UNIVERSIDADE ESTADUAL PAULISTA FACULDADE DE FILOSOFIA E CIÊNCIAS PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM EDUCAÇÃO JAQUELINE RODRIGUES FERREIRA POR UMA OUTRA EDUCAÇÃO: A CONCEPÇÃO DE SER HUMANO E DA INFÂNCIA POR MEIO DA PEDAGOGIA WALDORF E DA ANTROPOSOFIA Marília-SP 2022 UNIVERSIDADE ESTADUAL PAULISTA FACULDADE DE FILOSOFIA E CIÊNCIAS CAMPUS DE MARÍLIA JAQUELINE RODRIGUES FERREIRA POR UMA OUTRA EDUCAÇÃO: A CONCEPÇÃO DE SER HUMANO E DA INFÂNCIA POR MEIO DA PEDAGOGIA WALDORF E DA ANTROPOSOFIA Dissertação apresentada ao Programa de Pós- Graduação em Educação, linha: Filosofia e História da Educação no Brasil, da Faculdade de Filosofia e Ciências de Marília, como requisito para o título de Mestre. Orientador: Prof. Dr. Alonso Bezerra de Carvalho Marília 2022 F383u Ferreira, Jaqueline Rodrigues Por uma outra educação : a concepção de ser humano e da infância por meio da pedagogia waldorf e da antroposofia / Jaqueline Rodrigues Ferreira. -- Marília, 2022 106 p. Dissertação (mestrado) - Universidade Estadual Paulista (Unesp), Faculdade de Filosofia e Ciências, Marília Orientador: Alonso Bezerra de Carvalho 1. Educação. 2. Antroposofia. 3. Pedagogia Waldorf. 4. Educação Infantil. I. Título. Sistema de geração automática de fichas catalográficas da Unesp. Biblioteca da Faculdade de Filosofia e Ciências, Marília. Dados fornecidos pelo autor(a). Essa ficha não pode ser modificada. POR UMA OUTRA EDUCAÇÃO: A CONCEPÇÃO DE SER HUMANO E DA INFÂNCIA POR MEIO DA PEDAGOGIA WALDORF E DA ANTROPOSOFIA JAQUELINE RODRIGUES FERREIRA BANCA EXAMINADORA _________________________________________________________ Prof. Dr. Alonso Bezerra de Carvalho (UNESP/Marília) _______________________________________________________ Prof. Dr. Sinésio Ferraz Bueno (UNESP/Marília) _______________________________________________________ Prof.ª Dr.ª Ana Lygia Vieira Schil da Veiga (FACON/Conchas) Marília, 17 de março de 2022 DEDICATÓRIA Dedico este trabalho à minha família, às crianças que alegram os nossos corações e a todos os professores (as) que acreditam e praticam a autoeducação como princípio pedagógico. AGRADECIMENTOS Agradeço a toda a minha família intergaláctica, vô Manuel, e em especial às mulheres, bisa Maria, vó Vera, mãe Neurice e à minha irmã e professora Waldorf Angélica, que me inspirou no desafio de estudar esta temática. Agradeço ao professor Alonso pela sua generosidade, e por ter acreditado na relevância desta temática para as discussões no meio acadêmico no campo da Educação. Pelas contribuições e reflexões do professor Genivaldo, obrigada pela escuta amorosa. Ao professor Sinésio pelas críticas construtivas, para um pensar lúcido. À professora Vanda Elisa de Farias Raulino, pelas suas contribuições, muito obrigada por ter me ouvido e ter recebido meus pedidos de ajuda nos momentos que antecederam o seminário de pesquisa e durante o desenvolvimento do trabalho. Agradeço à professora Nina Veiga, pelas suas contribuições para a reflexão e escrita deste trabalho. Obrigada professora pela sua disponibilidade, dedicação e pelas partilhas. Agradeço com muita alegria ao grupo de estudos da escola Jequitibá Rosa de Marília, ao Grupo de Estudos e Pesquisa em Educação, Ética e Sociedade (GEPEES), e em especial agradeço à professora Sueli do Nascimento pela sua amizade, companheirismo e incentivo nas apresentações e publicações de trabalhos para a qualificação. Gostaria de agradecer ao curso de formação de professores Fundamentarte promovido pela Escola Comunitária Municipal do Vale de Luz e à Casa Áurea Escola Waldorf, que me deram a oportunidade de conhecer, vivenciar e aprender mais sobre a Pedagogia Waldorf e o conhecimento antroposófico. Agradeço ao Programa de Pós-Graduação em Educação da Unesp de Marília e a todos os professores e professoras que contribuíram para a minha formação. Agradeço à Secretaria de Educação do município de Marília e à escola municipal de Educação Infantil “1,2...feijão com arroz”, a qual me possibilitou, junto com as crianças e os/as colegas de trabalho, pesquisar um pouco mais sobre o relação da criança com a natureza, em busca de um fazer docente atrelado com o mundo e no estímulo na pesquisa sobre o brincar. Agradeço a todos os meus amigos/as/es que contribuíram para a realização deste trabalho. E por fim, é com muito carinho que eu agradeço ao Rafael. Obrigada pela compreensão, amor, paciência, incentivo e acolhimento nos momentos difíceis nesta caminhada. EPÍGRAFE Pedra Pedrinha Pedrão Algumas cabem na palma da mão. Redondas e lisinhas. Umas são grandes, bem pesadas. Outras moram em ninhos, cestinhas, mesinhas de época. Tem noites que algumas chegam na mochila do anãozinho. Em algumas, grandonas, o pezinho em cima se equilibra... estas ficam no chão, não dá pra levantar. Fazem um caminho, às vezes retos, às vezes curvos. O Pedrão é tão grande e alto que cabe o corpo todo, pra subir, pés descalços... no começo, abaixadinha e depois levantando, encontrando o equilíbrio... pés bem espalmados na superfície dura, áspera. Pulo. Algumas, as mais especiais são preciosas... singelos tesouros da terra compartilhados com meus amigos. Algumas navegam e mergulham no banho... outras simplesmente ficam protegidas nas mãozinhas, mochilas ou caixinhas (MATTOS, et al., 2021, p. 259). FERREIRA. Jaqueline. Por uma outra educação: a concepção de ser humano e da infância por meio da Pedagogia Waldorf e da Antroposofia. 2022. 106 f. Dissertação (Mestrado em Educação) -Faculdade de Filosofia e Ciências - UNESP, Marília, 2022. RESUMO Tendo em vista o paradigma da valorização da racionalidade sobre o ensino escolar convencionalizado, esta dissertação apresenta as principais concepções sobre o desenvolvimento humano por meio da Antroposofia e da Pedagogia Waldorf, dispondo dos pressupostos basilares do pensamento de Rudolf Steiner, o qual considera o desenvolvimento a partir do corpo, da alma e do espírito. Iniciamos este trabalho a partir de uma análise de conjuntura, identificando neste percurso aspectos históricos que explicitam as origens do pensamento racionalista e seu desenvolvimento, desde o pensamento clássico da escolástica grega, passando pelo século XVI, mediante o pensamento cartesiano e sua influência na constituição da oposição entre sociedade e natureza a partir da Revolução Científica. Ressaltamos o querer, o sentir e pensar como princípios para o desenvolvimento humano na prática docente na Pedagogia Waldorf, com ênfase no querer na Educação Infantil, bem como, o andar, o falar e o pensar como as três atividades principais neste processo de desenvolvimento da criança. Em contraposição ao paradigma racionalista, destacamos as contribuições do romantismo alemão, a partir de Schiller e Goethe sobre o pensamento antroposófico, por meio do conceito de Bildung, na constituição e desenvolvimento do ser humano. Assim como, suas reflexões a partir da fenomenologia, a qual por meio de uma cosmovisão, considera aspectos sensitivos e suprassensíveis na pesquisa científica. Finalizamos este estudo com algumas reflexões sobre as contribuições do brincar a partir dos elementos naturais na Educação Infantil considerando sua relevância na constituição do conhecimento e do desenvolvimento humano neste primeiro período da vida. Palavras-chave: racionalidade; desenvolvimento do ser humano; Pedagogia Waldorf; Educação Infantil. ABSTRACT Bearing in mind the paradigm of valuing rationality over conventionalized school education. This research aimed to present the main conceptions of human development through Anthroposophy and Waldorf Pedagogy using the basic assumptions of Rudolf Steiner's thoughts who considered development from body, soul and spirit. The current work was started from the analysis of conjuncture to identify the historical aspects that explain the origins of rationalist thoughts and their development from classical thoughts of greek scholasticism in 16th century through cartesian thoughts and their influence on the constitution of opposition between society and nature from Scientific Revolution. We emphasized on desires, feelings and thinkings as principles for human development in teaching practice in Waldorf Pedagogy. The desires in Early Childhood Education emphasized on walking, talking and thinking, which are the three main activities in the process of student child development. In contrast to rationalist paradigm, we highlighted the contributions of german romanticism from Schiller and Goethe on anthroposophical thoughts through the concept of Bildung in constitution and development of human being. As well as his reflections from phenomenology through a cosmovision is considered sensitive and supersensitive aspects in scientific research. Therefore, this study concluded some reflections on the contributions of playing is a natural elements in Early Childhood Education and its relevance on constitution of knowledge and human development in first period of life. Keywords: rationality; human development; Waldorf Pedagogy; Early Childhood Education. SUMÁRIO INTRODUÇÃO....................................................................................................................... 9 CAPÍTULO I – Da racionalidade para um pensar vivo ................................................... 15 1.1 O pensamento racionalista cartesiano: origens, concepções e desafios............................ 16 1.2 As contribuições do romantismo alemão e da fenomenologia de Goethe no pensamento antroposófico........................................................................................................................... 27 1.3 A educação estética e a questão pedagógica como questão social.................................... 36 CAPÍTULO II - Antroposofia e a Pedagogia Waldorf: concepções para o desenvolvimento do ser humano por meio da Educação .................................................. 43 2.1 Rudolf Steiner, Antroposofia e Educação ........................................................................ 44 2.2 A entidade humana: concepções do ser humano em sua totalidade.................................. 51 2.3 Do nascimento ao desenvolvimento da criança na Educação Infantil.............................. 62 CAPÍTULO III – Os pressupostos teóricos-metodológicos da Pedagogia Waldorf ....... 72 3.1 A Educação Infantil a partir da Pedagogia Waldorf.......................................................... 73 3.2 O desenvolvimento do pensar: representações e significados.......................................... 81 3.3 A natureza e o brincar: uma necessidade orgânica .......................................................... 