UNESP - UNIVERSIDADE ESTADUAL PAULISTA CAMPUS DE MARÍLIA FACULDADE DE FILOSOFIA E CIÊNCIAS “JÚLIO DE MESQUITA FILHO” ANA CLÁUDIA BAZÉ DE LIMA O LUGAR DA LITERATURA INFANTIL NO ESPAÇO EDUCATIVO: VOZES DE PROFESSORAS MARÍLIA - SP 2019 UNESP - UNIVERSIDADE ESTADUAL PAULISTA CAMPUS DE MARÍLIA FACULDADE DE FILOSOFIA E CIÊNCIAS “JÚLIO DE MESQUITA FILHO” ANA CLÁUDIA BAZÉ DE LIMA O LUGAR DA LITERATURA INFANTIL NO ESPAÇO EDUCATIVO: VOZES DE PROFESSORAS Dissertação apresentada ao Programa de Pós- Graduação em Educação da Faculdade de Filosofia e Ciências, da Universidade Estadual Paulista “Júlio de Mesquita Filho”, campus de Marília, para a obtenção do título de Mestre em Educação. Área de concentração: Ensino na Educação Brasileira. Orientadora: Profa. Dra. Cyntia Graziella Guizelim Simões Girotto. MARÍLIA - SP 2019 ANA CLÁUDIA BAZÉ DE LIMA O LUGAR DA LITERATURA INFANTIL NO ESPAÇO EDUCATIVO: VOZES DE PROFESSORAS Dissertação apresentada ao Programa de Pós-Graduação em Educação da Faculdade de Filosofia e Ciências, da Universidade Estadual Paulista “Júlio de Mesquita Filho”, campus de Marília, para a obtenção do título de Mestre em Educação. Área de concentração: Ensino na Educação Brasileira. Linha de Pesquisa: Teoria e Práticas Pedagógicas BANCA EXAMINADORA: _______________________________________________ Orientadora: Profa. Dra. Cyntia Graziela Guizelim Simões Girotto Universidade Estadual Paulista “Júlio de Mesquita Filho” Faculdade de Filosofia e Ciências, Campus de Marília. _______________________________________________ Prof. Dr. Dagoberto Buim Arena Universidade Estadual Paulista “Júlio de Mesquita Filho” Faculdade de Filosofia e Ciências, Campus de Marília. ______________________________________________ Profa. Dra. Regina Aparecida Marques de Souza Universidade Federal de Mato Grosso do Sul, campus Três Lagoas ______________________________________________ Suplente: Profa. Dra. Elieuza Aparecida de Lima Membro Suplente Universidade Estadual Paulista “Júlio de Mesquita Filho” Faculdade de Filosofia e Ciências, Campus de Marília. _______________________________________________ Suplente: Profa. Dra. Sandra Aparecida Pires Franco Universidade Estadual de Londrina/PR Marília, 26 de março de 2019. À minha mãe, pois viveu comigo a dor de um sonho interrompido e, agora, a alegria na resiliência. Minha inspiração, meu modelo de mulher! Também ao Miguel e Marcus Filho, com eles homenageio todas as crianças; aprendi que, com e para elas, todo trabalho é de grande valia. AGRADECIMENTOS São Tomás de Aquino foi quem me apresentou o fio da meada para principiar minhas reflexões sobre dar sentido à gratidão. Agradecendo a esse filósofo e teólogo, inicio meus agradecimentos, pois, como uma criança, fui invadida pelo poder de suas palavras mágicas; com ele evadi-me, perdi-me nas muitas dobras da palavra. Foi o que eu, leitora, senti, ao fraternizar-me com as circunstâncias que moveram o gênio nesse notável ser humano em suas vivências sentidas e registradas no mundo. Deixei-me, enfim, ser afetada pelo uso da palavra alheia como palavra própria para agradecer. São Tomás de Aquino, em seu Tratado de Gratidão, sugere que o agradecimento, de forma complexa, configura-se em três níveis, em uma ordem crescente de sentidos, e, dessa forma, redimensiona o vocábulo gratidão, ao propor roteiro singular para quem deseja exercitar sentimento de tão elevada espiritualidade. O primeiro nível consiste em reconhecer o benefício recebido e se apresenta em várias línguas; o segundo traduz-se em louvar e dar graças, o que também se encontra na língua de vários povos; porém, o terceiro e mais profundo nível seria o de retribuir de acordo com suas próprias possibilidades, dando vida à palavra, pronunciando-a junto a seu som também o desejo de retribuição: Muito obrigada! Este último nível de agradecimento se apresenta apenas na língua portuguesa. Portanto, é nesse nível mais profundo da gratidão que agradeço aos que participaram diretamente deste projeto de formação e vida, ao longo desses dois anos de pesquisa. Deixo assim registrada a minha profunda gratidão:  a Deus, pois nos momentos de busca interior foi Ele quem me ouviu e me sustentou;  à minha família, visto que de cada um emanou força, energia e compreensão em relação ao tempo da ausência;  aos meus pais, Terezinha Bazé e Vicente José, por acreditarem em meus projetos e me incentivarem, incondicionalmente;  às minhas filhas Gabriela Bazé e Giovanna Bazé, pela compreensão, mesmo que com resistências esperadas, por minha presença ausente;  ao meu neto Miguel e meu sobrinho/afilhado Marcus Filho, por me ensinarem e reafirmarem meu comprometimento para com a infância;  ao meu “Mor” Daniel Lourenço, por acreditar e fazer parte desta trajetória;  ao meu irmão Marcus Vinícius, por ter que se fazer presente em minhas ausências, e a Lara Amâncio, minha cunhada, por ser o apoio nos momentos difíceis;  a Romilda Momenti, prima e parceira, que se fez presente, companheira na estrada e nos diálogos sobre as inquietações;  às minhas amigas e parceiras: Angélica Azambuja, durante as viagens, leitora de meus trabalhos, minha interlocutora; Anízia Luz, pelas palavras de acolhimento e direcionamento; Annete Sejópoles, por ter percebido potencialidades literárias em mim e por me ter ajudado a desvelar um SER adormecido; Dani Russo, pela acolhida em Marília de forma tão cuidadosa e afetuosa;  à minha orientadora Cyntia Girotto, pessoa de alma linda e encantadora, cuja sabedoria me trouxe para o contexto literário, ensinando-me que é possível fazer educação humanizadora, praticando o que há de mais humano nas relações: sentimento e palavra que acolhe;  à Banca Examinadora, representada pela professora Regina Marques, por despertar um projeto adormecido;  ao Professor Dagoberto Arena, por suas aulas, pelas quais, em silêncio, agradecia, também pela oportunidade de poder partilhar de seus saberes e vivências. Quanta honra trazer suas palavras para minha constituição;  às professoras participantes da pesquisa, por me oportunizarem desvelar e compreender como se constituíram, e por me receberem em seus espaços profissionais para partilhas de seus fazeres; muito aprendi;  às crianças das turmas, minha gratidão, pois me ensinaram, mais que os livros, a verdadeira relação dialógica, pura palavra viva.... Ah! Se o rigor do tempo não nos afastasse da infância! Não encerro aqui a lista de agradecimentos, mas tenho que findar a escrita desse sentimento de gratidão mais profundo. Obrigada! Muito obrigada! Sem vocês, não estaria, neste momento, revisitando tempos e espaços vividos onde nunca estive sozinha! Gratidão. Tenho o privilégio de não saber quase tudo. E isso explica o resto. (BARROS, 2010, p. 461) RESUMO Esta dissertação foi empreendida no Programa de Pós-Graduação em Educação da Faculdade de Filosofia e Ciências, da Universidade Estadual Paulista “Júlio de Mesquita Filho” - Campus de Marília, na área de concentração de Ensino na Educação Brasileira, em estudos na Linha de Pesquisa Teoria e Práticas Pedagógicas e no Grupo de Pesquisa Processos de leitura e de escrita: apropriação e objetivação. A pesquisa teve como objetivo compreender e apontar, por meio das vozes de duas professoras de Educação Infantil da Rede Municipal de Três Lagoas/MS, o lugar da literatura infantil na formação leitora de crianças. Os pressupostos teóricos sobre desenvolvimento humano ancoram-se nas bases da teoria histórico-cultural, em diálogo com o pensamento vigotskiano do homem como ser social, com a lei geral do desenvolvimento e as funções psicológicas superiores, assim como a influência do meio, as vivências. Para compreender o ato de dizer das professoras e apontar, por meio de vozes, o lugar da literatura infantil na formação leitora de crianças, o estudo fundamenta-se também nos estudos de Vigotski, Volochinov, Bakhtin e Jakubinskij, quanto à linguagem e as vozes dos seres expressivos e falantes. Os dados foram gerados com base no encontro dialogado com as professoras, por meio do qual foi possível conhecer a narrativa de vida e como se constituiu a alteridade leitora e docente de cada uma delas. Ademais, empreendeu-se uma observação dos espaços e tempos destinados à leitura literária, cotejando tais dados gerados com o planejamento das professoras. Os resultados apontam para professoras leitoras literárias e sensíveis ao ato responsivo de formar leitores, porém, com lacunas relacionadas à organização do entorno literário propício, a vivências com a intencionalidade de desenvolver atitudes leitoras nas crianças, bem como fragilidade em relação à compreensão do ensinar o ato de ler e à significação genuína do que seja contribuir para formar leitores. No sentido amplo, os resultados contribuem para que professores compreendam que a literatura infantil emancipa e humaniza, e que o apropriar-se do ato de ler como necessidade conduz para a formação de um leitor pleno. Palavras-chave: Educação Infantil. Literatura Infantil no Espaço Educativo. Professoras em Vivências Literárias. Contribuição à Formação do Pequeno Leitor. ABSTRACT This master's thesis was undertaken in the Postgraduate Program in Education of the Faculty of Philosophy and Sciences of the Paulista State University "Júlio de Mesquita Filho" - Campus de Marília, in the area of concentration of Teaching in Brazilian Education, studies in the Line of Research Theory and Pedagogical Practices and in the Research Group Reading and writing processes: appropriation and objectification. The research had as objective to understand and indicate by means of two voices of two nursery school teachers from the Municipal Network of Três Lagoas / MS, the place of children's literature in children's reading training. The theoretical assumptions about human development are anchored on the basis of historical-cultural theory in dialogue with the vigotskian thought of man as a social being, with the general law of development and the higher psychological functions, as well as the influence of the environment, the experiences. In order to understand the teachers' say and to point out through voices the place of children's literature in children's reading formation, the study is also based on the studies of Volochinov, Bakhtin and Jakubinskij concerning the language and voices of expressive beings and speakers. The data were generated based on the meeting exchanged ideas with teachers, through which it was possible to meet the narrative of life and like the otherness reader and teacher of each. In addition an observation of the spaces and times destined to the literary reading, comparing such data generated with the planning of the teachers. The results point to literary teachers who are sensitive to the responsive act of forming readers, but with gaps regarding the organization of the literary environment conducive to experiences with the intentionality of developing reading attitudes in children, as well as fragility in the understanding of teaching the act of reading and in the genuine significance of what it is to contribute to forming readers. In the broad sense, the results contribute to teachers' understanding that children's literature emancipates and humanizes and that learning the act of reading as a necessity leads to the formation of a full reader. Keywords: Early Childhood Education. Children's Literature in the Educational Space. Teachers in Literary Experiences. Contribution to the Formation of the Little Reader. LISTA DE QUADROS Quadro 1 - Espaço de Leitura da turma do Pré I – Professora Sandra.......................... 68 Quadro 2 - Espaço de Leitura da turma do Pré II – Professora Selma.......................... 