UNIVERSIDADE ESTADUAL PAULISTA “JÚLIO DE MESQUITA FILHO” FACULDADE DE CIÊNCIAS – CAMPUS DE BAURU PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM EDUCAÇÃO PARA A CIÊNCIA MAYKELL JÚLIO DE SOUZA FIGUEIRA ANÁLISE DOS PRINCÍPIOS DE PLANEJAMENTO ARGUMENTATIVO E DAS CONDIÇÕES DE PROMOÇÃO DA ARGUMENTAÇÃO NA FORMAÇÃO INICIAL DE PROFESSORES DE FÍSICA Bauru 2020 Maykell Júlio de Souza Figueira ANÁLISE DOS PRINCÍPIOS DE PLANEJAMENTO ARGUMENTATIVO E DAS CONDIÇÕES DE PROMOÇÃO DA ARGUMENTAÇÃO NA FORMAÇÃO INICIAL DE PROFESSORES DE FÍSICA Tese apresentada à Faculdade de Ciências da Universidade Estadual Paulista “Júlio de Mesquita Filho”, Campus de Bauru, como um dos requisitos para a obtenção do título de Doutor em Educação para a Ciência (Área de Concentração: Ensino de Ciências). Orientador: Prof. Dr. Roberto Nardi. Bauru - São Paulo 2020 Tese apresentada ao Programa de Pós-Graduação em Educação para a Ciência, Área de Concentração em Ensino de Ciências, da Faculdade de Ciências da UNESP, Campus de Bauru, como um dos requisitos para obtenção do título de Doutor em Educação para a Ciência. Bauru, 10 de Fevereiro de 2020. BANCA EXAMINADORA: Presidente e orientador: Prof. Dr. Roberto Nardi UNESP - Faculdade de Ciências Departamento de Educação - Campus de Bauru Titular: Prof.ª Dr.ª Silvania Sousa do Nascimento UFMG - Universidade Federal de Minas Gerais Departamento de Métodos e Técnicas de Ensino Titular: Prof.ª Dr.ª Beatriz Salemme Corrêa Cortela UNESP - Faculdade de Ciências Departamento de Educação - Campus de Bauru Titular: Prof.ª Dr.ª Isabel Gomes Rodrigues Martins UFRJ – Universidade Federal do Rio de Janeiro Núcleo de Tecnologia Educacional para a Saúde (NUTES) Titular: Prof.ª Dr.ª Fernanda Cátia Bozelli UNESP - Faculdade de Ciências Departamento de Física e Química - Campus de Ilha Solteira DEDICATÓRIA Dedico as páginas que se seguem a você, estudante de graduação ou pós-graduação, seja você do Brasil ou de outro país, que se encontra em algum momento de muito desespero e de aflição em relação à sua pesquisa e à sua escrita. Acredite, eu sei o que você está sentindo. Eu compreendo cada detalhe do drama que você vive, cada frustração, cada noite mal dormida, cada choro sem solução, cada página apagada. Seja qual for a razão pela qual você aqui chegou, eu espero que leia isto, e que ao ler, se fortaleça. Busque, em todos os lugares possíveis e imagináveis, forças para continuar e para concluir esse TCC, essa dissertação ou essa tese que você tanto quer e à qual você tanto já se dedicou. Ou, se por alguma razão, depois de muito refletir e conversar com as pessoas que lhe querem bem, decidir que é melhor buscar outro caminho diferente da carreira acadêmica, vá sem receios, siga seu coração. Se sua escrita não se encontra da forma como você quer, entenda que ninguém nasce sabendo escrever, e que o fato de estar na graduação ou na pós-graduação não faz de você automaticamente um(a) bom(boa) escritor(a). A escrita é processo, é diálogo, é construção. Olhe para seus escritos anteriores, veja o quanto você já progrediu, e imagine o quanto você ainda vai melhorar. Seja qual for a dificuldade que você esteja sentindo, eu lhe desejo força. Que essa força se manifeste em sua escrita final, e que como esta página, você dedique alguns minutos de seu tempo após a conclusão de seu trabalho, a conversar com outros estudantes para confortá-los e acalmá-los, criando as condições necessárias para que o fluxo de ideias volte e se manifeste. Que a força esteja conosco! AGRADECIMENTOS Agradeço imensamente à minha esposa, 李琼 (Li Qiong), minha companheira, cúmplice, amiga, alma gêmea, pelo suporte emocional, pelo tempo despendido me acalmando e me incentivando sempre que a escrita se tornava exaustiva e sem fluidez. Agradeço ao meu orientador, Prof. Dr. Roberto Nardi, pela orientação durante o mestrado e o doutorado, pelo suporte acadêmico, por me apresentar a quase todos os referenciais que hoje conheço, por me iniciar no caminho da pesquisa educacional. Além disso, agradeço por todos os felizes momentos que compartilhamos e pela bela amizade construída. Agradeço de todo o meu coração à Prof.ª Dr.ª Beatriz Salemme Corrêa Cortela, por ter sido uma das pessoas pelas quais adquiri profundo respeito e admiração pessoal e profissional, e pelos momentos nos quais sua mão amiga e seus conselhos acadêmicos e pessoais puderam me manter nos eixos e me fazer prosseguir. Agradeço infinitamente à toda a minha família, mas com especial devoção e carinho à minha querida mãe Avany, à minha amada tia/pai Any, à minha inesquecível e bem-humorada madrinha Lázara e à minha incrível vovó Geralda, base de toda a nossa família e um exemplo constante de força, garra e alegria. Agradeço às Professoras Doutoras Silvânia Sousa do Nascimento, Isabel Gomes Rodrigues Martins, Beatriz Salemme Corrêa Cortela e Fernanda Cátia Bozelli pela inestimável participação como membros da defesa de minha tese. Suas contribuições, sem dúvida, elevaram enormemente a qualidade deste texto. Agradeço à todos os amigos que me acompanharam de mais perto ou de mais longe. Não me atreveria a nomeá-los, pois correria sem dúvida o risco de esquecer de alguns, mas todos eles sabem de sua inestimável importância em minha vida e em minha trajetória acadêmica. Obrigado, vocês fizeram tudo ser um pouco menos difícil. Agradeço à todos os professores, licenciandos e técnicos administrativos e educacionais que participaram desta pesquisa. A convivência com vocês me fez ressignificar de forma muito profunda o que é o curso de Física e o que significa carregar a dádiva e a responsabilidade de um diploma de professor de Física. A todos vocês, meu respeito, minha admiração e meu muito obrigado. Agradeço à CAPES (Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal do Ensino Superior) pelo apoio financeiro à pesquisa. Sem tal suporte, a pesquisa científica em nosso país pereceria. Epígrafe ”Ensinar não é transferir conhecimento, mas criar as possibilidades para a sua própria produção ou a sua construção”. Paulo Freire FIGUEIRA, M. J. S. Análise dos princípios de planejamento argumentativo e das condições de promoção da argumentação na formação inicial de professores de Física, 2020, 339p. Tese (Doutorado em Educação para a Ciência). Faculdade de Ciências, UNESP, Bauru, 2020. RESUMO Os ambientes formais de ensino são feitos de uma combinação complexa e dinâmica de diversos fatores que determinam as classes de objetivos que congregam professores e estudantes naqueles espaços, os tipos de atividades didáticas que são desenvolvidas e os conhecimentos que potencialmente serão desenvolvidos com o envolvimento dos indivíduos nas atividades propostas. Nos últimos anos, uma das linhas de pesquisa que têm crescido consideravelmente no Brasil e no mundo é a argumentação no ensino de Ciências. Dentro de seu escopo de investigações, têm ganhado destaque trabalhos que focam seus esforços no mapeamento das condições que ambientes formais de ensino oferecem para que os estudantes sejam levados a vivenciar o processo de emitir opiniões e de formular justificativas coerentes baseadas em fatos teóricos ou experimentais. No entanto, recentes publicações apontam que apesar do grande número de evidências que sugerem a incorporação de práticas argumentativas ao ensino de ciências, tais práticas ainda estão muito distantes dos cursos de formação de professores. Nesse sentido, o presente estudo de caso teve como objetivo central compreender como estão configuradas quatro disciplinas de um curso de Licenciatura em Física em relação a seis elementos que mais influenciam o desenvolvimento de saberes argumentativos por parte de seus estudantes. A pesquisa foi desenvolvida junto a professores e estudantes de um curso de Licenciatura em Física de uma universidade pública do estado de São Paulo entre os anos de 2016 e 2020. As disciplinas analisadas foram escolhidas por representarem bem a diversidade de departamentos que integram o curso, por estarem situadas em momentos importantes do curso e pelo fato de que os docentes já ministravam tais disciplinas há bastante tempo. Os dados foram obtidos por meio de entrevistas semiestruturadas com os docentes responsáveis por cada disciplina e com licenciandos do curso, de notas de campo do pesquisador ao acompanhar as aulas de cada disciplina, da leitura das ementas das disciplinas disponíveis na página do curso e de informações acadêmicas e profissionais dos docentes obtidas na Plataforma Lattes. Além disso, uma prática argumentativa foi realizada ao final de cada uma das quatro disciplinas, cujas transcrições de áudio e vídeo foram utilizadas para posterior análise. A análise de dados foi realizada a partir de conceitos da terceira geração da Teoria da Atividade e de modelos teóricos para a compreensão da argumentação em espaços formais de ensino. Os resultados do estudo revelam que apesar das recentes reestruturações curriculares que alteraram a estrutura e o funcionamento do curso, as quatro disciplinas analisadas não constituem espaços propícios ao desenvolvimento de saberes argumentativos, afirmação esta que poderia ser estendida para a maioria das disciplinas do curso. Tal constatação baseia-se no fato de que as alterações nos objetivos formativos do curso, expressos no novo projeto pedagógico e nas ementas de cada disciplina, parecem não ter sido capazes de promover mudanças significativas nas concepções de ensino e de aprendizagem dos docentes do curso e nos tipos de interações dialógicas mais recorrentes em sala de aula. Palavras-chave: Formação Inicial de Professores, Ensino de Física, Argumentação, Teoria da Atividade, Práticas Epistêmicas Científicas ABSTRACT Formal learning environments are made up of a complex and dynamic combination of diverse factors that determine the types of learning goals that bring teachers and students together in those spaces, the sorts of didactic activities that are carried out, and the knowledge that may be developed as individuals engage in the proposed activities. In recent years, one line of research that has grown considerably in Brazil, as well as all over the world, is the study of argumentation in science education. Within this broad line, a particular set of studies has acquired a very important status: studies that aim at mapping the conditions that formal learning environments provide to their students to voice their opinions and to formulate solid justifications based on empirical or theoretical facts to back their claims. However, recent publications point out that despite the large amount of evidence that suggests the incorporation of argumentative practices in science teaching, such practices are still a long way from teacher training courses. In this sense, the present case study had as central objective to understand how four disciplines of a Physics Degree course are configured in relation to six elements that most influence the development of argumentative knowledge by its students. The research was developed with professors and students of a Physics Degree course at a public university in the state of São Paulo between the years 2016 and 2020. The subjects analyzed were chosen because they represent well the diversity of departments that integrate the course, for being located at important moments of the course and for the fact that the professors had already taught such subjects for a long time. The data were obtained through semi-structured interviews with the professors responsible for each discipline and with course graduates, from the researcher's field notes when observing the classes of each discipline, from reading the course menus available on the course page and academic and professional information from teachers obtained from the Lattes Academic Database. In addition, one argumentative practice was carried out at the end of each of the four disciplines, whose audio and video transcriptions were used for further analysis. Data analysis was performed based on concepts from the third generation of Activity Theory and theoretical models for understanding argumentation in formal learning environments. The results of the study reveal that despite the recent curricular reforms that altered the structure and operation of the undergraduate program, the four analyzed courses are not considered as environments that are prone to scaffold the development students’ argumentative knowledge and skills, a statement that could be extended to most of the courses of this program. Such finding is based on the fact that the changes in the educational goals of this program, expressed in the new pedagogical project and in the syllabus of each discipline, have not been able to promote significant changes in the teaching and learning conceptions of the professors that are responsible for such courses and in the types of dialogic interactions that are more frequent in the classroom. Keywords: Pre-service Teacher Education, Physics Teaching, Argumentation, Activity Theory, Scientific Epistemic Practices. LISTA DE ILUSTRAÇÕES Figura 01 – Página criada por Thomas P. Way em 1988 pra investigar a adesão das à ideia de banir a substância denominada monóxido de dihidrogênio (DHMO). ....... 