88 CONSIDERAÇÕES FINAIS ...............................................................................................97 REFERÊNCIAS ...................................................................................................................100 9 INTRODUÇÃO Perante a diversidade de crises nos mais diversos campos da vida, a educação apresenta ser ainda nos dias de hoje uma trilha necessária para a consolidação do desenvolvimento humano, ao consideramos o bem viver e a relação do ser humano com a natureza. Todavia, ao analisarmos diferentes conflitos socioambientais do mundo atual, percebemos que velhos paradigmas no campo educacional não se sustentam mais, devido à ausência de respostas coerentes para contribuir na construção de uma outra humanidade. Tendo em consideração a necessidade de reflexão a respeito das problemáticas no espaço escolar, este trabalho visa discutir sobre o paradigma da valorização da razão, no que tange ao desenvolvimento do ser humano e da infância. Desta maneira, em contraposição às concepções racionalistas e empírico-analíticas, as quais pouco tem mobilizado para uma formação humana de modo integral, na construção do conhecimento de modo significativo, considerando o ser humano em sua completude, trazemos algumas reflexões sobre as contribuições do pensamento antroposófico de Rudolf Steiner e da Pedagogia Waldorf. O espaço escolar se destaca como o lugar no qual todo o indivíduo deve ser acolhido para desenvolver aspectos cognitivos, socioafetivos, culturais, físicos, entre outros, na constituição de saberes para interpretar e atuar no mundo. Todavia, ao considerarmos a estruturação de grande parte das escolas do Brasil, podemos inferir que esta concepção de educação até o presente se dedica em consolidar a prática educativa mediante a valorização da dimensão intelectiva, marginalizando outras dimensões do indivíduo, e a possibilidade de consolidar um desenvolvimento que integre a ética, a estética ou a espiritualidade como método no cotidiano da prática docente. Desta maneira, tais problemáticas, vivenciadas no ensino escolar convencionalizado1, são resultantes de um processo histórico, logo, neste estudo destacamos a influência do paradigma cartesiano racionalista originado no século XV, o qual afastou a possibilidade de desenvolvimento e compreensão do ser humano de modo integrado, ou seja, considerando: 1 O termo ensino escolar convencionalizado se refere a uma concepção de educação, também denominada “humanista” tradicional, que encara o ser humano constituído por uma essência imutável e que estaria na base dos métodos tradicionais de ensino. Considerando a escola como “redentora da humanidade”, essa concepção “está aí e constitui o padrão dominante nas amplas redes escolares oficiais” e “corresponde à escola convencional.” (SAVIANI, 1980, p. 15). Compreendemos neste estudo que o ensino escolar convencional vincula-se a um modelo de ensino que não possibilita o desenvolvimento do ser humano tendo em vista a liberdade na corporalidade, o aprimoramento das dimensões socioafetivas e intelectivas. Além disso, observamos que esta abordagem institui a escolarização dos sujeitos, mediante o discurso racional científico, caracterizando a educação “como um produto, já que os modelos a serem alcançados estão pré-estabelecidos, daí a ausência de ênfase no processo.” (MIZUKAMI, 1986, p. 11). 10 corpo, alma e espírito. Mediante a isto, pressupomos as contribuições da Antroposofia e da Pedagogia Waldorf no fortalecimento de práticas pedagógicas que auxiliam o desenvolvimento do ser humano, de modo integral, ou seja, “[...] a captar o ser humano em seu todo, conforme sua essência corpórea, anímica e espiritual” (STEINER, 2013a, p. 31). A realização desta pesquisa, visa responder a seguinte problemática: Por que a valorização exacerbada da dimensão intelectiva do ser humano no ensino escolar convencionalizado configura-se como um equívoco epistêmico para a Antroposofia e na Pedagogia Waldorf? Deste modo, em oposição à valorização de uma epistemologia de base racionalista na constituição de saberes e do conhecimento, a ciência Antroposófica, desenvolvida por Rudolf Steiner no fim do século XIX, ocorreu a partir das bases teóricas e metodológicas da fenomenologia de Johann Wolfgang von Goethe, o qual teve como objetivo compreender os fenômenos e dinâmicas da natureza, tendo em vista a sua dimensão suprassensível, bem como o desenvolvimento do ser humano. Além de Goethe, para desenvolver a Antroposofia, Steiner considerou a filosofia estética proposta por Friedrich Schiller. Já naquele período, Steiner discutia sobre as contribuições de Goethe e Schiller por meio da educação estética2, pois ele observava as mudanças da sociedade com o advento da urbanização, o distanciamento do ser humano em relação à natureza e transformações socioculturais. A proposta educativa desenvolvida por Rudolf Steiner por meio da Pedagogia Waldorf, pressupõe a educação para a liberdade, por meio da compreensão de uma consciência perante a vida comunitária e planetária. Todavia, esta liberdade e emancipação da vida não é compreendida como um laissez-faire, muito pelo contrário, esta liberdade denota a superação de determinismos incutidos pela modernidade neste desligamento “natural” da natureza humana, sejam eles de ordem social, cultural, econômica, entre outros, pautados pelo modelo econômico produtivista e desenvolvimentista. Para colocar em relevo a problemática em questão, ou seja, tanto este distanciamento e oposição do ser humano com relação à natureza, como também da valorização da dimensão intelectiva na escola, faz-se necessário que retomemos alguns fatos históricos. A respeito da origem da escola, na Grécia e na Roma antiga, a escola era considerada um espaço de privilégio e prestígio social para a elite militar e aristocrática. Na obra A cultura atual e a Educação Waldorf, Rudolf Steiner, aborda a evolução do pensamento da escola ideal, a qual teve início na Grécia. Para ele os gregos viam no ginasta o ideal de educação, ou 2 Na Pedagogia Waldorf, conforme Bach (2007), a educação estética também é compreendida como educar por meio do sentimento. 11 seja, “o ginasta, que consegue atuar sobre o organismo humano com base na atuação e no domínio divino no mundo e no Cosmo [...]” (STEINER, 2014, p. 37). Logo, segundo o autor, este desenvolvimento do corpo humano deveria ser tão intenso e harmônico, em que o mesmo pudesse expressar a revelação de uma beleza divina por meio do corpo. Com o passar do tempo este ideal é transferido para a cultura romana, e posteriormente para a Idade Média, pois a figura do orador, sujeito portador de conhecimento, baseado em uma formação espiritual intelectualista, passa a ser o ideal mais nobre de educação. Já no século XIX o ideal de educação passa a ser visto por meio da figura do doutor, ou seja, “assim, de certo modo nós vemos a educação progredir de uma educação corpóreo-ginástica, passando por uma educação anímico-retórica, para chegar a uma educação que forma doutores” (p. 37). A partir da urbanização no início do século XX e o desenvolvimento industrial, em uma análise de conjuntura, coloca-se a necessidade de ampliar o conhecimento para a classe operária. Entretanto, o conhecimento que se desejava democratizar, não passou de uma estratégia de dominação política, econômica e cultural sobre o conhecimento produzido no espaço escolar por meio do Estado, a qual vigora ainda na atualidade. Logo, podemos inferir que a hegemonização do conhecimento realizado de modo agrupado e transferido de modo comum, desconsiderando as individualidades e o desenvolvimento de potencialidades dos sujeitos no espaço escolar, não consolida uma formação em prol de uma humanização ou uma educação que possibilite o tão almejado desenvolvimento integral. Desde a sua origem a escola tem sofrido tentativas de governo de sua dimensão democrática. Nesta perspectiva da escola como instituição em prol do desenvolvimento humano, segundo Masschelein e Simons (2013), podemos identificar algumas problemáticas na atualidade que impossibilitam este desenvolvimento, entre elas: o esvaziamento da escola como lócus da criação de saberes para a vida, ou seja, considerando identidades individuais e sociais, tendo em vista a ênfase do currículo escolar como instrumento de poder a favor de políticas neoliberais, atreladas ao controle social, cultural, à empregabilidade, ou até mesmo à tecnologização, na busca em atingir metas por excelência de resultados. Com base nesta concepção da escola como instituição que estabelece parâmetros normativos para garantir o controle sobre a sociedade, do mesmo modo, conforme Masschelein e Simons (2013), esta governabilidade é exercida sobre a prática docente. Segundo estes autores, a profissionalização é o modo de controlar o professor (a), pois, seus conhecimentos, habilidades e competências são substituídos por competências que correspondam às necessidades do mercado educacional, de modo burocrático e coercivo, 12 através da cobrança da eficácia em resultados, afetando a reflexão sobre a prática docente considerando as reais necessidades fundamentais para o desenvolvimento do ser humano na sociedade atual. É importante ressaltar que não há neste trabalho a intenção de desconsiderar a relevância da democratização do acesso da escola pública brasileira, tendo em vista o processo de colonização, o qual se desenvolveu e se desenvolve no país por séculos. Entretanto, enquanto local obrigatório de passagem para o desenvolvimento do ser humano, ao considerarmos os atuais desafios e problemáticas do mundo contemporâneo, nos mais diversos âmbitos: socioambiental, cultural, econômico, político, entre outros, o ensino escolar convencionalizado tem demonstrado pouca aptidão para desenvolver soluções para tais problemáticas. Em contraposição às concepções pedagógicas racionalistas, a importância deste estudo se justifica a partir das contribuições da Antroposofia e da Pedagogia Waldorf, na compreensão sobre o ser humano, mediante uma cosmovisão que reconhece e valoriza o seu desenvolvimento e formação por meio do querer, do sentir e do pensar. Ademais, considera também as contribuições dos pressupostos metodológicos e investigativos desenvolvidos por Rudolf Steiner, tendo como premissa básica compreender o humano, levando em conta quatro dimensões: física, vital, astral e subjetiva. Desta maneira, considerando tais problemáticas, a seguinte pesquisa tem como objetivo geral pesquisar sobre as concepções e os fundamentos filosóficos explicitados na Antroposofia e na Pedagogia Waldorf na compreensão sobre o desenvolvimento do ser humano, com vistas a investigar como esta teoria filosófica compreende o desenvolvimento da criança na infância. Também serão pesquisados como objetivos específicos, analisar como Rudolf Steiner por meio da Antroposofia e da Pedagogia Waldorf compreende o desenvolvimento do ser humano a partir de processos mentais e psíquicos, considerando pressupostos teóricos e metodológicos. Os objetivos previstos serão assegurados a partir do método de pesquisa qualitativo, através da revisão bibliográfica sobre as temáticas abordadas na pesquisa. A Pedagogia Waldorf surge por meio da Antroposofia, esta por sua vez é considerada como um sistema filosófico que objetiva compreender a inter-relação dos fenômenos naturais e espirituais com o desenvolvimento do ser humano, conforme ressalta Romanelli: configura-se como uma resposta para questões sobre o elo entre ciência e religião e posicionamento político-social, por ser uma cosmovisão que une a 13 visão científica à espiritual, abrangendo os mais diversos campos de atuação humana, proporcionando um desenvolvimento integral da individualidade humana (ROMANELLI, 2016, p. 178). Na Pedagogia Waldorf, a práxis educativa tem como premissa a tentativa de superação de oposições, tanto no que se refere à oposição ser humano versus natureza, como também razão e sensibilidade, ou mente e espírito, entre outras. Segundo Bach (2019a), a educação realizada tendo em vista a fenomenologia de Goethe, possui como referência a ideia de Bildung, a qual se configura como um dos modos para ultrapassar dicotomias ou oposições historicamente estabelecidas. Logo, considerando esta ideia, para que a educação consiga impulsionar a formação e o desenvolvimento do ser humano, são necessários três fundamentos: o conhecimento epistêmico, a estética e a ética. A educação em Steiner como um processo que instaura um exercício de superação da separação entre o eu e o mundo, entre espírito e natureza, não só é uma transformação da relação do sujeito com seu meio ambiente, mas também consigo mesmo e com os outros (sociedade) (BACH, 2019a, p. 17). Estes dualismos e oposições aparecerão ao longo da história a partir de um determinado tipo de racionalismo científico mediante diferentes pensadores, entre eles, o pensamento do francês René Descartes no século XVI. Dois séculos depois, em oposição ao cientificismo, ao pensamento cartesiano e ao empirismo analítico como métodos de pesquisa soberanos neste período, surge a fenomenologia de Goethe. Nas antigas civilizações, tais como os egípcios ou os povos originários nas mais diversas áreas, oriental ou ocidental do planeta, a compreensão sobre o mundo ocorria por meio de uma cosmovisão, em que a estética e a mitologia se integravam na esfera da vida, em busca de explicar fenômenos