70 LISTA DE SIGLAS BNCC - Base Nacional Comum Curricular CAPES - Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior CEI - Centro de Educação Infantil CEPLE - Centro de Estudos e Pesquisa em Leitura e Escrita DCNEI - Diretrizes Curriculares Nacionais para Educação Infantil EI - Educação infantil EVA - Etil, vinil e acetato FAFID - Faculdade de Filosofia de Dracena FUNDEPE - Fundação para o Desenvolvimento do Ensino, Pesquisa e Extensão GEGe - Grupo de Estudos dos Gêneros do Discurso MS - Mato Grosso do Sul OMEP - Organização Mundial para Educação Pré-Escolar PDDE - Programa Dinheiro Direto na Escola PNAIC - Pacto Nacional pela Alfabetização na Idade Certa PNBE - Programa Nacional Biblioteca na Escola PPGE - Programa de Pós-Graduação em Educação PNLD - Programa Nacional do Livro Didático PROLEAO - Grupo de Pesquisa Processos de Leitura e Escrita: Apropriação e Objetivação RCNEI - Referencial Curricular Nacional para Educação Infantil SEMEC - Secretaria Municipal de Educação e Cultura SIMEC - Sistema Integrado de Monitoramento, Execução e Controle TL - Três Lagoas UEMS - Universidade Estadual de Mato Grosso do Sul UFMS - Universidade Federal de Mato Grosso do Sul UNESP - Universidade Estadual Paulista “Júlio de Mesquita Filho” SUMÁRIO APRESENTAÇÃO ................................................................................................................. 12 1 INTRODUÇÃO ................................................................................................................... 17 2 PERCURSO TEÓRICO - DA LEITURA A LEITORES MIRINS ................................ 21 2.1 A história da leitura e de leitores: percursos do ato de ler ........................................... 22 2.2 Literatura infantil: atos de ler do leitor mirim e o papel do mediador de leitura ...... 28 2.3 A linguagem nas vozes de professoras: a palavra que medeia a literatura infantil ... 34 2.4 A educação literária desenvolvente na infância: um ato responsável.......................... 40 3 PERCURSO METODOLÓGICO: ESCOLHAS NA GERAÇÃO DE DADOS ............ 48 3.1 A comunicação face a face: o encontro dialogado ......................................................... 50 3.2 O evento interacional: enunciados no espaço educativo .............................................. 52 3.3 O ser expressivo e falante: o dito e a leitura de vozes ................................................... 55 4 RESULTADOS E DISCUSSÃO ........................................................................................ 57 4.1 A constituição de leitores: o que nos contam as professoras ........................................ 58 4.2 Enunciados que medeiam a literatura infantil .............................................................. 67 CONCLUSÃO ......................................................................................................................... 84 REFERÊNCIAS ..................................................................................................................... 86 APÊNDICES ........................................................................................................................... 92 APRESENTAÇÃO Aqui chegamos ao ponto de que devêssemos ter partido. O do inacabamento do ser humano. Na verdade, o inacabamento do ser ou a sua inconclusão é próprio da experiência vital. Onde há vida, há inacabamento. Mas só entre mulheres e homens o inacabamento se tornou consciente. (FREIRE, 1996, p. 50). A pesquisa retratada nesta dissertação analisa, por meio das vozes das professoras participantes, o lugar da literatura infantil na Educação Infantil. A ideia emergiu da experiência como Coordenadora Pedagógica no Núcleo de Educação Infantil da Secretaria Municipal de Educação e Cultura (SEMEC), onde atuo como coordenadora e pesquisadora. Para adentrar na arena da pesquisa, apresento, inicialmente, como me constituí pesquisadora, dialogando com vocês, meus interlocutores, e considerando o desvelar do que foi vivenciado até aqui. Ao pensar a organização do cronotopo1 de vida, tomo, do pensamento de Paulo Freire e de Bakhtin, a ideia do inacabamento do ser. Sou consciente de que ao findar da narrativa, terei retratada a pesquisadora atual, pois amanhã já terei novas experiências e, assim, na alteridade, irei me constituindo em múltiplas determinações - em movimento dinâmico e constante. Por isso, aproprio-me da metáfora das reticências para empregá-las em vários momentos de minha escrita, pois, assim como Mário Quintana em Definições Poéticas, vejo que “as reticências são os três primeiros passos do pensamento que continua por conta própria o seu caminho...”; uma vida perpassa dias, meses e anos e, aqui, apresento recortes de minha história. Portanto, esses três pontinhos, um ao lado do outro, ajudam-me a desenhar meu percurso, traduzindo, por meio da pontuação, a interrupção - ou não - no/com o tempo. Até chegar aqui, percorri uma trajetória de vida pessoal e profissional constituidora de quem sou neste instante, um percurso sempre apegado à Educação... filha de uma professora e de um fiscal de rendas. Pela forte presença de educadoras em minha família: tias e primas, mulheres atuantes socialmente e no seio da família, caminhei vendo e ouvindo suas histórias do dia a dia de sala de aula e, nesse trajeto, fui me constituindo professora. Cursei o Magistério e... lá estava eu dentro de uma sala de aula, iniciando minha carreira na educação, aos 16 anos de idade... oportunidade em que tive o primeiro contato com as crianças pequenas em uma turma de maternal, na Escola Peter Pan, a primeira instituição privada do município. 1Cronotopia é a relação espaço-tempo envolvida na produção do discurso. O cronotopo liga-se ao que Bakhtin denomina grande temporalidade, podendo, portanto, ser conceituado como a expressão de um grande tempo (GEGE, 2013). 13 Após essa experiência, casei-me, ainda muito jovem, e trouxe ao mundo minha primeira filha: Gabriela. Afastei-me dos estudos e do trabalho. Somente após seis anos, retornei à sala de aula, assumindo turmas de Ensino Fundamental, atuando como professora por oito anos nas Escolas Arco Íris e SESI, instituições privadas. Nesse período, formei-me em Pedagogia pela Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras de Dracena (FAFID), em Dracena – SP. Optei por um curso semipresencial, pois, naquele momento, como mãe e esposa, não poderia cursar uma graduação presencial, porque a vida exigia de mim outras responsabilidades; viajava duas vezes por semana de Três Lagoas à Dracena e, enfim, graduei-me em Pedagogia. Passaram-se alguns anos... separei-me, e vi a oportunidade de continuar os estudos. Incentivada por minha mãe, inscrevi-me no processo seletivo para o Mestrado em Educação da Universidade Federal de Mato Grosso do Sul (UFMS), em Campo Grande, MS, em que fui aprovada. Cursei todos os créditos, porém, nesse período, fiquei grávida de minha segunda filha, Giovanna; com as viagens de Três Lagoas a Campo Grande, na reta final, na entrega da dissertação, desisti daquele projeto - optei por dar atenção à minha filha recém-nascida. Foi muito difícil desistir, contudo, mesmo invadida por certo sentimento de derrota, a maternidade gritou mais forte em mim. Era tempo de retroceder e retomar o sonho quando estivesse fortalecida... O tempo passou... enquanto isso eu me dedicava ao trabalho e às filhas. Atuava, então, na Escola SESI como professora, Coordenadora Pedagógica, Diretora da Escola e Gerente Interina da Unidade - experiências ímpares em minha trajetória profissional. Cheguei como professora e exerci todas as funções às quais a instituição me desafiara exercer; aprendi muito, conhecimentos de administração de metas, recursos, pessoas, contatos com empresas, dentre outros saberes. Em meio a esse processo dinâmico, surgiu-me a oportunidade de fazer um curso de Pós-Graduação Lato Sensu “MBA em Gestão Empreendedora em Educação na Universidade Federal Fluminense”. Novas viagens para estudo: de Três Lagoas ao Rio de Janeiro, durante um ano e meio, conhecendo profissionais de todos os estados brasileiros em trocas e conhecimento... aprendi a fazer gestão da educação com ferramentas da administração, com foco em resultados; vivenciei esse espaço de professora a gestora por 13 anos. Nesse tempo, minha filha Giovanna cresceu... minha filha Gabriela formou-se médica- veterinária. A vida me acenava mudanças... Ao encerrar meu contrato com o SESI, ingressei na rede pública, em 2012, onde atuei na Secretaria Municipal de Educação, no setor dos Programas e Projetos Educacionais, quando tive meu primeiro contato com as políticas 14 públicas, em especial, com as da Educação Infantil. Em 2013, passei a integrar a equipe de Coordenadoras da Educação Infantil da SEMEC, trazendo minhas contribuições para a Gestão. À medida que contribuía, aprendia com meus pares, Anízia, Annete e Vera, que me ensinavam práticas, percursos teóricos e políticas públicas; ingressei na Organização Mundial para a Educação Pré-Escolar (OMEP) e participei do Fórum Estadual e Regional de Educação Infantil para ampliar meu conhecimento; queria aprender... Em 2015, a Rede Municipal de Ensino abriu edital de concurso para Educação Infantil, participei e fui aprovada... desde então, sou Professora de Educação Infantil. Nesse mesmo ano, por intermédio da professora Regina Ap. Marques de Souza, da UFMS, fiquei sabendo de uma disciplina no programa de pós-graduação no Campus de Corumbá, na qual seria possível inscrever-me como aluna especial. Não tive dúvidas, inscrevi-me e fui aceita... novas viagens para estudo, pois a disciplina foi oferecida em Três Lagoas e Corumbá, MS. Nessa terra sul-mato-grossense me contagiei com a Teoria Histórico-Cultural, conheci Suely Amaral Mello, professora convidada para participar da disciplina juntamente com a professora Regina. Com essas fortes parceiras, estudei a Escola de Vigotski, teorias ampliadoras de horizontes, descortinadoras de outras trilhas, outras paisagens, pois, em meu pensamento, rompi com verdades, encantei-me com o vivido, ouvido, visto, sentido, enfim, tudo num turbilhão de renovação e de conhecimento em uma nova realidade, e, de lá... em meio ao Pantanal Sul-Mato-Grossense, ouvindo a professora Suely Mello, decidi retomar meu projeto adormecido. Nesses alinhavos e tessituras entre as belezas da natureza e ideias, como se experimentasse genuína epifania2, obtive a certeza e a paz, chegara a hora do retomar meus estudos no mestrado. Acreditei. Assim, de posse daquele conhecimento, busquei seguir o singular ser humano em formação, a professora cheia de coisas ainda por dizer, interstícios em seu discurso, porque muitas reticências encantaram-me em suas palavras... pesquisei... cheguei ao site da Universidade Estadual Paulista “Júlio de Mesquita Filho” (UNESP), mapeei processos seletivos, datas, porém, somente em 2016 eu poderia participar. Logo me encontrava apoderada de meu propósito. Fiz, com antecedência, a prova de proficiência pela Fundação para o Desenvolvimento do Ensino, Pesquisa e Extensão (FUNDEPE), em Marília, SP, fui aprovada... via meu sonho mais próximo, escrevi meu projeto e me lancei ao Processo 2Epifania - em grego, ephanei: manifestação, aparição. No sentido religioso, manifestação da divindade no mundo sensível para os olhos espirituais. Termo generalizado para poética e esteticamente como iluminação súbita, instância fora do tempo (JOYCE, 1974). 