BARTHON FAVATTO SUZANO JUNIOR MILTON SANTOS, O ESPAÇO E AS RUGOSIDADES: contribuições da Geografia Renovada à História ASSIS 2022 BARTHON FAVATTO SUZANO JUNIOR MILTON SANTOS, O ESPAÇO E AS RUGOSIDADES: contribuições da Geografia Renovada à História Tese apresentada à Universidade Estadual Paulista (UNESP), Faculdade de Ciências e Letras, Assis, para obtenção do título de Doutor em História (Área de Conhecimento: História e Sociedade). Orientador: Prof. Dr. Hélio Rebello Cardoso Júnior (UNESP/Assis) Co-Orientador: Prof. Dr. Carlos Antonio Aguirre Rojas (UNAM/México) ASSIS 2022 Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP) Ana Cláudia Inocente Garcia - CRB 8/6887 Suzano Junior, Barthon Favatto S968m Milton Santos, o espaço e as rugosidades: contribuições da Geografia Renovada à História / Barthon Favatto Suzano Junior. Assis, 2022. 238 p. Tese de Doutorado - Universidade Estadual Paulista (UNESP), Faculdade de Ciências e Letras, Assis Orientador: Prof. Dr. Hélio Rebello Cardoso Junior Coorientador: Prof. Dr. Carlos Antonio Aguirre Rojas 1. Santos, Milton, 1926-2001. 2. Espaço. 3. Rugosidades. 4. História. 5. Geografia. I. Título. CDD 114 UNIVERSIDADE ESTADUAL PAULISTA Câmpus de Assis MILTON SANTOS, O ESPAÇO E AS RUGOSIDADES: contribuições da Geografia Renovada à História TÍTULO DA TESE: CERTIFICADO DE APROVAÇÃO AUTOR: BARTHON FAVATTO SUZANO JUNIOR ORIENTADOR: HELIO REBELLO CARDOSO JÚNIOR COORIENTADOR: CARLOS ANTONIO AGUIRRE ROJAS Aprovado como parte das exigências para obtenção do Título de Doutor em HISTÓRIA, área: História e Sociedade pela Comissão Examinadora: Prof. Dr. HELIO REBELLO CARDOSO JÚNIOR (Participação Virtual) Departamento de História / UNESP/FCL-Assis Prof. Dr. JOSÉ COSTA D'ASSUNÇÃO BARROS (Participação Virtual) UFRRJ/Rio de Janeiro Prof. Dr. GUILHERME DOS SANTOS CLAUDINO (Participação Virtual) UFMS Prof. Dr. ROGERIO IVANO (Participação Virtual) UEL/Londrina Profa. Dra. KARINA ANHEZINI DE ARAUJO (Participação Virtual) Departamento de História / UNESP/FCHS-Franca Assis, 29 de outubro de 2021 Faculdade de Ciências e Letras - Câmpus de Assis - Av. Dom Antonio, 2100, 19806900 http://www.assis.unesp.br/posgraduacao/historia/CNPJ: 48.031.918/0006-39. Ao meu menino, sob proteção e graça de pai Xangô. A Milton Santos, no 20º aniversário de morte do “cidadão do mundo”. AGRADECIMENTOS Alguns homens escreveram suas obras em tempos obscuros, de crise, no desterro, confinados, na enfermidade. Com o autor e este trabalho não foi diferente. Às vezes, é preciso o confronto e a superação do absurdo para o reencontro com a vida. São nesses momentos que o indivíduo reconhece a própria fortaleza. E, sobretudo, encontra incentivo em verdadeiros orientadores, além de refrigério e encorajamento no apoio de legítimos amigos e de pessoas queridas. Sem o apoio deles, esta original tese, triunfo da justiça e da vida sobre toda espécie de canalhice, obscurantismo, barbárie, bestialidade e ímpeto de morte, jamais teria sido concluída. Meus agradecimentos: Ao meu orientador, Prof. Dr. Hélio Rebello Cardoso Júnior (UNESP), pela generosidade, humanidade e gentileza habituais e pela dedicação e rigor intelectual com os quais orientou esta tese. A este carioca da gema e vascaíno empedernido agradeço toda philia antes e durante a jornada. Ideal de docente e ser humano para seus alunos desde minha graduação. Ao Prof. Dr. Carlos Antonio Aguirre Rojas (UNAM), coorientador deste trabalho, que me recebeu de portas abertas em seu escritório na Cidade do México. Nossas sessões de orientação, bem como suas leituras rigorosas e seus apontamentos críticos enriqueceram sobremaneira minha experiência investigativa e trajetória acadêmica. Aos professores Dr. Guilherme dos Santos Claudino (UFMS), Dr. José D’Assunção Barros (UFRRJ), Dr. Rogério Ivano (UEL) e Dra. Karina Anhezini de Araújo (UNESP), por gentilmente terem aceito participarem da banca como titulares. E aos professores Dr. José Carlos Vilardaga (UNIFESP), Dr. Roger Domenech Colacios (UEM) e Dra. Tania Regina de Luca (UNESP), na qualidade de suplentes. Uma honra tê-los como primeiros leitores desta obra! À Profa. Karina Anhezini e ao Prof. Dr. Milton Carlos Costa (UNESP), por participarem do Exame de Qualificação, agraciando-me com leituras atentas e comentários valiosos. Em tempo, ao Prof. Barros, por ter sido, mesmo sem saber, um grande incentivador e interlocutor deste trabalho. E ao Prof. Claudino, pelo apoio incondicional por meio de leituras atentas e indicações bibliográficas em minhas incursões pelo campo da Geografia. Ao Prof. Dr. Jurandir Malerba (UFRGS), pela generosidade com que acolheu e apoiou minha solicitação de estabelecimento de contato institucional no México. Aos professores Dr. Gilmar Arruda (UEL), Zeca Vilardaga e Roger Colacios, pelas recomendações acerca de debates e obras fundamentais sobre historiografia e espaço. E à Profa. Dra. Paula Vermeersch (UNESP), pelo apoio e préstimos bibliográficos. No México, no estado de Nuevo Léon, reconheço o acolhimento do Prof. Dr. Mário Cerutti (UANL). E presto minha homenagem e mais profunda gratidão à memória da poetisa nacional e diretora da Capilla Alfonsina Biblioteca Universitária (UANL), Profa. Dra. Minerva Margarita Villarreal. O apoio de Minerva foi fundamental para a continuidade desta pesquisa em terras norteñas, ao disponibilizar-me sala de trabalho e acesso irrestrito ao acervo. Aos colegas do Projeto Temático Tempo e Temporalidades, do Laboratório de Estudos Históricos do Contemporâneo (LABEHCON), do Laboratório de Estudos de História Ambiental (LEHA) e do Grupo de Estudos sobre Marxismo (GEMARX), pelos empréstimos bibliográficos e profícuas discussões. Aos funcionários da Seção de Pós-graduação e da Biblioteca “Acácio José Santa Rosa”, da UNESP/Assis. Em especial, ao Lino, à Ana Cláudia e à Laura. À competente Eleonora Smits, pelo esmero no labor de revisão e formatação da versão final desta tese. À saudosa Madalena, minha professora do Ensino Fundamental, que me encantava com suas magistrais aulas. A ela devo meu apreço pela Geografia e pela História. À competente junta médica mexicana que cuidou para que eu pudesse continuar por esse mundo contando histórias. Especialmente, aos médicos Cuilty Siller e Escamilla Islas. A Márcia Sel, por sempre me recordar que “a verdade” é o caminho e que ele se faz ao caminhar. Aos queridos Cristiano Gustavo Biazzo Simon e Mateus, pela inestimável amizade cultivada dia a dia, mesmo nas saudades e à distância. À estimada Elis, pela fé, presença e palavras de conforto nos momentos difíceis. Aos meus irmãos Janayna e Rogério, que moram no meu coração, ainda que à distância. Enfim, à Alessandra e ao Guillermo, minha família, por estarem incondicionalmente ao meu lado nos percalços e delícias dessa aventura chamada vida. O que não está em nenhum lugar não existe. (Aristóteles, Física) RESUMO Concepções e conceitos de espaço têm sido importados da Geografia e utilizados pela História desde a institucionalização dessas disciplinas no século XIX. No entanto, a redefinição conceitual de um espaço geográfico uno e universal no interior da disciplina Geografia é uma realização mais ou menos recente, operacionalizada na segunda metade do século XX, especialmente, a partir da década de 1970 pela Geografia Nova. Esta tese tem por fundamental objetivo apresentar um estudo sistemático, desde a área de Teoria da História, da ontologia e do conceito de espaço geográfico advindos da epistemologia da Geografia Nova (ou Renovada) do geógrafo brasileiro, Milton Santos, demonstrando a potencialidade de suas aplicabilidades à História. Concomitantemente, revela-se como o conceito de espaço miltoniano se encontra estruturado em outro, no de rugosidades, e, como este último, impinge-lhe densidade e sentido temporo-espacial. Isso corrobora não somente a força do conceito de espaço miltoniano para o ofício do historiador, como também sustenta que, para além de uma Geografia Renovada, a obra teórica do geógrafo brasileiro fomentou, introduziu e legou, desde o Sul global, uma mui original modalidade de Geohistória. Por fim, porém não menos importante, a tese se concentra na apresentação, no detalhamento e na adequação à dérmarche da História de categorias e conceitos outros que estruturam a concepção de espaço geográfico de Milton Santos. Palavras-chave: Milton Santos. Espaço. Rugosidades. História. Geografia. ABSTRACT Conceptions and concepts of space have been imported from Geography and used by History since the institutionalization of both disciplines in the nineteenth century. The conceptual redefinition of a unified and universal geographic space within the discipline of Geography, however, is a more or less recent achievement, operationalized in the second half of the twentieth century, especially by the New Geography from the 1970s on. The main purpose of this thesis is to present a systematic study, from the field of History Theory, of the ontology and the concept of geographic space stemming from the epistemology of the New (or Renewed) Geography of the Brazilian geographer Milton Santos, demonstrating the potential of its applicability to History. At the same time, we reveal how the concept of Miltonian space is structured on another, that of rugosities, and how the latter imbues it with density and temporal- spatial meaning. It corroborates not only the strength of the Miltonian concept of space for the historian's craft but also sustains that, beyond a Renewed Geography, the theoretical work of the Brazilian geographer has fostered, introduced, and delivered, from the global South, a very original modality of Geohistory. Last but not least, the thesis focuses on the presentation, detailing, and adequacy to the démarche of History of other categories and concepts that structure Milton Santos' conception of geographic space. Keywords: Milton Santos. Space. Rugosities. History. Geography. LISTA DE ABREVIATURAS E SIGLAS ACNUR – Alto Comissariado das Nações Unidas para Refugiados AGB – Associação dos Geógrafos Brasileiros CAPES – Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior CNG – Conselho Nacional de Geografia CPE – Comissão de Planejamento Econômico do Estado da Bahia FES – Formação econômica e social FSE – Formação socioespacial FFLCH – Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas IBE – Instituto Bahiano de Ensino IBGE – Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística IDH – Índice de Desenvolvimento Humano IEB – Instituto de Estudos Brasileiros da Universidade de São Paulo IEDES – Institut d’Étude du Développement Économique et Social FFPE – Forma, função, processo e estrutura MIT – Massachussetts Institute of Technology OEA – Organização dos Estados Americanos OIT – Organização Internacional do Trabalho ONU – Organização das Nações Unidas PCB – Partido Comunista Brasileiro PIB – Produto Interno Bruto SUDENE – Superintendência do Desenvolvimento do Nordeste UNE – União Nacional dos Estudantes UNESP – Universidade Estadual Paulista “Júlio de Mesquita Filho” UCS – Universidade Católica de Salvador USP – Universidade de São Paulo SUMÁRIO INTRODUÇÃO ............................................................................................................. 11 1 MILTON SANTOS: ITINERÁRIO BIOGRÁFICO E TRAJETÓRIA EPISTEMOLÓGICA ........................................................................................... 31 1.1 O itinerário biográfico de Milton Santos: do homem regional ao “cidadão do mundo” ................................................................................................................................. 34 1.2 A trajetória epistemológica de Milton Santos: da geografia regional à geografia renovada ................................................................................................................... 47 2 O ESPAÇO, A GEOGRAFIA E A HISTÓRIA ...................................................... 67 2.1 A Geografia moderna e o espaço geográfico. ........................................................... 71 2.2 Os Annales e a instrumentalização do espaço geográfico na História ...................... 