da natureza, como eles funcionavam, assim como a respeito do próprio desenvolvimento do ser humano. Logo, dentro da cultura destes povos a estética por meio da arte no cotidiano, era o elemento organizador da vida, assim como, os princípios metafísicos, eram também considerados como parte da vida viva. Em uma perspectiva intercultural, a partir de Keim (2015), podemos inferir que a Antroposofia se aproxima dos saberes desenvolvidos pelos povos originários das Américas e do continente africano, pois há pontos de encontro da cosmovisão destes povos com os fundamentos filosóficos da Antroposofia no que diz respeito à compreensão de mundo, incorporando as dimensões materiais e espirituais, transcendendo a epistemologia como método científico predominante na modernidade. É necessário ressaltar que a cosmovisão 14 desenvolvida pela Antroposofia, surge como proposta para desenvolver soluções para problemas socias. Segundo Keim, a cosmovisão é caracterizada como: um processo construído junto aos integrantes de uma comunidade humana como registro de conhecimentos acumulados no tempo e no espaço, incorporados a partir das formas de enfrentamento e de interação, próprias das interações vitais, com base na ancestralidade. Assim, a cosmovisão se manifesta como singularidade e particularidade de pensamento e de ação dos integrantes de certa comunidade, constituindo seu universo imaterial e cultural ao se manifestar como identidade da coletividade (KEIM, 2015, p. 90). Na Idade Medieval, a ciência procurava explicar os acontecimentos da natureza de modo dedutivo, ou seja, “[...] com base numa força transcendental que paira numa dimensão supra terrena” (BACH, 2019a, p. 23). Logo, para este autor os saberes científicos no período de transição do período medieval para o moderno, ocorrem “[...] justamente com a aplicação do raciocínio empírico-analítico para a compreensão das informações obtidas através da observação sensorial” (p. 23). Deste modo, já na Idade Moderna, o discurso científico é mobilizado pelo empirismo tendo em vista a ênfase do objeto, e o racionalismo, considerando a ênfase do sujeito. Nos séculos XVIII e XIX, os avanços na Ciência Moderna não deram importância para as problemáticas socioambientais que avançavam para o Ocidente. A experimentação e o empirismo contribuíram na superação da relação entre sujeito e objeto, ou seja, na relação entre ser humano, como parte integradora da natureza. Desta maneira, o corpo, a arte e a estética tornam-se alegorias para a apreensão do mundo. Entretanto, conforme a fenomenologia de Goethe, a constituição do conhecimento a partir da pesquisa deveria ocorrer na “[...] inter-relação entre sujeito e objeto como processo de construção do conhecimento” (BACH, 2019a, p. 26). Nesta dissertação, o primeiro capítulo foi realizado com destaque às obras de Mosé (2012), Capra (2012) e Bach (2019a). Nele são descritos e analisados os fatores que influenciaram na dicotomia entre sociedade e natureza, os fatores que influenciaram a valorização da razão no discurso científico como modo predominante de interpretação e representação do mundo. Além das contribuições do romantismo alemão, mediante a educação estética de Schiller, a fenomenologia de Goethe para a constituição do pensamento antroposófico, o qual em contraposição ao discurso racionalista, desenvolve a ideia da questão pedagógica como questão social. 15 No segundo capítulo são abordadas as concepções sobre o desenvolvimento do ser humano, tendo em consideração a sua descrição, bem como uma análise sobre o desenvolvimento da criança na Educação Infantil mediante os pressupostos de Rudolf Steiner, a partir da Antroposofia e da Pedagogia Waldorf. Nesta fase da pesquisa foram utilizadas principalmente as obras de Steiner (2004), (2012b), (2013a), (2013b), as obras de Lanz (1979) e (1997), Ignácio (2014), Lameirão (2015) e Patzlaff e Sassmannshausen (2007), Bach (2007), Bach (2020), Bertalot (2001), Romanelli (2015), entre outros. No terceiro capítulo são analisados e descritos os principais pressupostos teóricos e metodológicos da Pedagogia Waldorf na Educação Infantil, tendo em vista o desenvolvimento do pensar, as relações com a segunda dentição e suas interpretações, mediante a concepção antroposófica. Para compor a última parte deste trabalho destacamos também o brincar, como uma necessidade orgânica para o desenvolvimento do ser humano, ressaltando sua relação com a natureza, como parte estruturante para a constituição do conhecimento na primeira infância. Neste capítulo, são utilizados alguns trabalhos já citados no capítulo anterior, sobretudo, o trabalho realizado por Levy e Kishimoto (2019), para entender o surgimento da Educação Infantil na Pedagogia Waldorf, além de outros estudos no campo antroposófico tais como Bertalot (2001), Christopher (2008) e (2009), entre outros autores que dialogam com a educação steineriana, a partir de metodologias e dispositivos do brincar na Educação Infantil. Em princípio, nesta dissertação iremos explicitar sobre as origens do pensamento racionalista e sua influência sobre a Ciência Moderna, assim como as consequências do pensamento cartesiano-newtoniano na constituição de dualismos sobre o pensamento ocidental, e as repercussões do ensino escolar convencionalizado, perante o desafio de uma concepção pedagógica e científica que considere aspectos metafísicos, estéticos e éticos. Capítulo I – Da racionalidade para um pensar vivo Voltemos aos antigos sistemas de educação: eles se originaram, em toda parte, da cultura humana geral [...] Eu gostaria muito de chamar a cada dia a Antroposofia de maneira diferente, para que as pessoas não se prendessem à palavra, traduzindo-a do grego e formando um juízo a partir disso. Tanto faz o nome que se dá ao que fazemos aqui. O importante é que isso que fazemos aqui queira sempre ir em direção à realidade sem perdê-la de vista; não queremos concretizar uma ideia sectária (STEINER, 2013a, p. 29-30). 16 Neste capítulo são apresentadas reflexões da influência do pensamento cartesiano sobre a Ciência Moderna, bem como, a constituição de dualismos sobre o pensamento ocidental, tais como, corpo e razão, matéria e espírito, entre outros. Estas dualidades por sua vez tiveram grande interferência sobre a constituição da prática docente, na concepção de ser humano e no ensino. Logo, a partir destas questões, são discutidas as contribuições da fenomenologia de Goethe, a educação estética a partir de Schiller, assim como a concepção de desenvolvimento humano por meio da ideia de Bildung e do pensamento de Rudolf Steiner na consolidação de uma concepção que integre as múltiplas dimensões do ser humano, na compreensão da questão pedagógica, sobretudo como uma questão social. 1.1 O pensamento racionalista cartesiano: origens, concepções e desafios Não podemos mais vivenciar o seu voo como o vivenciavam os nossos antepassados: como um desejo impossível. Pássaros deixaram de ser aqueles entes que habitam o espaço entre nós e o céu, para se transformarem em entes que ocupam o espaço entre os nossos automóveis e nossos aviões de passeio. De elo entre animal e anjo, passaram a objetos de estudo do comportamento em grupos. Se quisermos enquadrar a nossa vivência de pássaros na dos nossos antepassados, deveremos dizer que para nós todos os pássaros são o que para eles eram as galinhas: entes que voam, mas precariamente. Pois tal modificação da nossa atitude em relação aos pássaros e ao voo (provocada pela aviação e astronáutica), tem efeito significativo sobre a nossa visão de mundo. Perdemos uma das dimensões do tradicional ideal da “liberdade”, e perdemos o aspecto concreto da tradicional visão do “sublime”’ (FLUSSER, 1979, p. 27). A mitologia grega foi uma dentre outras mitologias que buscou formas de interpretar o mundo. Mas é somente a partir da poesia de Hesíodo, em sua obra Teogonia, que ocorre o surgimento do pensamento abstrato, sem a personificação da natureza. Segundo Mosé (2012, p. 60), “o pensamento mítico grego, com suas complexas intrigas, com suas guerras e olimpíadas, possibilitou aos homens a constituição de um espaço mental mais amplo. É neste espaço complexo que a filosofia nascerá”. Nas epopeias gregas, o mundo seria um lugar habitado tanto por uma força divina e cósmica, quanto pelos seres humanos, em que a própria natureza das coisas se constitui por meio de um caráter divino. Ou seja, “do mesmo modo, não há deus criador, o mundo nunca foi criado, ele sempre existiu, deuses e homens, pedras, peixes, mares são diferenciações deste mundo hierarquizado, múltiplo, desde sempre” (MOSÉ, 2012, p. 62). A partir desta afirmação 17 podemos dizer que para os gregos tudo que existe no mundo é deus: “[...] que faz com que o mundo seja ordenado, pleno de sentido e beleza” (p. 62). A estética e a arte foram essenciais na cultura grega na tentativa de harmonização do sofrimento proveniente da existência humana, ou seja, a cultura grega divinizou o mundo por meio de imagens. Assim como em civilizações mais antigas, como por exemplo, os povos da China, ou do Egito, a estética e a beleza seria o elemento ordenador da cultura grega. A primeira grande ordem que os gregos criaram e seguiram, portanto, fundada na mitologia e na arte, não era uma ordem racional, mas estética. A beleza possibilita um tipo de ordenação, de medida, e foi por meio desta medida que os gregos ordenaram sua cultura. (MOSÉ, 2012, p. 74). Os modelos de subjetividade trazidos à tona a partir da epopeia e da tragédia grega possuem o conflito como questão central. A literatura épica de Homero traz a perspectiva da diferenciação do indivíduo perante o outro. A imagem do herói, da individualidade, da subjetivação, do enfrentamento, da superação, entre outros, denotam o domínio do ser humano sobre a natureza, em sua busca de modos e ideais de vida. Esta concepção antropológica, é reforçada a partir do pensamento de Sócrates, o qual passa a rejeitar a arte a favor da valorização do pensamento lógico-racional do indivíduo. A imagem do herói nasce a partir do mundo exterior e passa a ser interpretada pelo teatro grego, em que “o herói deixa de se apresentar como modelo para se tornar um problema” (MOSÉ, 2012, p. 65). Sendo assim, a tragédia grega aborda o sofrimento como elemento integrador da vida, no qual, os deuses e a natureza impõem limites e cabe ao ser humano lutar para ser o sujeito autor de si, mesmo na superação de conflitos: “É na tragédia que surge pela primeira vez a vontade humana como princípio ativo, como ação” (p. 67). Logo, é na tragédia grega que esta vontade individual de superação da natureza é penalizada, afinal perder a noção do limite da fragilidade da existência humana torna-se um erro evidente. A contraposição do sujeito com outros seres humanos e consigo mesmo, segundo Taylor (2014, p. 101), esta dicotomia é resultado “[...] de um desenvolvimento inelutável, essencial para a plena realização do ser humano como agente racional e livre”. Desta maneira, esta reconciliação somente seria possível mediante a filosofia. Já a oposição entre razão e natureza pode ser considerada a partir da vontade. Ou seja, ao mesmo tempo que somos livres, movidos a partir da razão, há também a imposição por motivos externos, pois somos também agentes que compõe a natureza. 