15 Seletivo, em 2016. Tinha tanta certeza de que era esse o meu momento, e não titubeei... inscrevi-me em mais uma seletiva, agora, também no Programa de Pós-Graduação da Educação (PPGE) da Universidade Estadual de Mato Grosso do Sul (UEMS/MS), fiz as provas escritas nas duas universidades e aprovada fui nos dois processos, bem como aprovada pelo projeto. O sonho se aproximava, até que cheguei à etapa final de entrevistas/arguição, em ambos os processos. Muitos desafios, as duas entrevistas foram agendadas para o mesmo dia em cidades diferentes. Uma no estado de São Paulo e outra, de Mato Grosso do Sul; constatei que, pelos horários, poderia comparecer às duas. A primeira entrevista foi na UNESP, em Marília, logo pela manhã, com uma pontualidade anormal; eis-me dentro da sala... nervosa, ansiosa, deparei-me com os professores em círculo. Fui recebida, posicionei-me na roda, creio que perceberam minha tensão. Havia uma mesa com alimentos, ofereceram-me, não aceitei, nervosa... queria logo a “sabatina” ... até que uma professora levantou-se e disse: “Aceite pelo menos esse “melzinho”, sorri pela singeleza e segurei aquele mel como um amuleto; “tinha abelhas pelo ar” e um professor pediu-me que eu não as matasse, pois muitas já se encontravam mortas e estavam embaixo de meus pés. Achei aquilo tudo insólito, porém, estranhamente, bom. O que imaginava ser uma “sabatina,” foi um diálogo muito acolhedor sobre a minha propositura para o mestrado e como iria participar, caso aprovada, considerando a distância. Saí de lá tomada por uma alegria e repetia a mim mesma que era lá onde queria estar. Segui, desesperada, para a outra cidade e estado, a fim de participar da segunda entrevista/arguição do dia. Assim, aguardei os resultados. O primeiro a sair foi da UEMS, APROVADA, uma oscilação de sentimentos. Feliz pela minha superação, porém, ansiosa, porque meu coração queria estar entre mel e abelhas, definitivamente; queria aprender com esses personagens... aguardei uma semana, até a divulgação do tão esperado resultado, APROVADA na UNESP. Essa foi uma conquista cuja emoção proporcionou enorme prazer e alegria. Consegui! Estaria onde meu coração já habitava, iria aprender a tão escutada Educação Humanizadora; pela frente, novas viagens para estudo. Nesse momento, ainda não conhecia minha orientadora; pesquisei no Google e na Plataforma Lattes a fim de conhecer algo sobre ela até a minha ida à Marília para conhecê-la pessoalmente. Quanta felicidade, a minha, quando avistei a professora que me havia acolhido com o “melzinho”, aquele amuleto, “pedacinho de mel”. Até hoje o guardo para registrar e ilustrar o sentimento de gratidão cultivado por todos os professores da Linha de Pesquisa com os quais tive contato mais próximo: Suely, Stela, Elieuza, Dagoberto e Cyntia, minha 16 orientadora. Com a mesma singeleza de quando me ofereceu o mel, conduziu-me para o contexto literário. Hoje, muito diferente de quando lá cheguei, ganhei mais em humanidade, respeito ao outro, exercito mais a gratidão, sou choro e riso, puro sentimento e palavra viva. Ouso enunciar o quanto fui metamorfoseada durante minha vivência no PPGE/UNESP, as relações dialógicas mediadoras nas disciplinas ressignificaram formas de pensar; novos olhares surgiram e possibilidades outras de fazer Educação tomaram lugar em meu pensamento. Nesse tempo como mestranda, conduzida por minha orientadora, diferentes modos de aprender emergiram: participei da organização de minicursos, elaboração de artigos e capítulos de livros, participações em eventos científicos e, concomitantemente, meu fazer profissional também me conduzia a organizações de eventos, participação como formadora no Pacto Nacional pela Alfabetização na Idade Certa/Educação Infantil (PNAIC/EI), articuladora municipal na implantação da Base Nacional Comum Curricular/EI (BNCC/EI) e, recentemente, passei a integrar o Conselho Municipal de Educação. E assim... cheguei aqui. Revisitando memórias, percebo que, na busca pela aprendizagem e pelo desenvolvimento, a distância em quilômetros não foi empecilho, pelo contrário, nesse ir e vir, entre 2016 e 2018, fui me constituindo em quem hoje sou. Retratado foi, aqui, o tempo passado. Usei os três pontinhos..., pois como diz Furtado (2018), “aqueles três pontinhos insistentes em dizer: nada está fechado, nada acabou, algo sempre está por vir... assim é a vida”. E, assim, vejo meu relato de quem sou e quantos sou. Paro aqui as reticências, pois nas seções seguintes desta dissertação apresento a pesquisa realizada com seu tempo de início, meio e fim. Esse é meu tempo, minha vida vivida até este momento em que apresento a pesquisa orientada pela professora Cyntia Girotto, orientação segura e tranquila, cuja ternura fez ecoar em mim vozes de teóricos, professoras e crianças, encontros que compuseram a compreensão do lugar da literatura infantil no espaço3 educativo. 3“[...] o termo espaço se refere aos locais onde as atividades são realizadas, caracterizados por objetos, móveis, materiais didáticos, decoração.” (HORN, 2007, p. 35). Nesta dissertação faço uso de espaço educativo substituindo a concepção de sala de aula na educação infantil, valorando o espaço como mais um educador. 1 INTRODUÇÃO Cheguei ao tema pesquisado a partir dos estudos na Linha de Pesquisa Teoria e Práticas Pedagógicas que foram afinando meu olhar de pesquisadora, e da vivência como Coordenadora de Núcleo na SEMEC/Três Lagoas, onde tenho contato com professoras e suas práticas na Educação Infantil. Porém, desejei compreender os fazeres docentes para além do aparente, desejei ir à essência das relações, ainda que, devido ao curto tempo do mestrado, tenha somente procurado escutar vozes das professoras parceiras da pesquisa, e não tenha sido possível o cotejo com as vozes infantis para o entendimento do valor dado nas intencionalidades da mediação literária que objetiva formar leitores mirins. Nesse sentido, ao delinear o objetivo da pesquisa, busquei a Base de Dados da Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior (CAPES) para verificar a relevância da abordagem. Essa análise proporcionou a compreensão de que vivências literárias com crianças na Educação Infantil tem motivado pesquisadores a se debruçarem em contextos literários para o direito à literatura emancipadora, um direito à literariedade4 valoradora da infância. Esse rastreio no Catálogo de teses e dissertações da CAPES identificou, até o momento dessa busca, o registro de 910.531 pesquisas com vivências literárias. Para me aproximar mais da realidade desta pesquisa, restringi-me ao recorte temporal dos anos de 2013 a 2017; nesse período, identifiquei 333.028 pesquisas com essa temática na Educação Infantil. Contudo, apesar de haver um quantitativo relevante de pesquisas, vejo a minha como um evento único, neste cenário de estudos - O lugar da literatura infantil no espaço educativo: vozes de professoras. Com este estudo, espero contribuir de forma ampla para compreendermos a relação da literatura infantil nas mediações oportunizadas por professoras, por meio de memórias de leitura, do aprendizado literário desde a infância até a maioridade, em espaços formais e informais. Dentre as pesquisas analisadas na base de dados da CAPES, selecionei e, portanto, dialogo com Tamura (2018), em alguns momentos nesta dissertação, tendo em vista algumas aproximações em relação à temática e abordagens, ainda que a dessa autora tenha sido desenvolvida com professoras de Ensino Fundamental. Em vista disso, adentro em enunciados apresentados na organização do trabalho pedagógico nas turmas de pré-escolares, conduzida por lentes bakhtinianas e vigotskianas, a fim de buscar, na essência, como aconteceu a formação de leitor literário com as professoras e 4Segundo os Formalistas Russos, literariedade é o que confere a uma obra sua qualidade literária (OLIVEIRA, 2009). 18 como pode ou não acontecer, de alguma forma, com as crianças das turmas conduzidas por essas docentes, participantes da pesquisa. Nesse sentido, busco gerar dados reflexivos sobre a formação das professoras e as implicações para as ações pedagógicas cujo foco seja a literatura infantil (SOUZA; NETO; GIROTTO, 2016), indispensável para a constituição da alteridade do pequeno sujeito aprendiz de leitor. Considerando as turmas das participantes, crianças de quatro e cinco anos, enfatizo a concepção de criança atribuída no Referencial Curricular Nacional para a Educação Infantil (RCNEI): A criança é um ser social que nasce com capacidades afetivas, emocionais e cognitivas. Tem desejo de estar próxima às pessoas e é capaz de interagir e aprender com elas de forma que possa compreender e influenciar seu ambiente. Ampliando suas relações sociais, interações e formas de comunicação, as crianças sentem-se cada vez mais seguras para se expressar, podendo aprender, nas trocas sociais, com diferentes crianças e adultos cujas percepções e compreensões da realidade também são diversas. Para se desenvolver, portanto, as crianças precisam aprender com os outros, por meio dos vínculos que estabelece. Se as aprendizagens acontecem na interação com as outras pessoas, sejam elas adultos ou crianças, elas também dependem dos recursos de cada criança. Dentre os recursos que as crianças utilizam, destacam-se a imitação, o faz-de-conta, a oposição, a linguagem e a apropriação da imagem corporal. (BRASIL, 1998, p. 21). Menciono esse conceito pelo fato de valorizar a criança como ser social. Justifico essa leitura com o RCNEI em tempo de implantação da Base Nacional Comum Curricular (BNCC), por considerar que esse documento ainda circula entre os professores e apresenta um detalhamento relevante, com relação à criança, para a compreensão de como o(a) outro/criança será visto(a). Outro documento que norteia a Educação Infantil e direciona o olhar e fazer docente são as Diretrizes Curriculares Nacionais para a Educação Infantil (DCNEI). Esse documento atual está referendado na Resolução nº 5, de 17 de dezembro de 2009, que, em seu artigo 4º, concebe a criança como ela deve ser considerada: [...] a criança, centro do planejamento curricular, é sujeito histórico e de direitos que, nas interações, relações e práticas cotidianas que vivencia, constrói sua identidade pessoal e coletiva, brinca, imagina, fantasia, deseja, aprende, observa, experimenta, narra, questiona e constrói sentidos sobre a natureza e a sociedade, produzindo cultura. (BRASIL, 2010). Ambos os documentos orientativos da Educação Infantil concebem a criança como sujeito em desenvolvimento, como centro do trabalho pedagógico, sujeito histórico de direitos, aprendente nas/com interações e relações com o mundo, construindo sentidos e produzindo cultura. Diante de tais normativas, as práticas pedagógicas devem partir das necessidades das crianças, e suas linguagens precisam ser consideradas. Nessa perspectiva, as professoras ocupam o lugar de adulto, mais experiente, organizador do meio e dos objetos 19 para/com as crianças, cujas ações são dirigidas ao patrimônio cultural, à sua apropriação no centro de vivências, aqui, as literárias. A Teoria Histórico-Cultural, uma psicologia social, abarca esse conceito e dele me aproprio dos encontros dialogados. De forma mais precisa, mais exata, o que nós podemos dizer a respeito dos exemplos que vimos quando discutimos as crianças é que os elementos existentes para determinar a influência do meio no desenvolvimento psicológico, no desenvolvimento de sua personalidade consciente é a vivência. A vivência de uma situação qualquer, a vivência de um componente qualquer do meio determina qual influência essa situação ou esse meio exercerá na criança. Dessa forma, não é esse ou aquele elemento tomado independentemente da criança, mas, sim, o elemento interpretado pela vivência da criança que pode determinar sua influência no decorrer de seu desenvolvimento futuro. (VIGOTSKI, 2010, p. 683-684). Nesse contexto, surgiram inquietações às quais busco responder: As professoras são leitoras? As professoras possuem conhecimento teórico e metodológico sobre literatura, leitura, educação e infância, para orientar suas escolhas nas vivências que oportunizam o desenvolvimento da capacidade leitora nas crianças? Qual o lugar da literatura infantil nesse espaço pesquisado? Os enunciados organizados nos planos de aula e nos espaços apresentam um entorno literário? São indagações que direcionaram a pesquisa. Ao perscrutar o outro em sua constituição leitora, busquei a compreensão quanto à alteridade docente. Para Bakhtin, é na relação com a alteridade que os indivíduos se constituem. O ser se reflete no outro, refrata-se. A partir do momento em que o indivíduo se constitui, ele também se altera, constantemente. E este processo [...] é algo que se consolida socialmente, através das interações, das palavras, dos signos. [...]