RESENHA Cleide Antónia RAPUCCI1 CARTER, Angela. Noites no ciico. Trad. Cláudia Martinelli Gama. Rio de Janeiro: Rocco, 1991. 336p. Lorna Sage caracterizou Angela Carter como a mais audaciosa das escritoras inglesas. Seu estilo traz o mágico, o gótico; o realismo mescla-se ao inesperado; a paródia e a intertextualidade fazem o jogo pós-moderno, também presente no simulacro. Suas personagens femininas são marcantes, o que lhe valeu a fama de radical e polêmica. Três de seus romances foram traduzidos para o português, pela Editora Rocco: A paixão da nova Eva (1987, tradução de Eliana Sabino), As infernais máquinas de desejo do Dr. Hoffman (1988, tradução de Afonso Felix de Souza) e; mais recentemente, Noites no circo, traduzido por Cláudia Martinelli Gama. Traduzir essa autora exige audácia. Seu estilo é sintético, enxuto, característica que em princípio poderia parecer perfeitamente adequada à língua original. Leyla Perrone Moisés lembra que o tradutor "tende freqüentemente a crer que a segunda língua é carente ou imprópria, confron­ tada aos desempenhos da língua original" (s.d., p. 65). Leyla usa a feliz imagem do ato de traduzir como "entrar na dança": "para o tradutor, o texto é uma coreografia: a notação das figuras e dos passos que se deve reexecutar". (p. 65) No caso de Angela Carter, a coreografia é altamente elaborada. As traduções brasileiras estão tentando acertar o passo com o estilo paratático, lúdico, autocons- ciente da autora. O jogo da linguagem dentro da linguagem requer tradução minu­ ciosa, atenta: outro jogo. Caímos aqui na antiga questão: se a tradução literária se preocupar apenas em conservar os significados do texto 'original', deixará o trabalho de linguagem e ambigüidade em segundo plano. Em Angela Carter, seria matar sua prosa, que é poética. 1. Departamento de Letras Modernas - Faculdade de Ciências e Letras - UNESP - 19800 - Assis - SP. Alia, São Paulo, 36: 239-245,1992 241 A tradução de Nights at the circus oferece-nos mostras desta questão crucial para o ato tradutório. O aspecto sonoro da língua, seu lado fantasmal é abundante na obra. Nesse sentido, as aliterações, ofertas de sonoridade, são freqüentes. Aspecto difícil de traduzir, é resgatado em certas passagens ou compensado em outras, na tentativa de equilibrar o texto estilisticamente: The dressing-room suddenly sizzled with the salt, savoury smell of fried bacon. (Carter, 1985, p. 52) De repente o camarim chiou com o cneiro salgado e apetitoso de toucinho frito, (p. 62) That thrashing bundle of fright and feathers that was myself (...) (p. 73) A trouxa sovada de pavor e penas que eu era (...) (p. 86) (...) such as the lance of Longius - note that long'! The long lance ofLongius. (p. 78) (...) tal como a iança de Longius. Repare nesse 'Jong'! A tonga lança de Longius. (p. 91) abundant goodness (p. 12) abundante bondade (p. 13) Na compensação feita na passagem acima temos, além das aliterações, u m feliz 'achado' na ampliação dos /b/ e /d / , demónios tipográficos da língua, em sua especularidade. A compensação também pode ser verificada em: flat champagne(p. 30) / cnoco champanha (p. 35) bafes of hay (p. 146) / íardos de feno (p. 169) Por vezes, há o esforço para manter a sonoridade através de termos onomato- péicos em português, como no exemplo abaixo. Parece-nos no entanto, que neste caso os monossílabos do original prestam-se melhor à reprodução dos sons provocados pelo dinamismo da escultura de gelo derretendo: Squeak, twang, bang and splash from below; squeak, twang, bang and splash (p. 190) Guincho, tangido, estrondo, chape, lá de baixo; guincho, tangido, estrondo, chape (p. 219) Esse jogo do perde-ganha em sonoridade pode ser visualizado no exemplo abaixo: stack of soiled straw (p. 146) / puna de palha suja (p. 169) A escritura de Angela Carter envolve a questão do erótico. O duplo sentido da imagem presente no trecho a seguir, quando a protagonista abre urna garrafa de champanha, perde-se na interpretação da tradutora: She invitingly shook the bottle until it ejaculated afresh (p. 12) Ela sacudiu convidativamente a garrafa até lançar de novo o líquido em u m jato (p. 13) Ao privilegiar apenas um sentido do verbo 'ejaculate', usando quase um eufemismo, a tradutora sacrifica a ambigüidade da imagem. 