quais variavam desde as táticas de guerrilha até as manifestações artísticas consideradas subversivas. É neste contexto que a chamada arte da performance, o happening, a body art, o site specific, a arte postal entre outras modalidades, que compõem a 2 “Na verdade, a arte ocidental possui duas histórias a respeito da vanguarda: uma da arte pela arte e outra da vida como arte. Elas geralmente são agrupadas como parte de uma efervescente sucessão de movimentos comprometidos com a inovação, mas estas representam perspectivas filosóficas contrastantes da realidade... a arte pela arte pressupõe que a arte está separada da vida e de todo o resto, enquanto a vida como arte pressupõe que a arte está conectada com a vida e tudo o mais. Em outras palavras, há uma arte que está a serviço da arte e outra que está a serviço da vida. O praticante da arte pela arte tende a ser um especialista; o praticante da vida como arte, um generalista.” (Tradução da autora) Trecho retirado de: KAPROW, Allan. Essays on the blurring of art and life. Berkeley: University of California Press, 1993, p. 201. 8 multiplicidade do que se convencionou chamar de arte contemporânea, ganham força em território nacional, como possibilidade de afirmação de um fazer artístico em busca da não institucionalização, da tentativa de insubordinação ao mercado de arte e, consequentemente aos interesses políticos e econômicos instaurados durante a ditadura militar. Interesses estes relacionados à continuidade da abertura, implementada pelo governo de Juscelino Kubitschek (1956-1961) para a instalação das empresas multinacionais, à valorização do binômio segurança e economia, à política de incentivos governamentais à exportação, ao crescimento econômico à custa do empobrecimento de grande parte da população e ao desenvolvimento das etapas iniciais que possibilitaram a posterior implantação do neoliberalismo3. Nesta perspectiva, “Adote o artista...” de Granato surge como denúncia e questionamento da condição marginal de dois ofícios, no Brasil, o do professor e o do artista. Importante ressaltar, antes de apontar algumas perspectivas relacionadas a esta obra, que Granato trabalhou com artistas como Hélio Oiticica (1937-1980), Artur Barrio (1945), Antonio Dias (1944), Lygia Pape (1927-2004), Regina Silveira (1939), Jose Roberto Aguilar (1941), o coletivo Viajou sem Passaporte (1978-1982), Wally Salomão (1943-2003), entre outros, ao organizar o acontecimento intitulado Mitos Vadios, em novembro de 1978, em um estacionamento localizado na Rua Augusta, São Paulo – fato que demonstra o engajamento deste artista com as questões do produzir e veicular arte em um contexto ditatorial. Este acontecimento propunha a instauração de um espaço para livre exercício da criatividade tanto por parte dos artistas quanto por parte do público, como resposta ao modelo institucional de criação e exposição de 3 O neoliberalismo, organização política e ideológica que baliza o atual desenvolvimento do sistema capitalista, se caracteriza por uma retomada, em novas roupagens, dos ideais liberais, referentes ao chamado período clássico de implantação deste sistema. Alguns dos aspectos que caracterizam o movimento neoliberal são: o encorajamento da independência da esfera econômica em relação à política governamental, o investimento de capital estrangeiro nos países considerados em desenvolvimento, as iniciativas de padronização sócio, econômicas e culturais independente de fronteiras através da ideia de globalização, a privatização de empresas estatais e a terceirização de serviços. No Brasil, pode-se considerar como um período declaradamente neoliberal aquele que compôs os dois mandatos do presidente Fernando Henrique Cardoso (1995-2002) e seus desdobramentos que reverberam até a atualidade. Deste contexto, é possível inferir também relações com o perfil educacional voltado para a apresentação de resultados quantitativos, através da realização de avaliações internas e externas implantadas pelo governo; e lucrativos, pela adesão ao sistema de progressão continuada nas escolas públicas, eliminando gastos extras com a permanência de alunos repetentes nestas redes de ensino; além do foco na formação interessada primordialmente em atender às necessidades do mercado de trabalho, junto ao lema empresarial da qualidade total com forte apelo tecnológico e incentivo ao desenvolvimento de plataformas de educação à distância para garantia da chamada formação continuada dos profissionais da educação. 9 trabalhos artísticos, em paralelo à abertura da I Bienal Latino-Americana de São Paulo, intitulada Mitos e Magia. A partir disso, podemos traçar um paralelo entre a organização de Mitos Vadios e alguns dos pressupostos apresentados pelo Fluxmanifesto – manifesto feito pelo grupo Fluxus, surgido em 1961, integrado por artistas de diversas partes do mundo como a japonesa Yoko Ono (1933), o alemão Joseph Beuys (1912-1986), o sul-coreano Nam June Paik (1932-2006), o norte- americano John Cage (1912-1992) – escrito pelo lituano George Maciunas (1931-1978) em 19654, como uma tentativa de delinear o que os artistas deste grupo pensavam, produziam e consideravam como arte, além de discutir o papel do artista na sociedade: A partir deste fragmento do Fluxmanifesto é possível identificar algumas das ideias que acompanham o fazer artístico desde a virada do século XX, com o movimento das chamadas vanguardas históricas (futurismo, dadaísmo, surrealismo...), 4 “FLUXMANIFESTO NO FLUXENTRETENIMENTO – ARTE VAUDEVILLE? PARA QUE O ARTISTA SE ESTABELEÇA COMO NÃO-PROFISSIONAL, NÃO-PARASITA, NÃO-ELITISTA, ELE DEVE DEMONSTRAR SUA PRÓPRIA DISPENSABILIDADE, DEVE DEMONSTRAR A AUTO-SUFICIÊNCIA DO PÚBLICO, DEVE DEMONSTRAR QUE QUALQUER COISA PODE SUBSTITUIR A ARTE E QUE QUALQUER UM PODE FAZÊ-LA. PORTANTO, ESTA SUBSTITUIÇÃO ARTE- ENTRETENIMENTO DEVE SER SIMPLES, DIVERTIDA, PREOCUPADA COM INSIGNIFICÂNCIAS, SEM POSSUIR COMODITIS OU VALOR INSTITUCIONAL. ESTA DEVE SER ILIMITADA, ACESSÍVEL A TODOS E EVENTUALMENTE PRODUZIDA POR TODOS. ENTRETANTO, O ARTISTA QUE FAZ ARTE PARA JUSTIFICAR SUA RENDA, É OBRIGADO A DEMONSTRAR QUE APENAS ELE É CAPAZ DE PRODUZIR ARTE. DESSA FORMA, A ARTE DEVE APARENTAR COMPLEXIDADE, INTELECTUALIDADE, EXCLUSIVIDADE, INDISPENSABILIDADE, INSPIRAÇÃO. PARA ATINGIR ALTOS VALORES MONETÁRIOS PRECISA SER RARA, EM QUANTIDADE LIMITADA E POR ISSO INACESSÍVEL ÀS MASSAS, MAS APROPRIADA PARA A ELITE.” (Tradução da autora). Disponível em: http://www.artnotart.com/fluxus/ Data de acesso: fevereiro de 2013. 10 as quais reverberaram no Brasil através de movimentos como o da Semana de Arte Moderna em 1922 e da antropofagia proposta por Oswald de Andrade5. A ênfase neste trecho está justamente na desconstrução da imagem do artista como gênio superior, detentor de uma criatividade exclusiva, discurso romântico apropriado pelo mercado de arte com o intuito de criar nichos de consumo e confinar a produção artística em instituições lucrativas que atravessam o universo dos museus e galerias até chegar à indústria cultural. Dessa forma, promover um evento ao ar livre, desvinculado de instituições e aberto à participação de qualquer um que tivesse interesse, pode constituir uma maneira de burlar as convenções preestabelecidas para se fazer arte dentro da perspectiva mercadológica. Principalmente quando o artista se despoja de uma postura auto-afirmativa em relação a seu trabalho, ao abrir espaço para que qualquer um possa nele interferir e com ele criar novas formas, outros rumos para sua proposição artística. Por meio dessas considerações iniciais, almejei fazer um breve esboço do contexto que envolvia a criação artística de Ivald Granato, para suscitar possíveis interpretações da polêmica campanha “Adote o artista, não deixe ele virar professor”. Uma destas interpretações poderia se circunscrever em torno da ideia de que a condição do artista no Brasil está atrelada à ausência de uma profissão, o artista faria arte como hobby – atividade realizada nas horas vagas, passatempo – ou por amor ao ofício. Daí vem o manifesto escrito pelo próprio Granato “O artista em busca de uma profissão” 6. O artista precisaria ser adotado de que forma para ter uma subsistência 5 Destaco aqui alguns trechos do Manifesto Antropófago, publicado no primeiro número da Revista de antropofagia, São Paulo, em 1 de maio de 1928, com pressupostos que influenciaram a produção modernista no Brasil e ainda reverberam até hoje: “Só a antropofagia nos une. Socialmente. Economicamente. Filosoficamente. (...) Contra todas as catequeses. (...) Contra todos os importadores de consciência enlatada. (...) Queremos a revolução Caraíba. Maior que a Revolução Francesa. A unificação de todas as revoltas eficazes na direção do homem. Sem nós a Europa não teria sequer a sua pobre declaração dos direitos do homem.” O manifesto pode ser encontrado na íntegra no livro, TELES, Gilberto Mendonça (org.). Vanguarda Europeia e Modernismo Brasileiro: Apresentação dos Principais Poemas, Manifestos, Prefácios e Conferências Vanguardistas, de 1857 até Hoje. 9. ed. Rio de Janeiro: Vozes, 1986, p. 353-360. 