50 Figura 02 – Esquema representativo do modelo argumentativo de Toulmin. ........... 62 Figura 03 – Esquema representativo do modelo argumentativo de Toulmin incluindo os conceitos .............................................................................................................. 62 Figura 04 – O floco argumentativo: Um sumário dos princípios de planejamento argumentativo de espaços formais de ensino. .......................................................... 70 Figura 05 – Cinco classes de saberes docentes classificados segundo .................. 91 Figura 06 – Modelo de Vygotsky da ação mediada e sua reformulação usual. ...... 111 Figura 07 – Diagrama ilustrativo do sistema da atividade escandinavo. ................ 120 Figura 08 – Sistemas de atividade interagentes: Uma nova ferramenta analítica e interpretativa ............................................................................................................ 122 Figura 09 – Diagrama representativo da atividade de formação inicial docente voltada ao desenvolvimento de saberes argumentativos como um sistema integrado. ................................................................................................................................ 131 Figura 10 – Estrutura curricular do curso de Física na modalidade Licenciatura em Física com seus respectivos três eixos. .................................................................. 169 Figura 11 – Dados do percentual de evasão para cursos de bacharelado, bacharelado/licenciatura e licenciatura para as áreas biológicas, de humanidades e de ciências exatas da UNESP entre os anos de 2000 a 2009. ............................... 170 Figura 12 – Dados de 11000 estudantes da relação candidato/vaga (C/V) de diversos cursos da UNESP plotado em função das taxas de evasão dos respectivos cursos, obtidos entre 2000 e 2009. ......................................................................... 171 Figura 13 – Quadro com a sequência de etapas planejadas para a realização do estudo de caso desta pesquisa .............................................................................. 175 Figura 14 – Esquema do modelo Argument-Driven Inquiry (ADI) utilizado na prática argumentativa realizada na disciplina Laboratório de Física I. ................................ 188 Figura 15 – Triângulo de Engeström representando o sistema de atividade da disciplina Laboratório de Física I. ............................................................................ 214 Figura 16 – Triângulo de Engeström representando o sistema de atividade da disciplina Introdução à Pesquisa em Ensino de Física. ........................................... 222 Figura 17 – Triângulo de Engeström representando o sistema de atividade da disciplina Física Moderna II. .................................................................................... 237 Figura 18 – Triângulo de Engeström representando o sistema de atividade da disciplina Filosofia da Ciência. ................................................................................ 251 LISTA DE QUADROS E TABELAS Quadro 01 – Modelo tipológico dos saberes dos professores segundo sua proveniência social. ................................................................................................... 91 Quadro 02 – Categorias dos saberes de argumentação docente relativos ao desenvolvimento de atividades argumentativas em sala de aula. ........................... 103 Quadro 03 – Conjunto de ações facilitadoras a serem tomadas pelos docentes para promover o desenvolvimento argumentativo em sala de aula. ................................ 104 Quadro 04 – A hierarquia proposta para os elementos da estrutura da atividade. . 126 Quadro 05 – Diferenças entre a pesquisa quantitativa e qualitativa ....................... 151 Quadro 06 – Descrição resumida das principais características da pesquisa etnográfica. .............................................................................................................. 156 Quadro 07 – Tipos de perguntas de pesquisa comumente utilizadas em pesquisas aplicadas ................................................................................................................. 159 Quadro 08 – Quadro das dinâmicas de trabalho estabelecidas por três grupos de estudantes do terceiro ano do ensino médio em atividades experimentais em um laboratório de Física ................................................................................................ 211 Quadro 09 – Síntese do estágio atual dos seis princípios de planejamento argumentativo da disciplina Laboratório de Física I. ............................................... 253 Quadro 10 – Síntese do estágio atual dos seis princípios de planejamento argumentativo da disciplina Física Moderna II. ....................................................... 254 Quadro 11 – Síntese do estágio atual dos seis princípios de planejamento argumentativo da disciplina Introdução à Pesquisa em Ensino de Física. .............. 255 Quadro 12 – Síntese do estágio atual dos seis princípios de planejamento argumentativo da disciplina Filosofia da Ciência. .................................................... 256 LISTAS DE ABREVIAÇÕES E SIGLAS BNCC – Base Nacional Comum Curricular DCNEM - Diretrizes curriculares Nacionais para o Ensino Médio EUA - Estados Unidos da América IA - Inteligência Artificial (ou Artificial Intelligence, na sigla em inglês) INB – Indústrias Nucleares do Brasil LDB - Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional LIBRAS – Linguagem Brasileira de Sinais MEC – Ministério da Educação NSF - National Science Foundation NGSS – Next Generation Science Standards PIBID – Programa Institucional de Bolsas de Iniciação à Docência PCN - Parâmetros Curriculares Nacionais PISA – Programme for International Student Assessment PPC – Projeto Pedagógico de Curso TA - Teoria da Atividade TCC – Trabalho de Conclusão de Curso SAD – Saberes da Argumentação Docentes SES – Secretaria de Educação Superior ZDP - Zona de Desenvolvimento Proximal SUMÁRIO INTRODUÇÃO E JUSTIFICATIVA ................................................................................................... 17 01 – LINGUAGEM, DISCURSO E ENSINO DE CIÊNCIAS ............................................................... 23 1.1. Diferentes correntes teóricas dos estudos da linguagem ......................................................................... 23 1.2. A linguagem pelo prisma da Linguística ................................................................................................. 24 1.2.1. As gramáticas prescritivas, a Linguística Histórica e o descritivismo linguístico ........................... 24 1.2.2. Uma abordagem formalista, descritiva e estruturalista .................................................................... 28 1.2.3. Uma corrente de pensamento funcionalista ..................................................................................... 32 1.3. A linguagem pelo prisma da Psicologia vygotskyana ............................................................................. 33 1.4. A linguagem pelo prisma da Filosofia da Linguagem bakhtiniana ......................................................... 39 1.5. Pressupostos teóricos e metodológicos sobre a linguagem e o discurso que fundamentam a tese .......... 43 02 – OS ARGUMENTOS, A ARGUMENTAÇÃO E OS ESPAÇOS ARGUMENTATIVOS ................ 48 2.1. “Contra fatos, não há argumentos”: a constituição dos fatos como processo dialógico de debate. ........ 48 2.2. O que vem a ser os argumentos e a argumentação? E como estudá-los? ................................................ 60 2.3. A argumentação no ensino de Ciências ................................................................................................... 63 2.4. A caracterização e a constituição dos princípios de planejamento argumentativo de ambientes formais de ensino ........................................................................................................................................................... 68 03 – FORMAÇÃO DOCENTE: CRIANDO PONTES ENTRE A PESQUISA E A PRÁTICA ............. 73 3.1. Abordagens do ensino de Ciências e a formação de professores de Ciências no Brasil: conflitos, críticas e possíveis melhorias ........................................................................................................................................ 74 3.2. As contribuições de Maurice Tardif e Selma Garrido Pimenta: Os saberes docentes e a construção de uma identidade profissional docente ................................................................................................................. 85 3.3. Pontes possíveis entre as pesquisas em argumentação e a formação inicial de professores de Ciências 97 3.3.1. Algumas das principais contribuições da argumentação para a formação inicial docente ............... 98 3.3.2. Saberes docentes da argumentação e ações argumentativas em sala de aula ................................. 102 04 – TEORIA DA ATIVIDADE E EDUCAÇÃO: CONEXÕES POSSÍVEIS E NECESSÁRIAS ........ 108 4.1. Alguns dos principais problemas da Psicologia no início do século XX .............................................. 109 4.2. Fundamentos teóricos da Teoria da Atividade ...................................................................................... 113 4.3. A Teoria da Atividade como lente interpretativa nas pesquisas educacionais ...................................... 124 05 – DESCRIÇÃO CONTEXTUAL E METODOLÓGICA DA PESQUISA ...................................... 136 5.1. Problema de Pesquisa ............................................................................................................................ 136 5.2. Impressões e ideias iniciais sobre o curso de licenciatura em Física ..................................................... 140 5.3. Objetivos de Pesquisa ............................................................................................................................ 143 5.3.1. Objetivo central .............................................................................................................................. 144 5.3.2. Objetivos decorrentes ..................................................................................................................... 144 5.4. Descrição metodológica ........................................................................................................................ 144 5.5. Caracterização metodológica da pesquisa ............................................................................................. 149 5.5.1. Estudo de caso educacional ............................................................................................................ 