90 3 O ESPAÇO, AS RUGOSIDADES E A GEOHISTÓRIA NA ONTOLOGIA DO ESPAÇO DE MILTON SANTOS ..................................................................... 113 3.1 O espaço geográfico de Milton Santos: leitura desde a perspectiva da História ..... 116 3.2 As rugosidades do espaço e a Geohistória de Milton Santos ................................. 139 4 A GEOHISTÓRIA DE MILTON SANTOS: CATEGORIAS, CONCEITOS, TEMPORALIDADES ........................................................................................ 160 4.1 Tempo e temporalidades do espaço geográfico na Geohistória miltoniana ............ 166 4.2 Categorias analíticas e repertório conceitual da Geohistória miltoniana: ............... 186 CONSIDERAÇÕES FINAIS ..................................................................................... 212 REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS ...................................................................... 227 ANEXO 1 - Desenvolvimento e trajetória epistemológica de Milton Santos. ........... 238 11 INTRODUÇÃO O que é espaço? Pergunta nada simplória apesar da economia de palavras. Mas cuja resposta comporta inúmeras interpretações e definições dependendo do lugar, da época e de quem as produz. Na quase totalidade dos idiomas, a palavra espaço é de uso tão corrente que pode dizer de um sem número de significados quanto de significantes. Como sugeriu o geógrafo brasileiro Roberto Lobato Corrêa (2000, p. 15), pode-se falar em “espaço interno”, em “espaço econômico”, em “espaço topológico”, em “espaço vital”, em “espaço sideral” etc. Ou então, referir-se a uma gama infindável de objetos: “utensílios comuns à vida doméstica, como um cinzeiro, um bule, são espaço; uma estátua ou uma escultura, qualquer que seja a sua dimensão, são espaço”, e até mesmo “uma casa é espaço, como uma cidade também o é” (SANTOS, 2012 [1978], p. 150).1 O foco de observação muda, amplia-se, e poder-se-á verificar que, assim como “o espaço de uma nação”, coexiste o “o espaço terrestre, da velha definição da geografia, como crosta do nosso planeta”, como também há “o espaço extraterrestre [...] parcialmente um mistério” (SANTOS, 2012 [1978], p. 150). Considera-se ainda o fato de que o espaço, independente de nomenclaturas, é uma condição. Um fenômeno – qualquer que seja – de reconhecimento social imemorial. Impondo- se, tal qual o tempo e a memória, como realização cognitiva, expressão inerente das relações tecidas no cotidiano do ser humano com as forças do sublunar. Um bebê aprendendo a engatinhar logo apreende que o fará em vista de uma distância a ser percorrida, da dimensão dada, e, por fim, dos objetos disponibilizados, que, no local, podem se apresentar como possíveis obstáculos ou pontos de apoio. Ou seja, que o fará em vista das condições do espaço determinado, ainda que a ele incompreensível a palavra e as concepções de espaço. A lógica também é válida para um jovem caçador tribal. A realização da atividade de caça circunscreve- se a um determinado perímetro, a tipos específicos de espécies de fauna, ao constructo de ferramentas em conformidade com os materiais disponíveis e viáveis ao enfrentamento das intempéries e desafios da caçada. Ou, então, para o velho citadino que, desde o arauto das lembranças da infância, retumba imagens da rua em que brincou, da casa em que morou, da escola em que estudou e dos aromas e paladares únicos das comidas que somente aquele lugar e aquele tempo, o da sua infância, puderam-lhe um dia proporcionar. Nas atividades que mesmo aparentemente alheias a qualquer condicionamento ou imperativo espacial, ele lá está: o espaço. Toma-se como exemplo o consciencioso e recluso 1 Nesta tese, todos os livros de Milton Santos aparecem com a data da edição utilizada pelo autor, e, em seguida, entre colchetes, a data da publicação original. O critério adotado é justificado ainda nesta introdução. 12 labor dos escritores. Quantos deles não reclamam da angústia que lhes arrebata o postar-se diante da folha em branco? Não seria o papel – ou, hoje, a tela do computador – em branco o espaço de escrita? Repositório da criatividade? O hiato a ser povoado pela mente em polvorosa de escritor? Que o digam também os pares historiadores. É possível História sem espaço? Pois, para além da consabida questão da criação narrativa, em que os marcos temporais determinam sobre qual época se está historiando, as balizas espaciais também endossam sobre a sociedade, cultura ou homem sobre os quais se está narrando. E de qual lugar o historiador está partindo para a sua análise. Sobre quais tempo e espaço. E a partir de qual tempo e espaço. Decorre daí a assertiva proposição do teórico e historiador brasileiro José D’Assunção Barros, a partir de reconhecida máxima de Marc Bloch: Definir a História como estudo do homem no tempo foi, em vista de tudo isso, um passo realmente decisivo para a expansão dos domínios historiográficos. Contudo, é hora de reconhecermos que a definição de História, no seu aspecto mais irredutível, deve incluir nos dias de hoje uma outra coordenada para além do “homem” e do “tempo”. De fato, a História é o estudo do Homem no Tempo e no Espaço (BARROS, 2017, p. 15 – grifos do autor). Desde as planícies e planaltos da Filosofia e da Ciência, desde os antigos gregos, passando pelos filósofos modernos, os positivistas do século XIX, os marxistas clássicos, e, por fim, pelos cientistas pós-einsteinianos, as definições de espaço – assim como as de tempo – têm sido objeto de acalorados debates. Querela possivelmente sem fim, longe de consenso, já que não há uma única e dominante acepção, seja na Filosofia ou nas Ciências Humanas, ou, ainda, nas chamadas Ciências duras. Obstáculo aquém de superado e de superação nesses tempos de convergências, em que as conexões e interditos entre áreas e saberes, os encontros ou divergências de métodos, as correlações ou disparidades entre padrões de análises e definições de objetos que, entrelaçando-se conceitualmente (Cf. WATSON, 2017, p. 22), e, por que não, paradoxal e dialeticamente com uma velocidade nunca antes imaginável, formam a teia e ditam as regras de produção no domínio do científico.2 Do Automatic Binding Bricks da épistème, 2 A ideia de convergência em Peter Watson (2017a) – em contraposição à difusa, mas amplamente difundida categoria de interdisciplinaridade e suas múltiplas variáveis: a trans, a multi e a pluri disciplinaridade – não prescinde de fundamentações acerca de possíveis e bem arquitetadas convenções entre disciplinas, de sofisticados mecanismos logísticos e de convivências diretas entre campos do saber-fazer. Tampouco, da preexistência de articuladas forças-tarefa entre pesquisadores alocados em áreas consabidamente engessadas por rígidas estruturas departamentais, entremeadas pelas “lutas regionais” e entoadas pelo reinado de nomos, conforme determinou Pierre Bourdieu (1989). Trata-se de um esforço de simplificação, porquanto de aplicabilidade bem mais flexível. Mas que traduz com enorme precisão os fenômenos de contatos que quase sempre espontânea e naturalmente ocorrem entre disciplinas e áreas de conhecimento. E que representa o padrão imperativo de constituição da cientificidade e do conhecimento. Por sua vez, a interdisciplinaridade, e suas inúmeras manifestações, variações e definições, é ainda hoje objeto de controvérsia no campo acadêmico. Autores como Immanuel Wallerstein e Carlos Antonio Aguirre Rojas lançam questionamentos sobre a validade 13 cujos milimétricos encaixes possibilitam e concebem mútua e continuamente novas estruturas, conteúdos, funções e formas de saber.3 Do contumaz movimento de contribuição que uma disciplina faz a outra por meio de empréstimos, de realocações, de ressignificações, e, sobretudo, da universalização de algumas categorias e conceitos.4 Superlativo então compreender que também hoje, assim como no passado, as noções e definições filosóficas e científicas de espaço não são unânimes. Pierre Moran (apud SANTOS, 2013 [1978], p. 70) recorda-nos que, “quando uma noção como a de espaço é utilizada por disciplinas tão diferentes quanto a matemática, a sociologia, a geografia ou a economia, há motivo para recear uma confrontação brutal de seus pontos de vista na representação de fenômenos reais.”. E acrescenta ainda que essa simples constatação “[...] explica por que as diferentes acepções da palavra espaço continuam a alimentar uma polêmica acerca das noções tornadas particularistas.” (MORAN apud SANTOS, 2013 [1978], p. 70). As noções da Física podem se aproximar às da Astronomia. Mas, em certa medida, se distanciam daquelas preconizadas desde o campo da Biologia, as quais, por sua vez, algumas arraigadas na Geografia, na História e nas demais Ciências Sociais. Em consequência, é sempre válido frisar que, mesmo no âmago de uma mesma grande área, prevalecem notáveis diferenças, sensíveis divergências e patamares de importância dadas a algumas categorias, recortes e objetos. Ações coordenadas por escolhas objetivas ou regidas por critérios nomotéticos em que, até prescindidos de certa áurea e gozando de um suposto estatuto de universalidade numa mesma grande área, os conceitos também não são incólumes. O consenso, pois, nem sempre é a viga mestra de sustentação do métier científico, concedendo- lhe à falta o sempre necessário impulso para constantes mobilizações e atualizações. É o que do que se convencionou chamar de projeto interdisciplinar. Enquanto Wallerstein (1996) denuncia a impossibilidade de correta aplicabilidade da interdisciplinaridade num horizonte científico engessado por particulares barreiras departamentais e disciplinares, Aguirre Rojas (2010) assevera que, estranhamente, esses projetos deixam intocados o fundamento estrutural das Ciências na modernidade. 3 A palavra épistème e sua derivada, epistemologia, aparecem ao largo deste trabalho sempre em referência ao conjunto e à estrutura de conhecimentos e procedimentos de um determinado campo científico, pensados desde ou para uma determinada área das Ciências. Segundo o dicionário de termos filosóficos de Nicola Abbagnano (2007, p. 140), por epistemologia compreende-se “a disciplina que considera as formas ou os procedimentos do conhecimento científico”, desde suas fundamentações teoréticas até suas realizações metodológicas. 4 Conceito diz respeito ao único que é universal. Ou seja, uma nominação de força abstrativa que diz de um fenômeno expressando sua universalidade. Para Abbagnano (2007, p. 164), em sentido lato, o conceito é todo processo que possibilita a descrição, a classificação e a previsão dos objetos cognoscíveis”. Categoria, por sua vez, refere-se, também em seu sentido lato, “a qualquer noção que sirva como regra para a investigação ou para a sua expressão linguística em qualquer campo” do conhecimento (ABBAGNANO, 2007, p. 121). No entanto, em seu sentido stricto, condizente à sua acepção no interior deste trabalho, compreende-se categoria como as categorias de análise imprescindíveis para determinado campo científico. Por exemplo, a categoria “economia” é imprescindível aos campos das Ciências Econômicas, da Ciências Sociais, da Geografia e da História. Por categoria, Milton Santos (2014 [1985], p. 16) compreende uma “[...] verdade eterna, presente em todos os tempos, em todos os lugares, e da qual se parte para a compreensão das coisas num dado momento, desde que se tenha o cuidado de levar em conta as mudanças históricas.”. 