6 Uma cópia deste texto consta, na íntegra, na parte de anexos da presente dissertação. 11 digna? Se a referência do Fluxmanifesto for levada em conta, a defesa pela não- profissionalização do artista está clara, mas talvez restrita à ideia de profissionalização inerente ao sistema em que vivemos, voltado para o lucro e benefício próprios dentro da lógica de produção e circulação de mercadorias e da economia monetária e não como mera desvalorização do ofício de artista, questionando, no entanto, o distanciamento entre artista e público, artista e sociedade, juntamente com a excessiva valorização do artista e de sua obra. Uma análise a respeito das condições de vida de um artista brasileiro, desde a década de 1990 até os dias atuais, por exemplo, limitada por um pequeno e quase inacessível mercado de arte alimentado por uma política cultural baseada em prêmios e editais, demonstra que a busca por uma (outra) profissão torna-se inevitável. Seria então dessa forma que muitos artistas brasileiros, não só nestas últimas décadas, chegaram ao âmbito da educação formal e informal e tornaram-se ou exerceram o ofício de professor. Fato que acaba por retirar uma possível aura romântica7 que posiciona o artista como outsider, como se pudesse existir à margem do sistema e que sua originalidade residisse justamente na capacidade de enxergar o mundo ordinário de fora, atuando, portanto, em uma esfera superior. Daí derivaria outra possível interpretação do panfleto, aproveitando este viés romântico acerca do artista: ser artista é “melhor” do que ser professor, se encararmos o artista como um ser movido pela inspiração, que deixa a vida leva-lo para o caminho que o prazer indica sem grandes preocupações; enquanto o professor é idealizado como alguém extremamente sério, de hábitos regrados, dedicado aos estudos e ao ofício, preocupado em manter a compostura, garantir a autoridade, fato que torna sua existência provavelmente mais pesada em relação a esta visão de artista despreocupado e desocupado. Ou ainda, que o artista é um modelo revolucionário e o professor, preocupado com a manutenção do status quo interligada ao seu ofício de 7 A expressão “aura romântica” utilizada aqui faz referência ao movimento romântico, ocorrido na Europa principalmente na Alemanha e na Inglaterra entre os séculos XVIII e XIX, durante o qual houve uma supervalorização do artista como gênio criador, portador de inspiração e sensibilidade superiores aos demais seres humanos, aproximando-o de um demiurgo capaz de dar voz e representar não só anseios individuais, mas os anseios de uma nação. 12 ensinar e consequentemente enquadrar (a si e aos outros) a regras preestabelecidas, acaba por assumir um modelo reacionário de existência, limitador e homogeneizador, relacionado ao sentido de educar como condicionamento comportamental e transmissão de conteúdos historicamente legitimados por uma versão oficial eurocêntrica, branca, colonizadora e machista. Ao olhar por esta perspectiva, ambas as figuras, é possível sugerir que um invejasse o outro em uma oportunidade de confronto, por serem opostos complementares: o artista leve, criativo, desregrado X o professor pesado, reflexivo, disciplinado. Talvez aí, nesta brincadeira entre tipos opostos, apareça a figura do artista/educador, aquele que tem a possibilidade de estar entre um e outro. Ainda pode-se encarar de outra forma esta proposição de Granato, ao pensar no professor inventivo que efetua seu ofício como uma arte (técnica) fascinante e encanta os estudantes de maneira a convencê-los de que estão diante de um artista – um artista do conhecimento, um artista da oratória, um artista carismático – em contraposição à figura sisuda e autoritária que muitos esperam encontrar em sala de aula. Ou então, um professor portador da verdade, que encara seu ofício como uma missão: iluminar as cabeças, trazer a luz do conhecimento para os alunos – seres desprovidos de luz – conscientizá-los, transformá-los em cidadãos críticos, futuros multiplicadores da verdade. Em ambos os casos, corre-se o risco de unir artista e professor ao conceito de gênio, ser dotado de um dom especial que o diferencia dos demais e, portanto, torna-o distante, capaz de enxergar o mundo por uma perspectiva onipresente e onisciente, a qual assegura o conhecimento de determinadas verdades que não estão ao alcance do cidadão comum que, como diria CERTEAU (2007, p. 170), se dispõe a “ser apenas este ponto que vê, eis a ficção do saber”, introduzindo a ideia de conhecimento como espetáculo, algo que se configura em uma esfera abstrata, no plano do visível, mas separada da realidade palpável. Por que, então, não pensar em outra concepção de artista da qual este professor inventivo pudesse se aproximar? Um artista/cidadão comum, que não enxerga o mundo do alto, mas se embrenha neste mundo, caminhante ao rés do chão, através de seu ofício, o qual não realiza para outras pessoas e sim com outras pessoas, pois não se considera mais nem melhor do que ninguém, mas um participante desta pluralidade de existências. Artista/cidadão 13 comum que faz da sua existência um processo em contínua transformação, aberta para o outro, o conhecido/desconhecido, o esperado/inesperado. Dessa forma, a intenção do artista/professor que se aproxima deste ideário não seria manter-se distante, mas aproximar-se, romper com hierarquias, desburocratizar o acesso ao conhecimento. Dialogar ao invés de professar. A partir dessa ideia de contrapor artista e professor, acrescento ainda duas visões de educação propostas por MEDEIROS (2005), em que a primeira demonstra o ambiente no qual atua o professor institucionalizado, que se aproxima daquele artista preocupado em garantir a sua renda e que para isso se apega aos pequenos poderes relacionados ao seu ofício: A educação institucional, tal como a conhecemos hoje, crê-se autárquica (autos – si mesmo, archien – suficiente), além de se dar separada da vida, da experiência vivida, longe do lugar de desejo, de prazer, do des-cobrir. (...) A grande maioria das escolas ensina principalmente a competição, a obediência e o sentimento de inferioridade, a submissão, o respeito à ordem estabelecida e a inconveniência de questionamentos. (...) Cabe frisar essa enorme distância existente entre a vivência, os interesses, as inquietações de nossas crianças e adolescentes [acrescentaria adultos também] e a educação institucionalizada. (...) Fomos educados para nos portarmos – calar a boca -, agir e não pensar, poluir, seguir a moda. Fomos educados para portar nossos corpos (transportar), como se esses fossem alheios ao todo do ser, e nos comportar (suportar). (MEDEIROS, 2005, p. 91) Através desta colocação da autora, é reforçada a ideia de professor e logo da instituição escolar como entidades separadas da vida, em uma concepção que une a perspectiva onipresente/onisciente à ideia de que a escola seria um espaço privilegiado para se obter o preparo necessário para lidar com a realidade do entorno, a sociedade repleta de perigos e enganos que podem ser resolvidos e enfrentados somente a partir do momento em que se adquire uma boa formação/educação. A escola e, por conseguinte, o professor, atuam no sentido de adaptar o aluno a um sistema preestabelecido de normas e comportamentos que, se levada às últimas consequências, esta atuação pode dar a entender que caso o indivíduo acredite e seja fiel a estes preceitos terá a garantia de uma vida bem sucedida futuramente. 14 Entretanto, verifico de dentro do sistema escolar que os sinais de frustração e revolta diante deste modus operandi são cada vez mais contundentes: estudantes desinteressados, agressivos e professores desmotivados, infelizes – um indicativo de que algo vai mal com este modelo de educação. Ao deparar-me com tal realidade resolvi adotar a artista, não no sentido da genialidade criativa, mas naquele que se aproxima desta segunda proposta de educação explicitada pela autora: Na escola da vida é o conhecimento intuitivo que versa as regras, em cada ambiente, movimentos diferentes, antenas estiradas, prontas para se resguardar, garras guardadas, prontas para atacar. Na rua, tudo é tato, jogo, desafio e colaboração. (...) A educação é o que permite ao ser tornar- se sujeito da cultura. A educação é o que permite fazer parte do grupo dessa cultura. Ou, ainda, a educação é o que torna o ser, ser social. (...) A educação é o que possibilita realizar uma análise crítica da ideologia da classe dominante. De certa forma, é preciso participar dessa ideologia para poder questioná-la: beco sem saída! (MEDEIROS, 2005, p. 94-95) Este trecho versa a respeito de uma educação que está implicada diretamente com a vida, com o entorno, com a experiência que dá o jogo de cintura para lidar com as situações no momento em que elas acontecem. Dessa forma, o processo educativo não se configura como adestramento, um treino para se adequar às convenções sociais, mas como sensibilização, intuição, cinestesia no jogo das relações dos conhecimentos, que trazem consigo visões de mundo as quais podem ser questionadas e não acatadas de imediato. A partir deste levantamento de ideias em torno das possíveis articulações entre a figura do artista e do professor, através da obra de Ivald Granato, gostaria de levar esta discussão para minha experiência enquanto artista/performer e professora da rede municipal de ensino. Refletir a respeito de: o que o senso comum diz a respeito do que deveria ser uma aula de artes? O que os parâmetros curriculares versam sobre esta atividade complementar, admitida como área de conhecimento na escola após anos de debate? Quais as possíveis tensões geradas na relação performance e educação? Seria possível considerar, a partir da afirmação de Kaprow, a qual dá início a este capítulo que, assim como existe uma arte pela arte e uma vida como arte, existiria também uma educação pela educação e uma vida como educação, isto é, uma 15 educação pela vida? Para tanto, irei delinear no próximo subcapítulo um pouco de minha trajetória como artista/performer e educadora e de como estas inquietações atuaram e permanecem em atuação como força transformadora e hibridizante de minha existência. 