UNIVERSIDADE ESTADUAL PAULISTA “JÚLIO DE MESQUITA FILHO” INSTITUTO DE ARTES PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM ARTES TALITA GABRIELA ROBLES ESQUIVEL TEXTURAS DO ESTRANHO O ESTRANHO NA PINTURA A PARTIR DO PROCESSO CRIATIVO SÃO PAULO 2017 TALITA GABRIELA ROBLES ESQUIVEL TEXTURAS DO ESTRANHO O ESTRANHO NA PINTURA A PARTIR DO PROCESSO CRIATIVO Tese de doutorado do Programa de Pós- Graduação em Artes do Instituto de Artes da Universidade Estadual Paulista “Júlio de Mesquita Filho”. Área de concentração: Artes Plásticas. Linha: Processos e Procedimentos Artísticos Orientador: Prof. Dr. Sérgio Mauro Romagnolo UNESP 2017 Ficha catalográfica preparada pelo Serviço de Biblioteca e Documentação do Instituto de Artes da UNESP E77t Esquivel, Talita Gabriela Robles, 1981- Texturas do estranho : o estranho na pintura a partir do processo criativo / Talita Gabriela Robles Esquivel. - São Paulo, 2017. 160 f. : il. color. Orientador: Prof. Dr. Sérgio Romagnolo. Tese (Doutorado em Artes) – Universidade Estadual Paulista “Julio de Mesquita Filho”, Instituto de Artes. 1. Pintura – Análise e apreciação. 2. Psicanalise e arte. 3. Arte - Psicologia.. I. Romagnolo, Sérgio. II. Universidade Estadual Paulista, Instituto de Artes. III. Título. CDD 701.15 TALITA GABRIELA ROBLES ESQUIVEL TEXTURAS DO ESTRANHO O ESTRANHO NA PINTURA A PARTIR DO PROCESSO CRIATIVO Tese de doutorado, elaborada junto ao Programa de Pós-Graduação em Artes, do Instituto de Artes da Universidade Estadual Paulista “Júlio de Mesquita Filho” (UNESP), na linha de pesquisa de Processos e Procedimentos Artísticos, como requisito para obtenção do grau de Doutor. Banca examinadora: ______________________________________________________ Prof. Dr. Sérgio Mauro Romagnolo (orientador) Universidade Estadual Paulista “Júlio de Mesquita Filho” – UNESP ____________________________________________________ Prof. Dr. Rafael Vogt Maia Rosa Universidade de São Paulo - USP _____________________________________________________ Prof. Dr. Sérgio Niculitcheff Universidade Estadual de Campinas – UNICAMP ____________________________________________________ Profª Drª Cláudia Fazzolari Universidade de São Paulo - USP _____________________________________________________ Prof. Drª José Paiani Spaniol Universidade Estadual Paulista “Júlio de Mesquita Filho” – UNESP AGRADECIMENTOS Ao meu orientador, professor Sérgio Romagnolo, por abrir minha mente em cada conversa, por tudo que me ensinou, por me mostrar um caminho mais leve, pela paciência e disposição sempre. Ao professor José Spaniol, pelo incentivo à produção plástica como núcleo central da pesquisa. À professora Cláudia Fazzolari, pela atenção ao texto e, em especial, pelas palavras “texturas do estranho”, que deram título a este trabalho. Aos meus amigos, que me acompanharam nesta caminhada, Fernanda Duarte, Rodrigo Rezende e Franciele Dossin, por todas as trocas, conversas e ajudas durante o curso. À Paula Campos Vaz, pela escuta, pela companhia e pelo olhar atento, me ajudando a afinar o texto, desde o mestrado. Aos colegas que me ajudaram nos processos iniciais do curso, Kleber Silva, por me ajudar com a montagem de um forno cerâmico, e Alexandre Vilas Boas, pelos registros fotográficos. Ao Luiz Carlos Zanirato, pela ajuda com os instrumentos da marcenaria. Aos demais colegas e professores do curso, por todas as trocas e ajudas constantes. Aos meus pais, Delvani Gerez e João Alvaro Esquivel Silveira, por me acompanharem e apoiarem nesta jornada acadêmica, desde a graduação, me fazendo sentir amparada sempre. Ao Guilherme Esquivel, por seu apoio constante. Ao Lucas Esquivel, por me ajudar a realizar o sonho do doutorado sanduíche na Dinamarca. Ao Tiago Costa Pinto, meu companheiro, pelo incentivo, pela compreensão por minhas ausências, pelo apoio no tempo que passei fora do país, pela ajuda para me manter no foco, pela paciência e pelo carinho. À professora Camilla Paldam, supervisora do exterior durante o doutorado sanduíche, por mostrar o caminho para uma visão feminina sobre o estranho, por toda a sua atenção e contribuição com a pesquisa. À Karen-Margrethe Simonsen, por sua hospitalidade e por me proporcionar o melhor ambiente para aproveitar ao máximo minha estadia na Dinamarca. À Tine Arsinevici, à Pia Madsen e à Betina Ramm por me ajudarem com tudo o que precisava durante todo o período no exterior. À professora Birgitte Pedersen, pela atenção para que desse certo o período de pesquisa na Aarhus University. Ao professor Jacob Lund por me acolher em seu grupo de estudos, pelas conversas e palestras. À Jette Gejl, pelas conversas e passeios, pela acolhida. A todos os colegas da Aarhus University, pela convivência e pelas trocas. A todos da secretaria do PPGArtes, Fabio Maeda, Neusa Padeiro, Gedalva Santana e, em especial, Angela Lunardi, por toda a atenção e por toda ajuda desde o início do curso. À CAPES, pela bolsa de 11 meses do curso. À Pró-Reitoria da UNESP, pelos dois auxílios concedidos. Ao Grupo Montevidéu e à Universidad de Córdoba (UNC), por possibilitarem o intercâmbio de três meses na Argentina. Ao Grupo Coimbra por intermediar doutorado sanduíche na Universidade de Aarhus, na Dinamarca. À Universidade de Aarhus, pela estrutura e assistência que me foram oferecidos durante o período de pesquisa e pelo importante auxílio concedido. RESUMO A presente pesquisa de doutorado propõe uma investigação plástica em pintura circundada pelo conceito de unheimlich (estranho) de Sigmund Freud. É realizada em duas partes, produção escrita e plástica, que sofrem influência uma da outra durante os seus processos. O conceito da psicanálise parte aqui das artes plásticas. A intenção foi de vivenciar e conviver com o estranho durante o processo criativo e, dessa forma, compreendê-lo a partir do ponto de vista do processo artístico. Isso não significa necessariamente que será identificado no trabalho final, em sua impressão, pois primeiramente o estranho não está na imagem, mas no próprio indivíduo, é o que causa estranheza particularmente em cada um. Assim, procurei identificar o que seria estranho para mim, uma busca quase impossível, na maioria das vezes, já que o estranho possui um elemento familiar que não pode ser identificado, o que o confunde muitas vezes com o puramente assustador. O conceito e fenômeno do estranho, em diversos momentos, também se confundiram durante o processo de pesquisa, por ter sido possível percebê-lo sem senti-lo. Buscaram-se analogias e outras formas de se distinguir o estranho do assustador, em outros caráteres e impressões que se aproximem do estranho, mas o que parece ser seu principal caráter é justamente a impossibilidade de descrição, de reconhecimento e de entendimento. São utilizados textos de Freud e de outros autores relacionados ao estranho e às artes, buscando construir ferramentas de apoio para refletir sobre o meu próprio processo