14 ocorre no caso das Ciências Humanas, em que tal gravidade é ainda mais evidente, dado certo grau de subjetividade que as alimenta e conforma. Nessas disciplinas, cada teórico ou investigador toma objetos tangentes a partir de um ponto de vista (Cf. BAILLY; BEGUIN, 1992), dando-lhe maior ou menor destaque, colocando-o como protagonista ou coadjuvante do saber-fazer daquele campo de conhecimento e daquela determinada produção de conhecimento. Nas áreas da História e Geografia, essa evidência faz-se ainda mais notória. Isso porque, nessas “disciplinas irmãs” que, a partir do século XIX, buscaram percorrer veredas próprias, constituindo campos autônomos e especializados do conhecimento (Cf. BARROS, 2017, p. 13- 19), o objeto continua sendo o homem – ou melhor, as ações humanas. E seus objetos tangentes, evidentemente, o tempo e o espaço, porque, a fim e a cabo, é inconcebível qualquer ação humana fora do tempo e alheia ao espaço. Porém, em decorrência da cisão pragmática, verticalizada até, instaurou-se, entre, em e sobre essas “disciplinas irmãs”, duradoura miopia. Tal fato é referente ao equívoco reconhecimento da História como disciplina que detém o monopólio de pesquisa sobre ações humanas no tempo e da Geografia como ciência que estuda as ações humanas no espaço (Cf. BARROS, 2017, p. 19).5 Problemas de di-visão, de lutas regionais e disputas simbólicas pela região (Ver BOURDIEU, 1989) que, ao longo do século XX, assistiu felizes tentativas de implosão do lado de lá e do lado de cá das trincheiras disciplinares. A Geohistória de Fernand Braudel é um exemplo dessas excepcionais iniciativas. Outra advém do geógrafo brasileiro Milton Almeida dos Santos (1926-2001), autor cuja produção geográfica é o tema de discussão desta tese, e que dedicou boa parte de sua vida e obra a pensar o espaço. Antes de qualquer apresentação sobre o geógrafo brasileiro, no entanto, é necessário o retorno à questão inicial: que é espaço?, cuja resposta o leitor inquieto, porque atento, e mobilizado por algum grau de ansiedade, aguarda receber com honestidade. Em vista dos crepitantes porque polêmicos temas até aqui levantados, deixemos a resposta nada mais, nada menos, que ao próprio especialista. Milton Santos (2012 [1978], p. 150), em “um esforço de definição” sobre que é espaço – lê-se: o espaço genérico –, revela com certo teor de derrisão que, estudando a história da disciplina geográfica, “compreende-se porque os geógrafos se dedicaram muito mais à definição de geografia do que à definição de espaço.” Daí, o leitor mesmo pode dimensionar o teor do imbróglio. E, em complemento, valendo-se de célebre frase 5 É possível afirmar que, ainda hoje, no século XXI, conforma-se no imaginário social a bipartição da História como disciplina do tempo, das temporalidades e do abstrato, e da Geografia como área dedicada aos estudos do espaço, das espacialidades e do concreto. Ideia comumente reforçada desde os bancos escolares como se as análises sobre os fenômenos sublunares nessas disciplinas não prescindissem de uma e outra dessas categorias ou objetos. 15 de Santo Agostinho sobre outro conceito de intricada definição, o tempo, acrescenta: “Se me perguntam se sei o que é, respondo que sim; mas, se me pedem para defini-lo, respondo que não sei.” (SANTO AGOSTINHO apud SANTOS, 2012 [1978], p. 150). De tal maneira, pode-se afirmar que não há uma única e universal acepção sobre o que é espaço. Tampouco, e disso decorrente, que exista uma só unidade ou modalidade espaço. A depender da referência e do referente, do lugar disciplinar de onde e para quem disciplinarmente se fala, compreende-se a existência de múltiplos e plurais espaços. Em nosso caso, a presente tese ocupa-se de uma dessas infinitas possibilidades de espaço, o espaço geográfico: aquele pensado, seja como categoria, conceito ou fenômeno pelos geógrafos desde o campo de conhecimento da Geografia para a Geografia. Esse espaço geográfico também pode ser vário. Afinal, e a título explicativo, o espaço geográfico para a Geografia Física pode não ser – e, em geral, não é – o mesmo que o da Geografia Humana. E mesmo dentro dessa ramificação do saber geográfico também não existe uma definição consensual. Logo, a definição de espaço geográfico em revelo ao largo desta obra – e, portanto, da qual ela se ocupa porque é sua razão de ser – é uma entre as constelações de acepções de espaço geográfico possíveis à chamada Geografia Humana. Trata-se, a fim e a cabo, da concepção de espaço geográfico pensada, elaborada, defendida e propalada a partir da obra geográfica de Milton Santos. Negro, primogênito de um casal de professores de classe média soteropolitanos, nascido em Brotas de Macaúbas, Chapada Diamantina, interior do estado da Bahia, Brasil, Milton Santos notabilizou-se tanto como idealizador de uma nova epistemologia da Geografia Nova – conhecida como Geografia Crítica ou Geografia Renovada – quanto pela concepção, organização e instrumentalização metodológica de uma refinada teoria sobre o espaço geográfico, de sensível viés analítico-social, com enfoque nos estudos sobre a formação e conformação geográfica do espaço, da urbanidade e do território.6 Tais eixos são sempre 6 Geografia Nova é a nomenclatura utilizada pelos geógrafos a fim de designar o movimento que, a partir dos anos 1970, se instaurou no interior da Geografia Crítica. Por sua vez, a Geografia Renovada designa o impulso que, operado desde o interior da Geografia Nova, buscou demarcar uma ruptura com alguns dos postulados epistemológicos daquela vertente geográfica. Esse movimento, tal como se verá nesta obra, buscou a proposição de uma renovação do horizonte teórico da disciplina, sendo o próprio Milton Santos, desde o sul global, o seu principal expoente e porta-voz. Contudo, ainda na atualidade, não há consenso no campo da Geografia quanto ao entendimento de que a Geografia Renovada se realizou ou não como uma vertente independente da Geografia Nova, logo, como uma corrente da Geografia Crítica. Ou mesmo, como uma escola. No entanto, ainda que objeto de polêmicas, privilegiou-se nesta tese – inclusive, desde o título – a chancela Geografia Renovada para designar a obra e o conjunto de proposições teóricas de Milton Santos. Essa escolha respalda-se no ensejo pragmático de distinção, de não esvaziar o caráter político e a força epistemológica da obra do geógrafo brasileiro, sublinhando seus aspectos distintivos e inovadores no quadro da Geografia Nova. E, principalmente, do impulso sempre presente na Geografia de Milton de renovação da disciplina a partir da apreensão do espaço como totalidade e como instância social que é, além de reforçar o forte vínculo e o compromisso do brasileiro com e em pensar o sul global. O que distingue a sua Geografia Nova de outras proposições teóricas que, dentro da corrente, advindas do norte global. Quanto às inclinações e defesas nominais, se Geografia Nova ou Renovada, que podem ferir 16 cadenciados em sua ontologia do espaço geográfico pela “centralidade da técnica”, pelos diálogos com a “economia política” e por pensar a “cidadania como práxis”, conforme evidenciou a tese da geógrafa brasileira Flávia Christina Andrade Grimm (2011).7 Pari passu, tornou-se estimado por seu engajamento acadêmico e social como um dos principais expoentes intelectuais críticos da globalização. Além disso, Santos reconhecido como “um dos firmes combatentes na luta contra o racismo no Brasil”, assim declarado pela Câmara dos Deputados (BRASIL, 2014, p. 21). O profícuo legado de seu gênio e obra, contributivo não somente às fronteiras do campo em que atuou e se notabilizou, rendeu-lhe inúmeros títulos e prêmios no Brasil e no Mundo. Entre eles, destacam-se diversos títulos de Doutor Honoris Causa em universidades brasileiras, das Américas e da Europa, além dos prêmios Jabuti (1997), Anísio Teixeira (2006) e Vautrin Lud (1994). Este último é considerado o maior prêmio internacional da Geografia e Milton Santos é, até a atualidade, o único geógrafo latino-americano ganhador do prêmio e, até 2017, o único negro e cidadão terceiro mundista contemplado, antecedendo mesmo à premiação de renomados nomes da Geografia, como os franceses Paul Claval e Yves Lacoste e os anglófonos David Harvey e Edward Soja.8 Ex-professor do Departamento de Geografia da Universidade de São Paulo (USP), Milton Santos é considerado um dos expoentes da intelligentsia brasileira do século XX. Envergadura que, segundo o geógrafo brasileiro Fábio Betioli Contel (2014, p. 409), permite- nos inserir seu nome no rol das grandes personalidades do pensamento social e crítico nacional, ao lado de Caio Prado Júnior, Paulo Freyre, Florestan Fernandes, Darcy Ribeiro, entre outros. E, porque não, também do pensamento latino-americano, uma vez que, desde o campo da suscetibilidades de alguns colegas geógrafos, mas que muito pouco têm a dizer aos historiadores e demais cientistas sociais, recorda-se a advertência: “Insiste-se: a discussão precisa ser sobre o objeto da disciplina e não sobre a sua denominação, que somente gera fragmentação e fragilidade metodológica.” (SOUZA, 2021, p. 43). 7 O termo ontologia aparece diversas vezes ao longo desta tese, quase sempre em referência à contribuição teórica de Milton Santos. Por ontologia, o dicionário de termos filosóficos de Nicola Abbagnano (2007, p. 662) define “doutrina que estuda os caracteres fundamentais do ser: os que todo ser tem e não pode deixar de ter.” Logo, quando, ao longo do texto, se faz alusão aos estudos encampados por Milton Santos sobre a natureza e razão de ser do espaço geográfico, ou então, ao interesse teórico do geógrafo em relação a ele, inclusive, mas não somente em relação aos fenômenos e conformações espaciais, atribui-se o emprego do termo ontologia. Ele jamais deve ser confundido com o termo epistemologia, antes apresentado. No entanto, é precisa a afirmação de que uma epistemologia da Geografia, como no caso de Santos, comporta a reflexão sobre o espaço geográfico e seus fenômenos, uma ontologia. 8 O Vautrin Lud Prize é considerado o Nobel da Geografia e foi instituído no ano de 1991, tendo a cidade de Saint- Dié-des-Vosges (França) como sede da premiação. O nome do prêmio é uma homenagem a Vauntrin Lud, responsável por nomear o continente americano em homenagem ao navegador italiano Américo Vespúcio. Desde a instituição do prêmio, foram laureados 32 geógrafos. O nigeriano Akin Mabogunje compartilha desde 2017 com o brasileiro o posto de únicos geógrafos negros e cidadãos exclusivamente representantes de países subdesenvolvidos a receber o Lud. O caso do sino-estadunidense Yi-Fu Tuan é excepcional, porque, embora também não seja caucasiano e tenha nascido em Tianjin, China, desenvolveu toda a sua carreira nos Estados Unidos. Pesa ainda o fato de a China não mais figurar como um país subdesenvolvido. 17 Geografia, como bem alvitrou o geógrafo e sociólogo francês radicado no México, Daniel Hiernaux (2008, p. 19): “¿Habrá reparado el lector que en los medios geográficos latinoamericanos (inclusive entre el alumnado) no hablamos ‘Santos’ (o sólo a veces y en ocasiones formales) sino de ‘Milton’?”.9 Estima que, ainda segundo Hiernaux (2008, p. 19), é representativa tanto da valoração desde aquela disciplina da obra intelectual de Milton Santos, como e de igual maneira transluz como “signo inequívoco” de reconhecimento da personalidade humana do geógrafo baiano, verdadeiro humanista que era. Aclamação que transcende os limítrofes disciplinares do campo da Geografia, abraçando com semelhante força a opinião de intelectuais e acadêmicos das mais diversas áreas da ciência na América Latina, e, quiçá, de todo o Mundo. À medida que duas décadas se passaram desde o passamento de Milton – o geógrafo sucumbiu em 24 de junho de 2001 à longa e dura batalha contra o câncer – o seu legado intelectual e a original ontologia do espaço pelo brasileiro desenvolvida têm marcado cada vez mais presença em estudos provenientes de uma gama variada de áreas do conhecimento, repercutindo desde as Ciências Sociais às Ciências da Informação. Principalmente, no que diz respeito à apropriação e usos do rico – e igualmente potente – repertório conceitual legado pelo geógrafo, que concede dinamismo, concisão e acabamento – enfim, metodologia – à sua ontologia do espaço. Isso porque o intelectual e docente brasileiro edificou uma teoria e um método em que a Geografia – e, consequentemente, o espaço geográfico – não se encontra isolada das convergências com a Filosofia e as demais Ciências Sociais. Buscando, como detentor de uma erudição e de um rigor intelectual insuperáveis, abraçar no constructo de suas reflexões sobre o espaço geográfico uma soma considerável de enfoques disciplinares, articulando-os, sistematizando-os e compaginando-os em sua Geografia Renovada. No conjunto das Ciências Sociais, contudo, ainda que notório o reconhecimento do homem e intelectual Milton Santos, subleva-se um hiato. Nessa grande-área de conhecimento, como bem salientou a geógrafa Maria Adélia Aparecida de Souza (In BRANDÃO, 2004, p. 76), a obra teórica miltoniana “ainda pouco lida e compreendida, mas fundamental e complexa, ainda está por ser assimilada e discutida pela maioria dos geógrafos e outros cientistas sociais brasileiros.”