18 A razão ocidental a partir da filosofia grega se constitui no século V a.C., com o pensamento de Sócrates, Platão e Aristóteles. Se a partir da mitologia o mundo era explicado a partir do mito e das imagens, com a valorização da racionalidade, o mundo passa a ser explicado a partir do logos. “[...] Com o nascimento da filosofia, o homem começou a se colocar no mundo como força ativa, produtora de ordem criadora de sentido” (MOSÉ, 2012, p. 95). Ou seja, a razão ocidental se fundamenta em busca de explicar o mundo a partir de uma verdade universal. Todavia, a incapacidade de resolução de conflitos por via do pensamento humano, fez com que os gregos, cultivassem a explicação sobre as coisas do mundo, e da vida a partir de um caráter metafísico: “[...] o homem constrói um espaço metafísico, ele forja um lugar onde a identidade e a verdade predominem” (MOSÉ, 2012, p. 96). Neste contexto, explicar o mundo mediante princípios metafísicos passa a ser um fundamento como princípio universal dentro da cultura ocidental. O dualismo é um componente que por si mesmo, tem como premissa básica a ideia de oposição. Para introduzir estas reflexões sobre o dualismo cartesiano-newtoniano e sua influência sobre a Educação, iremos abordar uma das principais dualidades na escolástica grega, ou seja, a divergência entre o pensamento platônico e aristotélico. A filosofia, que nasce no final do século V a.C., se constituirá em torno desta ideia: não são a intuição, a opinião, as sensações, o corpo, os afetos, que devem ser seguidos, mas o pensamento e a razão, por que somente eles podem nos conduzir ao bem e à vontade (MOSÉ, 2012, p. 102). Para Platão, o conhecimento sobre o mundo ocorreria somente a partir da razão e o mundo das ideias seria a forma de conseguir ter acesso a verdade. Ele não admitia a construção de saberes a partir dos sentidos. Entretanto, em contraposição às ideias platônicas, Aristóteles compreende que o mundo sensível possui uma causa final, a qual é mediada por uma razão de ordem metafísica, no movimento de transformação do mundo material. Para Aristóteles, o mundo e o ser humano surgiram de modo organizado por meio de uma racionalidade cósmica. Segundo ele, o pensamento se constitui de uma estreita relação com o divino, neste contexto, a compreensão da essência do mundo sensível mediante aspectos metafísicos, provoca a ruptura com o pensamento platônico, o qual compreendia o mundo como uma representação de um modelo ideal. A partir do pensamento de Aristóteles ainda havia a metafísica como componente fundamental para explicar o mundo. Entretanto, a partir do século XVI, a Ciência Moderna 19 adota o modelo mecanicista, em que a teoria e a técnica são desenvolvidas para explicar o funcionamento sobre o mundo, sob a valorização da razão (sujeito) e dominação da natureza (objeto): O racionalismo reforçou a passagem de uma scientia contemplativa, da Antiguidade e da Idade Média, para uma scientia activa, quando o controle, a manipulação e a exploração sobrepujam o ser humano como contemplador da natureza. A ciência, no início da modernidade, geometriza o espaço com a consequente homogeneização, no lugar de concepção aristotélica que privilegiava os diferentes topos, a qualidade do espaço, sua heterogeneidade. (BACH, 2019a, p. 27-28). Nesta concepção racionalista é possível identificar muitas ideias de oposição, entre elas: espírito e matéria, razão e emoção, mente e corpo, assim como, homem e natureza, entre outras. Para realizar uma breve abordagem destas ideias de oposição, iremos utilizar como base filosófica a obra O ponto de mutação de Fritjof Capra (2012)3, com destaque para as discussões dos capítulos dois e três. Conforme Tagliani (2021), a escrita do livro O ponto de mutação ocorreu no período de 1980, o qual foi marcado por intensas mudanças ambientais no planeta, tais como, escassez de água, doenças, degradação ambiental, entre outras. Além de inúmeras crises no campo socioeconômico, tais como, energética, alimentar, política, econômica, além do desemprego, entre outros. Logo, Capra (2012) considerou que viveríamos uma crise cultural multifacetada a qual, como podemos perceber, continua a se agravar nos últimos quarenta anos. As crises socioambientais nos últimos dois anos (2020-2021) nos mostram novamente, talvez a possibilidade de um novo movimento da humanidade, ou seja, tendo em vista os problemas, vivemos também a evidente necessidade de transformação nas estruturas sociais e de padrões de comportamento, para que possamos dar continuação ao processo criativo por mais tempo. Portanto, eis o ponto de mutação! Caso contrário, assim como as antigas civilizações, a humanidade continuará a desintegrar-se. Segundo Capra (2012), todas as crises possuem como gênese a crise de percepção sobre a realidade. Esta crise de percepção sobre o mundo se inicia mediante a Revolução Científica a partir do século XVI e XVII, em que a sacralização da natureza, é soterrada pela concepção do mundo como máquina. Os teóricos Galileu Galilei e Nicolau Copérnico foram os grandes precursores da geometrização da natureza, ou seja, na constituição da linguagem 3 Originalmente publicada no início da década de oitenta, esta obra é dividida em quatro partes. Na primeira parte do livro são destacados os principais temas da obra. Já a segunda parte, tem por objetivo descrever o desenvolvimento histórico da visão cartesiana e a mudança de conceitos básicos na física moderna, a terceira parte, analisa a influência do pensamento cartesiano-newtoniano sobre diversas áreas do conhecimento e suas consequências. E por último, o autor destaca a emergência de uma visão sistêmica. 20 matemática como método soberano para a compreensão sobre o funcionamento do mundo e sobre os fenômenos da natureza. De acordo com Bach, a matemática como linguagem exclusiva para explicar a natureza provoca uma ruptura na compreensão da vida mediante uma cosmovisão, logo estes “são os primeiros passos para o desencantamento do mundo [Entzauberung der Welt] [...]” (2019a, p. 28). Na Revolução Científica, a dessacralização da natureza, ou seja, a renúncia da cosmovisão tornava-se necessária para a dominação da natureza. Portanto, em uma concepção utilitarista, houve a necessidade de marginalizar e expurgar valores sensitivos, éticos, estéticos ou espirituais do método científico para consolidar a concepção de que a natureza não mais deveria ser cultuada ou divinizada. A partir disso, a natureza passaria a ser mensurada e controlada por meio de aparatos cada vez mais tecnológicos. Neste âmbito, esta mudança de paradigma se deu por meio das contribuições do pensamento de René Descartes e Isaac Newton. De acordo com Tagliani (2021) foi justamente a exaustiva ênfase no método científico e no pensamento racional- analítico, que aprofundou atitudes extremamente antiecológicas. A história da humanidade é dividida em diferentes momentos, deste modo, estes estágios representam uma maneira dominante de pensar o mundo e a sociedade a partir de instituições políticas, sociais, entre outras. Ao analisarmos a concepção mecanicista de René Descartes, observa-se que o mesmo compreendia o mundo como uma máquina. Ele descrevia os fenômenos físicos, a partir da matemática, reduzindo a natureza viva em natureza quantificável, pois só assim era possível explicar a ciência de maneira eficaz e verdadeira. Dentre as grandes obras de René Descartes, podemos citar o seu livro Discurso sobre o método. Para formular as premissas desta obra, Descartes vai questionar a tradição filosófica que o antecedeu, a qual valorizava a empiria para apreender a realidade, ou seja, na utilização dos sentidos, para explicar a realidade. Desta maneira, ele desenvolve o cogito cartesiano - penso, logo existo - e a dúvida como pontos de partida para compreender o mundo. Portanto, para Descartes o conhecimento científico e o pensamento racional seriam os únicos modos para a constituição do conhecimento. Para Descartes, o corpo e a mente eram distintos e só eram compreendidos separadamente. Esta oposição influenciou profundamente o pensamento ocidental, “Descartes baseou toda a sua concepção da natureza nessa divisão fundamental entre dois domínios separados e independentes: o da mente, ou res cogitans, a “coisa pensante”, e o da matéria, ou res extensa, a “coisa extensa”’ (CAPRA, 2012, p. 55). 21 Neste contexto, também é necessário destacar o papel dos ideais e valores desenvolvidos no final do século XVII a partir do filósofo John Locke, os quais influenciaram fortemente o iluminismo, reforçando sobretudo a racionalidade sobre a economia e sobre a política: “as ideias de Locke tornaram-se a base para o sistema de valores do iluminismo e tiveram uma forte influência sobre o desenvolvimento do moderno pensamento econômico e político” (CAPRA, 2012, p. 64). O empirismo advindo das teorias de John Locke, propunha que o conhecimento era construído a partir das sensações e experiências diretas do sujeito com o objeto, ou a partir de reflexões de experiências diretas, vivenciadas anteriormente. Ou seja, nesta concepção, a experiência sensorial torna-se imprescindível para conhecer a realidade. Posteriormente, já no século XVIII, as ideias da Revolução Francesa trouxeram suporte para os processos do capitalismo industrial. Segundo Taylor (2014), as premissas máximas desta revolução: liberté, égalité, fraternité, enfraqueceram o despotismo, assim como os dogmas da igreja como verdades absolutas. Ou até mesmo a espiritualidade como atividade a ser desenvolvida na vida prática, para o desenvolvimento do homem virtuoso, tal qual enunciado por Aristóteles. Segundo Horkheimer (2002, p. 23) “os filósofos do Iluminismo atacaram a religião em nome da razão; e afinal o que eles mataram não foi a Igreja, mas a metafísica [...]”. A concepção iluminista trazia a possibilidade de realização de uma nova humanidade, em que o progresso e o conhecimento científico trariam a almejada felicidade entre todos, tendo em vista o bem viver. Todavia, após a Revolução Francesa, os desdobramentos do imperialismo europeu que se seguiram ao longo dos séculos XIX e XX, tomaram rumos distintos das premissas máximas da Revolução Francesa, em que o conhecimento científico ao invés de ser utilizado em benefício de um bem viver comunitário, transforma-se em instrumento de dominação ideológica e política. A partir do pensamento crítico de Horkheimer, tendo em consideração a concepção de uma razão instrumental, percebemos que este conhecimento proposto pelos ideais iluministas não consolidou profundas mudanças positivas para o bem comum para toda a humanidade, muito pelo contrário, com base neste autor, observamos o declínio da mesma, ao analisarmos as disputas políticas e econômicas no início do século XX, mesmo com o esplêndido avanço no campo das ciências. A modernidade trouxe consigo a supervalorização do cientificismo e do intelectualismo, segundo Horkheimer em sua obra O eclipse da razão, este racionalismo se 22 refere a uma razão subjetiva, “isto é, de que servem ao interesse do sujeito quanto à autopreservação” (2002, p. 10). Além disso, este modo de compreender o mundo, instrumentaliza a razão no processo de agir e transformar o mundo, retirando as qualidades anímicas como parte da natureza do mundo. Portanto, torna-se necessário ressaltar que a partir do século XVIII, a compreensão do mundo mediante os valores ou princípios associados à metafísica, passam a ser desconsiderados ou vistos como superstição: “especulação é sinônimo de metafísica e metafísica é sinônimo de mitologia e superstição” (HORKHEIMER, 2002, p. 23). Logo, a razão subjetiva se traduz no discurso científico da ciência moderna e deixa de estabelecer uma relação objetiva com o mundo, ou seja, a partir da natureza do mesmo. De acordo com Mosé (2012, p. 129) podemos inferir que “a ideia de sujeito é uma ficção que oculta uma pluralidade de forças, de instintos, de sentidos”. Portanto, a razão subjetiva, se sobrepôs sobre a razão objetiva. Esta por sua vez, não se define a partir de princípios do indivíduo, mas a partir da realidade do mundo, inscrita na dinâmica da natureza e do cosmos, portanto, uma razão que surge como resultado das forças que constituem o mundo objetivo: Os grandes sistemas filosóficos, tais como os de Platão e Aristóteles, o escolasticismo, e o idealismo alemão, todos foram fundados sobre uma teoria objetiva da razão. Esses filósofos objetivavam desenvolver um sistema abrangente [...] A sua estrutura objetiva, e não apenas homem e os seus propósitos, era o que determinava a avaliação dos pensamentos e das ações individuais. Esse conceito de razão jamais excluiu a razão subjetiva, mas simplesmente considerou-a como a expressão parcial e limitada de uma racionalidade