artístico. Palavras-chave: estranho, psicanálise, Sigmund Freud, processo criativo, artes plásticas, pintura. ABSTRACT My PhD research proposes an artistic investigation in painting surrounded by Sigmund Freud's concept of unheimlich (uncanny). It is conducted in two parts, the writing and the art production, which are influencing each other during their processes. The psychoanalytic concept starts here from the visual art. The intention was to experience and live together with the uncanny throughout the creative process and, this way, understand it from the point of view of the artistic process. That not necessarily means it can be identified in the final work, in its impression, also because, at first, the uncanny is not in the image, but inside the viewer, it is what causes the uncanniness, or strangeness, particularly in each one. Thus, I tried to identify what would be uncanny to me, a search, which is almost impossible most of the time, as the uncanny has the familiar element that is not recognizable, which often confuses it with what is purely terrifying. The uncanny concept and phenomenon also got confused during the research process, as it was possible to perceive it without feeling it. It was sought analogies and other forms of distinguishing the uncanny and the terrifying, in other characters and impressions which get close to the uncanny, however, what seems to be its main character is exactly the impossibility of description, recognition, understanding. It is used texts written by Freud and other authors related to the uncanny and to the art, seeking to build tools to make a reflection about my own artistic process. Key words: uncanny, psychoanalysis, Sigmund Freud, creative process, visual art, painting. LISTA DE FIGURAS Figura 1 - Talita Esquivel. Frame do vídeo Feito à mão. 2008 (fig. 1). ............................... 18 Figura 2 - Talita Esquivel. O nascimento da pulsão. Óleo sobre tela. 1,40 x 1,40 m. 2008. 19 Figura 3 - Talita Esquivel. Ocultações / Surreptitious. Óleo sobre papel. 50 x 65 cm. 2008 20 Figura 4 - Talita Esquivel. Fotografias na parede – detalhe ................................................ 21 Figura 5 - Talita Esquivel. Intimidades. Óleo sobre tela. 1,20 x 1,60 m. 2008..................... 22 Figura 6 - Talita Esquivel. Depois de Courbet. Óleo sobre tela. 1,20 x 1,50 m. 2008 ......... 23 Figura 7 - Talita Esquivel. Sem título. Óleo sobre tela. 1,40 x 1,40 m. 2008 ....................... 24 Figura 8 - Talita Esquivel. Caprichos. Óleo sobre tela. 1,40 x 1,40 m. 2008 ....................... 25 Figura 9 - Talita Esquivel. Sem título. Óleo sobre tela. 80 x 100 cm. 2008 ......................... 26 Figura 10 - Talita Esquivel. Síndrome de Frankenstein. Óleo sobre tela. 1,40 x 1,40 m. 2008 ............................................................................................................................................ 27 Figura 11 - Talita Esquivel. O pior castigo. Couro, fios de cobre e agulha. 90 x 90 cm (variável). 2008 .................................................................................................................... 28 Figura 12 – Detalhe do trabalho O pior castigo .................................................................... 28 Figura 13 - Talita Esquivel. Série fotográfica, 2008 ............................................................ 29 Figura 14 - Talita Esquivel. Série fotográfica, 2008 ............................................................ 29 Figura 15 - Talita Esquivel. Série fotográfica, 2008 ............................................................ 30 Figura 16 - Talita Esquivel. Série fotográfica, 2008 ............................................................ 31 Figura 17 - Talita Esquivel. Óleo sobre tela. 1,40 x 1,40m. 2009 ........................................ 32 Figura 18 - Talita Esquivel. Óleo sobre tela. 1,20 x 1,60m. 2008 ........................................ 33 Figura 19: Gustav Klimt. Morte e vida. Óleo sobre tela. 178 x 198 cm. 1915...................... 39 Figura 20 – Arthur Bispo do Rosário, Atenção: Veneno, sem data. .................................. 43 Figura 21 - Louise Bourgeois. Aranha. 1997 ..................................................................... 45 Figura 22 - Trabalhos de Yayoi Kusama ............................................................................. 47 Figura 23 - Desenho de Leonardo Da Vinci. ...................................................................... 53 Figura 24 - Leonardo da Vinci. Mona Lisa. 1503-1506. ...................................................... 59 Figura 25 - Leonardo Da Vinci. A Virgem e o Menino com Sant’Ana, óleo sobre madeira, 168 x 112 cm, 1508 a 1513. ................................................................................................. 60 Figura 26 - Michelangelo. Moisés, 1513–15. ...................................................................... 65 Figura 27 - Pieter Bruegel. The strife of lent with shrove-tide. 1550-1560. .......................... 85 Figura 28 - Gregor Schneider. Die Familie Schneider, 2004. ............................................. 91 Figura 29 - Lucian Freud. Naked girl asleep II. 1968. ......................................................... 92 Figura 30 - Francis Bacon. Man and Child, 1963 ............................................................... 93 Figura 31 - Maria Martins. Sem eco. 1943. ......................................................................... 95 Figura 32 - Francesca Woodman. From Space2, 1976. ..................................................... 96 Figura 33 - Planta do espaço expositivo Octógono da Pinacoteca ....................................... 97 Figura 34 - Plantas dos espaços da Pinacoteca, contidas em folheto .................................. 98 Figura 35 - Vista da sacada da Pinacoteca, com o Parque da Luz ao lado .......................... 99 Figura 36 - Lápis sobre papel. Esboço da proposta ........................................................... 100 Figura 37 - Lápis sobre impressão fotográfica do local. Esboço da proposta ..................... 100 Figura 38 - Plataforma com grade de proteção. Fotografia da maquete............................. 101 Figura 39 - Parte superior da maquete, com o elevador feito de isopor, palitos de madeira e tela mosquiteira. Ao lado, uma parte da grade da plataforma ............................................ 102 Figura 40 e 41 - Poço de drenagem de água ..................................................................... 103 Figura 42 e 43 - Torre de 27 metros de profundidade com escadaria em espiral ............... 103 Figura 44 - As paredes, após as portas e janelas terem sido entijoladas. Fotografia da maquete............................................................................................................................. 