. No campo da disciplina História, a situação é ainda mais grave, acentuando-se 9 Também neste trabalho, por diversas vezes e em inúmeras passagens, preferiu-se o tratamento menos formal geralmente outorgado em deferência a um autor numa obra acadêmica. Logo, e não raras vezes, o leitor se deparará, ao longo dessas páginas, apenas com o uso do primeiro nome, Milton, em vez do sobrenome Santos. Isso em nada diminui nosso reconhecimento e deferência pelo intelectual e geógrafo. Pelo contrário. Também se privilegiou o emprego do nominativo miltoniano(a) em referência ao pensamento ou obra do geógrafo em vez do termo santosiano(a). 18 uma ausência incômoda e um silêncio ensurdecedor. O geógrafo e um dos intelectuais nacionais de maior envergadura é ainda hoje reconhecido nos círculos dos discípulos de Clio mais por sua projeção intelectual pública do que propriamente por suas contribuições teóricas.10 E, salvo algumas ilustres iniciativas, como a do historiador e teórico brasileiro José D’Assunção Barros, no recente História, Espaço, Geografia: diálogos interdisciplinares (Vozes, 2017, 122 páginas), livro do qual se voltará a tratar nesta introdução, reconhece-se em grande medida desde a História mais o valor do pensamento de Milton Santos – mormente, as ideias pelo geógrafo chanceladas nos anos oitenta e noventa em séries de artigos de imprensa, entrevistas, e pelo sucesso editorial de Por uma outra globalização (Record, 2000, 174 páginas) – do que propriamente a densidade e profundidade de sua contribuição teórica à Geografia e às demais Ciências Sociais. Principalmente, no que diz respeito às profícuas reflexões e inovações do geógrafo baiano acerca do espaço geográfico, por ele elevado ao nível de objeto, categoria e conceito da Geografia Humana, e do vigoroso repertório conceitual que edificou a fim de viabilizar os estudos sobre as espacialidades e seus fenômenos. Nesse repertório, encontra-se o conceito de rugosidades. Conceito esse elaborado a partir de uma preocupação de Milton com a historicidade do espaço e seus processos histórico- formativos e que fundamentado a partir de sua dedicação em explicar a realidade do subdesenvolvimento e as excepcionalidades das formações socioespaciais complexas, porque heterogêneas, dos chamados países periféricos da Ásia, África e América Latina.11 Isso torna tal conceito – como ver-se-á – igualmente central à ontologia e epistemologia do espaço de Milton Santos, bem como à sua compreensão, potencialidade e aplicação, dorsais aos historiadores às voltas com o estudo do espaço e das espacialidades. Duas hipóteses serviram como porto de partida e nortearam a empreitada desta investigação em Teoria da História. A primeira se baseia numa constatação empírica, porque amplamente consabida, mas quase sempre ocultada – quando não, negligenciada –, pelos historiadores: a de que as concepções de espaço de que ainda nos valemos são antiquadas, defasadas e de uma simplificação conceitual que beira a ingenuidade teórico-metodológica. 10 Em consulta realizada em 2017 ao Catálogo de Teses & Dissertações da CAPES, não foram localizadas produções no campo da História que relacionam a contribuição da teoria da Geografia de Milton Santos à Teoria da História. Algumas poucas dissertações em História & Patrimônio, em História Local, ou ainda em História Ambiental abraçam alguns conceitos miltonianos, mas resguardando-se a apresentá-los sem quaisquer detalhamentos. À data de redação desta tese essa lacuna ainda permanece. 11 Privilegiou-se, ao largo desta obra, a adoção do termo subdesenvolvimento em detrimento de “países em desenvolvimento”, por entender o aspecto disfuncional e ideológico desta última acepção, que, a fim e a cabo, emerge no sentido de projetar uma falaciosa ideia de inevitável progresso econômico de todos os países. Um fim naturalmente atingível. Como se não houvesse fatores externos e verticais determinantes que historicamente barram a autonomia e autodeterminação dos povos e dos estados, mesmo dos países pobres industrializados. O termo “países em desenvolvimento” reforça a atual distopia. 19 Concepções de espaço essas que, gestadas na passagem do século XIX para o XX, foram tomadas de empréstimo da Geografia. Contudo, de uma Geografia que, em grande medida, viu- se impossibilitada de ler e ressignificar o mundo após o fim da Segunda Guerra Mundial e, consequentemente, a complexidade e variedade de fenômenos instaurados por essa novíssima configuração do espacial. Trata-se da Geografia legada por Paul Vidal de La Blache e Friderich Ratzel, em que o espaço sequer reluz como um conceito propriamente dito e assim apresentado: unidade que diz de uma universalidade. Os colegas geógrafos, ainda que, na atualidade, a essas correntes manifestem reconhecimento e deferência, souberam de algum modo de alguns dos ensinamentos se desvencilhar, reconhecendo seus contextos históricos de emergência e suas limitações teóricas. Mas nós, historiadores, salvo algumas iniciativas isoladas, arraigados que somos à manutenção de certa reverência aos cânones, ainda a eles nos afeiçoamos, apregoando os ensinamentos de uma Geografia moderna, nacionalista, deveras eurocêntrica, cujas contribuições teóricas – e, daí também conceituais –, mesmo que importantes, foram pensadas de e para um determinado horizonte e realidade: os da Europa de fin-de-siècle XIX. Portanto, tais concepções espaciais pouco nos têm a oferecer em termos explicativos sobre a conjuntura pós-Segunda Guerra. E, ainda menos, sobre outras realidades espaciais plurais que transbordam para além dos limítrofes do Velho Continente. Conformações espaço-temporais sobre as quais nossos pares e, especialmente, os jovens historiadores têm, cada vez mais, se debruçado. A outra hipótese se ancora numa inquietação de fundamentação teórica que é nutrida pela imersão nas leituras da obra de Milton Santos. Na ontologia do espaço edificada pelo geógrafo brasileiro, é patente que a compreensão miltoniana de espaço não obliterou uma ideia há muito tácita e cara, mas jamais epistemologicamente detalhada pelos historiadores. Uma constatação quase que empírica em nosso meio e entre nossos pares, mas que certamente, pelo imperativo de dominância daquele legado das escolas geográficas modernas, ceifou à nossa disciplina a oportunidade de abstração. Faltando-lhe fazer a teoria. Tal hipótese é a de que o espaço é muito mais do que o simples meio físico: as montanhas, o mar, os rios, a cidade, o campo, etc. Tampouco pode ser tomado unilateralmente como palco de possibilidades das ações humanas, como dispôs o pensamento vidaliano, noção que ainda hoje pesa sobre os historiadores. O espaço geográfico é, sobretudo, determinado pela história e determinante da história. Determinado pela geografia e determinante da geografia. É determinado-determinante do homem e das sociedades, pelo homem e pelas sociedades: fator social que é. Uma realização geohistórica e uma condição geohistórica. Esse reconhecimento ao caráter histórico inerente ao espaço geográfico foi ainda introduzido nos anos 1970 por Milton: “Se a Geografia deseja interpretar o espaço humano como o fato histórico que ele é, somente a História [...] pode servir 20 como fundamento à compreensão da realidade espacial [...]” (SANTOS, 1979, p. 9-10). Ademais de endossado generosamente pelo geógrafo por meio do reconhecimento em suas obras aos trabalhos historiográficos de autores – entre outros – como Karl Marx, Marc Bloch, Lucien Febvre e Fernand Braudel, mas, sobretudo, reconhecido e materializado em sua obra, em sua ontologia do espaço, em sua Geografia Renovada e, finalmente, em sua Geohistória, por meio das rugosidades. A tese que o leitor tem em mãos tem por fundamental objetivo apresentar um estudo sistemático, desde a área de Teoria da História, da ontologia e do conceito de espaço geográfico de Milton Santos, com especial ênfase na apresentação, no detalhamento, e ressaltando a potencialidade do conceito de rugosidades para a estruturação dessa ontologia. O estudo também procura demonstrar como a elaboração por Milton Santos de uma teoria do espaço geográfico de viés analítico-social, estruturada na centralidade da técnica, no diálogo com a economia política, na ênfase do exercício da cidadania como práxis, mas, sobretudo, com base nas rugosidades, permitiu-lhe o desenvolvimento de uma original e refinada proposta de Geohistória. Nesta, tanto a concepção miltoniana de espaço – e, de paisagem, por conseguinte – como conceito e categoria geográficos, bem como as rugosidades como ideia-estrutura, apresentam-se tal-qualmente contributivos aos estudos em História. Especialmente, mas não somente, como ver-se-á, no que concerne às investigações acerca das sociedades e culturas dos países subdesenvolvidos no período pós-Segunda Guerra Mundial, uma vez que não somente reconhece a historicidade no e do espaço, mas as singularidades e as heterogeneidades da espacialidade na História. Na esteira e a fim de reforçar a vitalidade de empréstimo e a potencialidade operacional das noções miltonianas de espaço geográfico, de paisagem e de rugosidades à História, a presente tese também se ocupa da apresentação e do detalhamento das particulares periodizações – ou proposta de temporalidades geohistóricas – desenvolvidas pelo geógrafo brasileiro e enunciadas pelas concepções de período ou meio natural, meio técnico-científico e meio técnico-científico-informacional. De igual maneira, debruça-se sobre outras categorias e conceitos que, a fim e a cabo, e em grau de semelhança à importância de tais periodizações, desde o interior da arquitetura da epistemologia da Geografia Renovada de Milton Santos, sustentam a categoria e conceitos de espaço, de paisagem e de rugosidades. Trata-se de um repertório conceitual conformado pela releitura miltoniana de termos já consagrados na disciplina Geografia, como os de território e região, ou mesmo de inovadores conceitos compostos – por vezes aqui chamados de duplos conceituais –, tais como os de verticalidades e horizontalidades, circuito superior e circuito inferior e fixos e fluxos, além das categorias 21 analíticas de Forma, Função, Processo e Estrutura. Há outros conceitos de menor destaque neste trabalho, porém não menos importantes, que se encontram diluídos ao longo da composição textual a fim de explicar e contextualizar os conceitos e categorias considerados centrais12 porque, no conjunto e em equivalência de força, suscetíveis de importação, aplicabilidade, adaptação, enriquecimento e respaldo à pesquisa em História. A pesquisa empreendida e ora apresentada em formato de tese se debruçou na leitura crítica e sistemática das principais obras de Milton Santos, desde aqui consideradas fontes, contabilizando ao todo 10 volumes da vasta produção estritamente teórica do geógrafo. A maioria foi publicada ou republicada na Coleção Milton Santos, sob chancela da Editora da Universidade de São Paulo (EDUSP). Ainda há publicações outras: curriculum vitae, livros em coautoria ou que versam sobre temas diversos, entrevistas e artigos, totalizando 19 produções assinadas pelo autor e listadas nas referências bibliográficas, ao final deste trabalho. A elevação de tais produções ao estatuto de fontes da pesquisa levou em consideração dois critérios: o de relevância teórica e o de consubstanciação de informações, principalmente, no que diz respeito às informações de caráter epistemológico ou sobre a vida e obra do intelectual. Nos capítulos que conformam a tese, tais produções aparecem sempre datadas com o ano da edição utilizada pelo pesquisador e, logo em seguida, entre colchetes, a data de publicação do original. Essa orientação, em conformidade com o recomendado pela Associação Brasileira de Normas Técnicas (ABNT), justifica-se em decorrência da necessidade de permitir