1.1 ENTRE A ARTISTA E A PROFESSORA A experiência, e não a verdade, é o que dá sentido à escritura. Digamos, com Foucault, que escrevemos para transformar o que sabemos e não para transmitir o já sabido. Se alguma coisa nos anima a escrever é a possibilidade de que esse ato de escritura, essa experiência em palavras, nos permita liberar-nos de certas verdades, de modo a deixarmos de ser o que somos para ser outra coisa, diferentes do que vimos sendo. (Jorge Larrosa e Walter Kohan) Difícil saber como tudo começou. Mas, nessa trajetória incerta que permeia a vida, posso recordar alguns momentos que influenciaram e influenciam até hoje em minhas atitudes e escolhas diante do mundo. Destaco estes momentos como experiências de aprendizagem, de quebra de paradigmas, oportunidades para rever posturas, me reinventar. A partir de Rolnik (1989), posso considerar estas experiências como fatores de a(fe)tivação, que despertam o que ela denominou como corpo vibrátil o qual, em linhas gerais estaria relacionado à capacidade que possuímos de nos embrenharmos no mundo e ao mesmo tempo criarmos mundos (outras realidades, outras possibilidades de existir) através da ativação de nossos desejos, sem dicotomizar mente e corpo, razão e emoção, conhecimento e intuição – um estar presente, mexido e remexido de corpo inteiro. A(fe)tivação esta que nos remete à ideia de um saber incorporado, o qual abordarei com maior detalhamento no decorrer do segundo capítulo. Assim, convido o leitor a partilhar um pouco de minhas reflexões em torno dessas experiências que afetaram meu ser/estar no mundo, neste exercício de escrita que constitui um organizar e reorganizar constante de ideias. 16 Mulher, afrodescendente, trinta e dois anos de vida, filha de professores, dez anos como professora da rede pública de ensino, vinte anos de educação formal, três anos como artista orientadora do Programa Vocacional8, oito anos de trabalho como performer, resolve fazer uma pausa para reflexão em torno de um limiar crítico em sua vida: “há uma cisão entre a minha atuação como artista e como professora”. Existe a possibilidade de desburocratizar a relação entre a professora e a artista? Será possível juntar as experiências da artista e da professora dentro e fora da sala de aula? Atuando em um contexto sócio-histórico-cultural em que a separação por categorias, disciplinas, especialidades é algo intrínseco e até, arrisco afirmar, naturalizado, este conflito pode causar certo estranhamento, pois não há explicitamente um problema em isolar o trabalho como artista do trabalho como professora, porque são categorias diferenciadas de atuação na sociedade. Aí está talvez o primeiro grande dilema. No entanto, se retornar a um dos momentos fundantes que levaram a este limiar crítico, algo me diz que esta cisão não contribui para o desenvolvimento de uma concepção de ensino, de arte e de vida aberta às mudanças, aos diferentes discursos e práticas possíveis, diferentes formas de se relacionar com o outro (ser vivo, cidade, instituição...). Posso destacar como um destes momentos, o de quando folheei pela primeira vez as páginas do que, aparentemente, seria um livro didático, durante uma das pesquisas para apresentação de um seminário, nos tempos em que cursava o antigo magistério no CEFAM-Itaim (Centro Específico de Formação e Aperfeiçoamento do Magistério) e vi aquelas imagens contundentes, em uma estética semelhante às charges de jornais e revistas: um grande funil repleto de pessoas, com uma grande abertura lateral por onde uma multidão escapa, acoplado a funis menores que, ao final da sequência, de toda aquela multidão, apenas uma pessoa é depositada em um pequeno frasco; ou aquela em que nas carteiras enfileiradas estão orelhas e no lugar da cabeça do professor há uma enorme boca que fala ininterruptamente; ou ainda das formas geométricas tristes por não conseguirem se encaixar em uma forma que só 8 O Programa Vocacional é uma iniciativa da Secretaria Municipal de Cultura de São Paulo que teve início em 2000 como projeto voltado ao trabalho com a linguagem teatral em espaços da periferia da cidade, para formação e acompanhamento de grupos de teatro nestas regiões. Atualmente, além de ter se tornado um programa (fato que garante sua continuidade por prazo indeterminado), o Vocacional ampliou seu campo de ação para outras linguagens artísticas. Mais informações disponíveis no site: http://www.prefeitura.sp.gov.br/cidade/secretarias/cultura/dec/formacao/vocacional/. Acesso em: 12 jul. 2012. 17 contem aberturas circulares... Estas são descrições de alguns dos desenhos feitos por Claudius Ceccon para o livro “Cuidado, escola!”, elaborado juntamente com Babette Harper, Miguel Darcy de Oliveira, Rosiska Darcy de Oliveira e apresentado por Paulo Freire, em maio de 1980, mês e ano em que nasci. O choque foi grande ao me deparar com tais imagens – estaria eu corroborando para a continuidade daquele tipo de educação representado nas figuras de “Cuidado, escola!”? Cuidado, escola!, ilustração de Claudius Ceccon, 1992, p. 48 A figura acima, retirada do livro que causou meu espanto, apresenta em uma provável interpretação, a primazia de algumas ações em detrimento de muitas outras possíveis dentro do espaço da sala de aula: escutar, falar, ler, escrever, reproduzir. O estudo desta dinâmica será aprofundado no próximo capítulo, mas já aparece neste momento para exemplificar a metodologia predominantemente exercida no espaço escolar, a qual aproxima o mesmo de um lugar extremamente sério e ordenado, contrário a qualquer manifestação de desordem, barulho, questionamento, agitação... enfim, movimentos que possam desestabilizar seu modus operandi; “[...] diferenças culturais, que consistiriam numa força capaz de alterar substancialmente a escola, costumam muitas vezes ser apagadas no seio da própria instituição” (MUTTI apud FISS, 2011, p. 730). Surge, dessa forma, um comportamento de suportar, como afirma Medeiros (2005), uma postura que espera corpos docilizados pela disciplina imposta pelo funcionamento da unidade escolar, postura esta que funciona como mecanismo 18 de silenciamento de diferentes narrativas e perspectivas de mundo as quais poderiam emergir e possibilitar rumos diversos para a construção do conhecimento. Assim, as manifestações artísticas que não se encaixam nas funções utilitárias de ensino, também se enquadram em uma categoria desestabilizadora da ordem vigente, a mesma do barulho, questionamento, agitação, fato que não interessa a um ensino que almeja permanecer padronizado. Dessa forma, para manter os modelos impostos por instâncias superiores, o papel do professor passa também por efetivar este silenciamento de ruídos que o seu próprio comportamento e dos alunos (que estão sob sua responsabilidade) podem causar dentro da organicidade escolar e, portanto, a educação acaba por desrespeitar os diferentes discursos e atitudes geradas pelo contato com o outro, no sentido da instabilidade, da diferença, da incerteza, de como o universo particular de cada pessoa envolve uma série de peculiaridades; desrespeito que se configura na tentativa de evitar conflitos. *** Antes de me deparar com aquelas imagens do Cuidado, escola!, no início da minha adolescência, tive a oportunidade de fazer um curso de teatro com uma professora que (jamais poderia prever) reencontraria na graduação, no Coletivo Alerta!9 de performance e intervenção urbana e reencontro agora no mestrado como orientadora: Carminda Mendes André. Neste curso entrei em contato com a linguagem teatral através das técnicas de improvisação de Viola Spolin e, ao término, cenas que surgiram a partir de um texto que escrevi foram levadas ao palco. Lembro- me bem de ter representado em uma das cenas a figura de uma professora extremamente autoritária, que gritava com os alunos o tempo inteiro; em cena aquela atitude me parecia exagerada, bem próxima a um realismo fantástico ou a um expressionismo, mas para o meu primo que foi assistir à peça e cursava o antigo ensino 9 O Coletivo Alerta! de performance e intervenção urbana foi um grupo de extensão universitária, vinculado ao Instituto de Artes da UNESP, em atividade entre 2004 e 2008, composto por Alan Livan, Álvaro Dias Cuba, Carminda Mendes André, Danilo Bezerra, Denise Rachel, Diogo Rios, Jordana Dolores, Lia Aleixo, Marcos Ave, Milene Valentir, Tábata Costa, Thaís Carvalho e Vinícius Alcadipani. 