104 Figura 45 - Escavação no chão do espaço expositivo. Saída vista de dentro do espaço expositivo. Ponto principal da proposta. Fotografia da maquete ........................................ 105 Figura 46 - A saída vista de fora do espaço expositivo ...................................................... 105 Figura 47 - Vista de cima da maquete. Proposta de instalação/site specific ...................... 106 Figura 48 - Vista de frente da maquete .............................................................................. 107 Figura 49 - Torso de manequim usado para a primeira queima ......................................... 108 Figura 50 - Após a montagem do forno, início da queima .................................................. 109 Figura 51 - Manequim queimado sobre a placa de ferro, logo após a queima ................... 110 Figura 52 - Resultado da primeira queima - placa de ferro após descolamento do plástico 111 Figura 53 - Resultado da segunda queima de manequim sobre placa de ferro .................. 112 Figura 54 - Terceira queima. Torso de manequim laranja sobre placa de ferro.................. 113 Figura 55 - Resultado da terceira queima .......................................................................... 114 Figura 56 - Resultado da quarta queima, manequim de plástico branco sobre placa de metal galvanizado ....................................................................................................................... 115 Figura 57 - Processo de solda ........................................................................................... 116 Figura 58 - Placa ferro soldada .......................................................................................... 116 Figura 59 e 60 - Duas radiografias doadas por colegas do curso ...................................... 117 Figura 61 e 62 - Resultado da queima de radiografia sobre metal não ferroso .................. 117 Figura 63 - Talita Esquivel. À Cimabue de Bacon. Óleo sobre tela. 70 x 120 cm. 2015 ... 119 Figura 64 - Francis Bacon. Three studies for a crucification. 1962. .................................. 120 Figura 65 - Crucifixo de Cimabue invertido ........................................................................ 120 Figura 66 - Ateliê de Francis Bacon ................................................................................... 121 Figura 67 - Ateliê de Lucian Freud ..................................................................................... 122 Figura 68 - Caspar David Friedrich. Abadia no Carvalhal. 1809-1810. ............................ 123 Figura 69 - Marcel Duchamp. Étant donnés. 1946-1966. ................................................. 126 Figura 70 e 71 - Vista de frente e instalação do trabalho Étant donnés ............................. 127 Figura 72 - Gráfico do Uncanny Valley (UV) ..................................................................... 129 Figura 73 - Otto Dix. A Guerra. 1929-1932. ...................................................................... 131 Figura 74 - Edvard Munch. Ansiedade. 1894.................................................................... 132 Figura 75 - Talita Esquivel. Torso em duas peles. Óleo sobre tela. 70 x 120 cm. 2015 .... 133 Figura 76 e 77 - Processo da pintura Torso em duas peles ............................................... 134 Figura 78 - Paleta utilizada na pintura do Torso em duas peles ......................................... 135 Figura 79 - Talita Esquivel. Selfie dupla. Óleo sobre tela. 80 x 100 cm. 2015 .................. 138 Figura 80 - Processo da pintura Selfie dupla ..................................................................... 139 Figura 81 - Talita Esquivel. A morte do filhote (baleia Jubarte). Óleo sobre tela. 1,67 x 3,93m. 2015 ....................................................................................................................... 143 Figura 82 - Detalhe da pintura A morte do filhote (baleia Jubarte) ..................................... 144 Figura 83 - Talita Esquivel. Assombração 1. Óleo sobre tela. 2016 ................................. 146 Figura 84 - Talita Esquivel. Assombração 2. Óleo sobre tela. 2016 ................................. 146 Figura 85 – Processo da pintura Assombração 1 ............................................................... 147 Figura 86 – Processo da pintura Assombração 2 ............................................................... 148 SUMÁRIO INTRODUÇÃO .......................................................................................................... 12 CAPÍTULO 1 - DO GROTESCO AO ESTRANHO .................................................... 17 1.1 - OUTROS TRABALHOS DO MESTRADO ................................................................................... 22 CAPÍTULO 2 - FORMAS DO ESTRANHO ............................................................... 34 2.1 - O ESTRANHAMENTO E A ESTRANHEZA ................................................................................. 34 2.2 - PSICANÁLISE E ARTE ............................................................................................................ 37 2.3 - LEONARDO E MICHELANGELO EM FREUD ............................................................................. 52 2.4 - O ESTRANHO DE FREUD ....................................................................................................... 68 CAPÍTULO 3 - VELADURAS DO ESTRANHO ........................................................ 77 3.1 - O PRAZER E O DESPRAZER NA ARTE ...................................................................................... 77 3.2 - OLHAR ESTRANHO ............................................................................................................... 84 CAPÍTULO 4 - PROCESSOS INICIAIS .................................................................... 97 4.1 - PROFUNDO: UMA PROPOSTA DE INSTALAÇÃO ..................................................................... 97 4.2 - MANCHAS DE CHAMAS ...................................................................................................... 108 CAPÍTULO 5 - TEXTURAS DO ESTRANHO ......................................................... 119 5.1 - O ESTRANHO NA PINTURA ................................................................................................. 119 5.2 - O ESTRANHO NO PROCESSO CRIATIVO ............................................................................... 133 CONSIDERAÇÕES FINAIS .................................................................................... 150 REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS ....................................................................... 154 REFERÊNCIAS ICONOGRÁFICAS .................................................................................................. 