universal, da qual se derivavam os critérios de medida de todos os seres e coisas (HORKHEIMER, 2002, p. 10-11). Ao mesmo tempo em que se desenvolvia a Revolução Francesa, Friedrich Schiller e Johann Wolfgang von Goethe se destacavam a partir do movimento literário e filosófico do classicismo em Weimar na Alemanha. Segundo Mosé, o conceito de razão defendido por Schiller é resultado da interação de três esferas: estética, teórica e moral. É importante destacar que Schiller vive o contexto da Revolução Francesa, e tanto em sua perspectiva, quanto em Goethe, o senso estético é uma dimensão fundamental a ser desenvolvida no ser humano: “[...] somente pelo desenvolvimento do senso estético a humanidade pode alcançar seu pleno desenvolvimento. O homem só é plenamente homem quando dá vazão ao impulso lúdico, fonte do equilíbrio entre o racional e o sensível” (MOSÉ, 2012, p. 154). Portanto, apesar de trazer à tona valores que influenciaram a criação do Estado Moderno, a Revolução 23 Francesa trouxe também o intelectualismo excessivo, o qual não foi capaz de trazer a liberdade para o sujeito social. Assim como Aristóteles, Goethe compreendia a relevância da estética, a partir das vivências na constituição do conhecimento para o desenvolvimento do ser humano. Logo, os sentidos, compreendidos à luz da Antroposofia, compõem na natureza humana uma organização fundamental para a constituição do pensamento. Porém, a normatização da moral e de condutas a partir do Estado moderno, substitui a concepção de liberdade e da natureza. A concepção cartesiana do mundo e dos organismos vivos como máquinas, percorreu os séculos seguintes sobre o campo científico, em diversas áreas do conhecimento, tais como, na biologia, nos estudos e pesquisas sobre os organismos vivos, os quais são realizados mediante a fragmentação de funções e relações dos sistemas vivos. No capítulo três, ao se referir ao ser humano como máquina, Capra (2012) destaca o surgimento do microscópio no século XVII, e as contribuições da microbiologia em estudos e pesquisas, os quais foram fundamentais para entender a origem e o desenvolvimento da vida. Todavia, esta concepção fragmentada da realidade impossibilitava a compreensão do mundo de maneira sistêmica. Isaac Newton deu continuidade ao pensamento de Descartes. A física newtoniana do século XVII e XVIII constituiu alicerces sólidos para a ciência até o século XX, dando continuidade à “[...] formulação matemática da concepção mecanicista da natureza [...]” (CAPRA, 2012, p. 58). A teoria da gravidade de Newton foi apresentada em detalhes na obra Princípios matemáticos da filosofia natural. Segundo Capra “o modelo newtoniano de matéria era atomístico, mas diferia da moderna noção de átomos pelo fato de as partículas newtonianas serem todas da mesma substância material.” (2012, p. 60). Deste modo, para ele a estrutura atômica seria mais ou menos compacta. Todavia, com a descoberta da eletricidade no século XIX, o conceito de força descrito pelo modelo mecanicista não conseguia mais dar conta de expressar as eletrodinâmicas e a concepção eletromagnética. Foram Faraday e Maxwell, quem deram continuidade aos estudos da física e desenvolveram a teoria da eletrodinâmica, na compreensão de que “[...] a luz é, de fato, um campo eletromagnético rapidamente alternante, que viaja através do espaço em forma de ondas” (CAPRA, 2012, p. 65). Com base nesta substituição do conceito de força pelo conceito campo de força, Maxwell tentou explicar este conceito a partir de modelos mecânicos, mas não conseguiu explicar totalmente. Desta maneira, no início do século XX Albert Einstein reconhece que “[...] os campos eletromagnéticos são entidades físicas 24 independentes que podem viajar através do espaço vazio e não podem ser explicados mecanicamente” (p. 65). Além dos fenômenos eletromagnéticos, as ideias evolucionistas 4 no campo da geologia e em outras áreas no campo científico, como por exemplo, na filosofia, ocupavam cada vez mais espaço entre o final do século XIX e início do século XX. Neste contexto, os pressupostos teóricos da nova física se sobressaem no campo científico, para explicar as dinâmicas da natureza. Tendo em vista tais pressupostos, a concepção do mundo como máquina é substituída pela concepção do mundo enquanto um sistema em evolução e em constante transformação. A partir de Capra (2012, p. 67) “a descoberta da evolução em biologia forçou os cientistas a abandonarem a concepção cartesiana segundo a qual o mundo era uma máquina inteiramente construída pelas mãos do criador”. Ao analisarmos a natureza humana, é importante destacar que Rudolf Steiner não nega a teoria evolucionista darwinista, mas para ele esta teoria é insuficiente para explicar o desenvolvimento humano. Segundo Bach (2007, p. 80) “na teoria antroposófica, o reino humano é um quarto reino, além do mineral, vegetal e animal. Ou seja, o homem não é considerado só como um animal no último estágio da evolução dos mamíferos”. Sobre a teoria da evolução, este autor destaca que “a teoria antropológica de Steiner é uma divergência convergente, principia-se na unidade, direciona-se a um auge da multiplicidade e retorna à unidade novamente (COLOMER, 1967, p. 73 apud BACH, 2007, p. 85). Logo, a evolução como processo é compreendida considerando a divergência como parte na constituição da unidade. Na obra intitulada A filosofia da liberdade, Rudolf Steiner (2000, p. 34) considera que o mundo, como um fenômeno, nos é apresentado e compreendido através de uma dualidade, ou seja, a partir da percepção e por meio do conceito, logo, para o autor “o dualismo resulta de uma visão errônea do que chamamos de ato cognitivo. Ele divide a realidade em dois domínios opostos, com regularidades próprias e distintas e sem mediação”. Isto posto, nesta obra o autor nos desafia a compreender a respeito do ato cognitivo, e possíveis limites na compreensão sobre a realidade. De modo contrário ao dualismo, é justamente no ato cognitivo, o meio pelo qual é possível unificar conceito e percepção, isto significa que “uma filosofia 4 A teoria evolucionista se expandiu na Ciência Moderna na biologia, por meio de Charles Darwin com a obra A origem das espécies (1859). Todavia, em oposição ao evolucionismo, surge o conceito de entropia introduzido pelo teórico Rudolf Clausius e a ideia do Universo em expansão, a partir da teoria do caos. 25 que parte desse princípio pode ser considerada uma filosofia monística ou simplesmente monismo. Ao monismo se contrapõe a teoria dos dois mundos, ou seja, o dualismo” (p. 34). Nesta perspectiva, Steiner considera que não se trata necessariamente que existem limites no ato cognitivo para compreender determinados fenômenos, mas que na verdade o que pode acontecer é que “em determinado momento não consigamos esclarecer e entender este ou aquele fenômeno” (STEINER, 2000, p. 35). Portanto estes limites na verdade seriam transitórios, pois com o passar do tempo, os mesmos “serão superados com o progresso da percepção e do pensar” (p. 35). Podemos citar como exemplo as descobertas da física moderna a partir do pensamento de Albert Einstein, por meio da teoria da relatividade, sobre os conceitos tempo, espaço e a própria noção sobre materialidade das coisas, as quais foram ressignificados. A realização de experimentos no campo da física, ilustram a mudança de percepção e a ideia que se tinha até então sobre a realidade da matéria, a qual perante a constatação das diferentes manifestações dos elétrons, ora se manifestando como onda e ora em partícula, mediante a observação. Tais constatações reforçaram a limitada visão cartesiana e alguns conceitos clássicos, ou seja: “a resolução do paradoxo partícula / onda forçou os físicos a aceitarem um aspecto da realidade que contestava o próprio fundamento da visão mecanicista de mundo – o conceito de realidade da matéria” (CAPRA, 2012, p. 74). A partir da teoria da relatividade, a matéria passa a ser compreendida mediante um modelo de energia constituído por uma estrutura atômica que se manifesta de um modo totalmente diverso do modo cartesiano, ao considerarmos que é através do movimento destas micropartículas (elétrons, nêutrons e prótons), que a matéria obtém o seu estado sólido. Sendo assim, a estrutura nuclear descoberta a partir da teoria quântica revela que a “materialidade” constituinte da realidade, não se apresenta de modo estático: Macroscopicamente, os objetos materiais que nos cercam podem parecer passivos e inertes; porém, quando ampliamos um pedaço “morto” de pedra ou metal, podemos ver que nele há grande atividade. Quanto mais de perto o observamos, mais vivo se apresenta (CAPRA, 2012, p. 82-83). A nova física do século XX se desenvolvia em meio a visão de mundo cartesiana, bem como aos princípios newtonianos da física, “[...] e ainda hoje muitos cientistas aderem ao paradigma mecanicista, embora os próprios físicos o tenham superado” (CAPRA 2012, p. 95). Todavia, Capra destaca que isso não significa que a física newtoniana estava errada, e nem 26 que física quântica estava certa, mas que na verdade as teorias científicas criam modelos na tentativa de explicar o mundo, e ambas são respostas provisórias para descreverem os fenômenos naturais. Assim como a medicina e a biologia, a psicologia se desenvolve a partir do paradigma cartesiano, o qual distinguiu o corpo humano da mente humana. Porém, os elaborados modelos sobre a consciência introduzidos pelas tradições místicas orientais, tais como a cultura iogue, o budismo, o taoísmo, entre outros, introduziram técnicas e métodos, na possibilidade em ampliar a consciência na resolução de conflitos subjetivos. Diante disso, os surpreendentes resultados destas tradições, vêm cada vez mais despertando o interesse dos psicoterapeutas do ocidente. Em contraposição à visão mecanicista, a concepção sistêmica compreende o mundo mediante a totalidade, ou seja, “os sistemas são totalidades integradas, cujas propriedades não podem ser reduzidas às de unidades menores” (CAPRA, 2012, p. 115). Logo, nesta perspectiva, os organismos vivos ou até mesmo os sistemas sociais, são compreendidos de modo interligado e interdependente. Para o autor, a nova teoria dos sistemas não aceita nem a concepção do darwinismo e nem a concepção religiosa. “Embora não negue a espiritualidade e possa até ser usada para formular o conceito de uma deidade” (2012, p. 282). A perspectiva cartesiana, explica o desenvolvimento do ser humano mediante a valorização da racionalidade e na fragmentação do indivíduo, tais como: corpo e mente, razão e alma, entre outros. Conforme Capra, para Descartes a percepção do mundo a partir dos sentidos ocorreria do mesmo modo para os sujeitos, ou seja, a interação do mundo exterior com o mundo interior do indivíduo ocorreria sempre do mesmo modo: “na concepção cartesiana tradicional supunha-se que todo indivíduo tinha basicamente o mesmo aparelho biológico e que cada um de nós, portanto, tinha acesso à mesma ‘tela’ de percepção sensorial” (CAPRA, 2012, p. 288). Todavia, já na década de 80, estudos neurofisiológicos apontavam que a percepção dos órgãos sensoriais ocorre de modo singular pelo indivíduo, ou seja, “estes estudos evidenciam que os aspectos fisiológicos da percepção não podem ser separados dos aspectos psicológicos da interpretação” (CAPRA, 2012, p. 288). A partir desta constatação da Ciência Moderna, podemos inferir que cada sujeito percebe o mundo de um determinado modo, pois neste processo de percepção e imaginação, a mente atua como aliada na percepção. Logo, considerando os estudos acima explicitados, e os estudos de Rudolf Steiner a partir da fenomenologia de Goethe, o cogito de Descartes ‘Penso, logo existo’ não traduz o 27 processo da formação do pensar no ser humano, pois a razão é uma das dimensões do indivíduo, as quais estão relacionadas com o corpo através dos sentidos, além da dimensão suprassensível, considerando a alma e o espírito na constituição do conhecimento. Para refletir e ampliar essa discussão, em seguida será abordada a influência do pensamento de Goethe sobre a teoria desenvolvida por Rudolf Steiner. 