. Em "estética da criação verbal", Bakhtin afirma que "é impossível alguém defender sua posição sem correlacioná-la a outras posições", o que nos faz refletir sobre o processo de construção da identidade do sujeito, cujos pensamentos, opiniões, visões de mundo, consciência etc. se constituem e se elaboram a partir de relações dialógicas e valorativas com outros sujeitos, opiniões, dizeres. A Alteridade é fundamento da identidade. Relação é a palavra-chave na proposta de Bakhtin. Eu apenas existo a partir do Outro. (GEGE, 2009, p. 13-14). Como pesquisadora, compreender como se constituiu a alteridade das professoras significou contemplar o outro constituidor. Não trago o sujeito, na pesquisa, como objeto a ser fragmentado para investigar partes até compreender o todo; procuro um encontro com o outro, lançando mão de um diálogo imbricado de palavras vivas, conversando sobre a alteridade constituída a partir de vivências literárias, dos encontros com outros que fazem parte dessa construção dialógica do ser professora ‘mediadora de leitura’. Antes de tudo, por isso, tal escuta, no diálogo, traz percepções literárias e alterações oriundas das relações com as vozes fictícias e apreensão da fantasia como via para compreensão de sua realidade. Cada participante da pesquisa – eu me incluo aqui - tem sua história social e cultural, tem apropriações de mundo diferente um do outro, e isso é relevante. 20 A dissertação está dividida em três capítulos: no primeiro, o necessário percurso teórico, trago aqueles com quem dialogo conceitualmente, conduzindo a cientificidade da pesquisa; no segundo, explicito o percurso metodológico, as escolhas que fiz para gerar dados para a pesquisa; no terceiro, apresentam-se e se discutem resultados e diálogos representativos desses dados produzidos e, na sequência, a conclusão. 2 PERCURSO TEÓRICO DA LEITURA A LEITORES MIRINS Então, um dia, da janela de um carro (o destino daquela viagem está agora esquecido), vi um cartaz na beira da estrada. A visão não pode ter durado muito; talvez o carro tenha parado por um instante, talvez tenha apenas diminuído a marcha, o suficiente para que eu lesse, grandes, gigantescas, certas formas semelhantes às do meu livro, mas formas que eu nunca vira antes. E, contudo, de repente eu sabia o que eram elas; escutei-as em minha cabeça, elas se metamorfosearam, passando de linhas pretas e espaços brancos a uma realidade sólida, sonora, significante. Eu tinha feito tudo aquilo sozinho. Ninguém realizara a mágica para mim. Eu e as formas estávamos sozinhos juntos, revelando-nos em um diálogo silenciosamente respeitoso. Como conseguia transformar meras linhas em realidade viva, eu era todo-poderoso. Eu podia ler. Qual a palavra que estava naquele cartaz longínquo, isso eu já não sei (parece que me lembro vagamente de uma palavra com muitos as). Mas a impressão de ser capaz de repente, de compreender o que antes só podia fitar é tão vívida hoje como deve ter sido então. Foi como adquirir um sentido inteiramente novo, de tal forma que as coisas não consistiam mais apenas no que os meus olhos podiam ver, meus ouvidos podiam ouvir, minha língua podia saborear, meu nariz podia cheirar e meus dedos podiam sentir, mas no que o meu corpo todo podia decifrar, traduzir, dar voz a, ler. (MANGUEL, 2004). Inicio o percurso teórico deste trabalho dialogando com Manguel (2004), em Uma história da leitura, em que apresenta o encantamento, a alegria e a liberdade no ato de ler. Nesse fragmento da história da leitura, na vida do escritor, ele relata a descoberta do mistério de ler aos quatro anos de idade, ainda menino. Optei por esse trecho do autor, primeiramente, por se tratar de uma experiência em idade equivalente aos meninos e meninas pré-escolares do século XXI, no Brasil de 2019. Também por ser um relato de descoberta da magia do ler, no século passado, que remete a comparações com os dias atuais, quando ainda nos vemos em luta para que a escola e seus ensinamentos não distanciem as crianças do mistério, do fascínio da descoberta, do poder de os riscos tomarem sentidos e ser possível ler. Manguel (2004) retrata uma experiência incrível do aclarar o fantástico e o misterioso, quando crianças pequenas se apropriam do ato de ler e desenvolvem a atitude leitora pelo prazer das descobertas. E assim passei ambiciosamente da minha história de leitor à história do ato de ler. Ou, antes, a uma história da leitura, uma vez que tal história - feita de intuições privadas e circunstâncias particulares – só pode ser uma entre muitas, por mais impessoal que tente ser. Em última instância, talvez, a história da leitura é a história de cada um dos leitores. (MANGUEL, 2004, p. 22). Neste espaço e tempo, a história da leitura apresenta-se com a história do leitor Alberto Manguel, porém, poderia ser a minha, a sua, das crianças e professoras participantes da pesquisa. 22 2.1 A história da leitura e de leitores: percursos do ato de ler Conhecer os percursos históricos me faz apreender o quanto os fazeres de hoje apresentam marcas do ontem. Aqui, remeto a um ontem bem distante, no grande tempo da leitura, quando considero o tempo vivido pela humanidade na Grécia Arcaica e Clássica (século VIII a.C.) e na Roma Antiga (século III a I a.C.), quando o ato de ler surgiu como prática social. Toda história das práticas de leitura é, portanto, necessariamente uma história dos objetos escritos e das palavras leitoras (SVENBRO, 1998, p. 6). Nos primórdios da civilização, na Grécia, houve um período em que havia a hegemonia da oralidade. Ler era um bem concedido apenas por meio da leitura em voz alta, era uma performance do poder de transmitir; a voz era a mídia, assim como o gravador é a mídia em que se salvaguarda a voz do século XXI. Nesse período, o leitor era instrumento e estava a serviço do escrito; ao leitor cabia apenas transmitir aos ouvintes, os destinatários da escrita, e esta, se completava com a sonorização. Desse modo, o mesmo autor assegura: Ler é, pois, colocar sua própria voz à disposição do escrito (em última instância do escritor). É ceder a voz pelo instante de uma leitura. Voz que o escrito logo torna sua, o que significa que a voz não pertence ao leitor durante a leitura. Este último a cedeu. Sua voz submete-se ao escrito, une-se a ele. (SVENBRO, 1998, p.49). Esse fragmento contribui para percebermos a cultura do ato de ler, que exigia performance na leitura em voz alta e cujo silêncio era sinônimo de esquecimento. Todavia, nesse período, na Grécia, despontaram as primeiras manifestações de um ler não oralizado, o que se deu em meados do século V a.C. Ainda nesse século, ocorreu a descoberta de um ler interiorizado e, por consequência, o modo de ser leitor se alterou: o leitor, que antes era um orador de performance teatral, passou a um leitor que lia com a mente e sua voz era interiorizada. Por essas vivências, esse período foi relevante na história da leitura e nos modos de ser leitor. Já na Roma Antiga, a leitura consolidou-se como prática social e a relação dos leitores com o texto foi se constituindo em uma relação íntima, de diálogo entre leitor e escritos; os destinatários não eram apenas ouvintes, já eram leitores. Nessa época, de acordo com Cavallo (1998), não mais se escravizava a leitura a serviço da voz, porque surgiu, nesse momento, a leitura pelo prazer, momento em que a leitura silenciosa se expandiu como prática social, descortinando-se o prazer de ler. Surge, então, a literatura como arte; surge o romance. Foi nesse momento da história da leitura, na Roma Antiga, que surgiram as bibliotecas - as particulares e as públicas -, marcando um período de expansão do público leitor. Segundo 23 Cavallo (1998), as bibliotecas particulares eram um sinal obrigatório de status nas residências de pessoas abastadas, mesmo que pouco instruídas e incapazes de ler bem, enquanto as bibliotecas públicas selecionavam e conservavam o patrimônio literário e os anais civis e religiosos. Estas eram, ainda, um espaço de convivência que atraía o povo também para fins políticos. O florescimento das bibliotecas públicas em Roma e no mundo romano só pode ser marginalmente relacionado com as maiores exigências de leitura. Essas bibliotecas foram criadas como um ato de benemerência e, em alguns casos, por iniciativa imperial, no contexto de uma concentração e apropriação da cultura escrita por parte do poder. (CAVALLO, 1998, p. 77). Assim, nesse tempo histórico da leitura, a cultura escrita já existia como registro do patrimônio e a estruturação do sistema de escrita já era a alfabética; contudo, acreditava-se que antes de aprender a ler aprendia-se a escrever (CAVALLO, 1998). Esse relato da história desperta, em mim, um diálogo com o hoje, em relação à crença na hegemonia da escrita e na dependência da leitura, que ainda se veem perpetuadas nas relações de ensino e aprendizagem das escolas no Brasil. Foi esse período romano que se apresentou como um tempo importante na história da leitura e dos modos de ser leitor. Cavallo (1998) relata que A aprendizagem da leitura, separada da aprendizagem da escrita, era realizada num segundo momento, de modo que havia certamente indivíduos com pouco grau de escolaridade, capazes de escrever, mas não de ler. Da mesma forma, os exercícios iniciais da leitura fundamentavam-se em primeiro lugar no conhecimento das letras isoladas, depois das sílabas e em seguida no conhecimento (ou domínio) de palavras completas; o próprio exercício continuava com uma leitura feita por longo tempo e muito lentamente, até atingir, pouco a pouco, uma emendata velocistas, isto é, um considerável grau de rapidez sem incorrer em erros. (CAVALLO, 1998, p. 79, grifo do autor). Essa descrição de como se aprendia a ler de forma que não se incorresse em erros parece real, confrontada com a realidade vivenciada e as semelhanças no ato de ensinar a ler entre Roma Antiga e o século XXI. Os métodos pelos quais aprendemos a ler não só encarnam as convenções da nossa sociedade em relação à alfabetização - a canalização da informação, as hierarquias de conhecimento e poder -, como também determinam e limitam as formas pelas quais nossa capacidade de ler é posta em uso. (MANGUEL, 2004, p. 55). Desse modo, os métodos pelos quais a criança pequena ainda aprende a ler na interação com o adulto, seja em espaços institucionalizados, seja em espaços não formais, ampliam ou limitam suas capacidades leitoras e, assim, os percursos de aprendizagens e desenvolvimento do ato de ler. 24 Trouxe este breve contexto histórico sobre leitura e leitores, a fim de chamar atenção para os modos de se relacionar com a leitura e os modos de ser leitor. Nessa percepção, dialogo com outros autores, objetivando aprofundar essa reflexão e compreender como as crianças pequenas se constituem leitoras, mesmo não apresentando autonomia na leitura convencional. Novamente, neste enunciado, apresento Manguel (2004) para que, com base na voz do escritor, dar continuidade a esse percurso de desvelamentos do tema leitura, leitores e os modos de ser leitor. Ler as letras de uma página é apenas um de seus muitos disfarces. O astrônomo lendo um mapa de estrelas que não existem mais; o arquiteto japonês lendo a terra sobre a qual será erguida uma casa, de modo a protegê-la das forças malignas; o zoólogo lendo os rastros de animais na floresta; o jogador lendo os gestos do parceiro antes de jogar a carta vencedora; a dançarina lendo as notações do coreógrafo e o público lendo os movimentos da dançarina no palco; o Tecelão lendo o desenho intrincado de um tapete sendo tecido; o organista lendo várias linhas musicais simultâneas orquestradas na página; os pais lendo no rosto do bebê sinais de alegria, medo, admiração; o adivinho chinês lendo as marcas antigas na carapaça de uma tartaruga; o amante lendo cegamente o corpo amado à noite, sob os lençóis; o psiquiatra ajudando os pacientes a ler seus sonhos perturbadores; o pescador havaiano lendo as correntes do oceano ao mergulhar a mão na água; o agricultor lendo o