159 12 INTRODUÇÃO Tem-se aqui a intenção de circundar uma investigação artística com o conceito de estranho de Sigmund Freud (1856-1939) e propor reflexões que partem do processo de criação em pintura. Criador da psicanálise, Freud desenvolveu a ideia de que a mente é dividida em três níveis de consciência: consciente, pré-consciente e inconsciente, sobre os quais atuam os conceitos de id, ego e superego e se relacionam aos instintos e às pulsões. Antes de Freud, problemas psicológicos eram tratados com hipnose, ele propôs uma nova forma de abordagem, que não chamou de tratamento, mas de análise psíquica, a psicanálise, feita por meio do diálogo e partindo da associação livre. Doenças vistas na época como de origem biológica ou orgânica, Freud entendeu ser de origem psíquica, como no caso da histeria1. Atualmente, muitas das linhas de psicoterapia utilizam o método criado por Freud, ou seja, o diálogo e a livre associação. Freud também é o primeiro a considerar os sonhos como um importante elemento psíquico, sendo o primeiro acadêmico a investigá-los. “Talvez um dos maiores méritos de Freud tenha sido o de não aplicar radicalmente uma diferenciação entre ficção e ciência, cedendo lugar, em sua obra, para a emergência, simultânea de saber de ambas” (KON, 1996, p. 51). Diversos foram os autores que utilizaram os escritos de Freud para criar seus pensamentos, dentre eles Carl Gustav Jung (1875 - 1961) e Jacques Lacan (1901 - 1981). Jung, contemporâneo de Freud, divergiu em diversos pontos de seu pensamento, fundando a “psicologia analítica”, desenvolvendo novos conceitos, como o de individuação, inconsciente coletivo, personalidade introvertida e extrovertida e o conceito de sombra (OLIVEIRA, 20132). O conceito de sombra de Jung, embora tenha sido desenvolvido a partir de um texto de E.T.A. Hoffmann, assim como o conceito de estranho de Freud, conforme aponta Márcia Coelho (2014), afasta-se dele na medida em que se refere à personalidade. Já Lacan, propõe um retorno à teoria de Freud, desenvolvendo, dentre diversos conceitos, o que marcou seu pensamento, que são as três formas de registro da mente: o imaginário, o simbólico e o real. 1 Essas informações constam em: ALMEIDA; ATALLAH, 2009, p. 150-154. Artigo disponível em http://www.scielo.br/pdf/pe/v14n1/a18v14n1.pdf. Acessado em 22 de março de 2017. 2 Referência dos conceitos de Jung pode ser visto nesta página http://psicologiajunguiana.com.br/?page_id=88. Acessado em 8 de março de 2017. http://www.scielo.br/pdf/pe/v14n1/a18v14n1.pdf http://psicologiajunguiana.com.br/?page_id=88 13 Diversos foram os interlocutores da teoria psicanalítica, desde a época de Freud até os dias atuais, e diversos são os autores que estudam a relação entre psicanálise e arte, entre o conceito de estranho e as artes plásticas e, mais especificamente, a pintura. No Brasil, há uma defasagem de pesquisas na área de artes, que relacionem o estranho de Freud às artes plásticas, no entanto foi possível encontrar diversos artigos a respeito durante o doutorado sanduíche realizado na Universidade de Aarhus, na Dinamarca. A psicanálise é mais uma das áreas na qual a pesquisa em arte pode se apoiar para pensar a própria arte. Entretanto, nem todos os conceitos da psicanálise, nem todas as relações existentes da arte com a psicanálise são aqui abordados. O fenômeno do estranho, ou a sensação de estranheza, é somente possível por meio do seu acontecimento, pois é quando é formado. Não é algo que se tem consciência previamente ao seu acontecimento, ou seja, não se sabe de sua existência, do que se estranha, antes de seu acontecimento, o que será melhor discorrido durante o texto. Tendo consciência das diversas pesquisas realizadas acerca do psiquismo, propõe-se aqui um retorno à Freud, uma retomada de seus escritos, embasando-se nos textos que possuem relação com as artes e com o estranho, propondo reflexões que partem do processo criativo. O conceito de estranho de Freud já estava presente durante a pesquisa de mestrado, quando buscou-se trabalhar imagens familiares, de modo a conseguir maior impacto, o que se tornou mais presente nos trabalhos relativos a morte, quando o caráter assustador apareceu mais forte e instigante, assunto que iniciará o texto, compondo o primeiro capítulo, “Do grotesco ao estranho”. Assim, sentia-me ligada ao pensamento de Freud desde o mestrado, instigada a investigar mais seus escritos e seu conceito de estranho, por esse motivo, Freud foi o escolhido. Fazem-se presentes alguns interlocutores de Freud, que propõem relações entre a psicanálise e as artes e, ainda, os que relacionam especificamente o estranho com outras linguagens, como a literatura, relação já presente no artigo base da pesquisa, que utiliza “O Homem da Areia”, de E.T.A. Hoffmann, como alicerce para construir seu conceito. A relação entre a psicanálise e as artes será abordada no segundo capítulo. No artigo Das Unheimliche (O estranho), de forma resumida, Freud destaca coincidências indicativas de que o estranho aparece no que é muito bem conhecido e 14 familiar. Relacionando o familiar ao que não é público, seu conceito estende-se ao que está recluso e escondido. Partindo da infância, o autor relaciona o “complexo de castração” como uma das ameaças mais amedrontadoras. O duplo, a repetição e o retorno também aparecem como possíveis dispositivos para o estranho. Assim, o estranho é percebido como algo que deveria continuar escondido, mas “veio à luz”. Logo, Freud chega ao lugar escondido, familiar, na origem do estranho, de onde todos vieram, o heim (lar), a genitália da mãe. Buscou-se realizar uma pesquisa em artes plásticas tendo o estranho como mote inspirador e instigador do processo criativo, assim como compreender o estranho do ponto de vista do processo artístico, uma falta observada pelo próprio autor: “Poderíamos dizer que esses resultados preliminares satisfizeram o interesse psicanalítico pelo problema do estranho, e que aquilo que resta pede provavelmente uma investigação estética” [grifo do autor] (FREUD, [1919] 1996a, p. 262). Não se trata de uma tentativa de representar artisticamente o estranho ou a teoria da psicanálise, ou mesmo de realizar um esquematismo por meio do qual se possa identificar a complexidade desse conceito em obras de arte em geral. Tampouco se pretende psicanalisar a obra de arte. A proposta não parte da psicanálise, mas da área artística, ao tratar de uma pesquisa em arte e o conceito do estranho foi tido como detonador de processos criativos. Os conceitos da psicanálise são com frequência objeto de interesse das artes plásticas, como, por exemplo, a exposição realizada em Londres, Neurotic Realism, que gerou o livro-catálogo The new neurotic realism, de Dick Price (1998). Mas o que significa ter este conceito de estranho como propulsor e inspirador de uma pesquisa em arte, especificamente em pintura? Um interessante apontamento é feito por Ana Maria Portugal (2006), “O estranhamento, dentro da evolução histórica, é um ponto de descontinuidade, de refutação, que promoverá a criação. Quanto ao estranho, como experiência de limites, não há dúvidas de que se constrói à beira do real” (PORTUGAL, 2006, p. 24). Esta pesquisa foi elaborada em cinco capítulos. O texto inicia nas origens do interesse no tema, vindo de um desdobramento da pesquisa realizada no mestrado em artes visuais sobre o Corpo Grotesco, no qual o estranho aparece em parte dos trabalhos e do processo criativo. Separadamente, são apresentados os trabalhos realizados durante esse período. 