19 primário, a representação da figura da professora lhe pareceu um retrato fiel daquela com quem tinha que lidar diariamente na escola. O que parece absurdo para alguns pode ser realidade para outros. *** Já graduada, outro momento que posso destacar como fundante para esta reflexão foi quando participei de um dos últimos trabalhos do Coletivo Alerta!, realizado em um evento de Teatro Contemporâneo no Centro Cultural São Paulo, através de uma palestra e cerimônia de posse inventadas, na qual surgiu a Universidade das Couves. Tal instituição foi inspirada nas ideias desenvolvidas pelo Colégio de Patafísica10, que emergiu no período das chamadas vanguardas históricas artísticas europeias, no qual a academia, as verdades científicas, a institucionalização do saber eram questionados de forma bem humorada. Neste evento, usamos e abusamos do recurso do power point, programa de computador amplamente utilizado em aulas, seminários, simpósios, congressos... como ferramenta padrão para ilustrar falas acadêmicas. Após longa explanação acerca dos fundamentos da Universidade das Couves, seguia uma espécie de ritual que era uma mistura de posse da Academia Brasileira de Letras, com uma cerimônia do chá ao som de Je t’aime, moi nos plus de Jane Birkin e Serge Gainsbourg. A Universidade das Couves não consistia em uma instituição revolucionária, nem pretendia se concretizar como tal, mas brincava com os cânones de eventos institucionais, principalmente aqueles ligados à academia, causando talvez certo ruído em torno dos padrões aos quais nos acostumamos a lidar dentro da universidade. A partir desta experiência levanto uma questão: a passagem pela academia é uma experiência necessária para a formação do artista e do professor? No caso do 10 Segundo Stewart Home, em seu livro Assalto à Cultura, o Colégio de Patafísica advém da ciência homônima de soluções inventadas, proposta por Alfred Jarry (1873-1907) em peças teatrais como Ubu Rei. Apesar de não se caracterizar nem como movimento artístico, nem como instituto de educação alternativa e de não ter existido além do plano das ideias propagadas também através de revistas, panfletos, postais, artistas como Joan Miró, Marcel Duchamp, Eugene Ionesco e Marx Ernst declararam-se membros do Colégio. 20 primeiro, é possível localizar inúmeros exemplos de artistas que nunca cursaram o ensino superior e isso não os impediu necessariamente de exercer a atividade artística, mas neste caso, entra um amplo espectro de discussões acerca da condição do artista como profissional ou amador e da precarização das condições de subsistência dos profissionais desta área no Brasil. Já no segundo caso, apesar da indicação de prioridade para formação superior dos profissionais que atuam em todos os níveis de ensino, a partir da LDB (Lei de Diretrizes e Bases para a educação) de 1996, o debate em torno de qual seria a formação adequada aos professores dos primeiros anos do ensino fundamental e da educação infantil, após o fechamento da maioria dos cursos de magistério em nível médio no Brasil, permanece até hoje sem chegar a um consenso diante das diferentes realidades coexistentes em um país de extensões continentais. 11 *** Em um momento mais recente, junto ao Coletivo Parabelo12 do qual faço parte desde 2007, pude experimentar de maneira consciente – pois creio que minha prática como arte educadora intuitivamente se aproximava em muitos aspectos desta concepção – um primeiro contato com o conceito de híbrido professor-performer 11 O fim do curso de magistério em nível médio ocorreu em muitas capitais do Brasil, a partir do momento em que se lançou a obrigatoriedade do diploma em nível superior para lecionar nos anos iniciais do ensino fundamental e na educação infantil. Entretanto, principalmente em estados das regiões Norte, Nordeste e Centro-Oeste, os chamados professores leigos, que não possuem formação específica para lecionar, continuam em atividade por conta da carência de profissionais qualificados para atender à demanda nessas regiões. Para saber mais a respeito desta discussão vide: BRASIL. Lei de Diretrizes e Bases da Educação 9394/96. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/LEIS/L9394.htm#art4ii. Acesso em: 12 jun. 2012. Vide também, artigo publicado há pouco mais de dez anos atrás, mas que traz importantes aspectos desta discussão: RAINHO, João Marcos. Coisa de Louco. Revista Educação. São Paulo: fev. 2001. Disponível em: http://www2.uol.com.br/aprendiz/n_revistas/revista_educacao/fevereiro01/capa.htm. Acesso em: 12 jun. 2012. 12 O Coletivo Parabelo surgiu em 2005 e é composto por pessoas provenientes de diferentes periferias paulistanas. Atualmente investiga a relação entre corpo, performance e espaço urbano através de ações realizadas em diversos pontos da cidade de São Paulo. Seus integrantes são: Bárbara Kanashiro, Denise Rachel, Diego Marques, Eliane Andrade, Flora Rouanet e Thalita Duarte. Para mais informações: www.coletivoparabelo.com. Acesso em: março 2013. 21 proposto por CIOTTI, como uma possibilidade de inventar diferentes e cambiantes estruturas para estabelecer um processo de ensino aprendizagem em artes que não se conforme apenas com o espaço da sala de aula, mas que extrapole o mesmo, no intuito de aproximar educação, arte e vida. Fato que me impulsionou a encaixar mais algumas peças do quebra-cabeça que compõe minhas experiências como artista e educadora, ao juntar o trabalho que desenvolvo como performer integrante do Coletivo Parabelo e o meu trabalho como professora de artes da rede municipal de ensino. Foi então que, de forma consciente, comecei a relacionar algumas possibilidades de ação desorganizadora da lógica espetacular que rege a escola. Lógica esta que promove um ensino de artes mais interessado no produto do que no processo, no enfeitar as paredes da escola em datas comemorativas do que promover efetivamente um espaço de troca de experiências, um ensino calcado na técnica e não na (re)invenção. Invenção esta que vai ao encontro do pensamento de Hélio Oiticica, artista visual brasileiro que participou do período denominado tropicalista entre as décadas de 1960-70, importante movimento da contracultura nacional que se desenvolveu durante o regime militar; este pensamento é exposto por ANDRÉ no seguinte trecho: Oiticica afirma que sua arte não propõe transformar o receptor em um criador de algo. Segundo o artista, tudo já está aí para ser experimentado. O que muda em sua atitude artística é deslocar o artista do mito da criação, do gênio, aproximando-o das coisas e dos seres dispersos na vida. Diferente é a atitude da criatividade que propõe ao artista exercitar uma habilidade, realizar um desempenho. Do mesmo modo, Oiticica desloca o receptor da posição de contemplador da criação para a de participante, convidando-o a experimentar o experimental, o desconhecido, o indeterminado. (...) Assim, entende-se que a “invenção” de que fala Oiticica não significa criatividade como se pensa no senso comum, mas sim uma atitude diante da arte e da vida que atua fora da noção de desempenho e de resultados. (ANDRÉ, p. 25- 26). A partir deste trecho, é possível inferir que tanto o professor de artes quanto o artista não estão “inventando nada do zero”, expressão utilizada aqui no sentido de criar algo completamente inédito e jamais visto, jamais pensado por outros em ambas 22 as atividades ou através do híbrido que pode surgir da junção destas. Pois a capacidade para inventar em um aspecto amplo, a qual inclui a criação artística mais especificamente, não surge de maneira espontânea na ausência de qualquer referência ou proposta anterior, mas está sempre relacionada a um contexto, ao trabalho secular de muitas gerações de artistas, pensadores, cientistas, cidadãos comuns como eu, como você, que constroem a(s) cultura (s) dos mais variados povos. Dessa forma, pode-se compreender que para criar, lecionar, aprender não há mágica, nem genialidade que dê conta de processos tão fugidios e subjetivos como estes, no entanto, há trabalhos erigidos individual e coletivamente em períodos e contextos diversos, esforços responsáveis pelo desencadeamento das mais variadas ações, metodologias, contra-metodologias, experimentações que indicam diferentes caminhos para o desenvolvimento de uma mesma atividade. Tudo já está aí para ser experimentado, afirma Oiticica. Reafirma, assim, a possibilidade de arriscar diferentes combinações, fazer associações que gerem os resultados mais inesperados ou, algumas vezes, até próximos do que se espera, sem que para isso se esteja munido de tantas certezas e convicções. Creio que em uma dessas experimentações/combinações, em que estudiosos costumam fazer no decorrer de uma pesquisa, Naira Ciotti organizou a ideia de híbrido professor-performer, a partir da qual pude vislumbrar outras possibilidades para o desenvolvimento de uma aula de artes no contexto da educação formal. Ciotti propõe que o aluno seja produtor em arte em um contexto em que ensinar é, acima de tudo, um processo de criação e experimentação e, desse modo se contrapõe ao caráter contemplativo e espetacular vinculado ao modelo de educação bancária analisado e criticado em diversas obras por Paulo Freire. 