151 5.5.2. Pesquisa Etnográfica ...................................................................................................................... 155 5.6. Descrição detalhada do caso estudado................................................................................................... 158 5.6.1. As questões do estudo .................................................................................................................... 158 5.6.2. As proposições ............................................................................................................................... 161 5.6.3. As unidades de análise ................................................................................................................... 162 5.6.4. A lógica que une os dados às proposições ..................................................................................... 162 5.6.5. A delimitação do caso estudado ..................................................................................................... 162 5.7. Definição dos sujeitos, espaços e documentos envolvidos na pesquisa ................................................ 174 5.8. Etapas de Planejamento e Desenvolvimento da Pesquisa ..................................................................... 174 5.9. Instrumentos de constituição de dados .................................................................................................. 182 5.10. Descrição das atividades argumentativas planejadas........................................................................... 185 06 – SISTEMATIZAÇÃO DOS DADOS, ANÁLISES E DISCUSSÕES ............................................. 193 07 – CONCLUSÕES E FUTURAS INVESTIGAÇÕES...................................................................... 277 REFERÊNCIAS ................................................................................................................................ 286 ANEXOS ........................................................................................................................................... 308 17 INTRODUÇÃO E JUSTIFICATIVA Influenciadas pelas ideias e tendências dos estudos da Psicologia sociocultural (VYGOTSKY, 2001), as pesquisas brasileiras em Ensino de Ciências têm, nas últimas décadas, voltado suas atenções para a compreensão das diversas dimensões do ser humano por meio da linguagem, especificamente na análise de produções verbais concretas situadas em meio a contextos específicos (VAÇOSSI, 2014), a exemplo das interações dialógica que acontecem entre estudantes e professores em sala de aula e de negociação de significados por meio da discussão e do debate (MORTIMER; SCOTT, 2002). Tais estudos voltam-se cada vez mais para a necessidade de se produzir conhecimento no campo da Linguística, a fim de investigar não apenas o que é dito, mas principalmente como é dito e por que é dito. Nesse sentido, uma das linhas de pesquisa que foi construída a partir de tais tendências e que tem gradualmente ganhando interesse e ampliado sua participação em periódicos científicos e em eventos nacionais (SÁ; QUEIROZ, 2011) é a argumentação no ensino de Ciências. A argumentação é vista hoje como uma linha de investigações bastante profícua, abrigando uma série de questões teóricas, metodológicas e didáticas que ainda carecem de melhores definições e aprofundamentos (JIMÉNEZ-ALEIXANDRE; BROCOS, 2015). De acordo com alguns autores, as pesquisas têm passado por uma espécie de evolução em seus objetos de estudo e em seus métodos de análise (ERDURAN; JIMÉNEZ-ALEIXANDRE, 2012). As primeiras pesquisas que constituíram o cerne desta linha de investigação buscaram aplicar modelos teóricos de argumentos (PERELMAN; OLBRECHTS-TYTECA, 1969; TOULMIN, 2003) para avaliar a qualidade de argumentos produzidos por estudantes e professores em ambientes formais e informais de ensino. Em um segundo momento, tais pesquisas voltaram seus olhares para a criação de instrumentos para analisar o desenvolvimento de competências argumentativas de estudantes (ERDURAN, 2008). Em um terceiro momento, que é característico do atual estágio das pesquisas, há um interesse emergente sobre como seria possível fomentar o engajamento dos estudantes na aprendizagem da argumentação através do design de ambientes de aprendizagem (JIMÉNEZ-ALEIXANDRE, 2008) e por meio da formação de professores de disciplinas 18 científicas em uma perspectiva argumentativa (ERDURAN; ARDAC; YAKMACI- GUZEL, 2006) No entanto, mesmo com um considerável número já acumulado de evidências que sustentam a importância e a relevância da incorporação de práticas argumentativas ao ensino de ciências em todos os níveis e modalidades de ensino, o estudo e a prática da argumentação ainda se encontram muito distantes de um dos espaços no qual sua presença se faz muito necessária: a formação docente. Archila (2012) afirma que ainda não há estudos suficientes que permitam elucidar os alcances da incorporação da argumentação na formação inicial de professores de ciências e que ainda há vários questionamentos sobre como deveriam ser planejados os programas de formação de professores para incluir conteúdos argumentativos, a fim de que os mesmos não ocupem apenas o papel de mais um objeto de aprendizagem ou de mais um conteúdo escolar, mas sim que seja vista como uma prática transcurricular ou como um meio de aprendizagem. Partindo desse princípio, a argumentação na formação de professores não seria uma técnica didática, mas antes um conjunto de conhecimentos diversificados e interconectados que constituiriam a base da formação docente e da organização curricular. Assim, a presente pesquisa fundamenta-se em uma motivação teórica advinda das tendências de pesquisa em argumentação no ensino de ciências e também de desafios didáticos associados ao planejamento de situações de sala de aula que promovam a prática argumentativa e à sua articulação com a aprendizagem de conteúdos científicos (JIMÉNEZ-ALEIXANDRE; BROCOS, 2015). Quanto às razões de ordem social, destaca-se que o curso de licenciatura em Física em que essa pesquisa foi desenvolvida representa um importante polo de formação de professores de Física, não apenas para o município que o abriga, mas para toda a macrorregião na qual está situado, e para todo o país, pensando que os professores que ali se formam estarão licenciados para atuar em todos os estados da federação ou para dar continuidade aos estudos, desenvolvendo pesquisas na área educacional ou nas áreas teórica e experimental de Física. Dessa forma, incorporar uma prática epistêmica tão relevante à formação de futuros professores de Física que poderão atuar no Brasil todo é influenciar diretamente a qualidade do ensino de Física que será conduzido nas próximas décadas. 19 Frente ao exposto, o estudo aqui apresentado tem como objetivo central caracterizar e descrever a atual configuração dos seis princípios de planejamento argumentativo (papel do professor, papel do estudante, avaliação, metacognição, comunicação e currículo) (JIMÉNEZ-ALEIXANDRE, 2007) em quatro disciplinas de um curso de Licenciatura em Física de uma universidade pública do estado de São Paulo. A fim de alcançar tal objetivo, a tese se desdobra nos seguintes objetivos decorrentes: • Validar a aplicabilidade de um modelo teórico que descreve os principais elementos que influenciam o planejamento argumentativo em um ambiente formal de ensino por meio da caracterização de quatro disciplinas de um curso de licenciatura em Física no Brasil; • Elaborar, em parceria com docentes das disciplinas do referido curso, práticas argumentativas relacionadas a tópicos de estudo de cada uma das disciplinas acompanhadas, que propiciem uma vivência argumentativa aos estudantes do curso e aos docentes das referidas disciplinas; • Analisar em que medida as práticas argumentativas elaboradas afetaram a percepção dos professores do curso a respeito do seu próprio papel enquanto docentes e das estratégias formativas que têm sido sido adotadas; • Construir, a partir de um diagnóstico geral do estado dos seis princípios de planejamento argumentativo, um conjunto de medidas a serem discutidas e talvez implementadas para que as disciplinas do curso de licenciatura em Física da referida instituição possam se transformar em espaços mais propícios à promoção de práticas argumentativas e à construção de saberes argumentativos por parte dos licenciados do curso. Este estudo faz parte de um projeto de pesquisa mais amplo intitulado “Interfaces entre produção acadêmica em Ensino de Ciências e saberes e práticas docentes em diferentes níveis, modalidades e espaços educativos: Aspectos relativos ao aperfeiçoamento de condições, propostas e estratégias para formação de professores” do Grupo de Pesquisa em Ensino de Ciências (GPEC), vinculado ao Programa de Pós-graduação em Educação para a Ciência. Tal projeto envolve diversos pesquisadores do Brasil e de outros países, mantendo um olhar atento para as relações entre teorias educacionais e a prática profissional docente, mas 20 priorizando o estudo de condições, propostas e estratégias para o aperfeiçoamento de processos de formação inicial, continuada e em serviço de professores. Essa abordagem justifica-se, tendo em vista que a qualidade da formação de professore(as) depende de condições intervenientes de diversas naturezas, por exemplo: (a) de políticas institucionais em relação aos cursos de licenciatura, condições de trabalho dos professores nas escolas, entre outras), (b) de propostas que embasam as ações (por exemplo: projetos pedagógicos dos cursos de graduação, projetos que norteiam a formação em serviço, entre outras.); e (c) de estratégias que se empregam em cada circunstância concreta (por exemplo: métodos de estudo da teoria, métodos para propiciar o diálogo entre teoria e prática, entre outras). A ideia central desta proposta é buscar estabelecer, ou apontar, as possíveis interfaces entre a produção acadêmica em Ensino de Ciências e os saberes e práticas docentes em diferentes níveis de ensino e espaços educativos. Visa agregar maior qualidade às pesquisas desenvolvidas e nos produtos educativos advindos a partir das mesmas, bem como envolver maior número de professores e estudantes da Educação Básica no processo de concepção e produção dos recursos científicos, tecnológicos e sociais pretendidos e na sua integração nas escolas e nas universidades. Nesse sentido, pretende-se, a seguir, trazer para a discussão algumas das principais contribuições da argumentação para os programas de formação inicial docente; delinear uma série de saberes da argumentação docentes com base em trabalhos da área e em conceitos teóricos de Tardif e Pimenta; e, finalmente, indicar um conjunto de ações que podem ser constantemente praticadas por professores iniciantes ou já mais experientes em suas experiências de sala de aula e que dão suporte ao surgimento de situações argumentativas em ambientes formais de ensino. O estudo aqui desenvolvido foi organizado em sete capítulos dispostos na ordem descrita a seguir. No primeiro capítulo, apresentamos uma revisão de algumas ideias dos estudos da linguagem e do discurso que têm exercido considerável influência na compreensão das interações dialógicas em sala de aula. No segundo capítulo, buscamos caracterizar uma das orientações discursivas de maior importância para esta tese, a argumentação, em termos de suas definições teóricas, de alguns de seus modelos de estudo e de suas interações com as pesquisas educacionais. No terceiro capítulo, pretendemos estabelecer uma discussão sobre as 21 contribuições das ideias de Maurice Tardif e Selma Garrido Pimenta para a compreensão do conceito de saberes de argumentação docentes e das condições para que tais saberes passem a integrar a identidade profissional docente dos licenciandos. No quarto capítulo, apresentamos o quadro teórico e alguns exemplos de análise da Teoria da Atividade, teoria esta que será utilizada como referencial analítico dos dados da pesquisa. No quinto capítulo, descrevemos os fundamentos epistemológicos e o desenvolvimento metodológico da pesquisa. No sexto capítulo, apresentamos a sistematização de dados, seguida da análise e da discussão dos mesmos. Por último, no capítulo 07, são expostas as principais conclusões do estudo e sugestões de questões a serem investigadas futuramente. A escolha da Teoria da Atividade como quadro teórico e metodológico para o estudo do desenvolvimento de saberes argumentativos na formação inicial de professores de Física apresentado aqui têm duas importantes justificativas. A primeira delas é que a ferramenta analítica elegida deveria nos permitir estudar múltiplas relações entre indivíduos e instituições, e também entre os artefatos e regras que fazem a mediação das relações entre eles. A segundo é que tal ferramenta precisaria ser compatível com uma epistemologia da práxis, algo que parece ser um importante compromisso para superar os problemas de distanciamento entre teoria e prática educacionais (ROTH; TOBIN, 2002). 