15 Os capítulos seguem fazendo uma relação com a pintura, dividido em formas, veladuras e texturas. As “Formas do estranho”, segundo capítulo, define e contextualiza o conceito de estranho de Sigmund Freud, dividido entre: “O estranhamento e a estranheza”, no qual são apresentadas as diferentes vertentes e significados dos termos com raiz no estranho, contextualizando o termo; o segundo subcapítulo discorre sobre a relação “Psicanálise e arte”, apresentando reflexões de autores da psicanálise e introduzindo alguns artistas de referência; passando para análise de Freud de uma lembrança de infância de Leonardo da Vinci e de uma obra de Michelângelo, Moisés, ou a análise de um artista plástico e uma obra de arte, únicos estudos de Freud sobre as artes plásticas; o capítulo finaliza apresentando a maior parte do artigo Das Unheimliche (O estranho) de Sigmund Freud, utilizado como fonte base para esta pesquisa, discorrendo sobre a maioria dos conceitos nele contidos. O capítulo “Veladuras do estranho” apresenta o que é possível ver um pouco mais ao fundo: “O prazer e o desprazer na arte” fala de alguns textos de Freud relacionados às artes, tratando, dentre outras coisas, da relação do estranho com o prazer e “O olhar estranho”, no qual é observada a presença da ficção no estranho, um ponto que parece ser essencial para o fenômeno do estranho, em específico para o campo das artes plásticas. Aqui são apresentados alguns trabalhos, de artistas de referência. Nesse capítulo é apresentado o restante dos elementos e conceitos trazidos por Freud no artigo “O estranho”. O quarto capítulo apresenta os dois processos criativos iniciais realizados no referido curso de doutorado. O primeiro, “Profundo, uma proposta de instalação”, expõe o processo de elaboração de um projeto para o espaço expositivo Octógono, da Pinacoteca e “Manchas de chamas”, mostra o processo dos trabalhos feitos sobre placas de metal a partir da queima de manequins de plástico. Ambos foram resultados de disciplinas realizadas no curso. O quinto capítulo, “Texturas do estranho”, começa apresentando trabalhos artísticos que serviram de referência e lugares do estranho, partindo da experiência própria, e alguns trabalhos realizados, para, no segundo subcapítulo, apresentar o restante dos trabalhos desenvolvidos em pintura durante o curso, discorrer acerca do processo criativo e pensar o estranho a partir dele. Nesse capítulo tem-se como referência bibliográfica o estudo de Freud (1976a) acerca da origem da criatividade, que o autor relaciona à fantasia, ao devaneio e ao sonho e compara ao brincar de 16 uma criança; e Hubert Damisch (1996), que analisa o problema da imagem, ou seu desaparecimento, na história da arte, a partir de estudos de Freud sobre a histeria e os sonhos. Esse último capítulo constitui-se como parte principal da pesquisa, pois foi a partir dos processos dos trabalhos artísticos, nele apresentados, que ocorreram as reflexões no decorrer da pesquisa e possibilitaram pensar o estranho a partir do processo criativo em pintura. 17 CAPÍTULO 1 - DO GROTESCO AO ESTRANHO O que leva uma pessoa a apreciar uma arte que traz aversão, desconforto, medo? Por qual motivo alguém poderia gostar de algo angustiante, depressivo, macabro, feio? Acredito que a pergunta correta seria: Por que não admirar esse tipo de arte? Os artistas românticos traziam esta questão, “Friedrich Schlegel chega a se perguntar como é possível que não se tenha ainda encontrado uma teoria estética do gênero poético-diabólico” (PORTUGAL, 2006, p. 74). A pesquisa de doutorado é uma continuação da realizada durante o mestrado em artes visuais, na Universidade do Estado de Santa Catarina (UDESC), 2007-2009, sobre o Corpo Grotesco3, cuja investigação do corpo humano direcionou os estudos para o grotesco. Investigou-se o conceito de grotesco na pesquisa de mestrado, tendo-se dois autores como principais referências, Mijail Bajtin4 e Wolfgang Kayser. Grosso modo, para Kayser, o grotesco está ligado à parte externa do corpo, à fantasia, ao irreal, à fábula e ao lúdico. O autor também fala da sensação de estranhamento diante do grotesco. Já segundo Bajtin, o termo tem sua essência na cosmovisão carnavalesca presente na Idade Média, quando a imagem do baixo corporal tinha um simbolismo transcendente com o elevado. Na dissertação também foram utilizadas referências da história da arte, na qual o grotesco pode ser encontrado, como em Francisco Goya, Jacques Callot, Diego Velázquez e Hieronymus Bosch. De acordo com Kayser, o grotesco aparece no bizarro, na deformidade, na fantasia e, para Bajtin, ele está ligado às partes internas do corpo, está nas excrescências, nos órgãos, nas proeminências, nos orifícios, imagens que mostrem o todo corporal e seus limites. As referências teóricas e artísticas do estudo sobre o Corpo Grotesco trouxeram significante influência no processo artístico durante o mestrado. Como a pesquisa era focada no corpo, foram pesquisadas anormalidades e práticas corporais, das cotidianas às consideradas bizarras, as que pude imaginar e as que vieram até mim. “Vieram até mim”, pois em diversos momentos, ao apresentar trabalhos artísticos 3 ESQUIVEL, Talita G. R., Corpo Grotesco. Programa de Pós-Graduação em Artes Visuais da UDESC. 2009. Dissertação de mestrado disponível em http://www.tede.udesc.br/bitstream/handle/1332/1/talita.pdf 4 Mijail Bajtin é o autor do livro na referência espanhola utilizada: La cultura popular en la Edad Media y en el Renacimiento, sendo Mikhail Bakhtin o nome de origem do autor. http://www.tede.udesc.br/bitstream/handle/1332/1/talita.pdf 18 e realizar comunicação de artigos, pessoas do público entraram em contato para contar seus próprios dilemas, fetiches, problemas, a forma como se relacionavam com o corpo. Pessoas que se cortavam por prazer, ou que se infligiam ferimentos por curiosidade quanto a sua tolerância à dor, outras indignadas com os padrões existentes para o corpo e também as que haviam feito ou fariam cirurgias plásticas. Figura 1 - Talita Esquivel. Frame do vídeo Feito à mão5. 