23 Eliane Andrade em performance Cuidado! Escola – julho 2011 Uma experiência emblemática neste sentido foi realizada na EE Maria José, dentro do evento Construindo um Porto de Poéticas Teatrais proposto pelo grupo teatral Tia Tralha, do qual faz parte um de meus colegas de mestrado e trajetória performática, Alan Livan. Neste evento, o Coletivo Parabelo propôs uma profanação do espaço (espetacular/sagrado) escolar, através da performance Cuidado! Escola, inspirada em obra homônima à citada anteriormente, a qual consistia em uma sequência de ações realizadas nas delimitações da sala de aula. Dentre estas, destaco a proposta da performer Eliane Andrade, que durante as ações realizadas pelos demais performers e participantes do evento escreveu repetidamente, preenchendo todos os quadros negros aos quais conseguiu ter acesso, a seguinte frase: Eu não sou um monge copista. Ação que se prolongou por aproximadamente uma hora. Tanto a repetição quanto o significado da frase, remetem à atitude redundante de copiar e reproduzir conhecimentos, comportamentos e informações em sala de aula, atitude esta diariamente atualizada no contexto escolar, fato que se compara ao ofício dos monges copistas do período que precede a invenção da imprensa e remete à origem religiosa do modelo escolar mantido até os dias atuais. Apesar desta ação não ter ocorrido durante um dia letivo comum, causou reverberações neste espaço aparentemente fechado para a contestação, para a presença de diferentes posicionamentos. 24 *** Ao vislumbrar e recolher estes rastros de experiências que, de alguma forma, permanecem em minha memória e perceber o pulsar dos incômodos decorrentes da tensão entre a artista e a professora, decidi me arriscar na cartografia de possíveis modelos de professor. A ideia de cartografia utilizada neste trabalho almeja aproximar- se do conceito provisório13 desenvolvido pela psicanalista brasileira Suely Rolnik (1989), a partir do pensamento dos filósofos franceses Gilles Deleuze (1925-1995) e Félix Guattari (1930-1992) 14, em que a cartografia pode ser uma maneira de embrenhar-se no mundo e investigar as mais variadas inquietações – inclusive modelos de subjetividade, comportamentos – além de, nesta relação direta com as intensidades da criação e reconhecimento de territórios/saberes acionar o corpo vibrátil. Corpo este capaz de reunir percepções e afetos, racional e sensível, na construção de conhecimentos, narrativas, mundos diversos. Para finalizar esta primeira parte do presente trabalho, pretendo desenvolver uma discussão em torno do levantamento destes modelos de subjetividade relacionados ao ofício do educador. O intuito desta discussão não é de apresentar padrões de comportamento fechados, que se repetem e reproduzem sem a menor chance de transformação ou sem o entendimento de que um indivíduo, neste caso o professor, possa transitar entre um modelo e outro, mesclando-os conforme suas necessidades. A intenção, a partir deste levantamento, é a de analisar possibilidades de atuar como professor ou, mais especificamente, como professor de artes dentro do sistema de ensino formal em um breve panorama, sem qualquer pretensão de ser um estudo conclusivo. 13 O termo “provisório” associado à palavra conceito, a qual pode ser interpretada como algo definitivo e certeiro em termos de organização do pensamento; é utilizado por Rolnik justamente para desestabilizar os territórios conquistados pelas certezas cientificamente comprovadas. Desta forma, ela demonstra que mesmo os conhecimentos mais sedimentados possuem uma zona obscura de incertezas e, portanto, possibilidade de serem modificados. 14 Deleuze e Guattari aprofundam este conceito de cartografia em uma série dividida em cinco volumes, na versão brasileira, intitulada “Mil Platôs: capitalismo e esquizofrenia”. 2.ed. São Paulo: Editora 34, 2012. 25 Capítulo 1.2 Cartografando as performances do professor O espaço da sala de aula determina modos de pensar e agir tanto para professores quanto para alunos. Ambos performam15 papéis a partir de uma convenção elementar, a qual assinala que este espaço é destinado para o estabelecimento de relações de ensino e aprendizagem. Ambos, professores e alunos, trazem para a sala de aula, corpos permeados por discursos políticos, ideológicos, culturais, pedagógicos, além de experiências pessoais, sentimentos, desejos, os quais reunidos podem criar uma zona de conflito por conta da profusão de diferenças que obrigatoriamente coabitam este espaço. A partir desta perspectiva o professor necessita assumir posturas que podem variar, na tentativa de garantir uma boa performance pedagógica. Dessa forma, destaco aqui alguns dos papéis possivelmente performados por arte educadores, que atuam em contextos de educação formal, como um exercício de reflexão a partir de minha própria prática docente. 1.2.1 Professor-profeta Iniciarei esta breve análise pelo modelo de prática docente considerado mais tradicional, no sentido de estar arraigado ao entendimento do ofício de professor propagado pelo senso comum. Isto é, um modelo tão conhecido que não seria necessário sequer frequentar a escola para conhecê-lo. Modelo este nomeado pelo filósofo da educação brasileiro Sílvio Gallo (2002) como o do professor-profeta. Nome que aproxima o ofício de sua etimologia, do latim profiteri – professar/declarar sua fé/conhecimento publicamente. Esta denominação também remonta a uma genealogia da escola a partir do período moderno europeu, em que é possível descrevê-la como uma instituição construída pela necessidade e interesses religiosos 15 Utilizo os termos performar e performance nesta parte final do primeiro capítulo, a partir da concepção relacionada aos estudos culturais, vinculados ao entendimento de performance como desempenho de um papel na sociedade conforme as convenções socioculturais as quais estamos submetidos. Estes termos também estão associados à linha pedagógica crítico-performativa a qual possui como um de seus focos de pesquisa as relações que implicam saberes corporificados (hábitos, regras, convenções) e saberes encarnados (apreendidos, transformados e transformadores), através de ações, constructos culturais que envolvem inclusive a performance como linguagem artística. Pesquisadores como Vidiella (2010), Gómez-Peña (2005), Keith-Alexander (2006), Pineau (1994), McLaren (1993) Giroux (1997), Phelan (1993), entre outros, estão analisando práticas pedagógicas a partir desta perspectiva. 26 na transmissão de conhecimentos ou dogmas através da cultura letrada, para um determinado grupo de pessoas pertencentes ao clero ou às classes abastadas. O que quer dizer, de forma bem simplificada, que o espaço escolar se configurou a partir de um ponto de vista religioso o qual buscava o controle, formação e uniformização do pensamento conforme a doutrina da igreja católica, fato que, desde o século XV até os dias atuais, sofreu pequenas modificações em termos de organização do espaço da sala de aula e mesmo da função do professor. A partir desta perspectiva, o professor-profeta se configura como visionário de um futuro melhor para os alunos, a partir de um conhecimento a ser professado de forma reveladora para estes. Nesta configuração, o professor pode encarar seu ofício como uma espécie de sacerdócio, uma missão reservada a pessoas dispostas a sucumbir às piores agruras a fim de cumprir o papel de portadores e transmissores exclusivos do saber. Performar este papel geralmente pressupõe que o educador encare os alunos como tábula rasa, depósitos do conhecimento, incapazes de ter acesso a este sem o auxílio do docente. Desse modo, se deslocarmos esta postura para o contexto de um professor que leciona artes, possivelmente encontraremos aulas que valorizam o fazer artístico por um viés romântico. Nestas aulas o arte educador, provavelmente, disponibiliza obras historicamente reconhecidas em uma perspectiva eurocêntrica de arte, como modelos a serem reproduzidos pelos alunos. Assim, a arte apresentada nesta conjuntura, estaria em uma esfera separada da vida cotidiana dos educandos, representaria um artigo de luxo do conhecimento, de difícil acesso para as classes sociais mais