tempo no céu - todos eles compartilham com os leitores de livros a arte de decifrar e traduzir signos. (MANGUEL, 2004, p. 9). Reflito, com o autor, sobre os modos de ser leitor, considerando que ele explicita sua tese por meio de vivências e relações com a leitura nas quais o texto escrito não estava presente. Portanto, a reflexão aqui é um chamamento para o fato de que ler, não depende, necessariamente, de uma escrita à espera de uma voz; a apropriação se fará tanto por meio de performance em voz alta como silenciosa. O autor, ao nos ceder sua voz, ilustra a existência de leituras concretizadas em diferentes contextos nos quais o ato de ler está presente. Muito embora haja dubiedades e posicionamentos diferentes, creio, com o autor, que a arte de decifrar, traduzir e compreender diferentes signos, convive, obviamente, e antes mesmo do surgimento da escrita na cultura humana, com todos os sujeitos envolvidos nas relações com ela; mesmo antes de se apropriar da leitura, a criança, em sua história de aprendiz de leitor, também é convidada de forma ‘verdadeira’, em seu desenvolvimento psíquico, a dar sentido aos diversos “signos” postos nas/com/pelas riquezas produzidas pela humanidade. Assim, não sem razão, Ler é ler escritos reais, que vão desde um nome de rua numa placa até um livro, passando por um cartaz, uma embalagem, um jornal, um panfleto etc., no momento em que se precisa realmente deles numa determinada situação de vida, “para valer” como dizem as crianças. É lendo de verdade, desde o início, que alguém se torna leitor e não aprendendo primeiro a ler. (JOLIBERT, 1994, p. 15). Apoio-me nessa autora francesa, quando apresenta a concepção de ler e de ser leitor engendrada nas concepções de crianças leitoras, aquelas ainda não praticantes da leitura 25 convencional, mas leitoras do mundo, pois a “leitura de mundo precede a leitura da palavra”, como já disse o brasileiríssimo educador Paulo Freire. Jolibert (1994) contribui, ainda, para esclarecer que ler é atribuir um sentido a algo escrito, isto é, sem passar pela decifração (de letra por letra, sílaba por sílaba ou palavra por palavra), nem pela oralização (sequer respiratório por grupo respiratório). O exposto permite-me uma reflexão, como pesquisadora, quanto ao ensinar e aprender a ler apresentado no período romano, ainda tão presente na escola tradicional. Na continuidade de diálogo com a autora, ela enuncia ser necessário atribuir sentido ao escrito, o sentido do todo do enunciado e não nos fragmentos da escrita, nas letras. Ler pelo sentido é o que os adultos necessitam aprender para ensinar as crianças e superar a cultura da decifração, ainda presente nas marcas das vivências no ato de ler das professoras, como veremos expresso na análise dos dados da pesquisa, nesta dissertação. Esse enunciado advém de inquietações, pois ao me posicionar no tempo, cotejo a civilização de hoje vivenciando um caminho histórico de transição do uso do manuscrito para o digital, da mão para o teclado, passando de gestos com três dedos para dez dedos, gestos mudados a partir das relações com os suportes de leitura; e, nessas relações, também estabelecemos modos pelos quais nos posicionamos como leitores, os modos de ser leitor. Há outro ponto transitório decorrente das mudanças tecnológicas a ser evidenciado: nós, adultos mais experientes, somos da cultura do impresso, temos a necessidade de suportes por meio dos quais possamos manusear, folhear. Contudo, as crianças e os jovens são da cultura eletrônica, não dependem de um suporte no qual o texto esteja impresso e que apresente performances de leitura em suportes tecnológicos. Em decorrência desse tempo transitório, os suportes portadores da tecnologia estão substituindo os impressos; como exemplo, temos livros impressos substituídos por versões eletrônicas, bem como revistas, jornais, enciclopédias e tantos outros. Isso se dá pela mudança da organização da sociedade. Mas, e a escola? Provocada por esse enredo, agucei olhares e me coloquei, na pesquisa, a refletir sobre tais implicações no processo de ensinar e aprender a ler, afinal toda inquietação provoca autorreflexão. A tecnologia altera os modos de ler, sem nenhuma dúvida. Assim, de todo o exposto, de Roma ao século XXI, muito se avançou em tecnologia, porém a escola da infância pouco conseguiu acompanhar os avanços tecnológicos ou persiste na resistência quanto aos modos de ser leitor da tradição escolar. Portanto, neste tecer do percurso teórico, as reflexões se encaminham sob o olhar das apropriações das crianças quanto à leitura em escolas de Educação Infantil, meninos e 26 meninas de quatro e cinco anos. Dessa maneira, ao observar como se dá a apropriação do ato de ler nas turmas participantes da pesquisa desenvolvida, busquei, também, verificar se no intento docente existia a disponibilização de práticas que valorizassem, como unidade de leitura, as letras e seus respectivos sons. Nesse sentido, Arena (2010) chama atenção sobre a relevância de se entender o distanciamento do chamado “ensino do código linguístico”, do ensino do ato de ler propriamente dito, posto que ensinar a ler é, antes e genuinamente, ensinar as próprias práticas sociais e culturais que exigem o domínio de todo o sistema da língua, e não de um código apenas; “ensino da língua viva e não da língua morta”, como assevera o autor. É certo que os contatos iniciais das crianças com atividades formais se dão na primeira etapa da Educação Básica, ou seja, já na Educação Infantil, todavia não podem ocorrer de forma descontextualizada. Nessa etapa, já se iniciam as vivências em espaços institucionalizados, mas isso não pode subentender uma antecipação da escolarização, todo o contato da criança tem que ser com o mundo da cultura escrita e não com as letras, sons e sílabas isoladamente. Se nesse tempo se iniciam os primeiros contatos e relações com o mundo rico do escrito, os suportes de leitura e a relação criança e texto, ensinar as práticas sociais e culturais a ele integrado é ensinar a ler pelo sentido, conforme defende Arena (2010), afinal, crianças nessa idade são leitoras ávidas, leem o mundo como um leitor “fluente”, significam as percepções do que se apresenta no seu entorno. São aprendizes do que veem, vivem, sentem e agem na/da/com/pela cultura, nas relações com o outro; no desejo de fazer parte dessa comunidade, a criança lê nossos gestos e atitudes, nossa forma de ser um adulto leitor experiente e autônomo. Despertada por essa enunciação de Arena (2010), recordo o menino Manguel empolgado ao ler, afirmando do quanto todos nós lemos a nós mesmos e ao mundo à nossa volta, para vislumbrar o que somos e onde estamos. Lemos para compreender, ou para começar a compreender. Não podemos deixar de ler. Ler, quase como respirar, é nossa função essencial, diz o historiador da leitura (MANGUEL, 2004). Tal concepção de leitura se constituiu como pressuposto inalterável para analisar e compreender, nas vivências literárias, as intenções pedagógicas dirigidas ao abrir-se para ver e pensar a essencialidade do ato de ler... de ler o mundo... de ler sentidos... da compreensão do que se lê. Na escola, os professores seriam os responsáveis pela ação de ensinar leitura. Gostaria, entretanto, de discutir brevemente essa possível diferença entre ensinar a ler e ensinar leitura, porque leitura me parece como produção protagonizada pelo sujeito que tenta ler. A leitura somente ganha existência quando o leitor a cria na 27 relação entre o que ele é, o que sabe, e o que o texto criado pelo outro está a oferecer. Ao apoiar-me nessa argumentação, poderia entender que professor ensina o ato de ler, isto é, o modo como o leitor em formação deve agir sobre o texto para, nesse processo, criar leitura. Dessa maneira, não seria possível ao professor ensinar a leitura, mas ensinar o aluno a ler, como ato cultural, para criar a sua própria leitura, nos limites de sua potencialidade, na sua relação com os diferentes gêneros e suportes textuais que possibilitam a formação crescente e permanente de modos de pensar cada vez mais abstratos. (ARENA, 2010, p. 243). Portanto, conforme o autor, dessa relação professor–ato de ler–criança, conduz-se aos modos de ser leitor. Há que se considerar que os avanços da sociedade e das tecnologias clamam por um leitor que compreenda o que lê, seja uma leitura de mundo, de imagens ou do outro, presentes nos textos; supera-se, desse modo, a leitura por meio das relações grafemas e fonemas, tendo em vista que essa necessidade por leitores reivindica implicações pedagógicas que objetivam uma formação emancipada e humanizada das crianças. Retomo o início desse percurso histórico da leitura, para dizer que fui ao evento interacional e aos enunciados das professoras, sensível a observar a formação do leitor com base no que Bajard (2014) enuncia, quanto a sermos sensíveis ao duplo acesso, pela escuta e pela vista. Bajard (2014) contribui com este estudo, na medida em que aborda sobre as sessões de mediação que o professor organiza com os objetos mediadores de leitura, crianças e livros, e os relaciona ao encontro de quem fala com quem recepciona a fala do outro, às imagens que falam, aos textos que falam; as crianças, seja pela escuta, seja pela vista, escutam o outro e leem fazendo uso de suas capacidades leitoras, os enunciados. Ressalto, aqui, o acesso ao livro, pois este é o recurso mais usado por professores para apresentar a cultura da escrita, na educação infantil. A literatura permeia e permite o acesso pela escuta e pela vista, e também é pelo livro que crianças pequenas se relacionam com o escrito e iniciam suas leituras independentes; mesmo sem ser um leitor pleno, ela é capaz de elucidar o que as páginas apresentam a ela. Portanto, este estudo é de contribuição aos “fazedores” da educação infantil, no sentido de entenderem a importância de se ensinar para que se desenvolvam meninos e meninas leitores. Uma vez mais, não se trata de oferecer o peixe, mas de ensinar a pescar (BAJARD, 2014), ou seja, de oferecer instrumentos que ajudem adultos professores em sua nobre e necessária responsabilidade de trabalhar o ato de ler com as crianças. Com o percurso das reflexões meu objetivo era apresentar a história da leitura assentada em Manguel (2004), que considera a história da leitura uma história de cada um dos leitores. Tal como o próprio ato de ler, uma história da leitura salta para a frente até o nosso tempo – até mim, até a minha experiência como leitor - e depois volta a uma página antiga em um século estrangeiro e distante (MANGUEL, 2004). Nesse sentido, nossa história apresenta- 28 se em nossas práticas, porém não podemos deixar de renovar as verdades, temos que viver aquela que atendem ao hoje, pois, amanhã algo de novo já se apresenta na cultura humana, na sociedade e nos moverá para outras verdades. Coloco-me nessa reflexão, pois a pesquisa possibilitou a todo o momento um diálogo interior como participante e pesquisadora. Após esse percurso pela história da leitura e de leitores, prossigo com os teóricos que deram apoio ao meu tema e pesquisa. Foi importante essa retomada da história, bem como a reflexão sobre práticas atuais que formam leitores. Em seguida, discorro sobre o aporte teórico referente à literatura infantil e aos atos de ler do leitor mirim. Este subcapítulo oportuniza aos interlocutores a compreensão de que, da história da leitura e de leitores, passamos a focalizar a mediação para a formação de um leitor que tenha desejo de ler. 2.2 Literatura infantil: atos de ler do leitor mirim e o papel do mediador de leitura [...] que a literatura e a arte, sob todas as formas, tenham o seu lugar no coração da sociedade. (PETIT, 2010) Na primeira parada do percurso teórico deste estudo, apresentei uma breve história do ato de ler. Prossigo, aqui, percorrendo caminhos daqueles que me antecederam, na busca por compreender a formação de leitores literários; discorro, neste enunciado de pesquisa, sobre a formação do leitor mirim, mediado pela literatura infantil. Atentei, por meio da visão e palavras de minha orientadora, para o seguinte: pensar nas formas de ensinar a aprender a ler do leitor mirim é pensar na forma de apropriação, antes e primeiramente, dessa prática secular: o ato de ler (GIROTTO, 2013), assim como, o aprendizado do ato de ler como prática histórica e culturalmente constituída, “[...] que leva a compreensão leitora e contribui para a formação do pequeno leitor” (GIROTTO, 2016, p. 35). Nesse sentido, é preciso que um mediador de leitura tenha formação suficiente para compreender: o processo dialógico e complexo da leitura; as funções da literatura para não perder de vista a estética do texto literário; a criança pequena como sujeito ativo; o livro como objeto de várias dimensões culturais; o ensino como processo significativo e a aprendizagem da literatura por meio de prazeres; a importância de planejar o ensino da leitura, a necessidade de ouvir os pequenos; os objetivos da educação e a importância do diálogo (SOUZA; NETO; GIROTTO, 2016). Essas vozes ecoaram em meu pensamento; inquietei-me em relação ao que vivenciei em turmas pré-escolares, o que me lançou ao estudo da essência e não da aparência. 