2008 (fig. 1). No processo de criação realizou-se um vídeo, chamado Feito à mão, que, mesmo não tendo sido utilizado na dissertação, foi relevante no processo de pesquisa. O vídeo foi apresentado na Mostra Audiovisual do Seminário Internacional Fazendo Gênero 8: Corpo, Violência e Poder (2008). A reação do público foi surpreendente por demonstrar um grande desconforto com o vídeo, que mostrava o cortar das cutículas dos dedos da mão até sangrar. Essa inflição pode ser vista como pequena quando comparada ao que é mostrado em filmes de terror, que expõem uma violência extrema ao corpo, ou Jornais televisivos que apresentam tragédias. É provável que o potencial da imagem esteja justamente no fato de se desnudar algo que é tão comum e cotidiano, como o machucar das cutículas. 5 Na época foi apresentado com o título Fazendo a mão. Vídeo disponível em http://www.wooloo.org/exhibition/entry/111546. http://www.wooloo.org/exhibition/entry/111546 19 A produção do mestrado tinha por objetivo utilizar imagens potenciais para causar impacto no público, trabalhos direcionados não à compreensão, mas a sensação de repulsão. Em contraponto, houve a busca pela qualidade pictórica, na técnica e no uso das cores, visando à atratividade. Outra intenção foi dialogar, em oposição, com a ideia de belo ou de decoração na arte. Busquei criar imagens a partir das fotos tiradas por mim mesma, explorando ambiguidades e recortes. Figura 2 - Talita Esquivel. O nascimento da pulsão. Óleo sobre tela. 1,40 x 1,40 m. 2008 Explorou-se o conceito de corpo grotesco como um corpo mais natural do que idealizado, um corpo no qual aparecem as manchas, veias, cicatrizes, sangue. A pesquisa foi dividida em três partes, partindo de um corpo natural, do corpo gordo, marcado e alterado – tendo como referência Lucian Freud, Priscila dos Anjos e Fernanda Magalhães – passando por mutilações relativas a padrões de beleza, que foram chamadas de mutilações voluntárias – referência em Jenny Saville, Orlan e Herman Nitsch – até o tema da morte, quando visitei hospitais e laboratórios de 20 anatomia, tive contato com cadáveres, chegando a bebês siameses natimortos – referência em André Serrano, Jenny Saville e Witkin. No processo criativo, durante o mestrado, procurei trabalhar com uma ideia central, que já trazia indícios do “estranho” de Sigmund Freud, o qual mantive comigo durante todo o processo: o familiar a todos. A ideia de familiaridade foi pensada como uma forma de potencializar os trabalhos, em relação ao impacto que se pretendia, ou seja, maior identificação por parte do público. Procurei tratar do que é comum a todos, em relação ao corpo, sem identificação do sujeito, em alguns casos sugerir a ideia de olhar para o próprio corpo pelo posicionamento das imagens, como nas pequenas mutilações cotidianas. Figura 3 - Talita Esquivel. Ocultações / Surreptitious. Óleo sobre papel. 50 x 65 cm. 2008 Toda a história e conceito do grotesco me causaram identificação e admiração. A ideia de que grotesco não é em si algo repugnante e grosseiro, fez-me questionar como a imagem do sangue poderia trazer asco se vista como sinal de vida. Na minha visão, o grotesco traz uma forma poética de ver e vivenciar essas imagens. No mestrado, os estudos acerca do corpo se direcionaram ao cultural, ao corpo fora dos padrões da sociedade, à feiura. Assim, as imperfeições e deformações naturais apareceram como importante elemento nas imagens. 21 Um fato relevante marcou o processo criativo dos trabalhos quando no tema morte. Logo após realizar as fotografias dos cadáveres, quando ainda não havia definido como trabalhar com elas, as observei no computador. Estava sozinha, à noite, em minha casa e elas me causaram um medo terrível, dezenas de fotos, a maioria cadáveres de bebês em formol. A incógnita sobre como iria trabalhar com aquelas imagens, trouxe-me uma alternativa de convivência com elas, na expectativa de que ajudasse a amenizar seu caráter assustador. Assim, coloquei-as na parede da sala e aos poucos elas foram se acostumando comigo. As sensações experienciadas, durante todo o contato com os cadáveres, trouxeram um novo aspecto ao processo criativo e um direcionamento diferente do que estava seguindo. Foi a partir da percepção de que determinados trabalhos traziam aspectos estranhos, ou assustadores, ou sinistros, sem, no entanto, terem características grotescas, que originou o interesse por um aprofundamento nesse sentido. Figura 4 - Talita Esquivel. Fotografias na parede – detalhe 22 1.1 - OUTROS TRABALHOS DO MESTRADO Figura 5 - Talita Esquivel. Intimidades. Óleo sobre tela. 1,20 x 1,60 m. 2008 23 Figura 6 - Talita Esquivel. Depois de Courbet. Óleo sobre tela. 1,20 x 1,50 m. 2008 24 Figura 7 - Talita Esquivel. Sem título. Óleo sobre tela. 1,40 x 1,40 m. 2008 25 Figura 8 - Talita Esquivel. Caprichos. Óleo sobre tela. 1,40 x 1,40 m. 2008 26 Figura 9 - Talita Esquivel. Sem título. Óleo sobre tela. 80 x 100 cm. 2008 27 Figura 10 - Talita Esquivel. Síndrome de Frankenstein. Óleo sobre tela. 1,40 x 1,40 m. 2008 28 Figura 11 - Talita Esquivel. O pior castigo. Couro, fios de cobre e agulha. 90 x 90 cm (variável). 2008 Figura 12 – Detalhe do trabalho O pior castigo 29 Figura 13 - Talita Esquivel. Série fotográfica, 2008 Figura 14 - Talita Esquivel. Série fotográfica, 2008 30 Figura 15 - Talita Esquivel. Série fotográfica, 2008 31 Figura 16 - Talita Esquivel. Série fotográfica, 2008 32 Figura 17 - Talita Esquivel. Óleo sobre tela. 1,40 x 1,40m. 2009 33 Figura 18 - Talita Esquivel. Óleo sobre tela. 1,20 x 1,60m. 2008 34 CAPÍTULO 2 - FORMAS DO ESTRANHO 2.1 - O ESTRANHAMENTO E A ESTRANHEZA O conceito de estranhamento na arte vem sendo construído desde as vanguardas artísticas, que o utilizaram como um direcionamento para suas produções. Os escritos da psicanálise tiveram impacto no meio artístico, sendo os Surrealistas e os Dadaístas os maiores investigadores dessa relação, tentando alcançar o inconsciente em seus trabalhos, conforme aponta Paulo Reis: Sonhos, delírios, alucinações, vertigens e associações desvelavam, para seus artistas, uma realidade escondida, subterrânea mesmo, por dentro daquela outra em que se vivia. O surrealismo arquiteta estranhamentos pela troca de lugares - algo como um guarda-chuva e uma máquina de costura numa mesa de dissecação [Lautréamont], frottages, método paranoico-crítico, colagens, cadavre exquis, entre muitos outros. O crítico e poeta mexicano Octavio Paz, no livro O Arco e a Lira, afirma que o surrealismo é um movimento pioneiro ao se debruçar sobre o problema da inspiração. O fazer artístico seria trazido para a região do inteligível, sensivelmente alargado, e não mais para o domínio do gênio. (REIS, 20036) Em uma das bases da construção do conceito de estranhamento nas artes encontra-se Viktor Chklovski, com seu texto Arte como procedimento7 (1971), que embora faça uma análise do estranhamento na literatura, também o defende como o fenômeno que leva as pessoas a perceberem os objetos ao seu redor, ou mesmo gestos e atitudes próprias. O autor parte do princípio de que as habilidades aprendidas se tornam inconscientes, assim como a percepção de objetos e ações cotidianas, em um automatismo que traz uma “máxima economia de forças perceptivas”, levando a um enfraquecimento do trabalho: “sob a influência de tal percepção, o objeto enfraquece, primeiro como percepção, depois na sua reprodução” (CHKLOVSKI, 1971, p. 44). O estranhamento, evidenciado por Chklovski, pode ser visto como sinônimo de atenção, percepção e sensibilidade, como se estivesse vendo algo pela primeira vez. De acordo com Chklovski, a função da arte está justamente em ativar a percepção: O objetivo da arte é dar a sensação do objeto como visão e não como reconhecimento; o procedimento da arte é o procedimento da 6 Texto curatorial da exposição Estranhamento do Rumos Itaú Cultural 2001-2003, realizado pelo prof. Dr. Paulo Reis. Disponível no link http://www.itaucultural.org.br/projetos/estranhamento/ em “texto do curador”. Acessado em 18 de junho de 2017. 