pobres, destinada à fruição por parte de uma elite que possui o domínio dos códigos e convenções que caracterizam cada linguagem artística. Portanto, a performance realizada pelo professor-profeta em sala de aula tende a desconsiderar as peculiaridades e interesses dos estudantes, suas preferências, conhecimentos prévios e até mesmo atividades artísticas das quais estes participem e/ou realizem cotidianamente fora do contexto escolar, com o intuito de moldá-los, iluminá-los com 27 o saber correto, verdadeiro e universal, o qual desqualifica qualquer outro que dele difira.16 1.2.2 Professor-mediador/provocador Uma alternativa a este modelo de arte educador é proposta pela artista plástica e educadora Milene Chiovatto, em artigo intitulado O professor-mediador. A autora inicia o texto apresentando o professor de artes como alguém que pode ter inseguranças e não dominar completamente todos os conteúdos de sua área de conhecimento, perspectiva esta que se diferencia da postura onisciente do professor- profeta. O professor não é um “vaso”, um receptáculo repleto de informações e conhecimentos a serem dali retirados e dados aos alunos. O professor é um ser pensante e de ação. Através da reflexão e da ação, deve ser capaz de estabelecer ligações entre os conteúdos a serem transmitidos e as demandas e necessidades do processo educativo pelo qual passam seus alunos, suas respostas em relação ao assunto tratado e, na soma disso tudo, reavaliar suas próprias opiniões. Estabelecer ligações, sem impor uma determinada “verdade”, é o aspecto mais delicado da tarefa docente. (CHIOVATTO, 2000) 17 Para a autora, o ser humano portador da capacidade de interpretar o mundo a sua volta, ao se relacionar com o objeto artístico, feito para ser interpretado, tece 16 No entanto, Sílvio Gallo aponta para uma obsolescência deste modelo no seguinte trecho: “Toni Negri tem afirmado que já não vivemos um tempo de profetas, mas um tempo de militantes; tal afirmação é feita no contexto dos movimentos sociais e políticos: hoje, mais importante do que anunciar o futuro, parece ser produzir cotidianamente o presente, para possibilitar o futuro. Se deslocarmos tal ideia para o campo da educação, não fica difícil falarmos num professor-profeta, que do alto de sua sabedoria diz aos outros o que deve ser feito. Mas, para além do professor-profeta, hoje deveríamos estar nos movendo como uma espécie de professor-militante, que de seu próprio deserto, de seu próprio terceiro mundo opera ações de transformação, por mínimas que sejam.” (GALLO, 2002, p. 170, grifo nosso). 17 Para saber mais sobre o conceito de professor-mediador, vide: CHIOVATTO, Milene. O Professor Mediador. BOLETIM, Número 24, Outubro/Novembro 2000. Disponível em: http://www.artenaescola.org.br/pesquise_artigos_texto.php?id_m=13. Acesso em: 12 jul. 2012 28 leituras a partir de suas experiências e conhecimentos prévios. Dessa maneira, o professor deve estar entre o conhecimento e o aluno, como facilitador da construção significativa de um saber coletivo, promovendo o diálogo entre artista e público, obra e espectador. Assim, o arte educador performa o papel de mediador, o qual aproxima os estudantes do saber/fazer artístico através do diálogo, que pode representar uma busca por conciliar diferentes pontos de vista a respeito de um objeto (assunto, imagem, fato, ação). A tentativa de conciliar diferentes pontos de vista, entretanto, pode se aproximar da função apaziguadora de conflitos com caráter homogeneizador, em que as diferenças são liquefeitas para se chegar a uma conclusão ordenada, sob o comando do professor. Se compreendida desta forma, a ação mediadora acaba por apontar para a construção de um saber padronizado, que depende do aval do docente, o qual possui autoridade para desqualificar e para legitimar os discursos com os quais compactua. Justamente neste aspecto é que reside a importância e a “delicadeza” da performance do educador e aparece a indagação: como mediar leituras, compreensões, construções de conhecimento, do saber/fazer artístico sem apagar os dissensos e impor determinados pontos de vista? Através deste questionamento, ainda nesta mesma linha de reflexão proposta por Chiovatto, mas sugerindo um vocábulo que parece ser mais instigador do que a ação de mediar, está o professor-provocador. Este pode representar uma variação que almeja esclarecer uma possível interpretação do professor-mediador como apaziguador de conflitos em sala de aula, para enxergar o docente como um provocador de conflitos no sentido de desacomodar o processo de ensino aprendizagem, estimular a discussão e o interesse pelo conhecimento. Dessa forma, ao invés de permanecer entre o conhecimento e o aluno, o educador age com o intuito de promover deslocamentos, ao provocar, instigar a curiosidade, o desejo que poderá mover o estudante pelos inúmeros caminhos da construção de saberes. 29 1.2.3 Professor-pesquisador/reflexivo Outras adjetivações propostas no intuito de tecer esta breve cartografia da performance docente, as quais trazem uma ideia de constante aperfeiçoamento para este ofício são a do professor-pesquisador e do professor-reflexivo. Ambas surgem, entre outros fatores, como resposta a um possível entendimento de que o professor, no decorrer de sua carreira, por diversos motivos, acaba por se acomodar a um determinado padrão de conhecimento, de práxis, sem preocupar-se em acompanhar ou relacionar-se com as mudanças sócio-histórico-culturais vigentes, além das mudanças no âmbito micropolítico na composição de cada sala de aula. Estas propostas podem ter se constituído também como crítica ao professor que simplesmente acata conteúdos estipulados por parâmetros curriculares e livros didáticos, sem tecer uma reflexão a respeito da pertinência dos mesmos no contexto em que trabalha18; fato que consiste em outra forma de acomodação por parte do docente. Neste âmbito, a concepção de professor-pesquisador emergiria como alternativa para se promover uma melhoria efetiva da qualidade de ensino, ao apostar na formação e auto-formação contínuas do educador preocupado em atender às demandas do contexto institucional em que está inserido. Através do acesso a diferentes proposições metodológicas, da troca de ideias com outros profissionais da área, do exercício de análise crítica em torno da própria prática docente em busca de trans-formação. Fundamenta-se, dessa forma, a crença de que o professor-reflexivo irá transpor as dificuldades cotidianas de seu ofício, além de trazer propostas de modificação no campo estrutural da instituição escolar. Entretanto, é preciso ter cautela para não supervalorizar uma perspectiva cientificista de ensino aprendizagem, a qual concerne a uma modalidade de 18 Uma ampla discussão sobre essas nomenclaturas em torno da função de professor realizada pelo GEPEC (Grupo de Estudos e Pesquisas sobre Educação Continuada) da Faculdade de Educação da UNICAMP, organizada no livro: GERALDI, C.M.G.; FIORENTINI, D.; PEREIRA, E. M. A. (orgs.). Cartografias do trabalho docente: professor(a)-pesquisador(a). Campinas: Mercado de Letras, 2001. 30 conhecimento instrumental e, mesmo que envolva o caráter crítico, geralmente permanece restrito ao âmbito da racionalidade em detrimento das demais potencialidades (emoção, intuição, sensações, sentimentos...) relativas ao ser humano. A partir desta perspectiva, com a predominância do racionalismo em relação às demais potencialidades que podem ser desenvolvidas tanto dentro quanto fora do contexto escolar, decorre o bloqueio e o controle dos desejos, das iniciativas para a invenção de outras formas de lidar com o mundo, que apresentem divergências em relação ao sistema vigente. Este caráter cientificista de educação remete a outra genealogia ocidental e europeia da instituição escolar, que ao mesmo tempo se aproxima e se distancia dos interesses religiosos relacionados à ideia de professor-profeta. Tal genealogia está ligada à ascensão da burguesia como classe social dominante, a qual utilizou e ainda utiliza a escola como recurso para difundir seus ideais e modos de vida, os quais deflagraram fenômenos da ordem da revolução industrial, por exemplo. Também faz parte desta genealogia o processo de separação e especialização por áreas de conhecimento, como um dos mecanismos introdutórios à lógica da produção industrial seriada e à dinâmica do mercado de trabalho. Desse modo, os conceitos de reflexão e pesquisa precisam levar em conta este conhecimento sensível e encarnado, no sentido de não cindir corpo e mente, razão e emoção, teoria e prática. Mas de encarnar o conhecimento através das ações, da aisthesis, do roçar o mundo, embrenhar-se, envolver-se com o outro (o diferente, o desconhecido, o saber, o estudante, a sala de aula, a escola...). Assim, apresento um trecho que versa a respeito da figura do professor- reflexivo como sujeito consciente dos possíveis problemas relacionados a um cientificismo exacerbado e à subordinação a determinados parâmetros de ser e estar elaborados (de cima para baixo, vindos de fora, das esferas superiores e administrativas do âmbito educacional) para estruturarem e normatizarem o funcionamento da escola através de roteiros previamente estabelecidos19. Os quais 19 As ideias de roteiro e de subordinação a estruturas superiores de poder serão desenvolvidas mais detalhadamente no capítulo seguinte, através do entendimento do conceito de sociedade do espetáculo apresentado por Guy Debord. 