1.2 As contribuições do romantismo alemão e da fenomenologia de Goethe para o pensamento antroposófico A necessidade intelectiva do homem Sócrates gerou o homem teórico que, impulsionado pela mecânica newtoniana e a física galileana, mirou o mundo não mais com a ótica da vida, mas com o inquisidor olhar analítico, com o intuito de atribuir valor, medir, manipular, gerando aquela patológica necessidade do distanciamento epistemológico do próprio mundo (CRUZ, 2013, p. 122). Para compreender a respeito do desenvolvimento humano, e sua relação com a educação estética, o conceito de Bildung, e a fenomenologia de Goethe na constituição do conhecimento, temos a seguinte pergunta: o que é o ser humano? Esta pergunta sempre esteve presente no campo da filosofia. Para iniciarmos esta discussão, é preciso enunciar que a filosofia antroposófica de Rudolf Steiner, é uma filosofia prática, logo se detém na preocupação do aperfeiçoamento do ser humano em seu desenvolvimento durante a vida, ou seja, de vislumbrar como é possível que o ser humano em seu caminho de vida, harmonize as suas naturezas racional e natural na constituição do conhecimento. A oposição entre o discurso científico e o pensamento religioso se intensificou no século XIX. Neste período, a ciência ganhava cada vez mais notoriedade para explicar os fenômenos da natureza e o mundo. Todavia, já no final do século XVIII, em contraposição ao racionalismo cartesiano-newtoniano, a poética do pensamento de Aristóteles é retomada por meio das obras de alguns autores no Romantismo alemão, entre estes, podemos destacar Goethe e Schiller. O conceito de educação denominado Bildung se disseminou na Alemanha no fim do século XVIII, por meio da influência das ideias e valores iluministas, bem como a partir do movimento intitulado Sturm und Drang, (Tempestade e Ímpeto), do Romantismo alemão, com destaque para Goethe e Schiller, entre outros representantes. Neste contexto, os representantes deste movimento literário buscavam por meio de suas obras denunciar a 28 escassa formação cultural e o limitado acesso à educação da classe trabalhadora. Conforme esta concepção, o desenvolvimento e formação integral do indivíduo abarca o desenvolvimento artístico, espiritual e intelectual, logo, a ideia de Bildung “mais do que uma simples “aquisição” de conhecimento ou o desenvolvimento de talentos, a educação enquanto Bildung deve ser entendida como um processo de individualização pelo qual o sujeito torna-se ele mesmo [...]” (MÜHL; MARANGON, 2019, p. 68). a Bildung refere-se ao processo de autodesenvolvimento, de autoformação dos indivíduos no que diz respeito à sua educação. O que este termo sublinhava era a importância incontornável da dimensão ativa da individualidade no processo de formação cultural (BRITTO, 2012, p. 222). Conforme Cruz (2013, p. 27) o termo Bildung se origina da Idade Média, o qual foi traduzido na cultura alemã e difundido como ideal educativo e formativo com grande intensidade no período entre o século XVIII e XIX. Esta terminologia, tem como premissa a responsabilidade do ser humano em cultivar-se a si mesmo, ou seja, “tarefa apresentada como fim de qualquer processo formativo que se pretendesse contundente tendo em vista a liberdade”. Todavia, devido a lógica de um projeto homogeneizador de sociedade na modernidade, o mesmo aniquilaria a pluralidade da identidade, ou a possibilidade da autocriação e do cultivo de si em prol de padrões pré-estabelecidos. Para consolidar o corpo teórico da ciência antroposófica, Rudolf Steiner se utilizou das ideias de Goethe, assim como das reflexões filosóficas de Friedrich Schiller. Com base nas discussões de Süssekind (2011, p. 11) a educação estética proposta por Schiller possui em sua base teórica as contribuições de Kant5, segundo este autor: “seu ponto de partida é claramente delimitado: a filosofia crítica kantiana”. Ou seja, nas reflexões de Schiller sobre o que é o ser humano, em sua obra A educação estética do homem6, de acordo com este autor “é evidente que a preocupação central, nas cartas sobre educação estética do homem, estava ligada à antropologia filosófica no sentido da investigação kantiana sobre o homem” (p. 22). Logo, o ser humano é definido como um ser desejante, um ser que quer: 5Immanuel Kant foi o precursor da chamada “filosofia crítica”. Suas reflexões constituem um divisor de águas dentro da filosofia moderna, em virtude da proposta de superação da dicotomia entre o empirismo e o racionalismo, até então vigente durante XVIII. De acordo com Lulli (2017) “Pode-se dizer que Schiller encontrou em Kant a possibilidade de fundamentar suas reflexões filosóficas acerca da arte, em especial da arte trágica, utilizando-se do aparato crítico como respaldo para seu conhecimento prático enquanto dramaturgo e poeta” (p. 3). 6 Schiller escreveu a obra intitulada A educação estética do homem, em que por meio de cartas descreve as suas concepções sobre a estética, como modo estruturador da vida. 29 A definição como o “ser que quer”, na qual a vontade é tomada como fator determinante, conserva a duplicidade da natureza humana pensada na filosofia crítica kantiana. Pois é contra as imposições da natureza que o homem precisa, por meio da cultura (física e depois moral), afirmar o seu próprio conceito e escapar do risco de uma anulação pela sujeição à natureza. Assim, a oposição entre natureza e cultura permanece como elemento fundamental do conceito. (SÜSSEKIND, 2011, p. 22). Ao compreendermos que o ser humano se mobiliza no mundo por meio da vontade, podemos compreender que além da vontade, o sofrimento é o modo pelo qual o ser humano conseguirá a possibilidade de superar as forças da natureza humana inerentes da vida, tais como a tragédia da morte, da dor, entre outros percalços. Esta superação se dará somente se houver a disposição do sujeito, no aprimoramento de suas naturezas a partir da estética, pois é esta dimensão que constituirá a liberdade. Todavia, a tensão exercida pela natureza da vida sobre o ser humano ao longo do tempo, poderá ser superada parcialmente por meio da arte e da cultura moral (ética), pois “mesmo as experiências estéticas da natureza possuem ainda um grau de aprisionamento, portanto uma limitação na sua capacidade de afirmar o conceito do ser humano” (SÜSSEKIND, 2011, p. 15). Ou seja, é por meio do sentimento do belo que o ser humano alcança a liberdade: “o belo é apresentado como sentimento de prazer que vem de um juízo desinteressado, revelando um passo no sentido da libertação das forças da natureza” (SÜSSEKIND, 2011, p. 15). Todavia, a concepção schilleriana denota que a verdadeira ideia de liberdade está atrelada da junção do belo com o sublime: só quando o sublime se conjuga com o belo e a nossa receptividade relativamente a ambos teve igual formação é que somos perfeitos cidadãos da natureza, sem, por isso, sermos seus escravos e sem perdermos os nossos direitos de cidadãos no mundo inteligível (SCHILLER, 1995, p. 50 apud SÜSSEKIND 2011, p. 16). De acordo com Süssekind, (2011, p. 15) o sublime configura-se como “um princípio autônomo que independe de todas as emoções sensíveis, a capacidade de sentir o sublime revela a ideia de liberdade em sua intensidade máxima”. Porém, este autor destaca que o sofrimento está atrelado ao sublime, pois a tragédia compõe a natureza da vida nos processos de transformações ou tensões. Conforme foi destacado, a valorização da razão no século V a. C., a partir do pensamento platônico e socrático, afastou a estética e a arte como necessidades elementares para a vida, ou na marginalização de outras dimensões humanas, tais como a intuição e a 30 sensibilidade por exemplo. Esta valorização da razão como modo predominante de interpretar o mundo ressurge tanto no campo da filosofia, como também sobre o campo da arte na Idade Moderna. Para Schiller “a forma técnica” da exposição sistemática, necessária para tornar as ideias evidentes ao entendimento, oculta sua verdade ao sentimento” (SÜSSEKIND, 2011, p. 11). Ou seja, a valorização do intelecto por si só para compreender o mundo, inviabiliza a compreensão das coisas por meio do sentir. A teoria estética de Schiller, possui dois princípios, “o primeiro é o belo; o segundo, a articulação da beleza à experiência moral, objeto da “parte prática” do sistema kantiano” (p. 11). É necessário identificarmos que esta base filosófica se relaciona com o contexto histórico do século XVIII, assim como, devido a “uma avaliação do papel da arte para a cultura moderna” (p. 11). Na Alemanha o jovem Nietzsche interpretou que o conceito de Bildung “enquanto formação estética, significa viragem ético-estético-epistemológica” (CRUZ, 2013, p. 114). Desta maneira, na perspectiva nietzschiana a vida é justificada como um fenômeno estético, logo, fazer da vida uma obra de arte torna-se uma crítica ao projeto moderno, na desconstrução de uma cultura que reduz a existência e desumaniza a natureza humana, ou seja, “a arte surge neste contexto com a tarefa de conferir um sentido à vida, apresentando-nos o convite a continuarmos a viver” (p. 114). De acordo com Cruz (2013, p. 127), no período entre os séculos XVIII e XIX, “do ponto de vista da formação, o valor da Grécia para a Alemanha reside na possibilidade da constituição de um espírito alemão”. Para este autor, apesar das contribuições dos representantes do romantismo alemão, tais como Goethe e Schiller, os quais retomam em suas obras alguns ideais da arte grega, Nietzsche identificava uma decadência sobre a cultura alemã, a qual se desdobrará no processo formativo pedagógico, ou seja, “há no jovem Nietzsche, o forte sentimento de que toda a luta pelo desvelar da cultura grega como saída para o fortalecimento do espírito alemão passou por um significativo enfraquecimento” (p. 127). De modo adverso a perspectiva racionalista, Nietzsche interpretou que a verdadeira arte grega possui em sua gênese o sofrimento e a tragédia, logo, a arte é considerada como uma atividade metafísica da vida. Neste contexto, a atividade criativa nietzschiana é composta por duas qualidades opostas, o estado apolínio, o qual se relaciona por meio do sonho, da beleza, e o estado dionisíaco, representado por meio da embriaguez, do êxtase. Ambas qualidades são inerentes 31 à natureza humana, e por meio do equilíbrio entre as mesmas se encontra a qualidade do sofrimento, fundamento para a existência humana. Do que a vida precisa? Não só de conceitos ou raciocínios bem estruturados, nem apenas das constatações científicas ou orientações morais; mas da arte, que nos desvela o mundo em seu movimento constante de transformações, apresentando-nos os terrores e belezas, todos mutáveis. Por que Nietzsche precisou [...] mostrar o fim doloroso da tragédia, a supremacia de Apolo, o império dos silogismos e a dialética com fins de inteligibilidade? [...] isso foi preciso para enfrentar o projeto de formação da modernidade cujo fim último a ser alcançado foi o homem teórico-científico; aquele especialista em conceitos e silogismos, seguro a respeito da vida e dos resultados futuros, orientados pela lógica dedutiva sempre pronta a tirar conclusões inabaláveis (CRUZ, 2013, p. 124). Percebemos que o conceito de Bildung trazido por meio de Goethe, expressa, conforme a perspectiva nietzschiana a ideia de que a estética e o sofrimento são condições para o cultivo de si, no fazer da vida uma obra de arte. Ademais, mediante este conceito, este processo formativo não se restringe a formação tecnicista ou para uma cidadania disfarçada, ou seja, “apenas para serem cidadãos sob a supervisão autoritária do Estado” (CRUZ, 2013, p. 35), mas sobretudo a formação nesta concepção de desenvolvimento do ser humano, só se realiza mediante a liberdade e a autonomia. Johann Wolfgang von Goethe (1749-1832), é considerado um dos maiores representantes da literatura alemã. Além de suas obras românticas, ele se dedicou com afinco em seus estudos sobre