7 Viktor Chklovski teve seu artigo publicado originalmente em Poetika, em 1917. A tradução para o português foi publicada em Teoria da literatura: formalistas russos (1971). http://www.itaucultural.org.br/projetos/estranhamento/ 35 singularização [ostranenie] dos objetos e o procedimento que consiste em obscurecer a forma, aumentar a dificuldade e a duração da percepção. O ato de percepção em arte é um fim em si mesmo e deve ser prolongado [grifo nosso] (CHKLOVSKI, 1971, p. 45). Aprender a olhar o mundo ao redor, a olhar uma pintura e a olhar a própria pintura podem envolver diferentes processos e pensamentos. Durante o fazer de uma pintura, o que pode ser estendido a outras linguagens, normalmente fica-se muito envolvido com o próprio trabalho. Assim, existem estratégias para se obter um olhar distanciado, como, por exemplo, observar a pintura através de um espelho, invertendo-a no reflexo, permitindo que o olhar do autor tenha novas percepções sobre seu trabalho, podendo trazer a sensação de estar vendo-o pela primeira vez. A observação das potencialidades visuais do mundo ao redor não é um processo isolado de determinado objeto, mas envolve o sujeito, sofre influência de gostos pessoais, vivências, sonhos, leituras e interesses, afetando assim a forma como se percebe o mundo. Esse estranhamento também pode ser visto no texto do autor Paul Valery (2015), no estudo que fez sobre Degas dança desenho, que discorre sobre a percepção tida através do desenho, “Até mesmo o objeto mais familiar a nossos olhos torna-se completamente diferente se procurarmos desenhá-lo: percebemos que o ignorávamos, que nunca o tínhamos visto realmente” (VALERY, 2015, p. 61). Valery chega a constatar que não conhecia o nariz de sua melhor amiga: Não posso tornar precisa minha percepção de uma coisa sem desenhá-la virtualmente, e não posso desenhar essa coisa sem uma atenção voluntária que transforme de forma notável o que antes eu acreditara perceber e conhecer bem. Descubro que não conhecia o que conhecia: o nariz de minha melhor amiga.... [grifo do autor] (VALERY, 2015, p. 61-62) Valery coloca “deve-se querer para ver e essa visão deliberada tem o desenho como fim e como meio simultaneamente” [grifo do autor] (VALERY, 2015, p. 61). Essa mesma relação pode ser feita com a pintura, a percepção do mundo enquanto se pinta. Fazer uma pintura a partir de observação direta de um objeto do mundo real, como no caso de Degas com as bailarinas, e talvez isso se amplie a outras formas de pintura, como quando não se está observando um objeto do mundo, ou buscando alguma semelhança com a realidade, a percepção pode ser em relação à própria pintura que se pinta, às cores, pinceladas, texturas, transparências, à plasticidade. Quanto mais se observa, mais se percebe. Mesmo tendo percebido determinada 36 característica enquanto a pinta, e mesmo que a tenha feito com aquela intenção, depois de um pouco mais de trabalho, aquele mesmo detalhe pode traz novas percepções. São percepções que tive durante meu próprio processo de pintura. No processo de produção pode-se trabalhar a percepção ou estranhamento do mundo e da própria pintura, o que também ocorre para o observador, a partir de um trabalho pronto. Apesar do estudo de Chklovski sobre o estranhamento ter relações com a teoria psicanalítica, ao envolver o conceito de inconsciente, ela se diferencia do conceito de estranho de Sigmund Freud. Em uma primeira análise, uma das diferenças do estranho de Freud em relação ao estranhamento de Chklovski está na desfamiliarização deste último, em contraponto com o “familiar” não reconhecido do primeiro. A estranheza de Freud está ligada ao assustador, enquanto que o estranhamento de Chklovski está no ordinário, ligado à percepção do mundo. O termo estranho tem uma série de variações e diferenças, algo que foi notado por Ana Maria Portugal8: De fato, encontramos em português vários derivados de estranho que permitem nuanças entre “estranho” (o esquisito, o de fora), “estranheza” (singularidade, sensação de surpresa, desconforto, desconfiança), “estranhar” e “estranhamento” (ato de distanciar-se, de censurar, de desviar de algo ou de esquivar-se), cabendo ainda os adjetivos derivados: “estranhão” e “estranhado” (Houaiss e Villar, 2001). A etimologia indica o latim: extraneus, a, um. adj. = de fora, externo, estranho (Souza, F. A., 2984) [grifo da autora] (PORTUGAL, 2006, p. 20). Pichon-Rivière (2011) coloca o que considera sinônimos de Das unheimliche em espanhol. O autor escolhe “lo siniestro” como tradução para o espanhol, mas por acreditar que não corresponde totalmente ao seu significado original, coloca diversos sinônimos: Con mayor o menor propiedad podría decirse también: truculento, horroroso, temible, espantoso, cruel, atroz, inhumano o sobrehumano, fiero, grande, excesivo, desacompasado, espeluznante, consternante, asombroso terrorífico, pasmoso, insólito, desacostumbrado, misterioso, fantástico, lúgubre, inquietante (o, como en la traducción francesa: ‘inquietante extrañeza’), etc. Cada uno de estos términos corresponde a un matiz de Unheimlich. ‘Lo siniestro’ quizá sólo tenga la única ventaja de englobar varios matices, aunque no todos; de ser un concepto con intenso tono negativo (considérense sus múltiples 8 O nome completo da autora (via Currículo Lattes) é Ana Maria Portugal Maia Saliba, porém, é referenciada aqui como Ana Maria Portugal, conforme consta na referência do livro “O vidro da palavra: estranho literatura e psicanálise” (2006). 