31 não são aceitos passivamente, mas questionados pelo docente pesquisador, como afirma o texto a seguir: [O professor-reflexivo] resiste e questiona por duas razões: uma porque ele percebe a ideologia que permeia o roteiro, e outra, porque tem consciência de suas consequências – a perda do fascínio do cotidiano, do qual não quer abrir mão, e a impossibilidade de contribuir para a ocorrência de transformações, perpetuando o status quo. (...) é o docente que questiona e resiste à racionalidade técnica e reflete criticamente sobre sua prática docente. É aquele que, apesar de todas as tentativas externas de limitações do seu trabalho volta o seu olhar ao(à) aluno(a), tratando-o(a) respeitosamente, como um sujeito histórico e inserido num contexto social. É aquele que tenta “driblar” as limitações e busca desenvolver, com o coletivo da escola, projetos de trabalho docente. (NACARATO; VARANI; CARVALHO, 2001, p. 94-95, grifo nosso) 20 A partir desta afirmação, pode-se inferir que uma das qualidades desenvolvidas pelo professor-pesquisador é a de vislumbrar as ideologias que conduzem e organizam o modus operandi da instituição escolar na qual está inserido, com o intuito de analisa- las e questiona-las. Portanto, este professor está preocupado com o tipo de manutenção ao qual o seu saber/fazer está contribuindo. Se esta ideia for transposta para o campo da arte educação, por exemplo, este docente levaria em conta o fato de que os objetos artísticos apresentados e trabalhados com os estudantes não estariam menosprezando seus desejos, seus vínculos socioculturais, entre outros aspectos que concernem à subjetividade de cada um; em nome da veiculação de uma obra reconhecida e valorizada historicamente por questões ideológicas vinculadas a interesses religiosos, mercantis, políticos e/ou associados a uma elite dominante. Nesta perspectiva, este arte educador estaria mais interessado na construção de sua práxis junto aos educandos, respeitando o contexto e a(s) história(s) reunida(s) por aquela coletividade em sala de aula. Tal práxis é realizada e atualizada diariamente na 20 Trecho retirado de artigo presente no livro citado anteriormente: NACARATO; VARANI; CARVALHO. O cotidiano do trabalho docente: palco, bastidores e trabalho invisível... abrindo as cortinas. In: Cartografias do trabalho docente: professor(a)-pesquisador(a). Campinas: Mercado de Letras, 2001. 32 relação estabelecida entre educador, educando e saber, de forma inesperada em muitos momentos, emocionada e emocionante, carregada de afetos e diferentes percepções as quais impossibilitam seguir um roteiro fechado, de convenções, currículos, planejamentos, propostas curriculares e avaliações internas e externas. Assim, o professor-reflexivo, não somente no campo das artes, organiza sua práxis em busca de resistência e questionamento em relação ao sistema vigente, fato que aproxima este modelo de outro proposto por Sílvio Gallo, o do professor-militante. Este último age a partir da possibilidade de transformar o espaço da sala de aula em trincheira, espaço para a guerrilha em forma de resistência aos modelos de ensino aprendizagem impostos como ideais, e verdades inquestionáveis em relação às mais variadas situações, as quais podem ser encontradas em um país de extensões continentais como é o caso do Brasil. 1.2.4 Professor-artista Uma das metáforas que poderia ser considerada a mais precisa em relação à figura do arte educador é a do professor-artista. Tal metáfora possibilita um trânsito mais aproximado entre a ação de educar/aprender e a ação criativa – a construção de um saber como ato criativo pode constituir uma boa leitura para a atitude ideal de um professor-artista. Uma interpretação possível desta denominação está relacionada à disponibilidade que o docente que performa este papel possui para “abandonar a insistência acerca de objetivos comportamentais claramente definidos e de resultados de aprendizagem previsíveis, em vista da liberdade para adaptar e explorar novos caminhos de resultados imprevisíveis” (BARREL apud PINEAU, 2010, p. 95). Esta afirmação posiciona o professor-artista em um âmbito experimental que contraria o aspecto predominantemente ordeiro, projetado e planejado da prática pedagógica, a qual encara o improviso e o imprevisto como acidentes de percurso que devem ser evitados. Neste sentido, o professor-artista assume um caráter transgressor em relação a uma metodologia tradicional de ensino mais preocupada com o produto do que com o processo. Portanto, pode contribuir para uma mudança de paradigma no 33 ensino das artes: da predominância de práticas de releitura, representação e reprodução de obras consagradas para o reconhecimento das capacidades individuais dos estudantes e estímulo à criação e experimentação. Contudo, esta adjetivação atribuída ao docente de artes, segundo Pineau (2010), foi apropriada de forma simplificada e reducionista por parte de professores e teóricos da educação. Esta apropriação equivocada coloca o professor-artista como aquele responsável por despertar o interesse do aluno e o entreter durante a aula ao utilizar suas habilidades artísticas. A autora atribui o foco desta abordagem ao desempenho do professor e sua preocupação em garantir que “sua aula funcione”. Desta premissa podemos destacar dois problemas, o primeiro seria uma supervalorização do desempenho do professor em detrimento da atuação do aluno e da interação entre ambos (professor-aluno/aluno-aluno); o segundo problema está relacionado ao pronome possessivo utilizado na premissa, indicando que a posse da aula e a responsabilidade associada ao sucesso ou fracasso desta é exclusiva do docente. Através desta linha de raciocínio, utilizando a intuição criativa, Pineau afirma que muitos docentes conduzem “suas aulas” preocupados em manter os estudantes em constante movimento, com exercícios de aquecimento, integração, expressão corporal, diferentes técnicas artísticas, influenciados pela lógica da novidade a cada aula. Lógica esta atrelada ao mercado, em uma constante busca por novos produtos que despertem o interesse dos consumidores, gerem lucro e, assim, se estabeleçam como produto bem sucedido. Dessa forma, a atuação do professor-artista acaba por se atrelar ao pensamento empresarial que funciona como parâmetro de funcionamento às diversas esferas da vida, incluindo a escola e a família – um pensamento voltado para a chamada qualidade total, componente do discurso neoliberal que, em última instância, não admite o fracasso, não deixa espaço para o erro. A dimensão crítica do trabalho docente, neste caso de interpretação reducionista da metáfora do professor- artista, acaba prejudicada por entender a figura do artista como aquele que age irrefletidamente, guiado pela energia criativa subordinada à obrigação da novidade e do prazer gerado por uma aula bem sucedida a partir da lógica do entretenimento. Apesar do risco deste tipo de interpretação, a adjetivação professor-artista também possui o potencial de transformar o espaço da sala de aula em um local 34 menos opressor, ao abrir espaços para relações que não se limitem à hierarquia entre quem ensina e quem aprende. A arte e o artista podem fazer-se presentes na sala de aula e promoverem uma ressignificação deste espaço ao estimular e dar vasão ao desejo, ao sabor/saber estético, à multiplicidade de concepções que podem ser geradas a partir da práxis artístico-pedagógica. Este ideal de professor-artista se vincula ao que John Dewey descreveu como uma educação democrática voltada para a cidadania através de experiências estéticas que estimulem a imaginação, aprimorem a sensibilidade e o discernimento. No entanto, como qualquer outro papel performado pelo docente, depende da(s) ideologia(s) incorporada(s) por este para definir se esta práxis artístico-pedagógica terá um caráter emancipatório, (FREIRE, 1981, 2007; RANCIÈRE, 2002) ou atuará como forma de manutenção do sistema vigente e reprodução padronizada de modos de ser e estar no mundo. 