22 01 - LINGUAGEM, DISCURSO E ENSINO DE CIÊNCIAS Segundo um artigo publicado no periódico científico Nature em setembro de 2005 (THE CHIMPANZEE SEQUENCING AND ANALYSIS CONSORTIUM, 2005), que contou com o trabalho de sessenta e sete cientistas no projeto de decodificação do genoma do chimpanzé (Pan troglodytes), concluiu-se que os seres humanos compartilham de 96% (noventa e seis por cento) da sequência genética exata dos chimpanzés (Pan troglodytes). Um dos possíveis questionamentos que emergem a partir deste fato é: Se somos tão similares em termos genéticos, diferindo em apenas 4% (quatro por cento), por que então somos tão diferentes? Por que os chimpanzés não criam poesias, não compõem sinfonias, não desenvolvem o cálculo e nós sim? Segundo Tarjei S. Mikkelsen, um dos principais autores do estudo, dentre as mudanças genéticas mais significativas que os pesquisadores têm buscado estão aquelas relacionadas às características especificamente humanas, tais como a caminhada ereta, o cérebro consideravelmente aumentado e o uso da linguagem complexa e articulada. A linguagem, segundo a visão adotada por alguns autores, é uma característica exclusivamente humana (NOBLE; DAVIDSON, 1996). É claro que tal afirmação baseia-se em uma tentativa de definir o que seria a linguagem e poderia ser questionada, dizendo que outros animais também possuem suas próprias formas de comunicação. Assim, para dar início a um capítulo que trata, dentre outras coisas, da importância da linguagem para o desenvolvimento da espécie humana e para a transmissão de práticas culturais por meio de processos de ensino e aprendizagem tendo a linguagem como instrumento mediador, faz-se necessário trazer à discussão algumas concepções sobre o que vem a ser a linguagem e sobre algumas de suas conexões com o desenvolvimento do pensamento humano. Um outro importante conceito para o presente capítulo é o de discurso. Assim como a linguagem, o discurso possui diversas formas de definição e de interpretação, mas todas essas formas englobam uma conexão entre língua-discurso-ideologia. A língua é o aspecto material do discurso e a ideologia é o aspecto social e político do mesmo. A depender das formas como grupos sociais se organizam, como trabalham, como se divertem, e como modificam a natureza e a si mesmos ao longo da história, 23 diferentes grupos usam a língua de formas diferentes, servindo a diferentes propósitos (BAKHTIN, 1997). Analisar o discurso não é centrar-se na língua como um sistema de regras formais, mas sim atentar-se para “[...] as manifestações da língua no mundo, com maneiras de significar, com homens falando, considerando a produção de sentido enquanto parte de suas vidas, seja enquanto sujeitos seja enquanto membros de uma determinada forma de sociedade” (ORLANDI, 2006, p. 15-16). A linguagem e o discurso são centrais na constituição de todas as atividades sociais, mas se há uma atividade que é fundamentalmente afetada pelas relações entre língua, discurso e ideologia é o ensino. O ensino pode ser encarado como uma atividade polimorfa, isto é, um mesmo conteúdo pode ser ensinado ou um mesmo objetivo de aprendizagem pode ser atingido usando caminhos totalmente diferentes (HIRST, 1971). Cada uma das diferentes formas organizadas e planejadas para conduzir o ensino de um determinado conteúdo (método ou estratégia) tem suas principais diferenças nas formas como a língua é usada e por quem é usada. Nesse sentido, pretende-se aqui traçar um breve panorama do desenvolvimento de diferentes correntes teóricas dos estudos da linguagem, relacionando-as, em seguida, com problemas teóricos da Psicologia que deram origem às bases de uma Psicologia marxista, uma teoria que possui no par linguagem- pensamento sua base para o estudo do desenvolvimento humano e da transmissão de práticas e normas culturais nas sociedades. Três áreas a partir das quais obteremos importantes informações sobre a linguagem, o discurso e suas influências sobre a pesquisa educacional e o ensino de Ciências serão a Linguística, a Psicologia e a Filosofia da Linguagem. Tais ideias serão importantes para subsidiar todas as discussões da tese a respeito do papel da linguagem em sala de aula e das estratégias didáticas necessárias para promover o desenvolvimento de práticas argumentativas em ambientes formais de ensino. 1.1. Diferentes correntes teóricas dos estudos da linguagem Assim como outros campos de investigação humana, a linguística, ciência responsável pelo estudo científico da linguagem (HALLIDAY; WEBSTER, 2006), não se caracteriza por uma unanimidade de interpretações e pontos de vista a respeito de seus objetos de estudo. Quando se questiona o que vem a ser a linguagem e como 24 estudá-la, existem múltiplas respostas igualmente válidas e justificáveis dentro do arcabouço conceitual da linguística. Orlandi (2001, p. 15) afirma que [...] há muitas maneiras de se estudar a linguagem: concentrando nossa atenção sobre a língua enquanto sistema de signos ou como sistema de regras formais, e então temos a linguística; ou como normas de bem dizer, por exemplo, e temos a Gramática normativa É importante salientar que cada uma dessas definições carrega consigo certos compromissos teóricos e metodológicos que são transportados não apenas para a forma de observar os fenômenos linguísticos, mas principalmente para as análises de dados e para as conclusões finais elaboradas. Pretendemos, nos parágrafos a seguir, demarcar, a partir de referenciais da área da linguística, alguns dos principais objetos de estudo desta ciência; elencar características de algumas de suas principais correntes de pensamento e, em seguida, explicitar com que corrente de pensamento nos alinhamos e por quais motivos o fizemos ao elaborar esta tese. Os seres humanos sempre demonstraram um profundo interesse por formas de representar o mundo exterior observável e o mundo interior de sentimentos e sensações subjetivas. Séculos de estudos sistemáticos sobre as formas humanas de comunicação, dos meios usados para tal comunicação e dos diferentes contextos nos quais esta se manifesta deram origem à linguística, uma ciência dedicada ao estudo da linguagem. Dentro dos estudos linguísticos, a linguagem poderia ser definida sob diversos aspectos, cada um deles com fundamentos conceituais e implicações analíticas bem diferentes. Propomos a seguir uma breve discussão de três das principais correntes de pensamento linguístico quanto à definição da linguagem. Tais definições serão organizadas cronologicamente por períodos de desenvolvimento e por fundamentos teóricos e metodológicos em comum entre certas correntes linguísticas. 1.2. A linguagem pelo prisma da Linguística 1.2.1. As gramáticas prescritivas, a Linguística Histórica e o descritivismo linguístico Ao tratar da história do estudo da linguagem, uma das primeiras formas de estudo e de produção de conhecimento linguístico foi a criação de gramáticas gerais. A palavra gramática (do grego, grammatiki, γραμματική) é composta pelo prefixo gramma (que significa letra) e pelo sufixo tékhne (que significa a arte de…). A 25 gramática era compreendida na Grécia antiga com dois significados particulares: o estudo dos valores das letras e das regras de acentuação e prosódia e, neste sentido, era vista como uma disciplina intelectual abstrata, e também fazia referência às habilidades literárias e, portanto, envolvia o estudo da pedagogia aplicada (ENCYCLOPEDIA BRITANNICA, 2017), ou seja, a arte de escrever, a arte das letras. O estudo dos valores e regras da língua dos povos gregos criou a base filosófica e prática para o surgimento, na Europa renascentista, de uma série de órgãos reguladores que prescreviam e ditavam as corretas formas de se escrever e de se falar uma língua. Alguns exemplos desses órgãos são a Académie Française na França, a Accademia della Crusca na Itália, a Real Academia Española na Espanha e a Academia de Letras em Portugal. Até o século XIX, a linguística era uma disciplina de pesquisa e ensino puramente prescritiva (HUALDE; OLARREA; ESCOBAR, 2010), isto é, as gramáticas tradicionais de cada país eram criadas e os órgãos reguladores se asseguravam de que tais padrões fossem mantidos, principalmente nos países colonizados. Um problema das gramáticas prescritivas é que elas careciam de uma abordagem científica e permaneciam desconectadas da língua falada, principalmente daquela falada pelas pessoas mais distantes geográfica e politicamente do poder do Estado e da influência das academias linguísticas. Seu único objetivo era fornecer um conjunto de regras usadas para distinguir entre o uso correto e incorreto da língua, longe de qualquer tipo de observação factual e com um escopo de investigação bastante limitado (SAUSSURE, 2004). Foi a partir da convergência entre o início do período das grandes navegações, a um maior nível de interação entre povos de línguas completamente distintas e à popularização do método científico baconiano e do pensamento científico cartesiano que os métodos de investigação linguística começaram a se basear um pouco mais na observação das variedades linguísticas existentes no globo e no estabelecimento de critérios racionais para comparação entre elas. Desde o mito bíblico da Torre de Babel e da separação dos povos em tribos com línguas diferentes, até a criação do Esperanto como uma língua artificial no ano de 1887, uma língua para comunicação universal que supostamente integraria falantes de diversas línguas em uma comunidade global, o interesse por compreender 26 a comunicação humana e os diferentes subsistemas que emergem da necessidade por comunicar-se é algo que acompanha os seres humanos há muito tempo. Talvez por isso, a segunda grande corrente teórica para investigação da linguagem tenha sido proposta a partir do estudo das mudanças fonológicas, gramaticais e semânticas que ocorrem quando povos se separam ou se unem, e também uma tentativa de reconstruir línguas primitivas. A linguística histórica, também chamada de linguística diacrônica, tem raízes em especulações etimológicas das eras clássica e medieval, nos estudos comparativos do grego e do latim durante o Renascimento, e nas especulações acadêmicas sobre as origens das línguas modernas (ENCYCLOPEDIA BRITANNICA, 2017). Seu principal objeto de estudo são as mudanças históricas observadas em longos intervalos de tempo e que permitem estabelecer conexões entre os sons, as regras e os significados de palavras em diversas línguas do mundo. Além disso, uma das tentativas da linguística histórica foi a criação de árvores linguísticas, um conjunto de grandes quadros comparativos que permitem relacionar várias línguas, estabelecendo conexões entre elas e descrevendo as características das protolínguas que as originaram. Seu principal método de estudo é o método comparativo, voltado às reconstruções de línguas antigas ou de estágios anteriores de uma determinada língua com base na comparação de palavras e expressões relacionadas em línguas diferentes