29 Outras circunstâncias vieram juntar-se a essa inquietação: as participações nas disciplinas do PPGE/UNESP e nos Grupos de Estudos e de Pesquisa, Centro de Estudos e Pesquisa em Leitura e Escrita (CEPLE) e Grupo de Pesquisa Processos de Leitura e Escrita: Apropriação e Objetivação (PROLEAO), experiências que me levaram a refletir sobre os espaços em que circulo, profissionalmente, nos quais acontece a educação literária. Assim, surge este estudo literário, cuja fundamentação está nas contribuições da Teoria Histórico-Cultural, com Vigotski e sua escola, e na Filosofia da Linguagem, com Bakhtin e seu círculo. Os percursos teóricos de cada categoria a ser estudada estarão entremeados de palavras vigotskianas e bakhtinianas. Nessa seara literária também dialogo com interlocutores, e me apresento uma interlocutora de pesquisadores dedicados aos estudos sobre o acesso aos suportes de leitura, às implicações pedagógicas, à cultura, às mediações e aos mediadores5, espaços monológicos e dialógicos, ao entorno literário e à literariedade. Nesse sentido, as palavras de Petit (2010), em epígrafe, provocam reflexão; poeticamente escritas elas enunciam a literatura e a arte, sob todas as formas, para que tenham o seu lugar no coração da sociedade. Assim, em campo, foram gerados dados, para o estudo, com olhar que se vale do estético na literatura infantil voltada para a literariedade e não ao utilitarismo, pois intento ir à essência da formação de leitores, como leitores literários, o que não se resume à formação de ledores (PERROTTI, 2015). Tais conceitos constituem meu EU pesquisadora, pois busco compreender as vivências literárias, também com óculos perrotianos6. Ressalto que, mesmo com ampla pesquisa sobre vivências literárias, identificadas na base de dados da CAPES, o mercado editorial tem contemplado um número considerável de literatura utilitária. Embora tenha qualidade de ilustrações e acabamento gráfico editorial, esses livros não apresentam as características estéticas do texto literário, o que não é pouco; porém, compreendo as professoras, que, na condição de organizadoras das sessões de mediação com a literatura infantil, podem, a partir de suas concepções literárias, fazer escolhas de livros e organizar um entorno literário valorizando a literatura como arte e de valor estético. 5A mediação se dá pela linguagem, pois esta é signo, é semiótica. Ao usar o termo “mediadores” justifico que ele não substitui o conceito da relação semiótica, dos signos. 6Na expressão óculos perrotianos refiro-me a Perrotti (1986), quando o autor chama atenção ao uso da literatura na concepção utilitária que se apresenta em um discurso articulado em função de sua eficácia com o leitor e aponta a necessidade de superarmos para que a literatura seja vista como objeto estético, como arte. 30 Portanto, na pesquisa, considero com valor axiológico o afetamento no ato de ler, de crianças que queiram ler, imitando suas professoras, lendo para o outro e para si, efetivando a literatura infantil a qual habitará o coração dos pequenos. Ao considerar o afetamento do ato de ler para formação de atitude leitora, é necessário retomar o desenvolvimento humano e, para tanto, apoio-me nas palavras de Leontiev (1978) sobre a relação do homem e a cultura, do homem social, de que aquilo que no homem é humano é engendrado pela vida em sociedade e pela cultura criada na humanidade. Assim, a cultura que permeia as relações das crianças com outros humanos e com objetos neste tempo, hoje, é o acúmulo de todo conhecimento das gerações que precederam os pequenos. Para a teoria histórico-cultural, ter cultura é estar enraizado na produção histórica da humanidade, ou seja, naquilo que nos constitui como seres humanos e sociais (BARROS; PEQUENO, 2017). Por isso, a evolução da sociedade configura-se na evolução dos bens culturais e, à medida que o homem cria novas formas de viver e novos objetos que respondam às suas necessidades temporais, a cultura vai se modificando, pois as formas de vida e os objetos com os quais o homem se relaciona são alterados e, nesse processo evolutivo, dialético e dinâmico, o patrimônio cultural concentra novas formas de cultura. Trago Leontiev, no convite de adentrarmos no imaginário para compreendermos como seria o mundo sem o conhecimento acumulado, sem a Educação: Se o nosso planeta fosse vítima de uma catástrofe que só pouparia as crianças mais pequenas (sic) e na qual pereceria toda a população adulta, isso não significaria o fim do gênero humano, mas a história seria inevitavelmente interrompida. Os tesouros da cultura continuariam a existir fisicamente, mas não existiria ninguém capaz de revelar às novas gerações o seu uso. As máquinas deixariam de funcionar, os livros ficariam sem leitores, as obras de arte perderiam a sua função estética. A história da humanidade teria de recomeçar. O movimento da história só é, portanto, possível com a transmissão, às novas gerações, das aquisições da cultura humana, isto é, com educação. (LEONTIEV, 1978, p. 272). Esse diálogo com o integrante da Escola de Vigotski provocou-me - e creio que assim aconteça com os interlocutores – com relação ao papel de fazedores da educação, a responsabilidade e responsividade dos adultos, conhecedores das formas de viver deste tempo, do ontem e do hoje, para apresentarem às crianças como nos constituímos e encorajá-las, como geração posterior a nós, a produzirem cultura, para além da que está, aprendendo a buscarem novas formas de viver. É um ato responsável, em que o que digo e faço seja para promover a humanização pautada nas mais valiosas bases de respeito pelo outro e pela diversidade cultural. Ao pensar em literatura e humanização, Antônio Cândido nos elucida um argumento incontestável: a literatura atua em nós por ser “forma de conhecimento, inclusive como 31 incorporação difusa e inconsciente” (CÂNDIDO, 1989, p. 114). Segundo o autor, essa função de atuar no desenvolvimento psicológico do ser humano pode ser explicada pelo fato de que “a literatura desenvolve em nós a quota de humanidade na medida em que nos torna mais compreensivos e abertos para a natureza, a sociedade, o semelhante” (CÂNDIDO, 1989, p. 117). A literatura também possuiria aí uma função social, uma das modalidades vista como um direito inalienável. Assim, ao propiciar a aprendizagem, a literatura torna-se um objeto humanizado. Nesse sentido, por ser relevante, a cultura que permeia as crianças nos espaços institucionalizados da Educação Infantil e a consequência que a negligência de uma mais elaborada tem para o desenvolvimento dos pequenos, remeto ao que Filho e Nunes (2013) propõem problematizar: O desafio para a próxima década é estreitar a distância entre o que é proposto para um trabalho que respeite os direitos das crianças e o que se tem traduzido em orientações e nas práticas municipais. [...] O sistema público e o modo como as crianças são culturalmente percebidas em cada sociedade afetam a concretização de seus direitos. (FILHO; NUNES, 2013, p. 88). Essa questão problematizadora também se apresenta na constituição do EU pesquisadora. Encontro, ainda, em Barros e Pequeno (2017), outra provocação, que me levou a refletir para a pesquisa, quanto a colocar sobre nós, professoras e professores, uma responsabilidade como produtores de cultura: quando pensamos, criamos e agimos, estamos produzindo cultura. O ato de ensinar, de mediar aprendizagens é um ato de apresentar e desenvolver cultura. Insiro um adendo: são os professores os profissionais que apresentam todo o patrimônio cultural aos pequenos; são eles que imergem as crianças no mundo que está disponível, para que elas dele se apropriem; consequentemente, é responsividade do docente alargar ou restringir o mundo, que pode ser infinito. Assim sendo, remeto aos livros como objetos culturais, objetos da cultura humana, historicamente produzidos, que salvaguardam histórias criadas pelo homem de mente inquietada quanto ao desejo de dizer. Estabelecer relações com essas histórias, com o outro que deseja enunciar, não é inato, precisa ser socialmente aprendido. Logo, o amor aos livros e a necessidade da leitura são produtos da experiência vivida, ou seja, são aprendidos e formados socialmente (MELLO, 2016). Se não é inato, é, portanto, processo de ensino. Nesse sentido, para aprender, a criança necessita do outro, o qual cria as condições favoráveis nas interações com os objetos mediadores de leitura, para uma vivência prazerosa, seja por meio do outro quando lê até criar sua necessidade de ler, seja folheando e sentindo o livro, seja contemplando as imagens. 32 Mello (2016) considera que apenas a criança afetada pelo livro e pelo ato de ler experimenta, na leitura, uma vivência emocional transformadora; necessidade é sinônimo de afeto. No entanto, a cultura é transmitida às gerações que precedem os adultos-professoras, e a cultura é o que cada sociedade vivencia e acredita, por isso, ela não é padrão e está condicionada aos mitos, ritos, obras de arte e histórias. Dessa maneira, a transmissão cultural é passada geracionalmente por meio dos contos da vida vivida e da imaginária; o que se precisa é apresentar o mundo aos pequenos, para compreenderem de onde eles vêm, a história em uma sequência de gerações, para que possam compreender seu meio e os outros e, desse modo, situar-se no contexto social e cultural. Transmissão cultural, de acordo com Petit (2010), é o que passamos ao outro daquilo que aprendemos ou descobrimos, as formas como aprendemos ou, ainda, no que acreditamos. Eu apresento a você os que o precederam e o mundo de onde vem, mas apresento também universos, para que tenha a liberdade, para que não seja muito subordinado aos seus antepassados. Eu te dou as canções e narrativas para que possa escrever a sua própria história entre as linhas lidas. Para que você possa, pouco a pouco, tirar de mim, pensar-se como sujeito distinto; depois, elaborar as múltiplas separações que deverá enfrentar. Entrego a você os fragmentos de conhecimentos e as ficções para que não tenha muito medo das sombras e que possa fazê-las dançar. (PETIT, 2010, p. 17). De acordo com a autora, é importante apresentar às crianças os que as precederam e o mundo de onde vêm, e outros universos, para que tenham a liberdade e não sejam muito subordinadas aos seus antepassados, conquistando autonomia, pensando como um sujeito distinto, produzindo cultura, portanto. Contudo, ao pensar em livros, cultura, histórias, acesso a suportes de leitura e todo o entorno literário, retomo o papel do adulto mais experiente nessa relação, os mediadores de leitura - reafirmo, de leitura literária - em sua concepção estética; desde a década de 1970 já recepcionamos muitos esforços por parte de razoável número de escritores que