os enigmas da natureza. Em suas pesquisas sobre os fenômenos naturais, Goethe desenvolveu um método de pesquisa, o qual foi intitulado posteriormente como fenomenológico. Conforme Bach (2015a), as pesquisas científicas goethianas tinham como objetivo principal refletir sobre a inter-relação entre sujeito e objeto. Goethe iniciou um novo modo de fazer ciência que antecipou uma série de problematizações que só surgiram no século XX, como a questão dos paradigmas, da linguagem e da historicidade da ciência. Confrontando-se com ícones da ciência de sua época, como Lineu e Newton [...] (BACH, 2019a, p. 19). Durante o fim do século XVIII e início do século XIX, Goethe vivenciou o intenso período de crise entre a ciência com os dogmas religiosos discutidos em grande parcela da Europa. Neste contexto, baseado em uma cosmovisão, o pensamento de Goethe não foi bem aceito no campo científico: 32 Tais naturalistas identificaram uma crise cultural de falência da religião transcendentalista, do Deus “extra-mundano”, e apontaram para a incongruência de manter um modelo de filosofia da natureza e de ciência baseado nesta visão que se corroía. As décadas seguintes do século XIX herdaram esta tendência forçando progressivamente os âmbitos da ciência e da religião a se separarem definitivamente ou se fundirem em cosmovisões monistas, afastando e prescindindo dos remendos da era moderna (COELHO, 2009, p. 101). As contribuições de Goethe transitam principalmente nas áreas das ciências da natureza e na literatura. As obras de Goethe se dividem a partir de três principais períodos. Na primeira fase, ele completou sua formação em Direito e inicia suas atividades artísticas com suas obras literárias, as quais podem ser compreendidas como recursos educativos naquele período, já no final do século XVIII. Podemos destacar o termo Bildung, o qual foi utilizado dentro da literatura alemã, para referir sobre a formação e desenvolvimento humano. Para Goethe o processo de formação humana (Bildung) é considerado como processo de autoformação e educação, ou seja: o enfoque no sujeito que se auto-observa em interação com os fenômenos naturais e sociais, para embasar suas necessidades de autoformação, e realizar essas transformações de si tendo como ponto de partida suas próprias resoluções [...] (BACH, 2020, p. 11). Em uma das principias obras de Goethe, ‘O sofrimento do jovem Werther’ (1774), a partir deste personagem, é expressada a insatisfação perante à concepção limitada de ensino da escola alemã. Conforme Britto (2012, p. 218), “Werther volta-se com desgosto para os anos que passara na escola”, o autor continua destacando um trecho da obra de Goethe, em que Werther se queixa da escola: “as limitações que aprisionam a capacidade humana de ação e pesquisa” (GOETHE, apud BRITTO, 2012, p. 218). Logo, podemos inferir que os romances escritos por Goethe, aprofundavam a crítica e a necessidade de reformulação da cultura vigente nas escolas alemães deste período. Do mesmo modo, por meio de sua obra ‘Os anos de aprendizado de Wilhelm Meister’ (1795-1796), Goethe representa o desenvolvimento do indivíduo por meio de vivências, nas relações com o outro, no autocultivo7 e no desejo de formação de “[...] uma bela alma (Shoene Seele), ou seja, desenvolver uma vida interior em harmonia com a natureza e voltada 7 De acordo com Mühl e Marangon (2019, p. 77), “o autocultivo envolve a capacidade de desenvolvimento de diferentes disposições, como a lucidez, a perspicácia, a serenidade, o cuidado, a atenção às emoções pessoais, o exame do coração. Trata-se de uma formação que se inicia na intimidade e se projeta ao mundo através da abertura ao outro.” 33 para o bem” (MÜHL; MARANGON, 2019, p. 76). Em vista disso, podemos observar que por meio da ideia de Bildung, o autodesenvolvimento é um dos princípios centrais: Na Bildung, e principalmente nas obras de Goethe, existem um grande diferencial desta visão: aqui já não há mais a ideia de um “homem pronto”, de um “ideal pronto”, de um modelo a ser seguido ou de um padrão humano a ser desenvolvido [...] A felicidade e a justa condição humana a ser atingida precisam ser estabelecidas pela própria humanidade e por cada indivíduo (MÜHL; MARANGON, 2019, p. 87). No segundo período Goethe realiza de modo autodidata pesquisas disciplinadas, segundo Bach (2019a, p. 31) “Goethe dedica-se à meteorologia, osteologia, mineralogia, botânica, morfologia, ótica”. Contribuindo de maneira significativa no campo da botânica, com a obra A metamorfose das plantas, a qual Goethe escreveu durante às suas viagens à Itália. O terceiro período da obra literária e científica de Goethe é marcado por seu encontro com Schiller, em que ambos se dedicam a questionar o método de pesquisa dominante na ciência no fim do século XVIII e início do século XIX. “Neste período ele deixa seu legado epistemológico, tratando e questionando a metodologia na produção do conhecimento” (p. 32). Nesta fase, ele inicia também os escritos de sua obra A Teoria das cores, e se contrapõe não só à teoria de Newton, mas ao método científico como um todo. Assim como o empirismo de Francis Bacon e de John Locke, as pesquisas de Goethe se baseavam na experiência e na observação do fenômeno a ser pesquisado. Entretanto a fenomenologia de Goethe “[...] estabelece uma outra forma de relação com a natureza [...]” (BACH, 2019a, p. 33). Segundo este autor, esta aproximação com a natureza é denominada de empiria delicada [zarte Empirie], a qual não interpreta o objeto somente a partir de sua materialidade. De acordo com Guglielmo (2021, p. 81) este encontro empático no processo de pesquisa entre o pesquisador e o fenômeno estudado é definido como a empiria delicada, no desejo de conhecer as coisas do mundo, ou seja, Goethe estabelece a empatia como um dos instrumentos metodológicos para compor a pesquisa: “[...] tendo como bases a gentileza e a objetividade, que levaram o poeta alemão a chamar seu método científico de “empiria delicada”’. A partir do conceito de empiria delicada, o experimento tem o papel de mediar o pesquisador e o fenômeno a ser pesquisado. Desta maneira “[...] na fenomenologia não se constrói previamente uma hipótese, para posteriormente verificá-la em experimentos isolados” (BACH, 2019a, p. 34-35). Na pesquisa goethiana o fazer científico não pode ter 34 como princípio metodológico julgamentos feitos a partir da subjetividade do pesquisador ou até mesmo fazer pesquisa a partir de um único método de experimentação. Ademais, o método científico da empiria delicada só é possível, caso o pesquisador aperfeiçoe suas capacidades de percepção e compreensão dos fenômenos do mundo, portanto neste caminho de pesquisa, “[...] o experimento fenomenológico implica no processo de autoeducação do sujeito” (BACH, 2019a, p. 36). Deste modo, para Goethe, na experimentação fenomenológica, é necessário diferentes condições para obter uma percepção ampliada do fenômeno observado. Já que o observador jamais vê o fenômeno puro com os olhos, e na verdade muita coisa depende de seu estado de espírito, da disposição do órgão perceptivo no momento, da luz, do ar, do clima, dos corpos, do manejo e de milhares de outras circunstâncias, é uma pretensão inalcançável querer prender-se à individualidade do fenômeno e querer observá-la, medi-la, pesá-la e descrevê-la (GOETHE, 2012e, p. 73, apud, BACH, 2019a, p. 36). Em suma, segundo Bach (2019, p. 37), o problema não está em interpretar os fenômenos das ciências naturais e analisá-los por meio dos sentidos. O equívoco epistêmico reside na percepção a partir de julgamentos de valores subjetivos, os quais traduzem “[...] aos fenômenos atribuições que não deixam transparecer sua essência”. Ao analisar a natureza, o método científico desenvolvido por Goethe não se redundou no empirismo e no racionalismo. Segundo Bach (2013, p. 140), em uma perspectiva intuitiva, a fenomenologia goethiana propõe a superação tanto da ideia homem versus natureza, como também da superação da separação entre ideia e experiência, ou seja, sujeito e objeto. Diante disto, a partir de uma empiria delicada, Goethe propõe que o pesquisador deve buscar desenvolver um juízo intuitivo, com “[...] um poder de captar a essência do fenômeno [...]”. Sobre o tema, Bach (2015a, p. 60), acrescenta ainda: “[...] o pensamento analítico apresenta sempre uma barreira na compreensão e apreensão da evidência fenomenológica, pois seu procedimento desvia-se do caminho que leva a uma compreensão superior do fenômeno [...]”. As experiências constituem grande parte de nosso cotidiano. Elas acontecem a todo momento, e são capazes de se apresentar a partir da observação de fenômenos empíricos, entretanto “quando metódicas e intencionalmente repetidas, as experiências tornam-se experimento, ascendem à categoria de fenômeno científico e superam as noções oriundas do senso comum [...]” (BACH, 2019a, p. 34). Logo, no empirismo a pesquisa científica ocorre 35 a partir de uma hipótese e na realização do isolamento do fenômeno pesquisado, ou seja, “[...] de uma pergunta pela causa do fenômeno [...]” (p. 34). Entretanto, na fenomenologia de Goethe, a pesquisa e a compreensão a respeito dos fenômenos da vida orgânica, devem ser realizadas tendo como princípio a inter-relação do objeto com a ambiência que o circunda: “a fenomenologia goethiana pesquisa o objeto na sua interação com outros fenômenos [...]” (BACH, 2019a, p. 34). Desta forma, nesta concepção, a diversidade de contextos fenomênicos possibilita diferentes indagações para a busca de uma resposta que compreenda o todo do fenômeno a ser pesquisado, ou seja, “o caráter holístico da pesquisa fenomenológica da natureza revela-se nesta refutação do experimento isolado como fragmentação do mundo que, ao explorar somente as partes (multiplicidade), perde o vínculo com o todo (unidade, ideia)” (p. 34). Nas reflexões apresentadas por Coelho (2009, p. 87), a fenomenologia e o naturalismo de Goethe se contrapõem ao racionalismo científico do século XIX, o qual herdou da tradição medieval e de parte do pensamento da escolástica grega, o abismo entre o pensamento e a matéria. Segundo este autor, “o que fundamenta o naturalismo de Goethe, e sua proposta metodológica, é o conceito de intuição/visão participativa da natureza [Anschauung] [...]”. Deste modo, a fenomenologia goethiana ressalta a metamorfose e o devir como conceitos essenciais desta metodologia na pesquisa científica: longe de desconsiderar a posição analítica da ciência, propunha um “acréscimo”, que consistiria em uma outra abordagem do fenômeno, não quanto ao que ele tinha de superficial, mensurável e comparável aos demais (categorias), mas quanto ao que ele tinha de dinâmico, ou seja, seu vir-a-ser [...] (COELHO, 2009, p. 86). De acordo com Bach (2015a), o método da fenomenologia de Goethe é multiforme, ou seja, não há um modelo padrão para a análise de um fenômeno vivo. Deste modo, a falta de padronização, a utilização da linguagem simbólica como mediadora entre sujeito e o fenômeno estudado ou até mesmo a criação de um vocabulário próprio para expressar os seus procedimentos científicos, talvez expliquem a pouca aceitação deste método investigativo. Neste sentido, somente nas últimas duas décadas do século XX, foi que a fenomenologia goethiana passou a ser considerada no meio acadêmico. “Quem está acostumado a estabelecer uma relação com a realidade com padrões representativos, fica sem parâmetros para compreender a dinâmica da versatilidade da intencionalidade na fenomenologia de Goethe [...]” (p. 73). 