ou dialetos de uma mesma língua. Tal método foi desenvolvido no decorrer do século XIX para a reconstrução da protolíngua indo-europeia e foi então aplicado ao estudo de outras famílias de línguas. Seus passos se baseiam no princípio de mudanças regulares nos sons das línguas, algo que foi introduzido sob muita resistência, mas que depois se tornou prática comum e se solidificou na forma de uma série de leis fonéticas (tais como as Lei de Grimm, Lei de Verner, dentre outras) (ENCYCLOPEDIA BRITANNICA, 2017). O sucesso desse método depende da disponibilidade de material original na língua que se deseja investigar e até que ponto a evidência das características originais é preservada nos idiomas descendentes que comparamos. Tal tradição linguística teve como alguns de seus principais representantes: 1) William Jones (1746-1794), um filólogo inglês conhecido por produzir e propagar uma 27 hipótese sobre possíveis relações entre as línguas europeias e as línguas indianas. Em sua obra Third Anniversary Discourse apresentada à Asiatic Society no ano de 1786, ele sugeriu que o sânscrito, o grego e o latim possuíam uma raiz comum, e que, de fato, tais línguas poderiam estar mais relacionadas ao gótico e às línguas celtas, assim como com o persa; 2) Os neogramáticos alemães do final do século XIX, dentre os quais se destacaram os nomes de Otto Behaghel (1854–1936), Wilhelm Braune (1850–1926) e Karl Brugmann (1849–1919), tendo sido responsáveis pela proposição da hipótese neogramática, que afirma que uma mudança de som diacrônico afeta simultaneamente todas as palavras nas quais seu ambiente é encontrado, sem exceção. Apesar da popularidade alcançada pelo método comparativo e pelas inúmeras relações entre línguas que puderam ser traçadas a partir de suas análises, abrindo um novo e frutífero campo de investigação para a linguística, esta fase dos estudos linguísticos ainda não havia sido bem sucedida em estabelecer as bases de uma ciência da linguagem, visto que ainda não havia sido definido um objeto de estudo preciso, sem o qual é impossível dar os primeiros passos na criação de uma ciência (SAUSSURE, 2004). Está complexa, mas necessária tarefa de delineamento das bases teóricas e dos métodos de uma nova ciência da linguagem ficou a cargo de uma nova escola de pensamento que teve como um de seus pioneiros Ferdinand de Saussure (1857-1913). Como expresso em sua obra principal, “[...] a linguística é muito relacionada a outras ciências que às vezes pegam emprestados seus dados, às vezes produzem dados para suas análises. As linhas de demarcação nem sempre parecem claras” (SAUSSURE, 2004, p. 06). O papel desta nova fase da linguística inaugurada por Saussure foi o de criar tais demarcações e delinear as unidades e os métodos de análise que poderiam ser usados a partir de então. Diferentemente das fases anteriores das grandes e tradicionais gramáticas, formulando regras de escrita e fala de modo prescritivo e sem se apegar à forma real da língua, o objetivo da linguística pós-saussuriana é estudar a língua real falada, invertendo a lógica prescritiva e partindo para uma análise muito mais descritiva. https://en.wikipedia.org/wiki/Otto_Behaghel https://en.wikipedia.org/wiki/Wilhelm_Braune https://en.wikipedia.org/wiki/Karl_Brugmann 28 1.2.2. Uma abordagem formalista, descritiva e estruturalista Essa abordagem vê a linguagem como uma faculdade humana (inata ou não, há controvérsias entre os membros dessa corrente de pensamento a respeito desse ponto específico) e de definição quase inalcançável, mas que se serve de um sistema simbólico formal chamado de língua, governado por regras gramaticais de combinação entre letras, palavras, frases e sentenças para transmitir significados. Esta corrente de estudos da linguagem comumente conhecida como formalista ou estruturalista busca coletar um grande conjunto de enunciados e classificar todos os elementos desse conjunto em diferentes níveis linguísticos, tais como os fonemas, os morfemas, as categorias léxicas, as frases nominais, as frases verbais e os diversos tipos de sentenças. Dentro dessa abordagem linguística, a publicação do Curso de Linguística Geral de Ferdinand de Saussure, realizada de forma póstuma em 1916 por seus ex- alunos Charles Bally e Albert Sechehaye, com base em notas das aulas que tiveram com ele em Geneva (MACEY, 2009), representou, para a Linguística, uma quebra de paradigma que pode ser comparada à publicação dos trabalhos de Galileo Galilei e Isaac Newton para a Física (CULLER, 1986, p. 147). A analogia é válida pois, assim como estes cientistas, Saussure não se dedicou a estudar novos fenômenos ou a criar novos conceitos, mas sim a delimitar o objeto de estudo da sua ciência e a desenvolver um caminho metodológico completo que permitisse investigar os fenômenos que há tempos ocupavam a mente de seus contemporâneos. Uma das críticas centrais de Saussure à Filologia ou à Linguística Histórica baseia-se no fato de que estas abordagens “[...] perseguem a linguagem escrita de forma muito serviente, em detrimento da linguagem viva” (SAUSSURE, 2004, p. 02). Para traçar um método consistente, o primeiro passo dado por Saussure foi definir o termo língua [langue] e distingui-lo do termo linguagem ou fala humana [langage], afirmando que a língua é apenas uma parte da linguagem, ainda que uma parte essencial dela. O autor defende que a língua é tanto um produto social da faculdade humana de fala quanto uma coleção de necessárias convenções que têm sido adotadas por um corpo social para permitir que indivíduos manifestem tal faculdade. Vista como um todo, a linguagem é um fenômeno multifacetado e heterogêneo, e sua unidade não pode ser determinada. A língua, por outro lado é um todo independente 29 e um princípio de classificação. Assim que se atribui à língua um lugar de destaque entre os diversos fatos da linguagem, são introduzidas uma ordem natural e uma possibilidade científica de estudo (SAUSSURE, 2004, p. 09). Portanto, o estudo da linguagem deveria ser feito a partir da língua, pois esta possuiria uma definição completa e autônoma e representaria uma norma de todas as outras manifestações da linguagem. O autor procede então a uma separação metodológica necessária entre língua [langue] e fala [parole]. Segundo ele, a língua não seria uma função do falante, mas sim um produto social que é passivamente assimilado pelo indivíduo, e que não requer premeditação e reflexão. A fala, pelo contrário, é um ato individual, sendo então intencional e intelectual. Ao separar a língua da fala, há uma separação entre o que é social do que é individual e do que é essencial do que acessório e mais ou menos acidental. A língua é então definida como um sistema simbólico formal, um sistema de signos que representam ideias e que pode ser comparado a um sistema de escrita, ao alfabeto de surdos-mudos, a rituais simbólicos, a sinais militares, etc., sendo a língua o mais importante dentre todos estes sistemas simbólicos. O segundo passo metodológico que foi fundamental para o estabelecimento da linguística moderna foi a definição da natureza das ideias de signo, significante e significado, e também a proposição da natureza abstrata do signo linguístico. Segundo Saussure (2004), o signo linguístico é uma entidade psicológica bilateral com dois elementos unidos (conceito e imagem sonora) e que fazem referência um ao outro constantemente. O signo linguístico une, não uma coisa a um nome, mas um conceito a uma imagem sonora (sound-image). O conceito é sua parte mais abstrata, enquanto que a imagem sonora é sua parte mais “material”. Simultaneamente, para evitar confusões e ambiguidades, o autor propõe que a partir de então o conceito do signo passe a ser chamado de significado e a imagem sonora do signo seja designada como significante. O uso dessa nova terminologia carrega a vantagem de explicitar a oposição que os separa e a unidade (signo) ao qual eles pertencem. O signo linguístico definido desta forma é dotado de duas importantes características: 1) arbitrariedade da natureza do signo: a conexão entre a parte conceitual (significado) e a imagem sonora (significante) do signo é totalmente arbitrária. Por exemplo, a ideia de “irmã” não possui nenhuma relação ou dependência interna com os sons ir - mã 30 [colocar a representação fonética destes sons], o que quer dizer que a mesma ideia pode e de fato é representada por outras combinações de sons completamente diferentes em outras línguas; 2) a natureza linear do significante: o significante é de natureza auditiva e, assim, se desenvolve na linha do tempo, representando um breve espaço no tempo, uma certa extensão, e essa extensão só é mensurável num sentido e numa só dimensão. Ao contrário de significantes náuticos, por exemplo, os significantes linguísticos só podem ser apresentados sequencialmente, formando uma cadeia. Essa característica pode ser claramente superenfatizada no sentido de que a “linha” da fala não é uma linha reta, nem tem qualquer direção espacial necessária, apenas uma direção temporal (GODOY, 2012), diferente da linguagem escrita, na qual a linha se torna reta em uma direção vertical ou horizontal, e o sentido único de leitura da esquerda para a direita, da direita para a esquerda, de cima para baixo ou de baixo para cima é uma característica própria a cada subsistema da língua. Para correntes de pensamento que compartilham desta definição da língua, alguns princípios teóricos poderiam ser estabelecidos: i) os significados dados às palavras são puramente arbitrários e são mantidos apenas por convenções sociais, e se a língua constitui um sistema de signos arbitrários, segue que ela não é um reflexo da experiência humana no mundo, mas um sistema que situa-se separado deste; ii) os significados das palavras são relacionais, isto é, nenhuma palavra pode ser definida isoladamente, visto que seu significado depende da relação com as palavras adjacentes; iii) a língua constitui nosso mundo e os significados são sempre atribuídos aos objetos ou às ideias pela mente humana, não havendo assim uma maneira objetiva ou neutra de designar uma pessoa ou uma coisa, apenas uma escolha por um ou outro termo (BARRY, 2009). O estruturalismo saussuriano foi tão bem-sucedido na demarcação de um território teórico e metodológico para a linguística que não permaneceu restrito ao território francês, produzindo um efeito cascata a partir do qual inúmeras áreas das Ciências Sociais se apropriaram e adaptaram ideias estruturalistas criadas por Saussure para o estudo de fenômenos próprios de suas áreas de pesquisa. Nesse sentido, todas as outras áreas das Ciências Humanas que adotaram o estruturalismo como metodologia de estudo tendem a depreender a realidade social a partir de um conjunto considerado elementar (ou formal) de relações e a estudar os elementos da 31 cultura humana em face à sua relação com um sistema ou estrutura maior, mais abrangente. A metodologia estruturalista, aplicada a cada uma das áreas de investigação específicas, baseia-se na [...] crença de que os fenômenos da vida humana não são inteligíveis exceto através de suas inter-relações. Estas relações constituem uma estrutura e, ainda por trás das variações locais dos fenômenos superficiais, existem leis constantes do extrato cultural (BLACKBURN, 2008, p. 353). As teorias que discorrem acerca da linguagem e dos processos de significação humana desenvolveram-se em consonância com a psicologia cognitivista predominante em um lugar e época específicos. Dois grandes exemplos, que merecem destaque aqui, dizem respeito às influências das ideias estruturalistas de Saussure nas obras de dois expoentes da Psicologia Cognitiva. O primeiro deles foi o psicólogo francês Jean Piaget (1896-1980) (BROUGHTON, 1981), pesquisador suíço responsável por importantes estudos sobre a compreensão psicológica do desenvolvimento biológico e cognitivo dos seres humanos e das transformações da estrutura cognitiva humana frente aos processos de ensino. Para Piaget e