ao leitor uma visualização cronológica do desenvolvimento epistemológico e do pensamento de Milton Santos. Ou seja, quando determinada ideia ou conceito aparece – ou, ainda, é citado ou reelaborado – no horizonte da vasta produção do geógrafo. Entre os dez livros estritamente mais teóricos de Milton Santos utilizados como fontes ao largo da pesquisa, destacam-se por sua relevância à trajetória epistemológica do geógrafo, portanto, à edificação da concepção miltoniana de espaço, os seguintes: Por uma Geografia Nova: da crítica da Geografia a uma Geografia Crítica, de 1978, Espaço e Sociedade – Ensaios, de 1979, O Espaço Dividido: os dois circuitos da economia urbana dos países subdesenvolvidos, de 1979, Espaço e Método, de 1985, Metamorfoses do Espaço Habitado: fundamentos teóricos e metodológicos da Geografia, de 1988, e A Natureza do Espaço: técnica e tempo, razão e emoção, de 1996.13 O primeiro e o último, respectivamente, Por uma 12 Entre esses conceitos menores, mas imprescindíveis à inteligibilidade da ontologia do espaço desenvolvida por Milton Santos, destacam-se: os de formação socioespacial e de totalidade, advindos de Karl Marx, o de espaço híbrido, o de territorialidades, o de meio, o de segunda natureza etc. 13 Na leitura desta tese, o leitor poderá sentir a ausência de citações à obra Espaço e Sociedade – Ensaios. Isso se deve não por omissão, mas em razão de que os principais capítulos que compõem o livro foram posteriormente 22 Geografia Nova e A Natureza do Espaço, são leituras imprescindíveis à compreensão da Geografia Renovada e, consequentemente, à ontologia do espaço desenvolvida por Milton Santos. Por uma Geografia Nova pode ser considerada a primeira grande obra teoricamente mais densa escrita pelo intelectual brasileiro. Nela, Milton fundamenta os postulados de sua Geografia Renovada e, consequentemente, de sua original concepção do espaço geográfico. Trata-se, como ver-se-á, da produção que demarca o amadurecimento do geógrafo e, de fato, a busca por uma autonomia intelectual em relação a alguns postulados teóricos da Geografia, expressando certo rompimento com os cânones europeus. E, não obstante, reluz como uma crítica contundente do autor a certo modelo de Geografia Crítica até então praticado. Por seu turno, e, em nosso entendimento, A Natureza do Espaço deve ser tomada como a última grande obra teórica do brasileiro. Nela apresenta, de maneira organizada, esquematizada, sucinta e, por que não, pedagógica até, ideias e conceitos fermentados e amadurecidos ao largo de sua trajetória acadêmica. Conforma-se, de certo modo e em alguma medida, a síntese de um pensamento - e até mesmo de uma trajetória epistemológica -, dispondo um conjunto de ideias e conceitos já burilados e matizados. É obra de grosso calibre! Outros autores e obras foram decisivos ao compósito da pesquisa. E, portanto, serviram de apoio e suporte ao deslumbramento e desvendamento da vida e obra de Milton Santos e, mais além, quando o caso, de decodificação de termos, conceitos, categorias e debates imanentes da Geografia. E, por que não, também da, e, pertinentes à História. Sem o auxílio desses referenciais, desses suportes, a conscienciosa e árdua tarefa de pesquisa teórica e, em especial, de investigação de uma vasta e densa obra teórica como a de Milton Santos, tornar- se-ia um desafio quase que intransponível. Como se isso não bastasse, recorda-se ainda o repto de realização de uma pesquisa que toca não somente convergências disciplinares, mas, decorrente disso, zonas de atrito e interditos entre campos do saber-fazer: as paralaxes, os propósitos divergentes, as tradições candentes e, sobremaneira, os debates, os embates e as polêmicas suscitados do lado de lá e do lado de cá das trincheiras do campo de batalha das Ciências Sociais. Desde o campo disciplinar da Geografia, a tese de doutorado intitulada “Trajetória epistemológica de Milton Santos: uma leitura a partir da centralidade da técnica, dos diálogos com a economia política e da cidadania como práxis”, da geógrafa Flávia Grimm, representou compilados e reproduzidos pela EDUSP no volume Da totalidade ao lugar, de 2005. Durante a pesquisa, ambas as obras foram consultadas e o seu conteúdo, comparado. Contudo, devido à atualidade desta última e raridade da primeira, privilegiou-se a referência desta em detrimento daquela. 23 um aporte consistente à compreensão da trajetória epistemológica de Milton Santos, bem como ao entendimento de conceitos e categorias várias.14 Quanto à trajetória formativa do geógrafo baiano, mas referente ao período que antecede à sua projeção internacional e ao seu amadurecimento intelectual propriamente dito, a tese de Paulo Henrique Ferreira Costa, sob o título “O Jovem Milton Santos: personagem do protótipo metodológico revelar [matrizes clássicas originárias] para definir [vanguarda, universalidade e viés geográfico]” também foi de grande valia.15 Na esteira da compreensão da vida e sobre aspectos da produção teórica de Milton Santos, igualmente foram valiosos os aportes das coletâneas Encontro com Milton Santos (respectivamente: Empresa Gráfica da Bahia, 2005; e Editora da Universidade Federal da Bahia, 2009), organizadas por Maria Auxiliadora da Silva e Rubens Toledo Junior, entre outros, e Milton Santos e o Brasil (Perseu Abramo, 2004), coordenada por Maria A. Brandão. Essas antologias contaram com as contribuições especializadas de geógrafos e outros estudiosos da vida e obra de Santos. Quanto aos temas e discussões sobre espaço e espacialidades, ou, provenientes da Geografia, a presente pesquisa respaldou-se em uma gama de obras e autores, entre os quais alguns considerados basilares. O capítulo “Espaço, um conceito-chave da Geografia”, de Roberto Lobato Corrêa, presente no livro Geografia: conceitos e temas (Bertrand, 2000), revelou-se um suporte considerável ao apresentar uma variedade de concepções de espaço emergentes desde aquele campo disciplinar. Em complemento, o clássico Geografias pós- modernas: a reafirmação do Espaço na Teoria Social Crítica (Zahar, 1993), de Edward Soja, e Geografia e Filosofia (Editora da UNESP, 2004), de Eliseu Sposito, possibilitaram, cada qual a seu modo e teor de aprofundamento, o reconhecimento das discussões mais teóricas que envolvem as diversas acepções do conceito de espaço, de categorias e conceitos geográficos e em relação ao próprio objeto da Geografia. Por sua vez, o título História da Geografia (Edições 70, 2006), de Paul Claval, permitiu um panorama do desenvolvimento histórico e epistemológico daquele campo das Ciências Sociais desde uma abordagem cara à nossa proposta, a da evolução do conceito de espaço geográfico. Demais autores e obras igualmente contributivos a esta pesquisa constam referenciadas nos capítulos e nas referências bibliográficas ao final desta tese. 14 A tese de Grimm foi defendida em 2011 pelo Programa de Pós-graduação em Geografia Humana do Departamento de Geografia da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas (FFLCH) da Universidade de São Paulo. USP. 15 Tese de doutorado defendida em 2013 pelo Programa de Pós-graduação em Geografia do Instituto de Geociências e Ciências Exatas da Universidade Estadual Paulista “Júlio de Mesquita Filho” (UNESP), campus de Rio Claro. 24 No campo disciplinar da História, as releituras das obras de Braudel foram aportes indubitáveis ao apercebimento de um variado número de temáticas – inclusive referentes à convergência entre Geografia e História –, nas quais a investigação inerentemente resvalou. Partindo da releitura, entre outros, de clássicos como O Mediterrâneo e o mundo mediterrânico na época de Felipe II (FCE, 1976) e Civilização Material, Economia e Capitalismo: séculos XV-XVIII (WMF Martins Fontes, 2009) foi possível a identificação do movimento braudeliano de apropriação da ideia de espaço geográfico. Movimento este encampado por Braudel desde a corrente historiográfica francesa dos Annales e até a atualidade tido como o principal, porque mais ousado e bem-sucedido intento de importação e readequação do ente à démarche da História. Em decorrência, por meio dos referidos títulos, foi possível a visualização dos meandros de edificação, pelo renomado historiador francês, de uma área convergente de estudos: a Geohistória. As referidas publicações de Braudel também serviram, ao longo deste trabalho, quando o caso, para a concatenação de aproximações e distanciamentos entre os modelos de Geohistória braudeliano e miltoniano. Outros títulos sob chancela dos Annales foram imprescindíveis para a assimilação dos itinerários e debates que, antes mesmo de Braudel, propiciaram a aproximação da corrente historiográfica francesa com as demais Ciências Sociais, especialmente com a Geografia. Entre essas obras, encontram-se Combates por la Historia (Editorial Planeta, 2014), de Lucien Febvre, e Apologia à História, ou O Ofício do Historiador (Zahar, 2001) e A terra e seus homens: agricultura e vida rural nos séculos XVII e XVIII (EDUSC, 2001), de Marc Bloch.16 Os livros do historiador mexicano Carlos Antonio Aguirre Rojas também foram indispensáveis nesse sentido, abrindo as portas de erudição tanto em relação às operações de convergência colocadas em marcha pelos chamados pais fundadores dos Annales quanto ao entendimento da magnitude da genialidade e obra de Braudel. De Aguirre Rojas destacam-se, entre outros títulos: Uma História dos Annales: 1921-2001 (Eduem, 2004) e Fernand Braudel e as Ciências Humanas (Eduel, 2003). Condizentes com a temática, igualmente contribuíram as publicações de François Dosse, a saber: A História em Migalhas: dos Annales à Nova História (Editora da Unicamp, 1992) e o segundo tomo de Historia del Estructuralismo: el canto del cisne, 1967 hasta nuestros días (Ediciones Akal, 2004). Outros autores e obras essenciais, muitos dos quais 16 Por vezes, foi utilizada a edição mexicana de Apologia à História, ou O Ofício do Historiador, intitulada Introducción a la Historia (FCE, 2000). Ambas constadas nas referências bibliográficas. Isso se deveu a uma questão de ordem logística, uma vez que, em dados momentos da escrita da tese, somente foi possível o acesso à edição da Fondo de Cultura Económica. 25 familiares aos historiadores brasileiros, encontram-se igualmente referenciados ao longo da tese e nas referências bibliográficas. É consabido que a epistemologia da Geografia Renovada de Milton Santos foi estruturada tendo como sólida base histórico-filosófica o pensamento crítico imanente do Materialismo Histórico Dialético. Essa herança transparece de maneira tácita nas obras teóricas do geógrafo brasileiro através de proposições e empréstimo de alguns conceitos, categorias e ideias. Dessa maneira, a revisitação de clássicos do pensamento marxista foi inevitável durante a realização da pesquisa. De Karl Marx, valeu-se a revisitação aos clássicos O Capital, Contribuição à Crítica da Economia Política e Escritos Econômicos Filosóficos.17 De igual maneira, e devido à reverberação do estruturalismo marxista de Louis Althusser na obra geográfica de Milton Santos, também foram de meritória apreciação os títulos La Revolución Teórica de Marx (Siglo XXI, 1967) e Sobre a Reprodução (Vozes, 1999). Outro pensador marxista cuja leitura e diálogo impactaram derradeiramente a produção do geógrafo baiano foi Henri Lefebvre. Desse autor, tornou-se imprescindível a leitura de La producción del Espacio (Capitán Swing, 2013). Por fim, porém não menos importante, o robusto e completo Dicionário do Pensamento Marxista (Zahar, 2012) do sociólogo Thomas Bottomore consolidou-se um quantioso instrumento de consulta durante a realização da pesquisa e redação da tese. Do oceano bibliográfico até aqui arrolado e dentre tantos outros títulos contributivos ao compósito deste trabalho, mas cuja citação ingratamente não convém ao espaço diminuto deste antelóquio, dois autores e suas respectivas produções colocam-se como interlocutores diretos da presente pesquisa. São, portanto, de algum modo responsáveis pelas questões nessas páginas levantadas. O artigo “Geohistoria” (2010) do historiador basco José Luis Orella Unzué abriu veredas ao vislumbramento de que, para além de uma Geografia Renovada e uma ontologia do espaço, Milton Santos concebeu uma mui original proposta de Geohistória. E que essa Geohistória estritamente conectada à própria concepção de espaço do geógrafo brasileiro carrega eixos de aproximações e de distanciamentos em relação à modalidade de Geohistória concebida por Fernand Braudel. O livro do historiador e teórico da História brasileiro José D’Assunção Barros, intitulado História, Espaço e Geografia: diálogos interdisciplinares (Vozes, 2017), consolidou-se para 17 A fim de evitar o estranhamento do leitor brasileiro, no caso da última obra, foi utilizada a edição em Língua Castelhana publicada pela mexicana Editorial Grijalbo e organizada por Wenceslao Roces. A referida edição foi publicada sob o título Escritos Económicos Varios em 1966. É considerada uma das melhores edições lançadas no país. Já a versão de O Capital foi consultada a única edição completa disponibilizada pelo Kindle, de duvidosa qualidade editorial ainda que mantendo a integralidade do original. Isso se deveu ao abrupto fechamento das bibliotecas universitárias mediante o contingenciamento pandêmico no México. 