propõem uma nova consciência sobre o papel social da literatura dirigida ao público infantil. Afirmam-se na condição de artistas, abandonando o papel de moralistas ou pedagogos. Petit (2010) traduz o espaço libertário da boa literatura, emancipada das “amarras” da didática há muito praticada nas escolas. Aqui, a preocupação é com a formação de leitores livres para desvendar tramas, retóricas visuais ou verbais, apreender todo um universo belo porque criado com sutilezas de cuidados e emoções insólitas. Esse mediador desejado seria aquele que proporia, à criança pequena, o que esse mesmo autor expôs: “Eu apresento a você os que o precederam e o mundo de onde vem, mas apresento também universos, para que tenha a liberdade [...]” (PETIT, 2010, p.17). É com esse mediador, liberto dos utilitarismos da vida, que me ocupo, 33 neste momento, porque merece total atenção como pesquisadora, uma vez que o avanço científico deve caminhar junto com o homem humanizado. Nessa perspectiva, reporto-me ao adulto, retomando e reafirmando todo o valor axiológico da relação adulto/criança na formação dos pequenos, tendo em vista serem, esses adultos, seres humanizados. Tais indivíduos precedem a existência das crianças neste mundo, exercem o papel de mediadores culturais. Assim, a cultura que permeia a vida delas implica e condiciona a qualidade na apropriação dos bens culturais. Quando direciono esse olhar sobre o adulto, retomo as participantes desta pesquisa e considero as palavras de Petit (2010) quando enuncia: “Apresento a você o mundo que os outros me passaram e de que me apropriei, ou apresento a você o mundo que descobri, construí, amei. [...] mais tarde, eu conto para você lendas que falam do nascimento das estrelas” (PETIT, 2010, p. 14). Nesse sentido, o adulto mais experiente é quem cria os elos mediadores para os leitores mirins; então, inquietei-me em relação às professoras participantes deste estudo: Formarão leitores adultos ou não leitores? Como será a relação das professoras com a leitura literária? Tais problematizações foram afinando meu olhar de pesquisadora, na busca pela essência. Ainda dialogando com Petit (2010), quando a autora faz uma chamada à reflexão, recordei-me de uma ação que estamos acostumados a ver diariamente, à qual nomeia de “gestos de transmissão”. Todos os dias presenciamos alguém oferecendo livros às crianças pequenas, dispondo-os de diferentes maneiras, lendo em voz alta o texto escolhido pela criança, deixando-a livre para ir e vir e, em seguida, a criança busca outro livro. A autora questiona: Qual o sentido desses gestos? Outra inquietação que me apropriei a fim de conhecer a essência do fenômeno da formação de leitores mirins mediados pela literatura infantil. Assim, emergia a necessidade de vir a saber a história de vida das professoras, para compreender sua massa aperceptiva7 e, em suas narrativas de vida, buscar percepções e entendimento do EU/professora. Considerando o eu na perspectiva apresentada por Kramer, ao dialogar com Bakhtin, O eu não é autônomo, existe somente em diálogo com outros eus. Eu preciso da colaboração de outros para me definir e ser autor de mim mesmo, diz Bakhtin. A 7 Massa aperceptiva: Jakubinskij utiliza essa expressão, conforme W. James, no sentido de “conjunto das experiências e saberes necessários à compreensão e `interpretação de uma ação ou de um enunciado. (Jakubinskij, 2015, p.88) 34 palavra resulta da interação entre dois sujeitos, é território comum ente locutor e interlocutor; a palavra é uma espécie de ponte lançada entre mim e os outros. Se ela se apoia sobre mim numa extremidade, na outra, apoia-se sobre meu interlocutor (1998, p. 113). (KRAMER, 2013, p. 314). Compreender as professoras, suas narrativas de vida, sua alteridade leitora e docente, é fazer pesquisa na essência do fenômeno estudado, no sentido que Kramer (2013, p. 317) apresenta, “que é a vida de pessoas que estudamos, é sobre elas que escrevemos textos científicos [...] assim também o discurso científico na pesquisa em humanidades busca seu material científico na vida”. Ao considerar a história vivida no passado e no presente, dos sujeitos em conformidade com o outro neste estudo, remeto à necessidade de compreender o meio, a vivência em que a literatura infantil e os leitores se situam, e, para tecer relações desse meio e das mediações, adentro na seara da linguagem que entremeia as relações entre professoras e crianças, livros e leitores, literatura infantil e implicações pedagógicas e, ainda, entornos literários e espaços monológicos e dialógicos. Para adentrar na compreensão da palavra quando esta permeia as relações de professoras e crianças com a literatura infantil, apresento, a seguir, as contribuições de Vigotski, Voloshinov, Bakhtin e Jakubinskij, para com eles e seus interlocutores entender a linguagem e, assim, sustentar este estudo. 2.3 A linguagem nas vozes de professoras e crianças: a palavra que medeia a literatura infantil Para compreender a fala de outrem não basta entender as suas palavras – temos que compreender o seu pensamento. Mas nem mesmo isso é suficiente – também é preciso que conheçamos sua motivação. (VIGOTSKI, 1993) Na continuidade do percurso teórico, valho-me dessa epígrafe, provocada pela reflexão acerca da compreensão do outro, sua fala, seu pensamento e sua motivação, enfim, sua constituição. Tendo esse caminho em vista, conduzo o diálogo que apresenta a relevância da linguagem na constituição de vozes de professoras, presentes na atividade entre falantes na qual a palavra é enunciada. Considero esse fenômeno para compreensão das vivências literárias na formação de leitores mirins na educação infantil, estudo que apresento nesta dissertação. A fim de organizar meu enunciado, apresento, por meio da linguagem escrita, o pensamento que perpassa minha mente, por meio do qual considero a importância da 35 linguagem como é enunciada, na acepção de Vigotski, Voloshinov, Bakhtin, Jakubinskij e outros com quem dialogo. Com esses autores russos e seus seguidores, caminho em direção à compreensão das vozes de seres expressivos e falantes que ecoam no evento interacional em turmas de crianças de quatro e cinco anos. Exponho vozes que medeiam vivências literárias na constituição da atitude leitora que buscam, na atividade com a literatura infantil, formar leitores. Enuncio seres expressivos e falantes, professoras e crianças. Professoras, aqui, no gênero feminino, apenas se dá em virtude de essas profissionais/mulheres serem sujeitos participantes desta pesquisa de mestrado e as crianças são pequenos que integram turmas de pré-escola; portanto, não se trata de uma questão de valorizar um gênero em detrimento de outro, mas de falar de sujeitos que nos permitiram adentrar nos espaços e tempos de vivências literárias com as crianças. Discuto a linguagem, trazendo para o diálogo os que me inquietaram e estimularam a que refletisse sobre os percursos que conduziriam a pesquisa. A psicologia vigotskiana está na fronteira das discussões, uma vez que considera as bases da teoria histórico-cultural, cujo fundamento apregoa que o “homem” é um ser social e, como tal, sua aprendizagem e desenvolvimento são resultantes das relações sociais que o constituem. Assento-me nas contribuições de Mello (2015), quando concebe que a formação – e o desenvolvimento – das qualidades humanas em cada criança se caracteriza por um processo a que Vigotski chamou de lei geral do desenvolvimento: antes de ser individual, isto é, antes de ser uma característica ou uma qualidade da criança, essa qualidade ou habilidade se desenvolve coletiva e socialmente, isto é, em situação externa à criança; só depois, então, é internalizada, passando a fazer parte das características pessoais. Nesse contexto, Vigotski (1993, 1998, 2000, 2007, 2010) expõe que a linguagem é cultural e social, e está presente no indivíduo que desenvolveu suas capacidades humanas, pois apenas os seres humanos são capazes de se apropriar da linguagem como meio de contato social, fazendo uso da fala para transmitir o conhecimento acumulado historicamente. Compactuo com Arena (2009), ao mensurar que é necessário clarificar a distinção da função e da estrutura da linguagem: A função, isto é, o caráter funcional da manifestação importa, porque seria pela função que se daria a definição da estrutura da manifestação, já que “todo pensamento tem um movimento, um fluxo, um desdobramento, em suma, o pensamento cumpre alguma função, executa algum trabalho, resolve alguma tarefa” (VYGOTSKY, 2001, p. 409) e, por outra perspectiva Vygotsky usa da estrutura para distinguir pensamento e linguagem, sem perder de vista o movimento do pensamento em seu processo de transformação em linguagem; quer com isso dizer, que o pensamento, que tem uma determinada estrutura, transforma-se em linguagem 36 e nela se realiza, já com uma outra estrutura, e também com outra função. (ARENA, 2009, p. 3, grifo do autor). A partir da distinção da função e estrutura da linguagem, e no contexto no qual me propus enveredar, postulo que a linguagem se apresenta com a função de mediar a literatura infantil nas interações com crianças pré-escolares, suas professoras, os suportes de leitura e as histórias, mediações que acontecem no evento interacional, quando a linguagem se apresenta materializada na palavra, nas vozes, na linguagem exterior que medeiam as ações pedagógicas voltadas à formação de leitores por meio de vivências literárias. Assim, aproprio-me da linguagem como manifestação e viso a uma estrutura como ato de dizer. Ainda na perspectiva da psicologia histórico-cultural e instigada pelo desejo de dialogar sobre a formação de leitores mirins mediada pela linguagem, tateei outras contribuições vigotskianas para este estudo, intencionando compreender como se efetiva o desenvolvimento mediante as máximas possibilidades no ato de ensinar e aprender. Por conseguinte, Podem-se distinguir, dentro de um processo geral de desenvolvimento, duas linhas qualitativamente diferentes de desenvolvimento, diferindo quanto a sua origem: de um lado, os processos elementares, que são de origem biológica; de outro, as funções psicológicas superiores, de origem sociocultural. (VIGOTSKI, 2007, p. 42). Isto equivale dizer que o desenvolvimento da linguagem, como processo cultural e social é, portanto, o desenvolvimento das funções psicológicas superiores que acontece entrelaçado e entremeado, no sentido de envolvimento, com a qualidade das relações socioculturais nos espaços e tempos em que se dão os processos de educação, o que conduz à reflexão sobre o ensino e aprendizagens das crianças pelo viés do desenvolvimento das funções psicológicas superiores. Assim, apoiada em Mello (2015) - uma vigotskiana -, considero que os elementos que condicionam a formação e o desenvolvimento das qualidades humanas são o acesso à cultura como fonte das qualidades humanas criadas ao longo da história; a função mediadora das pessoas mais experientes (que, na escola, são representadas pelos professores); e a atividade que a criança realiza. Esses três fatores precisam estar presentes nas escolas infantis e, ouso acrescentar, nas vivências literárias. Apresento vivências literárias depreendendo o conceito de vivência de Vigotski (2010), no qual o desenvolvimento psicológico, da personalidade é determinado e influenciado pelo meio. Portanto, interessa-me, neste estudo, a vivência literária cuja influência do meio determina as relações das crianças com a literatura infantil, condiciona e 37 promove o gosto pelos livros, pelas histórias, na condução da formação do sujeito leitor, do leitor mirim. Sigo dialogando, ratificando a importância da linguagem, que se dá nas relações socioculturais e é determinante no processo de desenvolvimento e humanização. Nesse espaço de afirmação e reafirmação quanto ao percurso teórico do estudo, dialogo também com Volóshinov (2017), autor de Marxismo e filosofia da linguagem, obra na qual o autor apresenta a linguagem