os pesquisadores que continuaram sua proposta investigativa, “[...] o objetivo central de seus estudos é revelar os componentes da estrutura cognitiva e das relações dinâmicas entre tais componentes conforme o indivíduo é colocado frente a situações novas” (NASR, 2005, p. 45). Assim como Saussure propõe uma separação entre aquilo que é geral e que pode ser analisado em termos de sua estrutura (langue) e aquilo que é social e varia a depender das condições culturais e históricas (parole), Piaget também opera uma separação entre aquilo que é individual, geral e que pode ser mapeado em termos de seus elementos constitutivos (estrutura cognitiva) e aquilo que é social e varia a depender das condições específicas, centrando seu foco de estudo no primeiro elemento, a estrutura cognitiva. O segundo deles foi o psicólogo americano Burrhus Frederic Skinner (1904- 1990), cujos escritos influenciaram grandemente a criação da psicologia behaviorista ou comportamentalista O conceito de significado parece ter certas vantagens em relação ao de ideia. Ideias (assim como os sentimentos e desejos que também se diz expressar) parecem ser internas ao organismo, mas há uma possibilidade promissora de que os significados estejam localizados fora da pele. Bloomfield identifica o 32 significado de uma linguagem com o todo do universo e argumenta que o estudo do significado requereria as técnicas de todas as ciências. Significados, nesse sentido, são certamente observáveis, e talvez seja esse o porquê desse termo ter adquirido mais prestígio que a palavra “ideia” já não possui mais (SKINNER, 1948, p.07, tradução nossa) A concepção estruturalista da língua parece ter sido um passo importante em direção à interpretação do significado como unidade independente do ser cognoscente, bastando a este último interagir com aquilo que se deseja conhecer a fim de apreender seu significado em relações de estímulo e resposta que facilitem a memorização, significado este que era externo ao ser cognoscível e cuja compreensão independia de concepções prévias ou visões de mundo dos sujeitos. Foi, por assim dizer, uma corrente que “[...] fecha, ou ao menos obscurece, o caminho de uma perspectiva educacional como processo de se fazer, ao não dar suficiente peso ao homem como agente dinamizador das relações estruturais” (DA SILVA, 1993, p. 187). 1.2.3. Uma corrente de pensamento funcionalista As correntes de pensamento funcionalista são abordagens que veem as línguas como ferramentas para a comunicação humana e que não podem ser compreendidas apenas como estruturas autônomas dissociadas de seu uso, uma vez que elas existem para estabelecer relações comunicativas entre falantes e ouvintes. Nesse sentido, a funcionalidade da linguagem é vista como um elemento chave na compreensão dos processos e das estruturas linguísticas. Nesse sentido, é possível afirmar que “[...] suas análises têm como base o princípio de que as funções externas à linguagem influenciam a estrutura gramatical das línguas. Logo, as línguas refletem uma adaptação às diferentes situações comunicativas” (MARTINS, 2009, p. 20). Apesar de ser difícil estabelecer uma descrição precisa do que seria a linguística funcionalista por haver diferentes modelos e peculiaridades distintivas que marcam cada um deles, há um conjunto de pontos em comum que permitem delimitar o que seria a visão funcionalista da linguagem (NEVES, 1997): 1) A língua não pode ser descrita como um sistema autônomo, mas sim a partir de noções como a cognição e a comunicação, o processamento mental, a interação social e a cultura, a mudança e a variação (NEVES, 1997); 2) A interpretação da língua deve ser feita a partir da competência comunicativa, isto é, as regras do uso de uma língua considerando o 33 contexto linguístico e social em que a comunicação se dá e o seu uso de maneira eficaz (HYMES, 1974). Assim, [...] a abordagem funcional tem como principal questão a verificação dessa competência comunicativa dos usuários da língua, uma vez que as estruturas das expressões linguísticas são vistas como configurações de funções, observáveis em seus usos” (MARTINS, 2009, p. 22). Essa corrente de pensamento se popularizou especialmente associada ao surgimento da Escola de Praga, um grupo acadêmico de linguistas, filólogos e críticos literários que desenvolveram estudos linguísticos e literários entre os anos de 1928 e 1939. A Escola de Praga tornou-se mais conhecida por seus estudos no campo da fonologia, mas trouxe também importantes inovações e contribuições ao estudo da sintaxe e do discurso que devem ser igualmente lembradas. Dessa forma, enquanto o primeiro modelo teórico chamado de estruturalismo saussuriano se interessa pela busca da descrição da língua como uma estrutura autônoma, dotada de propriedades comuns e universais, o segundo modelo direciona suas atenções para as conexões entre forma e função, descrevendo a língua como uma estrutura cujo funcionamento só pode ser explicado ao levar em conta o papel da comunicação. 1.3. A linguagem pelo prisma da Psicologia Vygotskyana As primeiras décadas do século XX representaram um momento de grande desenvolvimento e progresso para a Psicologia no mundo todo, principalmente para o estabelecimento dos pilares de uma Psicologia de bases marxistas na antiga União Soviética (atual Rússia). Havia, no entanto, uma forte tensão entre as interpretações das correntes estruturalistas e funcionalistas em Psicologia e em várias outras áreas de pesquisa naquele momento. Naquele cenário, as obras de Vygotsky representaram um divisor de águas, pois não apenas apontaram um novo caminho metodológico para as investigações em Psicologia, mas também trouxeram à tona ideias e conceitos que seriam apropriados por várias outras áreas na compreensão de seus próprios objetos de estudo. Lev Seminovich Vygotsky foi um dos pesquisadores responsáveis pela criação de um círculo de estudos linguísticos e psicológicos muito profícuo, cujas atividades se estenderam entre os anos de 1927 e 1940 e que agregou importantes 34 pesquisadores, tais como Alexander Luria, Aleksei Leontiev, Bozhovich, Gal’perin, Zaporozhets, Zinchenko, El‘konin, dentre vários outros. O Círculo Vygotsky-Luria como é conhecido atualmente foi uma rede informal de psicólogos, educadores, especialistas médicos, fisiologistas e neurocientistas muito influentes, sendo que todos estavam diretamente associados à Vygotsky ou à Luria (YASNITSKY, 2009). Vygotsky nasceu em 1896 na Bielo-Rússia, pertencente a uma família judia. Graduou-se em Direito no ano de 1918 pela Universidade de Moscou e, enquanto cursava Direito, também participava dos cursos de História e Filosofia da Universidade Popular de Shanyavskii. Com base em suas experiências anteriores na formação de professores na escola local do Estado, dedicou-se ao estudo dos distúrbios de aprendizagem e de linguagem, das diversas formas de deficiências congênitas e adquiridas, e assim graduou-se em Medicina, fundou o laboratório de psicologia da Escola de Professores de Gomel, dando várias palestras que posteriormente foram publicadas no livro Psicologia Pedagógica no ano de 1926. Após ter participado do II Congresso de Psiconeurologia (estudo das intenções entre cérebro e mente) em Leningrado, foi convidado a trabalhar no Instituto de Psicologia de Moscou devido a sua atuação. Seu interesse pela Psicologia o levou a uma análise crítica da produção teórica que circulava nos meios acadêmicos de seu tempo, tais como a teoria da Gestalt, da Psicanálise, do Behaviorismo e as ideias iniciais de Jean Piaget. Vygotsky fez parte do cenário científico por pouco tempo, tendo falecido vítima de pneumonia aos 38 anos de idade. Não obstante, seus trabalhos foram repletos de um intenso fervor criativo. Ele desenvolveu estudos em quase todas as áreas da Psicologia, tais como em metodologia e história da Psicologia, em Psicologia Geral, do desenvolvimento e educacional; e também sobre neurologia clínica. No entanto, a área na qual mais concentrou seus esforços foi o estudo do desenvolvimento da consciência humana, tendo criado uma teoria para explicar o desenvolvimento mental humano que é, ainda nos dias de hoje, considerada como uma referência teórica e prática de grande valor para muitas áreas, especialmente para a educação (DAVYDOV; ZINCHENKO, 1989). Suas contribuições para os estudos da psicologia e da linguagem incluem um conjunto de provas experimentais de que os significados das palavras sofrem uma evolução durante a infância, uma explicação da forma como se desenvolvem os conceitos “científicos” das crianças em comparação com os 35 conceitos espontâneos, uma demonstração da natureza psicológica específica e a função linguística do discurso escrito na sua relação com o pensamento, e também uma completa abordagem experimental da natureza do discurso interior e das suas relações com o pensamento (VYGOTSKY, 2001). Sua posição epistemológica naquele contexto era uma posição de busca por um novo caminho conceitual e metodológico para os estudos psicológicos. “Vigotski compartilhava muitas das ideias linguísticas de seu tempo, ainda que uma vez ou outra superasse os modelos nos quais se baseava” (MORATO, 1996, p. 52). Nesse sentido, um dos objetivos de Vygotsky foi buscar superar a longa cisão entre as interpretações estruturalistas e formalistas para o estudo das conexões entre a linguagem articulada e o desenvolvimento do pensamento. Nas interpretações derivadas do estruturalismo “saussuriano”, “[...] o pensamento não passa de uma massa amorfa e indistinta” (SAUSSURE, 2004, p. 130), “[...] cuja distinção e organização são operadas pela língua, uma vez que essa serve como intermediária entre o pensamento e o som” (SEVERO, 2013, p. 84). Isso quer dizer que para o estruturalismo, a língua é apresentada como condição essencial sem a qual não é possível apreender qualquer característica do pensamento. A língua tem o papel de “servir de intermediário entre o pensamento e o som” (SAUSSURE, 2004, p. 131). Nesse sentido, Saussure foca seus esforços no estudo da língua como sistema, pois, para ele, esta é a única forma de estabelecer alguma forma de compreensão sobre o pensamento. Vygotsky parece rejeitar essa interpretação ao afirmar que O ponto de vista segundo o qual o som e o significado são dois elementos separados com vidas separadas afetou gravemente o estudo de ambos os aspectos da linguagem, o fonético e o semântico. O estudo dos sons da fala como simples sons, independentemente da sua conexão com o pensamento, por mais exaustivo que seja, pouco terá a ver com a sua função como linguagem humana, na medida em que não dilucida as propriedades físicas e psicológicas específicas da linguagem falada, mas apenas as propriedades comuns a todos os sons existentes na natureza. Da mesma forma, se se estudarem os significados divorciados do discurso, aqueles resultarão forçosamente num puro ato de pensamento que se desenvolve e transforma independentemente do seu veículo material. Esta separação entre o significado e o som é grandemente responsável pela banalidade da fonética e da semântica clássicas (VYGOTSKY, 2001, p. 10-11). Em sua percepção, o primeiro passo que deveria ser estabelecido para o surgimento de um caminho de pesquisa diferente era a definição de uma unidade de análise que carregasse consigo tanto da materialidade da linguagem quanto da 36 subjetividade do pensamento, uma unidade dialética que simbolizasse uma direta conexão entre esses dois elementos, [...] o significado é um ato de pensamento no sentido completo da expressão. Mas, simultaneamente, o significado é uma parte inalienável da palavra enquanto tal, pertencendo, portanto, tanto ao domínio da linguagem como ao do pensamento. Uma palavra sem significado é um som vazio, já não fazendo parte do discurso humano. Como o significado das palavras é, simultaneamente, pensamento e linguagem, constitui a unidade do pensamento verbal que procurávamos (VYGOTSKY, 2001, p. 12). Com base nessa unidade, Vygotsky testou uma série de