26 além de uma referência de primeira ordem à compreensão da potência da ontologia do espaço de Milton Santos à História – especialmente no que diz respeito aos empréstimos conceituais – um robusto incentivo a inúmeras e antigas inquietações teóricas do pesquisador. Encorajou-nos à aventura – ou desventura, dada a profundidade e abrangência do objeto e das polêmicas e debates por ele suscitados – de encampar a pesquisa, cujos resultados aqui apresentados. A tese não deixa de dialogar diretamente com a publicação de Barros. Por vezes, realçando as fortalezas da leitura do autor sobre a obra de Milton Santos, mas também, de maneira integralmente honesta e intelectualmente crítica apontando possíveis debilidades. Esta tese não deixa de ser um labor de aprofundamento do pioneiro trabalho de Barros. Vale ainda esclarecer que, à diferença da proposta nessas páginas encaminhada, debruçada sobre a compreensão e operacionalidade da concepção de espaço e do repertório conceitual miltonianos para a História e o ofício do historiador, o livro de Barros mostra-se imbuído de outra missão: a de apresentação dos principais conceitos da Geografia e a demonstração de seus benefícios e aplicabilidades aos estudos em História. Isso significa abraçar um leque de perspectivas e correntes geográficas, bem como um extenso repertório de conceitos não raras vezes dispostos no interior daquela disciplina de maneira conflitiva. Qualquer ímpeto de abrangência sempre desguarda flancos, abrindo caminhos à ocorrência de algumas imprecisões ou generalizações. Dito isso, resta-nos alertar ao leitor que, no tocante aos conceitos, replica-se na tese proposta quase que a totalidade do repertório miltoniano apresentado pela obra de Barros, excetuando-se um ou outro. No entanto, o que muda é a abordagem, a disposição como apresentados e, em alguns casos, sensíveis divergências de entendimentos. Sobretudo, o teor de aprofundamento teórico, caráter último que somente vem a contribuir, enriquecendo o debate e abrindo caminhos ao alargamento de estudos sobre a obra do geógrafo brasileiro desde o campo da História. Pelo volume e valor teórico das fontes analisadas e pela quantidade e abrangência da literatura especializada utilizada, a pesquisa respaldou-se metodologicamente na análise isotópica das obras. Segundo Barros (2013a, p. 74), o método de análise isotópica aplicado em História consiste no exame de conteúdo, de discursos ou narrativas produzidas por determinado campo de conhecimento no sentido de avaliar consistências e inconsistências, aproximações e distanciamentos em relação à determinada temática ou abordagem. O método apresenta-se ainda mais válido quando, como em nosso caso, buscou-se o exame de conteúdo teórico desde uma perspectiva de convergência entre campos do conhecimento com objetos-fim distintos, avalizando os ditos e interditos entre Geografia e História, e a viabilidade ou inviabilidade do empréstimo de noções e conceitos desde aquela área das Ciências Sociais. Possibilita-se, desse 27 modo: a) antever as possíveis contribuições teóricas e conceituais da Geografia Renovada de Milton Santos aos estudos encampados pela História; b) reconhecer as limitações de empréstimo e de aplicabilidade de tais pressupostos teóricos e conceituais; e c) buscar correlativos e exemplos desde a historiografia que justificassem a importação e aplicabilidade desses instrumentais. A abordagem metodológica também se respaldou em importante consideração do historiador Jorge Grespan sobre os estudos teóricos em História que abarcam ou perpassam a convergência entre disciplinas. Para Grespan (2011, p. 296), ao cruzar as fronteiras epistemológicas em busca do objeto, o pesquisador não deve e não pode se preocupar em manter incólumes as fronteiras disciplinares. “O decisivo, porém, é questionar a integridade do sujeito e do objeto”, o seu valor de pertinência, uma vez que o estudo desde uma perspectiva convergente impõe “a redefinição completa e profunda dos campos de saber” e conclama o reconhecimento e a “redistribuição do trabalho intelectual” (GRESPAN, 2011, p. 296). Eis uma valoração de ordem tautológica. E que, desde uma genuína preocupação em repensar o campo da Geografia, reconhecida pelo próprio Milton Santos, quando este defende que os conceitos de espaço advindos de outras “disciplinas [como a Física, por exemplo] podem [até] passar, automaticamente, para a disciplina geográfica”, mas que “necessitam de adequação, para se tornarem operacionais em geografia.” (SANTOS, 2017 [1996], p. 87). Ensinamento também válido quando da importação e de operações de empréstimos realizados entre disciplinas consanguíneas, como no caso da Geografia e da História, como almejado neste trabalho. Este volume encontra-se estruturado em quatro capítulos que buscam introduzir paulatinamente o leitor na vida e na obra de Milton Santos. E, consequentemente, nas discussões e plausíveis aportes da Geografia Renovada e da ontologia do espaço miltonianas à História. Intitulado “Milton Santos: itinerário biográfico e trajetória epistemológica”, o capítulo de abertura propõe o reconhecimento, num primeiro momento, do itinerário biográfico do geógrafo brasileiro, delongando-se nas conjunturas política e social do Brasil e do Mundo que matizaram a constituição do Milton geógrafo, acadêmico e intelectual. O reconhecimento do leitor, principalmente, mas não somente especializado em História, da biografia de Milton Santos é crucial ao entendimento de suas intenções e proposições teóricas. Isso porque, para além de sujeito histórico, scholar e intelectual, quando se trata de Milton, impossível dissociar o homem da obra. O geógrafo edificou uma epistemologia com o intuito não somente de repensar e renovar a Geografia como disciplina, pautando-se pelos debates e embates disciplinares e pelas convergências então em curso, mas, sobretudo, erigiu uma epistemologia 28 e uma ontologia do espaço geográfico capazes de dialogar, pensar, compreender e responder às candentes mudanças então em curso no Brasil e no Mundo. Outro caminho, em paralelo ao anterior e abraçado num segundo momento do mesmo capítulo, diz respeito à própria trajetória epistemológica do intelectual no campo disciplinar da Geografia. Percorre-se as etapas fundamentais de amadurecimento teórico do geógrafo, o fomento e maturação de ideias a partir das balizas dadas pelos debates então efervescentes na Geografia, os caminhos por ele trilhados em diferentes variantes geográficas, o reconhecimento do débito à Geografia francesa, especialmente à marxista, e, as fissuras e ruptura operadas por Milton em relação ao legado dos mestres franceses ao buscar autonomia intelectual e epistemológica, entre outras. Fios condutores que possibilitaram a Santos, desde aquele campo científico, o desenvolvimento de sua Geografia Renovada e de uma original ontologia do espaço. O mapeamento da trajetória de constituição de um saber – e das redes que o constituem – revela-se recurso indispensável a qualquer estudo debruçado sobre um dado objeto epistemológico. Em O Espaço, a Geografia e a História, segundo capítulo, apresenta-se de maneira sintética o desenvolvimento da ideia de espaço no interior da disciplina Geografia e o processo de incorporação e adequação de concepções de espaço geográfico à disciplina História. Naquele caso, tematiza-se como as duas principais escolas da Geografia moderna, a alemã de Ratzel e a francesa de La Blache, introduziram noções, mas não propriamente desenvolveram conceitos puros de espaço geográfico, e, como essas noções – em especial, a ratzeliana – se valeram em maior ou menor grau de uma perspectiva naturalista, biológica até, a fim de fundamentar suas proposições sobre as espacialidades. Na esteira, demonstra-se como, a partir da segunda metade do século XX – mormente, nos anos 1970 –, os geógrafos começaram a colocar em xeque essas antigas noções de espaço, passando ao desenvolvimento de um conceito propriamente dito de espaço geográfico, e a repensar o lugar ocupado pelo espaço na disciplina Geografia. A seção também demonstra como aquelas concepções anteriores de espaço, advindas das escolas nacionais modernas da Geografia, foram incorporadas à História especialmente pelos historiadores da corrente francesa do Annales. Ela é responsável, mais do que qualquer outra corrente historiográfica do século XX, pela operacionalização e adequação metodológica dessas concepções de espaço à démarche da História, resguardadas as sensíveis diferenças entre os movimentos metodológicos de apropriação dessas concepções de espaço geográfico operados desde o âmago da corrente entre a Geografia Histórica praticada pelos pais fundadores dos Annales e a Geohistória de Fernand Braudel. O capítulo versa ainda sobre a conjuntura e os meandros dessa incorporação, os debates e embates a partir delas suscitados entre 29 historiadores e geógrafos, o impacto à historiografia e, por conseguinte, levanta questionamentos sobre a viabilidade – ou contribuições – da manutenção dessas noções de espaço pela disciplina História. No terceiro capítulo, denominado “O Espaço, as Rugosidades e a Geohistória na ontologia do espaço de Milton Santos”, apresentam-se as definições dos conceitos centrais de espaço geográfico e de paisagem na ontologia do espaço de Milton Santos. E, como este, decorrente daquele, representa um conceito operacional porque abstrativo de espaço não somente ao trabalho dos geógrafos, mas também aos historiadores. O capítulo igualmente detalha o edifício teórico em que assenta a concepção de espaço geográfico miltoniana, sublinhando a relevância do conceito de formação socioespacial – releitura geográfica do conceito marxista de formação socioeconômica – e a centralidade ocupada pela técnica. Sobretudo, a seção coloca em evidência a proeminência do conceito de rugosidades à estruturação teórica da concepção de espaço geográfico de Milton Santos e como as rugosidades, entendidas desde o âmago daquela ontologia como superposição desigual de tempos, acabam por reconhecer a historicidade imanente do espaço. Trata-se, portanto, de uma conceituação que, à revelia das concepções anteriormente aventadas pelas escolas geográficas nacionais modernas, conclama e chancela o estatuto histórico do espaço geográfico. A Geografia Renovada de Milton Santos, ao reconhecer que o espaço não é unilateralmente espaço, mas igualmente é tempo, História, revela-se nesta tese também como Geohistória. O quarto e último capítulo, “A Geohistória de Milton Santos: categorias, conceitos, temporalidades”, reproduz, de certa maneira, ao passo que aprofunda e dilata, a iniciativa de José D’Assunção Barros em História, Espaço, Geografia da apresentação aos pares historiadores do repertório conceitual de Milton Santos e, em decorrência, enfatiza a versatilidade, a potencialidade e a aplicabilidade desse repertório ao labor historiográfico. Sobretudo, aos estudos que versam sobre objetos e recortes contemporâneos. No capítulo, portanto, são