242 Alfa, São Paulo, 36: 239-245, 1992 A adjetivação é outro aspecto que merece atenção em Angela Carter. Na presente tradução, destacamos os seguintes trechos, bastante característicos: sleepy, milky, silky fledgling (p. 12) avezinha sonolenta, leitosa e sedosa (p. 13-4) Nesse exemplo, acomodando-se o sintagma nominal à sintaxe da língua portu­ guesa,, perde-se o impacto da enumeração, reforçada pelas vírgulas e terminações dos adjetivos, só compensada pela terminação dos dois últimos adjetivos em português. Nas duas passagens seguintes, o mesmo tipo de construção no texto em inglês recebe dois procedimentos diferentes na tradução: a pair of vast, blue, indecorous eyes (p. 7) u m par de enormes e indecorosos olhos azuis (p. 7) What a cheap, convenient, expressionist device (p. 107) Que invenção barata, conveniente e expressionista (p. 124) No segmento abaixo, a tradução palavra por palavra parece ter sido uma tentativa de conservar o tom poético da frase: He pointed at the white and red superimposed upon his own, nevervisible features (p. 121) Apontou para o branco e o vermelho superpostos aos seus próprios e invisíveis traços (p. 140) O estrangeirismo em Angela Carter e na tradução em questão é um outro ponto que merece destaque. A autora permeia o texto de termos em francês, dando-lhe o tom de requinte que é sua marca registrada. Esses termos em língua francesa, parte integrante do grande caleidoscópio que é a obra de Angela Carter, nem sempre têm, na tradução, o mesmo efeito que têm no texto em inglês. É importante notar que, em muitos casos, Angela Carter incorpora tais termos ao texto, sem uso de itálicos ou aspas. O procedimento adotado na tradução é o de sempre utilizar uma marca gráfica, o itálico, provavelmente pela obrigatoriedade nas normas brasileiras de editoração: a hissing flute of bubbly (p. 8) uma sibilante flute de espumante (p. 8) on the back other cache-sexe (p. 17) atrás do cache sexe (p. 19) Under the screen other bonhomerie - bonnefemmerie? - (p. 11) sob o manto da bonhomerie - bonnefemmerie? - (p. 11) Nos exemplos abaixo, onde o texto em inglês propositadamente utilizou palavras em francês, marcando o empréstimo, a tradução ignorou aquele recurso: Fevvers, the most famous aerialiste of the day (p. 7) Fevvers, a mais famosa trapezista da época (p. 7) Alfa, São Paulo, 36: 239-245, 1992 243 a noisy torrent of concealed billets doux (p. 9) uma torrente ruidosa de cartas amorosas (p. 9) an explosion in a corsetiere's (p. 13) uma explosão numa loja de espartilhos (p. 15) 0 texto em inglês registra as características dialetais das personagens, o que a tradução não levou em conta. Assim, temos: I meself(p. 19) Eu mesma (p. 22) Sol says to Fewers (p. 33) Então eu disse a Fewers (p. 38) Ain't you an Amurrican?' implored the Colonel. 'Where's your spirit?' (p. 164) - Você não é americano? - implorou o Coronel. - Onde está a sua coragem? (p. 189) Oh, my gahd! 'said the Colonel, (p. 177) - Oh, meu Deus! - disse o Coronel, (p. 203) Estas passagens fazem-nos questionar até que ponto o mero transporte de significados satisfaz numa tradução. Não seria o caso de o tradutor 'ousar' mais, marcando também na tradução a fala característica da personagem? Há várias notas da tradutora, para explicar algumas expressões estrangeiras, bem como comentar trocadilhos que, infelizmente, não puderam ser compensados: 'humbug' (p. 48) e 'Walser' (p. 189). Em vários trechos, a tradução recupera a musicalidade, o jogo formal presente no texto em inglês, como nos exemplos abaixo: Hockey pokey penny a lump. (p. 51) Sorvete barato, u m montão por u m tostão, (p. 60) nix, nought, nothing (p. 198) neca, neres, nada (p. 226) Não tiveram a mesma sorte os versos cantados por uma das personagens: So we'll go no more a-roving So late into the night Though the heart be still as loving And the moon shine still as bright (p. 132) Então não mais seguiremos vagueando Tão tarde noite adentro Embora o coração seja ainda tão amoroso E a lua brilhe ainda tão viva. (p. 153) 244 Alfa, São Paulo, 36: 239-245,1992 Existem alguns 'ecos', provavelmente involuntários, que ficariam melhor se diluídos: removendo o creme, de repente, desconcertantemente, meigamente afagando (p. 14) engradado guardado (p. 22) Percebe-se, na tradução desta obra, um trabalho minucioso principalmente no que se refere aos significados, o que faz jus à complexidade do vocabulário de Angela Cárter. Contudo, vale lembrar que literatura é o tecido das palavras e, nesse jogo formal, o tradutor precisa ser, acima de tudo, recriador. Referências bibliográficas CARTER, A . W i g h t s a t the circus. L o n d o n : Pan Books , 1985. MOISÉS, L . P. Posfácio. I n : BARTHES, R. A u l a . T r a d , d e L . P. Moisés . São Paulo : C u l t r i x , s.d. Alfa. São Paulo, 36: 239-245,1992 245