hipóteses sobre a evolução dos significados das palavras para crianças de diversas idades, chegando às conclusões de que as funções psicológicas de um indivíduo são desenvolvidas ao longo do tempo e mediadas pelo conjunto de interações sociais que tal indivíduo estabelece com o meio físico e social. Além disso, os conceitos são construídos e internalizados de maneira particular e não-linear para cada pessoa. Ao estabelecer uma diferença fundamental entre aquilo que é social e aquilo que é pessoal em termos de conceitos e significados, Vygotsky abre interpretações importantes sobre algumas das características sobre aquilo que ele chama de discurso interior: A primeira, que é essencial, é a preponderância do sentido das palavras sobre o seu significado — distinção que devemos a Paulhan. Segundo este autor, o sentido de uma palavra é a soma de todos os acontecimentos psicológicos que essa palavra desperta na nossa consciência. É um todo complexo, fluido, dinâmico que tem várias zonas de estabilidade desigual. O significado mais não é do que uma das zonas do sentido, a zona mais estável e precisa. Uma palavra extrai o seu sentido do contexto em que surge; quando o contexto muda o seu sentido muda também. O significado mantém- se estável através de todas as mudanças de sentido. O significado de uma palavra tal como surge no dicionário não passa de uma pedra do edifício do sentido, não é mais do que uma potencialidade que tem diversas realizações no discurso (VYGOTSKY, 2001, p. 144). Essa importante distinção entre sentido e significado indica que os significados são estruturas cristalizadas pela história e pela cultura de um povo. São responsáveis por perpetuar a cultura e por estabelecer uma série de práticas culturais em grupo, tais como o ensino escolar. Todavia, quando um conjunto de conceitos é ensinado em um espaço escolar, os estudantes atribuem um sentido próprio a tudo aquilo que lhes é transmitido por meio do diálogo consigo mesmos em seus discursos internos. Ao assumir que cada estudante atribui sentidos completamente distintos para os mesmos objetos de estudo, é natural pensar que, em respostas a testes padronizados, alguns desses sentidos se aproximarão mais daquilo que é exigido pelos professores, e outros não. Como consequência dessa diferenciação teórica e de sua transposição 37 aos processos educacionais, as ideias de Vygotsky influenciaram uma atenção maior aos conceitos espontâneos dos estudantes e à possibilidade de que tais sentidos pessoais sejam expostos em sala de aula, em situações que ampliam a possibilidade de interação social entre pares que estão em diferentes estágios de desenvolvimento cognitivo. Um outro aspecto da obra de Vygotsky, provavelmente um dos mais importantes e inovadores, e que mais caracterizam seu pensamento diz respeito ao papel da linguagem, à interação social enquanto função primordial da fala. É para estabelecer comunicação com o outro que os seres humanos criam e utilizam os sistemas de linguagem, e é a necessidade de comunicar que conduz ao seu desenvolvimento. Quando não há um sistema de signos, linguísticos ou não, a comunicação é limitada e de opera em caráter mais afetivo, uma vez que a transmissão racional e intencional de experiências e de pensamentos requer um instrumento mediador – a fala. Assim, a verdadeira comunicação requer significado e generalização, tanto quanto requer signos. Mas as formas mais elevadas da comunicação humana só são possíveis porque o pensamento reflete realidades conceitualizadas, razão pela qual certos pensamentos só devem ser comunicados às crianças quando estas tiverem os conceitos adquiridos e amadurecidos. O mais difícil do ensino de palavras novas é precisamente a apropriação dos conceitos, e não a dos sons. Os aspectos afetivos e intelectuais também não podem ser separados enquanto objeto de estudo, pois pensamentos dissociados das necessidades e interesses, das inclinações e dos impulsos daquele que pensa, são desprovidos de significado/ sentido. O autor se preocupou ainda em compreender a relação entre as ideias que as pessoas desenvolvem e o que dizem e escrevem. Uma das conclusões após a realização de diversos experimentos e das reflexões originadas deles foi que “[...] a estrutura da língua que uma pessoa fala influencia a maneira com que esta pessoa percebe o universo” (VYGOTSKY, 2001, p. 05). A partir de uma mirada teórica mais positivista, que acredita que a natureza esconde segredos universais que cabem ao ser humano desvelar com base em seu esforço e em sua investigação constante, essa afirmação parece completamente subjetiva e descabida. No entanto, alguns dos experimentos de Vygotsky e outros experimentos mais recentes atestam que suas 38 teses podem ser sustentadas de maneira muito sólida. Em um estudo recente vinculado à Stockholm University (Suécia) e à Lancaster University (Reino Unido), Bylund e Athanasopoulos (2017) notaram que os sujeitos envolvidos em sua pesquisa, 40 dos quais eram nativos em sueco e 40 eram nativos em espanhol, pensavam sobre o tempo em termos que correspondiam à descritores disponíveis em cada uma de suas línguas. Assim, suecos expressaram a duração do tempo usando adjetivos relacionados às distâncias físicas (tais como en kort paus, uma pausa curta), bem diferente de pessoas que falam o idioma espanhol, por exemplo, que usaram adjetivos de quantidade (una pequeña pausa, uma pausa curta). Os falantes nativos da língua sueca utilizaram uma metáfora para o tempo como uma linha horizontal ou como uma distância percorrida, enquanto que falantes de Espanhol imaginam o tempo como um volume ocupado no espaço. Segundo Athanasopoulos, uma das conclusões do estudo é que ao aprender uma nova língua, o ser humano de repente se torna sintonizado a novas dimensões perceptuais da realidade que não estavam disponíveis para ele antes. É como se cada língua carregasse consigo não apenas termos descritivos, mas um conjunto de formas de perceber a realidade material, social, econômica e espiritual do mundo. Dessa forma, se o ambiente social é a fonte primordial de significados para os indivíduos formarem seus conceitos pessoais, se o papel de um parceiro mais capaz é fundamental no estímulo à ampliação da zona de desenvolvimento proximal das crianças ao enfrentar tarefas e problemas um pouco acima daquelas que atualmente conseguem resolver sem auxílio de ninguém e se, para o discurso interno da psique humana, os conceitos possuem um grau de importância a mais do que os significados, todas essas ideias influenciam a forma como os espaços de sala de aula devem ser pensados para maximizar as interações escritas e verbais entre os participantes, para propiciar mais interações horizontais entre os estudantes, já que eles mesmos podem atuar como o parceiro mais capaz uns dos outros, e conduz a uma atenção maior às compreensões conceituais dos estudantes expressas através de suas falas ou de seu trabalho em problemas autênticos. 39 1.4. A linguagem pelo prisma da Filosofia da Linguagem bakhtiniana Mikhail Mikhalovich Bakhtin (1895-1975) foi um dos pensadores mais ativos na antiga União das Repúblicas Socialistas Soviéticas (URSS). Semelhante a Vygotsky, foi o fundador de um círculo multidisciplinar de estudos com dezenas de membros, e revelou, desde seus primeiros escritos, sua preocupação com uma possível nova forma de estudar a linguagem, o discurso e as influências de tais elementos na vida e na cultura das sociedades de sua época. Stam (1992) menciona que [...] o interesse do autor pela diferença, o diálogo, a comunicação, lhe teria sido despertado na infância, período em que sua família mudou-se muitas vezes de cidades, tendo vivido em lugarejos que se caracterizavam pela mistura de classes, línguas e grupos étnicos, experiências que nos faz entender a centralidade da questão da alteridade em sua teoria (STAM, 1992 apud PAVÃO, 2000, p. 38). Tendo tido uma intensa produção escrita entre os anos de 1920 e 1929, suas obras sofreram forte repressão política tanto dentro quanto fora de seu país, o que retardou um pouco a tradução para outros idiomas. Apesar de seus trabalhos se estenderem do estudo da cultura popular à Filosofia, da ética à estética, algumas questões centrais rondam os estudos bakhtinianos (intertextualidade, alteridade, completude, dentre outros) e são elas que serão trazidas para este trabalho visando subsidiar as discussões. No entanto, para que as ideias do autor não fiquem completamente descontextualizadas, é preciso situar seu pensamento junto ao de alguns outros teóricos cujas contribuições foram também muito importantes para o tema. No final do século XIX, o estudo da língua carecia de um modelo epistemológico que permitisse responder a algumas questões fundamentais da filosofia da linguagem, tais como: Como definir a palavra no seu papel de signo interior? Sob que forma se realiza o discurso interior? Quais são seus laços com a situação social? Como ele se relaciona com a enunciação? Que métodos empregar para descobrir, ou para captar durante o voo, por assim dizer, o discurso interior? (BAKHTIN, 2006, p. 62) Existem pessoas que se comunicam por meio de sons vocais. Outras, se comunicam com o uso de LIBRAS (Linguagem Brasileira de Sinais), sinais feitos com as mãos. Há também o braille, sistema de escrita tátil utilizado por pessoas cegas ou de baixa visão. Há ainda pessoas que se comunicam observando e decodificando os movimentos labiais de outras pessoas. Existem também pessoas que se comunicam 40 compondo melodias que serão apreciadas por muitos ouvidos, pintando quadros que serão alvos de críticas e inspiração. Todas essas formas de estabelecer comunicação podem ser chamadas de linguagens, sejam elas faladas, escritas, em sinais corporais, imagens, melodias. O importante é que haja a função de comunicar algo a alguém. Parece evidente que “[...] a função primordial da linguagem é a comunicação, intercâmbio social” (VYGOTSKY, 2001, p. 82). Quando se diz algo a alguém é porque há alguma coisa a ser comunicada. Por vezes também, o silêncio, o não-dizer em momentos em que se esperava uma palavra é uma forma de comunicar algo a alguém. Assim, que algo é esse que temos anseio de comunicar aos outros? E o que nos permite concretizar nossos anseios de comunicação? Uma pessoa que esteja precisando de ajuda, mas que esteja suficientemente afastada da civilização, pode utilizar uma luz sinalizadora para pedir ajuda. Uma composição instrumental pode transmitir sensações de alegria ou de sofrimento sem proferir uma palavra sequer. Um punho fechado em riste poderia ser simplesmente um gesto corporal comum, mas, entre as décadas de 1960 e 1980 nos Estados Unidos, este gesto representava um conjunto de ideais e lutas por direitos sociais. Um dos princípios fundamentais da Psicologia soviética é que não é possível ter acesso direto ao pensamento das pessoas, uma vez que o pensamento se situa em um território abstrato, não tão objetivo (VYGOTSKY, 2006). Para analisar o psiquismo de alguém, é preciso um material físico, ou, nas palavras de Bakhtin (2006, p. 40) ,“o psiquismo interior não deve ser analisado como uma coisa; ele não pode ser compreendido e analisado senão como um signo”. Nesse sentido, os tipos de expressões materiais que criam os signos são diversificados e existem em inúmeras formas. Todavia, todas elas possuem algo em comum: refletem e refratam o psiquismo do indivíduo, servem como ponte de comunicação entre o que é puramente psíquico (subjetivo) e o que é puramente social (objetivo), de forma que “os processos que, no essencial, determinam o conteúdo do psiquismo, desenvolvem-se não no organismo, mas fora dele, ainda que o organismo individual participe deles” (BAKHTIN, 2006, p. 39). Assim, a única coisa que nos permite ter acesso ao pensamento das pessoas de forma indireta são os tais signos. Alguns exemplos de signos são as palavras faladas e escritas, os gestos corporais, imagens, gráficos, vídeos, cores, símbolos, dentre outros. Uma pessoa analfabeta