apresentados os fundamentos e os principais conceitos, categorias e instâncias da Geohistória de Milton Santos, tais como: os compostos conceituais de verticalidades e horizontalidades, circuito superior e circuito inferior, fixos e fluxos, as categorias analíticas de Forma, Função, Processo e Estrutura e os reformulados conceitos clássicos de território e região. De igual maneira, esquadrinha-se a original proposta de temporalidades – ou periodizações – do espaço geográfico desenvolvida por Santos. A realização de uma periodização sumamente de caráter geográfico assegurou à epistemologia desenvolvida pelo geógrafo brasileiro certa desenvoltura de definição e redefinição de conceitos, bem como autorizou epistemologicamente a empiricização em conjunto do tempo e do espaço em sua 30 proposta de Geohistória. O incremento da ideia de um período – ou meio – técnico-científico- informacional pelo geógrafo apresenta-se vigorosamente potente aos estudos acerca das sociedades contemporâneas a partir do marco do término da Segunda Grande Guerra. Esboça-se, por fim, nos dois últimos capítulos duas preocupações. Por um lado, a de apresentar as categorias, as instâncias e os conceitos miltonianos em itálico, a fim de que o leitor possa reconhecê-los e diferenciá-los daqueles provenientes de outros pensadores e matrizes epistemológicas. Por outro, a de materializar, por meio de exemplos ou correlatos historiográficos, as possíveis inserções e aplicabilidades de tais conceitos à História. Recomenda-se, no entanto, que cada historiador, munido com certa dose de sensibilidade cara ao ofício, possa reconhecer, a partir desses rascunhos ilustrativos, a aplicabilidade e potência desses instrumentais teóricos a seus respectivos objetos de estudo ou recortes temáticos. Em alguns casos, reforça-se, no corpo de cada capítulo, quando necessário, certa dose de parcimônia quanto à flexibilidade de aplicação de determinados conceitos em História, uma vez que, pese a necessidade de adequação à démarche disciplinar, pode-se incorrer no esvaziamento do conteúdo teórico. Assim, o esvaziamento torna o conceito inoperável, sem significado e que nada mais diz do significante. É isso! Que faça o leitor a boa leitura! 31 1 MILTON SANTOS: ITINERÁRIO BIOGRÁFICO E TRAJETÓRIA EPISTEMOLÓGICA Somos contemporâneos do verdadeiro milagre pelo qual cada geração entende – ou, ao menos, é capaz de entender – o universo como um todo e percebe cada uma de suas partes como parte do mundo. E – outra novidade – a consciência de ser mundo é dada, concomitantemente, ao lugar e ao indivíduo. Milton Santos, O novo Século das Luzes Milton Santos sagrou-se como um dos expoentes da intelligentsia brasileira e da Geografia no século XX. Notoriedade que se desdobrou em duas indissociáveis frentes, a do geógrafo-acadêmico e a do geógrafo-cidadão, evidenciando grande capacidade de conjugar, na sempre complexa dinâmica do cotidiano, teoria e prática, saberes e engajamento. Intelectual de estrela-maior, lançou-se com desenvoltura ao voo de pensar as questões próprias do campo disciplinar ao qual se dedicou, o Brasil, a América Latina e o Mundo. E com equivalente força sua obra transpassou e dilatou rígidas fronteiras disciplinares, atingindo tanto o grande público como os leitores especialistas das mais variadas áreas. Notório esse reconhecimento do intelectual e do cidadão Milton Santos, mas sob as sombras dessa projeção subleva-se um hiato. Um dos geógrafos nacionais de maior envergadura é ainda hoje mais reconhecido entre os historiadores pela atuação intelectual pública do que propriamente por suas vigorosas contribuições teóricas. Reconhece-se, entre os discípulos de Clio, a grandeza da projeção intelectual e do pensamento de Milton Santos, mas, na mesma proporção, pouco se conhece sobre sua trajetória e oblitera-se à medida de sistematização teórica a potencialidade de sua herança epistemológica, principalmente no que diz respeito às tão profícuas quanto inovadoras considerações do autor acerca do espaço – por ele elevado ao patamar de conceito, categoria e um dos principais objetos da Geografia. Ademais, subestima- se o vigoroso repertório conceitual que edificou a fim de viabilizar os estudos sobre a espacialidade e seus fenômenos, como é o caso do conceito de rugosidades. Neste primeiro capítulo, apresenta-se ao leitor – principalmente, mas não somente da área da História – o itinerário biográfico e a trajetória epistemológica de Milton Santos. Caminhos igualmente indissociáveis por ele percorridos à edificação, desde o hemisfério Sul, de uma ontologia do espaço geográfico. Considera-se que a concepção miltoniana de espaço não deixou de ser assim plausível e, com igual força, uma reverberação da origem, da condição 32 e dos passos biográficos e epistemológicos trilhados por Milton Santos. Como bem salientou o geógrafo Fabio Betioli Contel (2014, p. 393), por si só reconstituir essa trajetória não é tarefa das mais fáceis, dada a “extraordinária riqueza” da vida e da obra de Santos. Tanto nos recônditos da esfera pessoal quanto na projeção pública de sua passagem terrena, a de sua produção e persona intelectual, Milton Santos deixou ademais de um vasto, denso, diverso, intenso e vívido legado acadêmico, a composição de um itinerário de vida ímpar, marcado em inúmeros aspectos pela demolição de paradigmas arraigados na sociedade e universidade brasileiras. Ainda que a arquitetura deste capítulo não se ocupa senão do resgate desses caminhos a título de apresentação, o desafio se acentua à medida que resvala em questões de natureza teórica. Em História e nas demais Ciências Sociais, reconhecem-se as implicações labirínticas dessa sempre difícil tarefa de conciliação entre o sublunar e o lunar, entre o homem como teórico e a teoria como expressão do homem, de sua realidade concreta. Pierre Bourdieu (1996), de maneira enfática, alertou para as armadilhas da ilusão biográfica. E, antes dele, Immanuel Kant, em sua Crítica da Razão Prática, para as correlações nem sempre diametrais entre razão, vontade e o mundano.18 Mas, em contrapartida, há também quem considera o contrário. Alain Croix (In RIOUX; SIRINELLI, 1996, p. 51), sem maiores reticências, menciona a indissociabilidade entre essas duas expressões ao abordar o ofício de historiar e o sujeito- historiador. Já os geógrafos Antoine Bailly e Hubert Beguin acentuam que: La lógica formal de las teorías no puede, por lo tanto, enmascarar el carácter cognitivo (proceso que implica la interacción entre un individuo y su medio de vida, y que recubre el conjunto de fenómenos que van desde la percepción a la actitud) de toda investigación científica. No se puede concebir la ciencia como una actividad que se basta con su lógica interna, ya que el movimiento 18 Refere-se Kant: “Duas coisas enchem o ânimo de crescente admiração e respeito, veneração sempre renovada quanto com mais frequência e aplicação delas se ocupa a reflexão: por sobre mim o céu estrelado; em mim a lei moral. Ambas essas coisas não tenho necessidade de buscá-las e simplesmente supô-las como se fossem envoltas de obscuridade ou se encontrassem no domínio do transcendente, fora do meu horizonte; vejo-as diante de mim, coadunando-as de imediato com a consciência da minha existência. A primeira começa no lugar que eu ocupo no mundo exterior sensível e congloba a conexão em que me encontro com incalculável magnificência de mundos sobre mundos e de sistemas, nos tempos ilimitados do seu movimento periódico, do seu começo e da sua duração. A segunda começa em meu invisível eu, na minha personalidade, expondo-me em um mundo que tem verdadeira infinidade, porém que só resulta penetrável pelo entendimento e com o qual eu me reconheço (e, portanto, também com todos aqueles mundos visíveis) em uma conexão universal e necessária, não apenas contingente, como em relação àquele outro. O primeiro espetáculo de uma inumerável multidão de mundos aniquila, por assim dizer, a minha importância como criatura animal que tem que devolver ao planeta (um mero ponto no universo) a matéria de que foi feito depois de ter sido dotado (não se sabe como) por um curto tempo, de força vital. O segundo, por outro lado, realça infinitamente o meu valor como inteligência por meio de minha personalidade, na qual a lei moral me revela uma vida independente da animalidade e também de todo o mundo sensível, pelo menos enquanto se possa inferir da determinação consonante a um fim que recebe a minha existência por meio dessa lei que não está limitada a condições e limites desta vida, mas, pelo contrário, vai ao infinito.” (KANT, 2004, p. 307-308 – grifos nossos). 33 científico es un movimiento histórico que produce (a través de la percepción del investigador) explicaciones consideradas valiosas en un momento dado. Las relaciones teorizadas son la expresión de nuestra reflexión dentro del marco de nuestras prácticas históricas y sociales. Lo que nunca dirá la ciencia es la razón de nuestra investigación; lo que sí podría decir, si definiésemos claramente su problemática, es aquello que investigamos y cómo lo hacemos (BAILLY; BEGUIN, 1992, p. 24). No tocante a Milton Santos e embalado em torno da discussão do reconhecimento do intelectual a partir da problemática racial em nosso país, o professor, comunicólogo e biógrafo do geógrafo, Fernando Conceição, considera o que segue: [...] deduz-se que, numa análise acadêmica sobre Milton Santos, o que importa não é exatamente quem ele é ou foi, mas o que ele diz ou criou. Aqui se opera um movimento de distanciamento exigido pela razão prática propugnada por Kant. É o sistema resultante do seu método de criação – ou seja, a sua obra intelectual – que deve ser considerado. Não o seu criador. De certo modo, o racionalismo termina por desumanizar os sujeitos, rejeitando qualquer interferência extra-cognitiva no processo de criação científica. O que se deixa contaminar de humanidade não é exatamente ciência. [...] Isso é mais verdadeiro no Brasil de escassez de pensadores. Os raros que surgem ou surgiram não são apropriados pelos círculos de especialistas – de Machado de Assis a Milton Santos – por critérios anulatórios de sua condição sociomaterial de existência. Tenta-se apagar todo e qualquer vestígio considerado constrangedor ao establishment. Quando se estuda o histórico das lutas anti- coloniais ocorridas no mundo nos último século e meio, verifica-se que uma das primeiras tarefas dos emancipacionistas é resgatar os seus filósofos, artistas e profetas das mãos daqueles círculos (CONCEIÇÃO In SILVA; TOLEDO JUNIOR, 2009, p. 63-64). Pertinentes considerações à parte, fiável que, em se tratando de Milton Santos, impossível furtar-se às fluídas correlações autor-obra, sujeito-saberes, itinerário biográfico- trajetória epistemológica. O que demonstra de maneira evidente, em uníssono, o conjunto da literatura especializada sobre o geógrafo consultada. Daí Contel (2014, p. 394) sugerir que “se há um fio condutor que permita sintetizar a biografia deste brasileiro universal é a ideia de ‘projeto’ de Jean-Paul Sartre.” Isto é, a superação das condições e dos obstáculos da realidade concreta que impedem ou dificultam o projetar-se existencial do ser. Oriundo da periferia do mundo periférico, da negra Bahia do país com a maior população negra fora da África, Milton Santos compreendeu desde tenra idade que não somente a cor de sua pele, mas também a origem brasileira, a ascendência africana e a condição latino-americana o tornavam ao mesmo tempo homem periférico e detentor de uma leitura de mundo ímpar. A origem e as condições materiais e existenciais que naturalmente o alijavam do epicentro da divisão internacional do trabalho e da produção científica tornaram-se em Santos fortaleza e diferencial teóricos. Esse 34 reconhecimento impeliu-lhe ousadias raramente encontradas entre os pares acadêmicos do hemisfério Sul: a autenticidade e a coragem em assumi-la. A Geografia Renovada de Santos consolidou-se, assim, mais do que motriz de projeção intelectual ou mera proposta de renovação epistemológica. Sobressaiu-se, a fim e a cabo, como uma Geografia engajada, como “um projeto voltado para o futuro” (CONTEL, 2014, p. 408). Porque, quando pensava o espaço como categoria e como objeto dorsal da Geografia, o fazia, sobretudo, a partir de nossas origens, da condição histórica da classe trabalhadora, da diversidade e multiculturalidade dos povos e dos continentes, dos homens e mulheres ordinários em sua luta diária pela sobrevivência, de resistência e em emancipação à perversa dominação do Capital. E, sobremaneira, da ótica dos “cidadãos” amputados de cidadania na América Latina. Com Milton Santos, o espaço tornou-se definitivamente mais humano. 