como o fenômeno social da interação verbal. Destarte, esse fenômeno não é visto essencialmente como um sistema formal, mas como um conjunto de interações socioculturais. No percurso de estudo da Filosofia da Linguagem, outro filósofo russo que menciono como contribuição a este estudo, é Bakhtin (2011, 2016) e seu Círculo, e com ele remeto à compreensão da linguagem como comunicação verbal, como diálogo. Seu pensamento tem uma centralidade na linguagem e tem, na dialética, as formas de análise. No pensamento bakhtiniano, o diálogo se contrapõe ao discurso monológico, pois acontece entre interlocutores; mesmo quando o discurso é interior, diferentes vozes e outros discursos adentram. Pronuncio vozes por considerar que mesmo o discurso interior é dialógico, onde o outro se apresenta na constituição da nossa alteridade para, assim, compreendermos as vivências com a linguagem. Opto por uma das interações verbais bakhtiniana merecedora de destaque: o diálogo face a face, porque, aqui, ajuda a explicitar os enunciados das professoras e das crianças e as relações que permeiam a literatura infantil em eventos interacionais (FARACO, 2009), sejam aqueles de esferas do cotidiano, sejam aqueles das esferas mais especializadas da criação socioideológica, Tais eventos são sempre compreendidos como um complexo quadro de relações socioculturais. Nessa perspectiva bakhtiniana, os que dialogam com este estudo auxiliam para a compreensão de que as relações são dialógicas e tecidas de sentido e de responsividade na enunciação, nas vozes, com valor axiológico. A teoria da enunciação bakhtiniana aponta para a consideração do fenômeno social da interação verbal nas suas formas orais e escritas, procurando situar essas formas em relação às condições concretas de vida, levando em consideração o processo de evolução da língua, ou seja, sua elaboração e transformação social, assim como podemos aprender com a escola vigotskiana. (GIROTTO, 2016, p. 46, grifo da autora). Ainda na seara da linguagem, dialogo com Jakubinskij (2015), mais um cientista russo que se interessou pela relação linguagem e pensamento, considerando o contexto histórico e 38 cultural. Em A fala dialogal, o autor apresenta a linguagem como uma variedade do comportamento humano. Nessa perspectiva, considera a língua como atividade “linguageira” e o enunciado como elemento principal dessa atividade. Ele também se debruçou no diálogo como objeto de estudo, o diálogo como fenômeno da alternância de réplicas. Jakubinskij define a língua como “pensamento linguageiro” e os fenômenos verbais (os sons, os componentes morfológicos etc.) como “representações linguageiras”, que se organizam em um sistema no pensamento do falante para ser usado em função de um objetivo concreto. (IVANOVA, 2015, p. 31, grifo do autor). O pensamento e as representações “linguageiras” constituem, comumente, interações que permeiam a literatura infantil; assim, na atividade de enunciação das professoras, nas formas não mediatizadas do dizer, as crianças vivenciam tempos e espaços de formação na condição de leitor literário. Com Jakubinskij, considero as “vozes no espaço educativo”, o que remete ao diálogo que acontece nos momentos de vivências literárias, que, por sua vez, acontecem ora por contação de histórias, ora por recontos, ora por leitura individual das crianças. Nessas ações pedagógicas, o diálogo se faz presente tanto na sua forma monologal8 quanto na forma dialogal9 da comunicação verbal, como se dá com as vozes no espaço educativo. Contudo, no tempo de vivências literárias, as crianças, com suas curiosidades em descobrir e desvelar o mundo, mergulham na atividade “linguageira” da professora. Imaginemos um momento da contação de história na forma monologal do ato de contar. O mais comum é uma organização na qual as crianças são dispostas diante da professora e permanecem em total silêncio e atenção, à escuta da história. Contudo, foi possível observar, na pesquisa, em um dos eventos interacionais, uma atitude dialogal das crianças, uma reação de liberdade e desejo de fazer ecoar suas vozes sobre suas percepções. Desse modo, o ato de contar se transformou em um diálogo de réplicas de vozes - ora das crianças para a professora, ora das crianças para outras crianças, ora da professora para as crianças, ora das crianças para o livro. Esse fenômeno é corroborado por Jakubinskij (2015), haja vista que, segundo o autor, se o diálogo é um fenômeno da “cultura”, ele é tanto quanto, senão mais do que o monólogo, um fenômeno da “natureza”, pela alternância de ações e reações, pelos fatos sociais das interações. Assim, aproprio-me da lupa, do olhar inquietado e investigativo para observar a constituição das vozes do e no espaço educativo; eis o que me move: vozes de professoras e 8Forma longa de ação voltada para alguém, no momento da comunicação (JAKUBINSKIJ, 2015). 9Forma alternante das interações, as quais subentendem uma mudança rápida de ações e de reações entre os indivíduos (JAKUBINSKIJ, 2015). 39 crianças são palavras vivas e são esses sujeitos falantes que, no processo de divisão de vozes e de encontro das palavras, trazem, para o momento literário, toda sua massa aperceptiva, ou seja, toda sua percepção da experiência passada, interna e externa, portanto, todo o conteúdo do seu psiquismo, atribuindo sentido ao dito e vivido, conforme concebido por Jakubinskij (2015). Apoiada nas palavras de Miotello (2013, p. 8), fundamento-me na perspectiva de que Qualquer palavra, qualquer texto, qualquer enunciado só tem vida na relação com o outro enunciado, com outra palavra, com outro texto. Apenas quando eles se tocam é que explode a sua vida. Esse contato entre textos na verdade é um contato entre sujeitos falantes e expressivos. Não é apenas um contato mecânico de palavras e textos, mas um contato vital, existencial, vivencial entre pessoas que falam, que alternam atividades com textos, enunciando pontos de vista, valores, posições. Assim, derivam as relações dialógicas que acontecem mediadas pelas palavras, orais e escritas, nos textos e na enunciação. Desse modo, derivam as vivências literárias organizadas pelos adultos com a intencionalidade de apresentar a cultura humana para as crianças. Dessa forma, por meio dos livros, das histórias, a literatura infantil começa a fazer parte do mundo dos pequenos. Enuncio sobre a formação de leitores mirins especificamente na Educação Infantil, tomando, como premissa, que é nessa etapa da Educação que a cultura humana é apresentada aos pequenos em espaços institucionalizados; por essa razão, concordo com as palavras de Girotto (2013), quando afirma que, para nós, pensar nas formas de ensinar e aprender a ler do leitor mirim é pensar na forma de apropriação, antes e primeiramente, dessa prática secular: o ato de ler. Acrescento: ler pelo prazer, pelos sentidos e não pela decodificação. E mais, chamo a atenção para a responsividade dos mediadores de leitura, do adulto mais experiente, da professora que organiza os objetos culturais que mediarão a leitura. Retomo a epígrafe com que iniciei este subcapítulo para, com ela, concluir o pensamento. É preciso que se conheça a motivação do outro e é o que proponho nas vozes de professoras, busco ouvir falas, compreender pensamentos e entender motivações. Ressalto que todo diálogo produzido continua a fazer parte da constituição da minha alteridade de pesquisadora e professora. Nesse sentido, é importante retomar o valor que a linguagem tem nas relações humanas, no assento da partilha social entre humanos, no enaltecimento das relações dialógicas, e nas vozes. São atos de fala que permeiam as vivências literárias nos eventos interacionais, nesse coletivo de vozes, nessa heteroglossia10; professoras e crianças interagem mediados por livros e histórias, contribuindo para a formação de leitores literários. 10Heteroglossia: multiplicidade das vozes ou línguas sociais (FARACO, 2009, p. 102). 40 Portanto, observo se adultos, professoras, leitores são falantes e expressivos, ao promoverem eventos interacionais dialógicos. Prosseguindo, apresento, a seguir, um diálogo organizado entre mim – pesquisadora - e meus outros, a fim de me cercar teoricamente para compreender o ato de ler nas vivências organizadas pelas professoras. 2.4 A educação literária desenvolvente na infância: um ato responsável Objetiva-se, neste ponto do percurso teórico, apresentar as ideias de pesquisadores que fizeram parte da Escola de Vigotski (1896-1934) e que contribuem para a reflexão a respeito da formação de atitudes que devem ser desenvolvidas nas crianças pequenas em turmas de Educação Infantil, seara deste estudo. A Educação Infantil é a etapa da Educação Básica organizada como política pública a partir das Diretrizes Curriculares Nacionais para a Educação Infantil (DCNEI) (BRASIL, 2010)11, cuja concepção é de indissociabilidade entre educação e cuidado, norteada pelos eixos estruturantes: brincadeiras e interações. Retomo as aprendizagens nessa etapa, pelo fato de conduzirem ao desenvolvimento integral das crianças como seres humanos, fator assegurado na Resolução nº 5/2010, que fixou as DCNEI (BRASIL, 2010) vigentes até o momento, norteadoras da BNCC que auxiliará os currículos de estados e municípios. Nesse sentido, recorto, do documento, este trecho: [...] o campo da Educação Infantil vive um intenso processo de revisão de concepções sobre educação de crianças em espaços coletivos, e de seleção e fortalecimento de práticas pedagógicas mediadoras de aprendizagens e do desenvolvimento das crianças. Em especial, têm se mostrado prioritárias as discussões sobre como orientar o trabalho junto às crianças de até três anos em creches e como assegurar práticas junto às crianças de quatro e cinco anos que prevejam formas de garantir a continuidade no processo de aprendizagem e desenvolvimento das crianças, sem antecipação de conteúdos que serão trabalhados no Ensino Fundamental. (BRASIL, 2010, p. 7). Nesse cenário, penso e repenso sobre a relevância de compreender as professoras e como elas organizam o trabalho pedagógico, as intenções deflagradas desse fazer, assim como a concepção de criança que permeia os fazeres dessas docentes, tendo em vista que, na minha percepção, apesar de as DCNEI terem sido atualizadas e fixadas desde 2010, portanto, com nove anos de vigência, muito está por ser assegurado, com relação às mediações com as 11As DCNEI foram fixadas na Resolução CNE/CEB nº 5, de 17 de dezembro de 2009, porém cito na dissertação o ano de 2010, pois me refiro à publicação em material gráfico (BRASIL, 2010). 41 crianças. Destacam-se, por exemplo, os aspectos de como elas se relacionam com a leitura, da ficção, dos suportes e de todos os elementos de um entorno literário. Nessa conjuntura, surgiu a necessidade e o motivo de me lançar a pesquisar, estudar, dialogar e refletir, colocando-me como aprendiz, que se abre para a desestrutura de certezas e dá espaço a outras estruturas de pensamento, em uma dicotomia entre reflexão e ação, constituindo minha alteridade como pesquisadora. Saliento, aqui, que esse exercício reflexivo do eu e do outro me sensibilizou a adotar um olhar investigativo acerca dos direitos das crianças. Estes, apesar de estarem assegurados na concepção de criança - sujeito de direito – em relação aos espaços que ela frequenta, sejam eles formais ou não formais, não se consolidam integralmente. No documento Critérios para um atendimento em creches que respeite os direitos fundamentais das crianças, Campos e Rosemberg (2009) organizaram esses direitos para que todos tivessem amplo acesso a eles, a fim de efetivação. São eles: Nossas crianças têm direito à brincadeira Nossas crianças têm direito à atenção individual Nossas crianças têm direito a um ambiente aconchegante, seguro e estimulante Nossas crianças têm direito ao contato com a natureza Nossas crianças têm direito a higiene e à saúde Nossas crianças têm direito a uma alimentação sadia Nossas crianças têm direito a desenvolver