é dotada da capacidade de pensar, apesar de 41 não conseguir se comunicar de maneira escrita. Uma pessoa que sofreu um acidente e teve todos os seus movimentos paralisados ainda é dotada da capacidade de pensar, apesar que não conseguirá se comunicar de maneira escrita ou falada. Em casos como este, há a possibilidade da instalação de um aparelho que permita detectar os movimentos faciais da pessoa paralisada, convertendo-os em frases simples do tipo “sim” e “não”. A palavra, seja ela escrita ou falada, é um ente mediador entre o mundo introspectivo e o mundo social, um elo que permite aos seres humanos agirem sobre o mundo e receberem as influências do mundo em que vivem, uma espécie de moeda de troca. A palavra só representa essa conexão entre o mundo individual e o mundo social por ter um caráter que transcende a própria palavra: Mas esse espaço semiótico e esse papel contínuo da comunicação social como fator condicionante não aparecem em nenhum lugar de maneira mais clara e completa do que na linguagem. A palavra é o fenômeno ideológico por excelência. A realidade toda da palavra é absorvida por sua função de signo. A palavra não comporta nada que não esteja ligado a essa função, nada que não tenha sido gerado por ela. A palavra é o modo mais puro e sensível de relação social. (BAKHTIN, 2006, p. 34) Para o autor, a unidade base da língua chamada por Bakhtin de enunciado não representa apenas uma expressão do pensamento individual interior dos indivíduos, mas carregam as marcas sociais e históricas dos grupos e das ideologias que permitiram àquele indivíduo aprender a se comunicar com os outros. Ela é de natureza social, portanto ideológica. Ela não existe fora de um contexto social, uma vez que todo locutor tem um interlocutor, ao menos em potencial. Eis porque a classificação das formas de enunciação deve apoiar-se sobre uma classificação das formas de comunicação verbal. Estas últimas são inteiramente determinadas pelas relações de produção e pela estrutura sócio- política. Uma análise mais minuciosa revelaria a importância incomensurável do componente hierárquico no processo de interação verbal, a influência poderosa que exerce a organização hierarquizada das relações sociais sobre as formas de enunciação (BAKHTIN, 2006, p. 34). Dois conceitos centrais nas obras do autor são os de dialogismo e de alteridade. Ao dizer que, em qualquer tipo de diálogo, devem estar presentes, no mínimo, duas vozes, o autor não faz referência ao fato de que, em uma conversa, é necessário estar junto a outra pessoa. O diálogo, ao invés de um aglomerado físico de falantes, ouvintes ou observadores, é uma perspectiva que se contrapõe a ideia do discurso monológico, sendo visto como ação entre interlocutores. Mesmo no discurso interior (VYGOTSKY, 2001), diferentes vozes são mobilizadas pela pessoa que pensa. Nesse sentido, não há um discurso único, isolado de um contexto e do qual não 42 participem outras vozes, outros discursos (SCORSOLINI-COMIN; SANTOS, 2010). O discurso, na perspectiva bakhtiniana, é o debate entre as representações de cada uma dessas vozes, de cada uma das ideologias que estão nelas presentes, é marcado pela intertextualidade histórica de diversos sujeitos que encontra nos enunciados e nos atos de fala sua representação material. Uma voz não produz diálogo - o que nos leva à necessidade de um outro que produza conosco sentidos e formas de se compreender a experiência humana a partir da linguagem. Assim, uma primeira referência que deve ser desenvolvida em relação à concepção de diálogo em Bakhtin repousa na busca de sentido como ato de compreensão, que escapa a uma relação puramente lógica ou factual. É no embate entre as diferentes vozes que podemos propiciar a escrita de um novo texto, a síntese de nossas próprias interpretações. Para Bakhtin, a realidade é fundamentalmente contraditória e em permanente transformação, processo que é a característica marcante da atuação humana sobre seu meio físico e social. Nesse sentido, o autor propõe uma dialética que, emergindo do diálogo, nele se prolonga e se concretiza, colocando pessoas e textos em um permanente processo dialógico de revisão e questionamento das bases que os sustentam e das vozes que nele se fazem presentes. Seu pensamento coloca-se de modo sempre aberto, resistindo à ideia de acabamento e perfeição, o que pode ser estendido aos sentidos sobre desenvolvimento implícitos em sua obra (SANTOS; SCORSOLINI-COMIN, 2010). Assim, uma perspectiva dialógica inspirada em conceitos bakhtinianos, uma das características fundamentais do ensino seria o diálogo com os gêneros discursivos e com os inúmeros “eus” presentes nos livros didáticos, nas ementas de disciplinas, nos textos dos projetos pedagógicos de cursos, nos instrumentos de avaliação, um exercício constante de avaliação do conhecimento e de questionamento das bases que fundamentam nossas compreensões e visões de mundo. A prática pedagógica, por lidar diretamente com a língua falada e escrita, se apoia em determinadas concepções da língua e da linguagem. Tais concepções são, muitas vezes, inconscientes, mas afetam a forma como professores e estudantes reagem a determinadas situações de fala em sala de aula. Não criar oportunidades para que os estudantes formulem perguntas sobre o conteúdo, centralizar o discurso e utilizar a maior parte do tempo de fala para exposição dos conteúdos, dar um 43 feedback negativo à resposta de um estudante quando tal resposta não satisfaz os critérios de validade do docente, todas são escolhas pedagógicas baseada na centralização do poder de fala por parte do docente, uma vez que um ambiente com perguntas, dúvidas, analogias, metáforas, aumentaria as chances de que o docente não saiba algumas dessas coisas. Reconhecemos que para alguns docentes, isso é visto como uma ameaça à sua posição em sala de aula, e é feita uma escolha consciente de conduzir a aula de uma forma mais não-interativa e não-dialógica. Na seção a seguir, discutiremos como tais ideias sobre a linguagem e o discurso possuem influências diretas sobre as escolhas didáticas na condução de aulas de Ciências. 1.5. Pressupostos teóricos e metodológicos sobre a linguagem e o discurso que fundamentam a tese A carreira docente em todas as suas etapas e modalidades (ensino fundamental, médio, superior, técnico, profissionalizante, presencial, EAD) é composta de diversos princípios que norteiam as ações profissionais. Segundo os Referenciais para Formação de Professores desenvolvidos pelo Ministério da Educação (BRASIL, 2002), há algumas funções, as quais são também abordadas na Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional (LDB), nº 9394/96, que tratam da abrangência, da finalidade e das incumbências hoje atribuídas a todo professor. São elas: i) Participar da elaboração do projeto educativo da escola e do conselho escolar; ii) zelar pelo desenvolvimento pessoal dos alunos, considerando aspectos éticos e de convívio social; iii) criar situações de aprendizagem para todos os alunos; iv) conceber, realizar, analisar e avaliar as situações didáticas, mediando o processo de aprendizagem dos alunos nas diferentes áreas do conhecimento; v) gerir os trabalhos da classe; vi) propiciar e participar da integração da escola com as famílias e a comunidade; vii) participar da comunidade profissional (BRASIL, 2002, p. 81). Pode-se afirmar, sem ressalvas, que todas as funções supracitadas são, em última instância, funções de caráter comunicativo, por meio das quais várias pessoas dialogam sobre um certo assunto, expõem suas opiniões individuais e tentam, na medida do possível, estabelecer um consenso que respeite cada uma das vozes, deliberando medidas que beneficiem a todos. Nesse processo, faz-se necessário que muitas pessoas sejam ouvidas de forma paciente, racional e igualitária e que, por meio do equacionamento daquilo que se quer, daquilo que se pode e daquilo que deve ser 44 feito, sejam traçados objetivos e diretrizes de ação educacional. Esse processo é comumente conhecido por diálogo e às ações com características de diálogo dá-se o adjetivo dialógicas. A palavra diálogo (em grego antigo διάλογος, dialogos) é uma palavra composta cujo prefixo dia- significa por meio de, através de, e o sufixo -logos expressa a razão, a racionalidade. Erroneamente atribuído a uma conversa somente a dois, o diálogo pode ser estabelecido em um pequeno grupo ou entre os membros de uma grande comunidade. Pode ser usado para decidir como será distribuída a verba disponível para uma instituição escolar, para incentivar a participação da família na vida escolar dos estudantes ou para gerir as interações aluno-professor e aluno-aluno em sala de aula. Visto que cada um destes contextos representa situações de diálogo muito diversas com suas nuances particulares, focaremos as discussões a seguir nos diálogos estabelecidos em sala de aula, em especial em aulas de Ciências. As aulas de Ciências são espaços propícios para a disponibilização de informações científicas e discussão das mesmas com o uso de uma linguagem especializada e de signos semióticos diversos, tais como imagens, gráficos, tabelas, diagramas, vídeos, dentre outros. Nesses espaços, o grau de autonomia didática conferida aos professores e as concepções sobre a natureza da ciência e sobre o par ensino/aprendizagem que tais professores possuem influenciam decisivamente no desenvolvimento das aulas. Como bem observado por Vasconcelos, Praia e Almeida [...] Todos aprendemos sem nos preocuparmos verdadeiramente com a natureza desse processo e todos ensinamos sem buscarmos um suporte teórico explicativo do processo de ensino-aprendizagem. Como professores temos alguns referenciais explicativos e, também, de forma implícita ou explícita, orientamos a nossa prática por tais referenciais (VASCONCELOS; PRAIA; ALMEIDA, 2003, p. 11) Os autores apresentam em seu texto reflexões sobre algumas das concepções educacionais mais comuns e os reflexos destas para o ensino de Ciências. Todas as ações docentes observadas em sala de aula são embasadas, consciente ou inconscientemente, em alguma teoria sobre a forma como seres humanos aprendem. Ao aplicar um teste com informações que foram veiculadas em sala e cujo objetivo foi verificar a memória dos estudantes, pressupõe-se que a concepção de ensino do professor esteja vinculada à transmissão de conteúdos e à memorização como objetivo principal da aula. Todas as atividades e relações observadas em uma 45 instituição escolar (entre alunos, pais, professores, inspetores, diretores etc.) são baseadas em certas concepções dos atos de ensinar e aprender. A problemática inicial deste capítulo é pensar o que queremos que a educação científica atual proporcione aos estudantes, como traçar um plano para que tais objetivos sejam alcançados e quais as relações que o discurso do professor em sala de aula possui com a efetivação das propostas sugeridas para o ensino de Ciências? Nas últimas décadas, as agendas de pesquisa têm dado crescente enfoque aos processos comunicativos que norteiam e permeiam as aulas de Ciências. Existem algumas possíveis explicações para esse novo direcionamento. Uma possível explicação para o fenômeno é que [...] a influência da psicologia sócio-histórico ou sociocultural na pesquisa em Educação em Ciências tem resultado no desenvolvimento gradual do interesse sobre o processo de significação em salas de aula de ciências, gerando um programa de pesquisa que procura responder como os significados são criados e desenvolvidos por meio do uso da linguagem e outros modos de comunicação (MORTIMER; SCOTT, 2002, p. 283) A forma como os professores apresentam os principais problemas científicos que surgiram ao longo da história e as hipóteses elaboradas a fim de resolvê-los; a maneira como os estudantes acompanham, interpretam e respondem às explicações de seus professores; as influências dos discursos e concepções dos professores acerca da natureza das Ciências, são alguns dos problemas de pesquisa que têm sido