1.1 O itinerário biográfico de Milton Santos: do homem regional ao “cidadão do mundo” Milton Almeida dos Santos nasceu a 3 de maio de 1926 na pequena Brotas de Macaúbas, estado da Bahia, Brasil (Cf. SILVA, 2002; CONTEL, 2014). Município localizado na microrregião da Chapada Diamantina e a cerca de 580 km de distância da capital do Estado, Salvador. Filho do casal de professores primários Adalgisa Umbelina de Almeida Santos e Francisco Irineu dos Santos, ambos formados pelo então Instituto Central de Educação Isaías Alves. Ademais dos pais, os avôs maternos foram também professores (Cf. SANTOS, 2004, p. 45). O pequeno Milton crescera num berço familiar de classe média e tradição letrada, ambiente deveras diletante daquele vivenciado pela grossa maioria dos meninos negros da época. A educação primária e humanística realizada em casa rendeu-lhe o aprendizado de conhecimentos em álgebra e a aquisição do latim e do francês. O domínio deste último idioma lhe permitiria, anos mais tarde, o acesso aos clássicos das literaturas filosófica e social francesas, bem como a possibilidade de realização do doutorado em Estrasburgo (Cf. SANTOS, 2004, p. 44-45). De igual maneira, o contato e leitura de La Terre et l'évolution humaine, de Lucien Febvre19, obra 19 Necessário aclarar que, ainda que a história da Geografia no Brasil remeta a uma tradição advinda desde a fundação do Instituto Histórico Geográfico Brasileiro (IHGB), em 1838, a moderna Geografia brasileira é deveras devedora à Missão Francesa partícipe da fundação da Universidade de São Paulo (USP), ocorrida quase um século depois, em 1934. Nessa missão, ademais de proeminentes nomes da Filosofia, Letras, Sociologia e História, participaram os geógrafos Pierre Deffontaines, Pierre Monbeig e Fernand Braudel. Assim, observa-se que nossa tradição geográfica moderna é fundamentada sobre influência francesa. Além disso, deve-se considerar que, no país europeu, durante décadas a fio, a História e a Geografia integravam um mesmo tronco curricular, em que, durante a graduação, geógrafos e historiadores frequentavam disciplinas comuns, definindo- se por uma ou outra área nos anos finais de curso. Georges Duby e Pierre Vilar, por exemplo, formaram-se geógrafos de profissão ainda que suas respectivas obras – e o reconhecimento delas – sejam de orientação historiográfica. Aclaram-se dois pontos resvalados ao longo desta tese: a) a influência de historiadores franceses 35 que, ao lado dos clássicos do médico e geógrafo brasileiro Josué de Castro, o impactou profundamente em sua inclinação a tornar-se geógrafo, conforme declarou:20 O resultado é que um livro como o de Lucien Febvre [...] que assume a defesa da geografia, é feito por um historiador. Quando comecei a ler e comprava tudo o que imaginava que podia interessar, porque não tinha muita ideia do que eram essas separações disciplinares [...] esse livro me impactou possivelmente mais do que os dos geógrafos, tanto que eu imaginava que Febvre era geógrafo (SANTOS, 2004, p. 22). À idade de dez anos, é matriculado no Instituto Bahiano de Ensino (IBE) em Salvador, internato privado de classe média, “onde havia judeus, filhos de espanhóis, gente de variada extração social.” (SANTOS, 2004, p. 46). Nesse período, entre 1937 e 1941, teceu seus primeiros contatos com a docência e com a Geografia, lecionando ocasionalmente a disciplina para turmas de níveis inferiores (Cf. SANTOS, 2004, p. 47). Segundo Contel (2014, p. 394), no IBE, o jovem também “toma contato sistemático com autores clássicos da literatura e da filosofia, como Aristóteles, Platão, Leibniz, Alfred Whitehead, Charles Gide”. Ao lado da Geografia, a literatura torna-se grande paixão para o imberbe. Quando adulto e geógrafo, a literatura se torna cada vez mais presente em sua produção. Egresso do IBE, não foi a Geografia a primeira opção de Milton. Em 1944, matricula- se no curso de Direito da Faculdade de Direito da Bahia, em grande medida graças à influência do tio Agenor, que, conforme relatou: “era um advogado importante em São Francisco e que me puxava para o estudo do jurídico.” (SANTOS, 2004, p. 48). Não obstante, Grimm (2011, p. 37) aventa que, ainda que a Geografia já lumiasse como desejo profissional para Milton, a escolha por essa carreira também não despontava no horizonte prático como opção, já que o curso não era oferecido na Bahia. Com o término do bacharelado em Direito, área que lhe proporcionava uma formação humanística, resolveu finalmente enveredar para o ensino da na geografia brasileira até os anos 1960 e, principalmente, na obra de Milton Santos; b) a inter-relação de proximidade entre historiadores e geógrafos franceses durante boa parte do século XX, melhor compreensível na segunda parte deste capítulo e no seguinte. 20 Josué de Castro notabilizou-se, entre outros, pelo combate e por seus estudos sobre o problema da fome no Brasil. Sua obra maestra, Geografia da Fome (1946), durante muito tempo se destacou na grande área das Ciências Sociais como o estudo mais completo, porquanto abrangente, sobre a problemática no país. Além disso, Castro chegou a ocupar a Presidência do Conselho Executivo da Organização das Nações Unidas para a Agricultura e Alimentação (FAO), além de atuar como representante do país junto à Organização das Nações Unidas (ONU). Impedido de voltar ao Brasil pelo Regime Militar, faleceu em Paris a 24 de setembro de 1973, aos 65 anos, quando cumpria exílio na França. A geógrafa Maria Auxiliadora da Silva recorda que Milton Santos descobriu a obra de Josué de Castro por intermédio do professor Oswaldo Imbassay e, “Bem mais tarde, os dois, Milton e Josué, exilados na França, reencontram-se, infelizmente pouco tempo, pois Josué veio a falecer, sem receber as homenagens que o Brasil lhe devia.” (SILVA, 2002). Ademais de Geografia da Fome, outra obra de Castro que impactou a formação de Santos foi Geografia Humana: estudo da paisagem cultural do mundo (1939). 36 Geografia, sendo admitido em concurso como professor de Geografia Humana do Ginásio Municipal de Ilhéus (Cf. CONTEL, 2014, p. 395; SILVA, 2002). A título de cumprimento do certame, apresentou a tese O povoamento da Bahia: suas causas econômicas (1948), estudo em Geografia Regional. Concomitante à docência, passou a atuar como correspondente local do jornal A Tarde, de Ernesto Simões Filho. Durante a residência na zona cacaueira e em pleno exercício da docência, é ampliado o horizonte de participação e de contatos de Santos no campo da Geografia. Nessa época, vale lembrar, final dos anos 1940 e início da década de 1950, o Brasil passava por um crepitante momento de transição. O fim da Segunda Guerra Mundial (1939-1945), a derrocada do Estado Novo e os lumes de modernização da Era Vargas engendraram mudanças consubstanciais que levaram o brasilianista Thomas Skidmore (2010, p. 116-117) a afirmar que, quando Getúlio reassumiu a presidência em janeiro de 1951, “encontrou um Brasil bem diferente do país que governara como presidente autoritário de 1937 a 1945”. Essa nova configuração nacional e, portanto, territorial, foi definida por um notável crescimento demográfico, impulsionado por intensas ondas migratórias, além dos processos de industrialização e urbanização, centrados sobretudo no eixo Rio-São Paulo (Cf. GRIMM, 2011, p. 38-39). Esse cenário mobilizou nas entranhas do campo da Geografia nacional a necessidade e um profundo ímpeto de compreensão dos impactos sociais, políticos e geográficos dessas mudanças no território, traduzindo-se no labor de organização de associações e de encontros que possibilitassem, entre os geógrafos, maior intercâmbio de ideias e um canal de divulgação e disseminação de estudos. Nesse ínterim é que Milton Santos “passa a frequentar os cursos de férias do Conselho Nacional de Geografia (CNG) do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) e participa das reuniões anuais da Associação dos Geógrafos Brasileiros (AGB)” (CONTEL, 2014, p. 395). Em 1956, durante o Congresso Internacional de Geografia realizado no Rio de Janeiro, Milton Santos – já ocupando a cátedra do então recém-criado curso de Geografia Humana da Universidade Católica de Salvador (UCS) – encontra-se pela primeira vez com grandes nomes da Geografia internacional. Entre eles, o português Orlando Ribeiro e os franceses Pierre Monbeig, Pierre Deffontaines e Jean Tricart (Cf. SILVA, 2002). Este último o convida para a realização de um doutorado na Université de Strasbourg, na França (Cf. SILVA, 2002), instituição que, à época, ainda mantinha, aos olhos do governo francês, certo prestígio estratégico, galgado desde o término da Primeira Guerra Mundial, com a incorporação àquele país da região da Alsácia-Lorena. Isso refletia em âmbito institucional, investimentos vultosos em infraestrutura acadêmica e na incorporação de docentes de reconhecido gabarito. E, na esfera do cultural, na manutenção de um ambiente acadêmico plural e uma atmosfera de 37 favorecimento de convergências, em especial, entre os geógrafos e os historiadores. A fronteiriça Estrasburgo epicentro do encontro nem sempre amistoso de duas nacionalidades, a germânica e a francesa, de dois matizes culturais, o mediterrânico e o anglo-saxão, e, sobretudo, das duas principais correntes geográficas europeias modernas: a ratzeliana e a vidaliana.21 Silva (2002) relata que “Milton costumava dizer que essa primeira longa viagem foi a ‘grande mudança da sua visão de mundo em sua concepção política’”. Isso porque, por um lado, graças também ao encorajamento de Tricart, Milton empreendeu a criação do Laboratório de Geomorfologia e Estudos Regionais da Bahia, revelando “a intenção de torná-lo um centro de estudos interdisciplinares que traduzisse o próprio conceito da Geografia como ciência a serviço da sociedade [...]” (SILVA; TOLEDO JUNIOR; DIAS, 2005, p. 27).22 Por outro, como declarou o próprio: O fato de eu ter ido fazer meu doutorado na França foi muito importante por várias razões. Primeiro, pude ler jornais menos enfeudados às agências internacionais. Lendo o Le Monde, descobri que o mundo não era aquilo que eu tinha lido nos jornais brasileiros e que eu escrevia no jornal [A Tarde] no qual eu era redator. [...] Depois, o meu mestre Tricard [sic], embora não fosse mais praticante da geografia humana, fez, como todo mundo sabe, o melhor livro de geografia humana jamais escrito. Era marxista, mas não de sair recitando Marx, porque isso não é ser bom marxista. Ele sabia trabalhar dialeticamente. Eu tinha acesso à sua casa, onde ia em alguns domingos e, antes do almoço, havia uma conversa daquelas que os grandes professores franceses sabem fazer [...]. Quando falei com Pierre George, o que ele me disse, conhecendo mal o Brasil, permitiu-me trabalhar durante meses. [...] Acho que o primeiro choque foi quando tentei aplicar à Bahia o modelo proposto por Michel Rochefort e que vínhamos usando havia dez anos. Vi que não funcionava e escrevi um texto sobre o Recôncavo Baiano no qual mostro que não é possível aplicar inteiramente a teoria. Essa foi minha primeira tentativa de deformação do que me sugeriam fazer (SANTOS, 2004, p. 19). A estada de Milton Santos em Estrasburgo configurou-se um divisor de águas na trajetória do geógrafo baiano, tanto do ponto de vista da ampliação do horizonte político- cultural, compreendendo que o mundo era muito mais do que mostravam os periódicos brasileiros, como de aprofundamento intelectual-teórico, entendendo que igualmente distorcida e enfeudada era a visão da Geografia francesa sobre as espacialidades dos países periféricos. E, consequentemente, o questionam