36 Em busca de conciliar ideia e experiência empírica, Goethe desenvolveu uma linguagem metodológica e científica que envolvesse tanto o sujeito, quanto o objeto, possibilitando o “[...] aprimoramento das capacidades cognitivas do sujeito [...]” (BACH, 2019a, p. 99). Segundo este autor, na pesquisa fenomenológica esta conciliação ocorre por meio de uma “[...] capacidade cognitiva denominada como juízo intuitivo [anschauende Urteilskraft] [...]” (p. 99). Desta maneira, a pesquisa possui a experiência como princípio, logo, o sujeito constrói o conhecimento de modo dialógico com a natureza, em que a “[...] atividade da consciência que conecta a ideia subjacente ao fenômeno vital à percepção sensorial [...]” (p. 101). Em suma, esta dualidade entre ideia e experiência na pesquisa é superada quando o sujeito desenvolve a capacidade de apreender o fenômeno observado e vivenciado em sua essência (fenômeno primordial). O juízo intuitivo é a intencionalidade da consciência apropriada ao objeto [...] O auge é a conciliação entre mente e natureza, quando a essência da natureza está em harmonia com a intencionalidade da consciência e o dualismo espírito-matéria foi superado (BACH, 2019a, p. 103). A fenomenologia de Goethe, possibilita não só a superação da ruptura entre indivíduo e natureza, corpo e razão, ou entre matéria e espírito, mas ela também visa transcender o mundo sensorial, pois explicar como funciona os fenômenos orgânicos somente a partir das percepções sensoriais são insuficientes para perceber o mundo em sua essência. Segundo Bach (2019a, p. 105), “a fenomenologia é um processo cognitivo para se chegar à unidade superior subjacente aos processos sensoriais.” A fenomenologia de Goethe pode ser um valioso instrumento metodológico de pesquisa na autoeducação, o que requer do sujeito, para fazer este caminho, a vontade em ampliar “[...] a qualidade da sua abordagem em relação à realidade.” (p. 126) A partir disto, são criadas as condições para superação das ideias dualistas que fragmentam o eu e o mundo. A seguir iremos abordar a respeito da arte e da estética como meios de integrar razão e sensibilidade no desenvolvimento do conhecimento, considerando a perspectiva schilleriana e os pressupostos teóricos da Pedagogia Waldorf, além da questão pedagógica como questão social. 1.3 A educação estética e a questão pedagógica como questão social A experiência estética é a realização concreta da cultura humana, dos valores intrínsecos da 37 humanidade quando a cisão entre razão e emoção ainda não tinha sido efetuada (BACH, 2012, p. 20). Na Grécia antiga, a arte se configurava como elemento catalizador e inseparável entre realidade e ciência, posteriormente, a partir das ideias goethianas, tais pressupostos sobre a estética são retomados8. Para Steiner (2012a, p. 19), a ciência enquanto ideia, lhe falta a realidade, ou seja, “[...] a ciência embora possua a ideia, tampouco chega a esta conciliação por lhe faltar a realidade.” Logo, para ele é necessário a criação de “reinos”, em que haja a conciliação entre a ideia a partir da ciência e a realidade por meio da vivência (experiência), assim como a expressão da individualidade por meio da universalidade. Todavia, este terceiro mundo ainda não existe, “[...] trata-se do mundo da arte - um terceiro reino necessário ao lado dos sentidos e da razão” (p. 20). Tendo em vista a cosmovisão de Goethe, considerando a observação artística como método para a constituição do conhecimento, e a educação estética, a partir de Schiller, ambos se configuram como os fundamentos atribuídos por Rudolf Steiner para a formulação das práticas metodológicas da Pedagogia Waldorf, ou seja, estes foram os princípios basilares para uma formação humana, no equilíbrio entre corpo, alma e espírito. A palavra estética provém do termo grego aisthesis que significa a capacidade de perceber ou sentir o mundo e a si próprio mediante as sensações. A partir de Bach (2012, p. 20), a experiência estética na Pedagogia Waldorf possibilita “[...] amplamente, vivências de unidade, contrapondo-se às vivências unilaterais, parciais ou fragmentadas”. Em outras palavras, no processo de ensino e aprendizagem “a experiência estética funda vínculos, estabelece uma unidade repleta de significação e sentido com o entorno” (p. 21). Em uma perspectiva schilleriana, a estética possui o papel de harmonização e ordenamento da vida. Tendo em vista o princípio entre a ordem e o caos, podemos destacar as reflexões realizadas por Sebben (2020) a partir da teoria das janelas quebradas9, a qual mesmo não se sustentando completamente, em virtude de questões sociais nos Estados Unidos daquele período, supomos que a omissão em ordenar o ambiente ou deixar as coisas belas, poderá levar ao caos: 8 Durante o século XVIII, o filósofo alemão Alexander Gottlieb Baumgarten considerou a Estética como um campo científico, todavia, seu pensamento não tomou força dentro das discussões na ciência clássica. 9 A teoria das janelas quebradas foi realizada no final da década de 1960 pela escola de Chicago, pelos americanos James Q. Wilson e George Kellingem em Nova York. Por meio de um experimento, foram deixados dois automóveis idênticos abandonados em bairros diferentes da cidade. A partir das análises, este estudo teve como objetivo verificar os diferentes comportamentos sociais, considerando diferentes situações do meio. 38 Em um ambiente em que há a desordem, em que há feiura, isto induz ao mau comportamento, a pequenos crimes, a vandalismo. Deteriorar, prejudicar, estragar a paisagem, induz a desordem [...] cuidar da beleza, desenvolver a arte no dia-a-dia, é tão vital quanto procurar o melhor, dar o melhor de si a determinada situação e fazer isto com a máxima clareza possível (SEBBEN, 2020, 20min.56s.). Na tese de doutorado de Romanelli (2008a, p. 60-61), a autora visa compreender as contribuições e o papel da arte para o desenvolvimento humano por meio da Pedagogia Waldorf, investigando as contribuições para o equilíbrio entre a razão e a sensibilidade. Neste processo investigativo, a autora se utiliza dos pressupostos de Schiller, na compreensão de que esta concepção de educação possibilita a constituição do senso estético no indivíduo, deste modo, a arte se estabelece como “[...] o instrumento através do qual se alcança a formação da sensibilidade que determina a eficácia do conhecimento adquirido”. De modo contrário, podemos inferir que o artifício da razão pode impermeabilizar o cultivo da alma, ou até mesmo fragmentar o indivíduo em sua totalidade, caso a sensibilidade não seja aperfeiçoada. É de acordo com a leitura de Schiller que Rudolf Steiner “absorve a importância do equilíbrio entre impulso sensível (ligado aos sentidos) e o impulso formal (exercício da razão)” (ROMANELLI, 2008a, p. 56). Logo, é por meio do impulso lúdico10, que o indivíduo harmoniza as dimensões da razão e da sensibilidade, ou seja, “o belo é um imperativo, uma tarefa necessária para a natureza racional e sensível do homem” (p. 58). Neste âmbito, para Schiller “os impulsos são forças motoras do mundo sensível” (ROMANELLI, 2008a, p. 59). Desta maneira, estas forças, quando estimuladas por meio da sensibilidade podem melhorar a absorção do conhecimento do indivíduo, pois tanto a arte, quanto a ciência são necessárias para a natureza humana. O impulso sensível e o impulso formal são utilizados como categorias opostas e complementares por Schiller, ou seja, enquanto o primeiro se refere a experiência física e sensível da natureza humana, o segundo se relaciona com a natureza racional humana. Em vista disso, o ser humano tem de se perceber “[...] tanto como matéria, quanto como espírito, ele tem a intuição plena de sua humanidade” (p. 65). A arte e o estado estético são utilizados como princípios na Pedagogia Waldorf. Segundo Romanelli (2008a, p. 67), “pode-se comparar o impulso sensível, o impulso lúdico e 10 O impulso lúdico é o fator que equilibra a razão e a sensibilidade. Para definir este conceito, segundo Romanelli (2008,a p. 57): “Veiga (1995) explica que este impulso criador é chamado de lúdico por Schiller em analogia com o brincar infantil: A criança que brinca não se sente coagida pela sensibilidade (matéria) e tampouco pela razão (forma) (1995, p. 7)”. 39 o impulso racional em Schiller, respectivamente como aquilo que Steiner define como querer, sentir e pensar.” Sendo assim, a oposição entre razão e sensibilidade são rompidas pelas ferramentas básicas da Pedagogia Waldorf no processo de ensino e aprendizagem: a imaginação, a inspiração e a intuição. Na Antroposofia, o conhecimento é uma ação que ocorre a partir da atividade da mente, ou seja, “o conteúdo da ciência é ideia mentalmente apreendida por essa atividade” (ROMANELLI, 2008a, p. 80). Logo, a partir de Goethe, Rudolf Steiner aproxima a atividade intelectiva com a atividade artística, pois “Goethe considerava a arte e a ciência como duas manifestações da lei fundamental do Universo” (p. 80). E acrescenta, “para Steiner o que aparece na ciência como uma ideia na arte é uma imagem, por isso ele afirma que Goethe considerava que o belo era o vislumbre sensorial da ideia” (STEINER, 1986, p. 83, apud ROMANELLI, 2008a, p. 81). Em contraposição ao caráter utilitarista que apequena e permeia as relações humanas, conforme Bach (2012), este caráter se constitui como um dos principais empecilhos para uma educação estética, a qual valoriza não aquilo que deve ser apreendido por meio da razão, mas aquilo que pode ser compreendido e produzido, considerando a arte e os sentidos. Com base nisso, “o que a educação estética almeja constatar e realizar é a utilidade da inutilidade, colocar em questão o julgamento unilateral de inútil que é relativo a um ponto de vista obtuso e reducionista” (BACH, 2007, p. 55). Neste contexto, podemos perceber que a estética na Pedagogia Waldorf, se constitui como elemento de integração do sujeito para com a vida em atividades do cotidiano e nas relações sociais: A experiência estética vivida no contexto pedagógico Waldorf – dimensionada por Steiner a partir das concepções de Goethe e Schiller - valoriza as amplas dimensões do sensível, o desenvolvimento da sensibilidade como fator importante para o desenvolvimento cognitivo e criativo, que são justamente fatores estruturais para o ser humano adulto nas funções diante do trabalho, da família, da sociedade, da natureza (BACH, 2012, p. 24). De acordo com o médico antroposófico Derblai Sebben, todo ser humano possui um reservatório de bondade constituído pelas virtudes humanas, sendo assim, este reservatório deve ser cultivado com arte, bondade e verdade. (SEBBEN, 2020). Tendo em vista o querer, o sentir e o pensar como elementos estruturadores para o desenvolvimento do ser humano, podemos afirmar que uma das formas da harmonização do sentir com o pensar, se dá a partir da realização de atividades artísticas, pois “a arte refaz seu vínculo com o conhecimento, 40 reatando no interior da alma humana o que se rompe pelo desenvolvimento unilateral do intelecto” (ROMANELLI, 2016, p. 185). Isto posto, podemos entender que a estética proposta pela Pedagogia Waldorf, se coloca para fomentar a formação cultural do indivíduo, na fomentação de sua individualidade criadora, mas sobretudo busca a manutenção do bem estar, ou seja, na perspectiva de uma pedagogia salutar, a educação estética schilleriana possui o papel de equilibrar a oposição entre a sensibilidade e a razão: Numa relação dinâmica destas faculdades polares – sensibilidade e razão – a disposição estética schilleriana permitiria reintegrar os saberes rejeitados pelo objetivismo analítico atual, permitindo reintegrá-los ao desenvolvimento das estruturas dinâmicas da mente humana (ROMANELLI, 2016, p. 188). Considerando estas reflexões podemos compreender que assim como a estética, apesar de sua relevância, a questão central da Pedagogia Waldorf não são as tipificações destacadas por Steiner, tais como “[...] dos temperamentos, dos setênios e das forças da alma, as quais são apontadas como princípios antropológicos e psicológicos válidos para todos os seres humanos” (VEIGA, 2014, p. 28, apud KEIM, 2015, p. 93). Para Keim (2015, p. 93) o ponto central desta concepção pedagógica refere-se à relação do ser humano com o mundo: “para com ele interagir e ser capaz de gerar conhecimentos que são adequados, necessários e inovadores”. Portanto, podemos inferir que para Rudolf Steiner a questão pedagógica deve ser interpretada, tendo em vista a sua íntim