1.2.5 Professor-performer A última figura que irei destacar como possível papel performado por um educador ou, mais especificamente, um arte educador, é a do híbrido professor- performer proposto por Naira Ciotti em sua dissertação de mestrado intitulada “O híbrido professor-performer: uma prática”, defendida em 1999, na PUC-SP; com a qual possuo maior identificação e, por isso, tornou-se objeto de estudo desta dissertação conectada à minha experiência pessoal como arte educadora. Em uma breve definição, utilizando os termos da própria autora, o professor-performer seria aquele que “propõe que o aluno seja produtor em arte” em um contexto em que “ensinar é, acima de tudo, um processo de criação e experimentação” (CIOTTI, 1999, p.60). Naira Ciotti escolheu como um de seus exemplos do que poderia ser considerado um híbrido professor(a) performer o artista e professor alemão, na Academia de Arte de Düsseldorf, Joseph Beuys21, o qual afirmava que “ser professor 21 Joseph Beuys (1921-1986) artista e professor alemão que através de sua práxis, a qual desafiava os limites tradicionais da arte institucionalizada, afirmou que “toda pessoa é um artista”. Trabalhava com materiais simples como feltro, gordura e mel, produzindo esculturas, objetos, ambientes, múltiplos 35 era a sua maior obra de arte”. Da narrativa que pude ter contato a respeito de sua atuação como professor e performer, há atitudes emblemáticas como o fato de ter assumido riscos e provocado sua demissão da Academia, por não restringir suas aulas apenas aos estudantes matriculados regularmente, oferecendo-as a quem estivesse interessado, “por acreditar que quem quer aprender e quem quer ensinar devem ficar juntos” (1999, p. 62). Após este evento, organizou a Escola Livre de Ensino Superior (1971), que mais tarde se tornou a Universidade Livre Internacional (FIU), que poderia acontecer em seu “escritório” (modo como chamava o espaço para discussões dessa organização) ou ao ar livre, em um parque, na rua; em um modelo de democracia direta, rompendo com a burocracia presente nos modos de funcionamento de uma universidade oficial. Beuys trabalhava inserido no contexto dos grandes movimentos estudantis das décadas de 1960 e 1970 do Ocidente, vinculados aos movimentos de contracultura, contra a opressão do estado capitalista e a partir das peculiaridades da ação deste sistema em cada região, na defesa da existência de formas diferentes de organização da vida em sociedade, – no caso do Brasil e de grande parte da América Latina, poderíamos situar o movimento estudantil na luta contra os governos ditatoriais. 22 As ações de Beuys e outros militantes deste período podem servir como inspiração para reformular práticas educativas, no entanto é necessário atentar para o processo de cooptação, pelo sistema vigente, das formas alternativas de existência, as quais facilmente se transformam em produto para ser consumido, em pretexto para se vender determinada mercadoria, em um discurso apropriado por parâmetros curriculares e planejamentos das instituições de ensino e readequados ao estado/empresa interessados na formação de sujeitos flexíveis (facilmente adaptáveis e ações (aktions) – denominação dada pelo artista, a partir de sua perspectiva como praticante de uma modalidade artística que, por suas características, também poderia e ainda pode ser lida como performance. Para mais detalhes a respeito da arte da performance, acompanhar as discussões desenvolvidas nos próximos capítulos desta dissertação. 22 Um exemplo no Brasil que se aproxima desta proposta de universidade livre praticada por Beuys, pode ser a da Rede Universidade Nômade. Mais informações a respeito estão disponíveis em: http://uninomade.net/caravana-nomade/. Acessado em: 20 jul. 2012. 36 a diferentes contextos) e criativos, no sentido de otimizar diversas formas de produção, circulação e consumo de mercadorias. Tanto a figura do professor quanto a do performer precisam negociar com esta ideologia social e culturalmente incutida, para poderem propor ações que discutam e experimentem limites e potências para resistir, ao menos dentro de seus campos de atuação pedagógico e artístico. Fórum da Universidade Livre Internacional (FIU), na 6ª edição da Documenta de Kassel, 1977 A partir deste panorama inicial proposto por Ciotti em torno do híbrido professor-performer, gostaria de acrescentar algumas observações, por exemplo, em relação ao estudante como produtor em arte, ao incluir também o professor, em uma proposta de saber/fazer coletivo, desenvolvida a partir do embate entre as diversas concepções de arte que podem se tornar visíveis em sala de aula. Neste sentido, ao acompanhar a afirmação feita por Beuys de que todos podem ser artistas, não há necessidade de ser um artista reconhecido pelo mercado ou com intenções de sê-lo para produzir arte; nem é preciso ser curador, crítico, marchand, especialista de alguma modalidade artística, para ser autorizado a discutir questões éticas e estéticas concernentes ao fazer artístico. A aula de artes pode se constituir como um lugar para 37 que estas interações e pesquisas aconteçam de forma não hierárquica, mas crítica e responsável pelas concepções de arte e de mundo que ali são concretizadas. Assim, acrescento a concepção de pedagogia cultural e pedagogia escolar proposta por Giroux (apud Hernández, 2007, p. 32), como forma de explicitar e hibridizar de maneira crítica as informações e formações as quais estudantes e educadores têm acesso dentro e fora do contexto escolar, através das mídias, do convívio familiar, da frequência em cinemas, teatros, museus – exemplos de como pode se dar a chamada pedagogia cultural – e através de livros, materiais didáticos, parâmetros curriculares, aulas, cursos – exemplos de como pode se dar a pedagogia escolar. A aproximação de ambas através da hibridização entre o professor e o performer, o qual possui a especificidade de mixar, sobrepor, colar diferentes objetos, imagens, narrativas e, neste caso, pedagogias como processo de formação e autoformação que pode envolver a criação artística. A partir desta perspectiva não significa que o professor de artes deva sempre trabalhar com as referências relacionadas às experiências dos educandos, mas sim compreender que estas podem ser associadas e misturadas a outras referências apresentadas pelo educador ou por um procedimento de pesquisa coletiva, com o intuito de compartilhar diferentes referências e propor ações que almejam a ampliação de arquivo e repertório23 tanto do educador, quanto dos educandos. A arte da performance participa, neste caso, 23 Os termos “arquivo” e “repertório” são utilizados aqui para representar respectivamente informações associadas aos instrumentos da pedagogia escolar (livros, materiais didáticos, cadernos, registros fotográficos e audiovisuais, entre outros) e informações conectadas a ideia de pedagogia cultural, adquiridas através de experiências corporais, nas relações estabelecidas diariamente as quais envolvem um contexto sócio-histórico-cultural incorporado e/ou encarnado pela memória corporal. Observando que as palavras incorporado e encarnado são traduções aproximadas do inglês para o termo embodiment, as quais podem ser confundidas com uma conotação religiosa no contexto brasileiro, mas, neste caso, estão relacionadas à ideia de conhecimento que se dá de corpo inteiro, no e pelo corpo. Há traduções que utilizam o termo corporificado, com o intuito de evitar tal confusão. Entretanto, nesta dissertação optei por utilizar as três designações como sinônimas, apesar de autores como Peter McLaren diferenciá-las entre si. Segundo Pineau (2013), McLaren considera o termo corporificação ligado a hábitos adquiridos durante longo período de tempo e que, portanto, acabam por ser naturalizados (perde-se a consciência de que estes foram construídos culturalmente); enquanto encarnação remete à capacidade de aprender comportamentos alternativos que podem ser adquiridos, organizados e reorganizados a qualquer momento. Estes termos serão discutidos no decorrer do próximo capítulo e também podem ser estudados com maior profundidade no livro: TAYLOR, Diana. O arquivo e o repertório: performance e memória cultural nas Américas. Belo Horizonte: UFMG, 2013. 38 como linguagem capaz de promover estas aproximações entre pedagogias cultural e escolar, educadores e educandos em uma relação não hierárquica no processo de formação e autoformação promovidas pelas ações de pesquisar, criar, compartilhar, fazer com e não para o outro. Entretanto, não seria mais prático permanecer alinhado ao modelo de educação em artes interessado em conhecer, discutir e reproduzir o trabalho de artistas reconhecidos pelo mercado? Aproximar a aula de artes da vida daqueles que estão implicados neste processo não seria uma maneira de causar polêmicas desnecessárias, as quais desviam o foco da clareza necessária aos objetivos da educação escolar? Ou ainda, se a maioria das pessoas que estão inseridas no mercado de trabalho e/ou desenvolvendo estudos acadêmicos em São Paulo, inclusive eu, foram educadas por um modelo tradicional de educação, isto poderia comprovar que este modelo não fracassou? Poderia responder estas questões dizendo que tudo depende do ponto de vista de quem está participando deste complexo processo que constitui a educação e, para refletir a respeito do posicionamento que busco assumir como artista e educadora, cito Hernández: Hoje, um docente, ou qualquer pessoa interessada pela educação, que queira compreender o que está acontecendo no mundo e, sobretudo, que