37 antinomias con ‘diestro’), y de aceptar los diversos usos que se da a Unheimlich [grifo do autor] (PICHON-RIVIÈRE, 2011, p. 43 e 44). Algo intrigante do conceito de unheimlich, trazido por Freud, está na sua impossibilidade de tradução, como pode ser visto no português. O termo traz o aspecto de assustador em seu conceito, não conseguindo ser traduzido completamente por “estranho”, tradução de 1969, ou mesmo por “inquietante”, tradução de 2010, o qual apresenta similaridade com o termo em francês: “Há uma dificuldade em se traduzir o termo para o português, em ‘expressar o que é, ao mesmo tempo, não-familiar, contendo em si o familiar’. No francês é traduzido como ‘inquiétante étrangeté’” (PORTUGAL, 2006, p. 61). Portugal acrescenta: “‘Ange = étrange, estrange = étranger...’, escreve Paul Valéry [...], ao que Lacan acrescenta: étrange, être-ange, e nós deslizamos para lettre-ange, letra-anjo” [grifo da autora] (ibidem, p. 107). Muitos são os estudos em português que se utilizam da tradução “estranho”. Ele é mais reconhecido, mais “familiar”, em português, do que “inquietante”, e possui uma relação maior com a pesquisa, conforme será explorado no decorrer do texto. Assim, ao considerar o “estranho” como a palavra que melhor define o conceito de unheimlich em português, tendo consciência das suas diferentes traduções, a presente pesquisa adota o “estranho” para seu desenvolvimento: Pouco importa se são as imagens do sonho ou da ficção que traduzem o Unheimliche, esse real “incognoscível”, que, de maneira muito significativa, não tem tradução para outras línguas, não pode ser traduzido, ou então, ao ser traduzido, passa pelos mais variados desvios. O incognoscível, assim como o intraduzível benjaminiano, não pode ser comunicado, mas apenas representado por imagens que, através de uma infinita variedade de possíveis respostas, (co)respondem a esse núcleo inatingível, correspondendo-se mutuamente (OTTE in PORTUGAL, 2006, p. 15). 2.2 - PSICANÁLISE E ARTE A obra de Freud traz toda uma relação com as artes desde sua instauração. Os mistérios da subjetividade humana, os sonhos, as abstrações dos pensamentos, são objetos de interesse dos artistas, muito antes de Freud lançar seus primeiros livros. Talvez por isso houve uma aceitação tão imediata das teorias do inconsciente, por parte dos artistas, conforme observa Ernest Gombrich: 38 Por volta de 1900, ano em que Freud publicou A Interpretação dos Sonhos, três nomes mereciam imenso respeito entre os críticos de arte: Nietzsche, que comparava a criação artística com a intoxicação; Tolstoi, que, no livro Que é a Arte?, definiu-a como comunicação de sentimentos; e Benedetto Croce, que rechaçava toda arte como mera retórica que não conseguia ser uma expressão lírica genuína. Não é surpresa que o livro de Freud tenha causado um impacto maior em artistas e críticos, pois esses sempre estiveram inclinados a entender a obra de arte como uma expressão subjetiva e a considerar sua afinidade com o sonho. De qualquer forma, o parentesco entre o gênio e o louco foi um dos assuntos preferidos do fin de siècle [grifo do autor] (GOMBRICH, 2012, p. 191). O artista Gustav Klimt, ligado ao simbolismo e art nouveau, viveu na mesma cidade, Viena, e na mesma época que Freud, mas teria o psicanalista conhecido a obra do artista? De acordo com o documentário Andrew Graham-Dixon on Klimt9, não há evidências de que se conheceram ou se Freud conheceu seu trabalho, embora os dois compartilhassem das mesmas questões. “Klimt, assim como Freud, colocou a sexualidade no centro da experiência humana”10, tratou da forma e da psiquê feminina, do sexo e da morte como uma obsessão em seus trabalhos, afirma o apresentador. O crítico de arte Andrew Graham-Dixon, que apresenta do vídeo em homenagem a Klimt, faz a suposição de que Freud teria se interessado pela figura de Klimt, um homem que nunca se casou e, mesmo morando com a sua mãe, teve 14 filhos. Durante a pesquisa, não foi encontrada qualquer referência de Freud a Gustav Klimt ou ao seu trabalho. 9 SCHULMAN, David (diretor). Andrew Graham-Dixon (apresentador). Andrew Graham-Dixon on Klimt. Vídeo documentário. Duração 6min25s. Disponível em https://www.youtube.com/watch?v=6d- EgipwZn8. O vídeo é uma homenagem a Klimt, em virtude de uma exposição na Tate Liverpool, em 2008. Acessado em 19 de Janeiro de 2016. 10 Original: “Klimt, like Freud, placed sexuality at the heart of human experience”. https://www.youtube.com/watch?v=6d-EgipwZn8 https://www.youtube.com/watch?v=6d-EgipwZn8 39 Figura 19: Gustav Klimt. Morte e vida11. Óleo sobre tela. 178 x 198 cm. 1915. Conforme observa Noemi Moritz Kon (1996), Freud vive em pleno início do modernismo, um momento de extrema ruptura com os valores clássicos, e é nesse contexto que faz o estudo da mente ir além do que estava estabelecido. No final do século XIX, no mesmo momento em que Freud dá seus passos fundamentais na criação da psicanálise, um sentimento de inconformismo toma os artistas. Desse descontentamento com os rumos da pintura é que nasce o que chamamos hoje, genericamente, “arte moderna” e que teve na pintura, talvez, seu ícone maior (KON, 1996, p. 43) Freud não estava muito envolvido com o meio artístico de sua época, considerava os artistas modernistas, em geral, insanos, conforme podemos observar em carta enviada a Oscar Pfister em 21 de junho de 1920: Comecei a ler seu livro sobre o Expressionismo com tanto interesse quanto aversão [...]. Porque acho que o senhor deve saber que na vida real sou muito intolerante com os malucos, que só vejo neles o lado pernicioso e que, quando se trata desses ´artistas`, sou quase um 11 KLIMT, Gustav. Gustav Klimt Museum. Imagem disponível em http://www.klimt.com/en/gallery/late- works/klimt-tod-und-leben-1915.ihtml. Acessado no dia 05 de dezembro de 2016. http://www.klimt.com/en/gallery/late-works/klimt-tod-und-leben-1915.ihtml http://www.klimt.com/en/gallery/late-works/klimt-tod-und-leben-1915.ihtml 40 desses que o senhor no princípio exprobra como pequenos-burgueses e pedantes [...] (FREUD12 apud KON, 1996, p. 71 e 72). Em carta dirigida a Stefan Zweig (20/07/1938) (apud KON, 1996, p. 72), Freud conta sua mudança de impressão em relação aos surrealistas: Tenho, é claro, motivos para agradecer-lhe a apresentação que me trouxeram os visitantes de ontem. Porque até então eu me inclinava a considerar os surrealistas, que aparentemente me acolheram para santo padroeiro, como loucos arrematados (digamos, 95 por cento, como o álcool). O jovem espanhol [Salvador Dalí, nascido em 1904], entretanto, com seus ingênuos olhos de fanático e sua inegável maestria técnica, fez-me reconsiderar minha opinião. Seus gostos estavam mais voltados para as antigas estátuas gregas: Ao que parece, Freud não era afeito às inovações artísticas da Viena de sua época. Entre os gostos de Freud, um se sobressaía: sua predileção pela coleção de estatuetas antigas, romanas, gregas e egípcias, interpretada por alguns autores como sua necessidade de encontro com as origens remotas da cultura ocidental, do mundo mediterrâneo, suas próprias raízes. [...] Mas também tinha um sentido especial expresso pelo próprio Freud: “Estranhos anseios secretos afloram em mim – pelo Oriente pelo Mediterrâneo, por uma vida totalmente diferente: desejos da infância, que nunca serão realizados” (KON, 1996, p. 73) Ao utilizar o conceito de estranho de Freud, a pesquisa perpassa a psicanálise. A relação entre arte e psicanálise foi explorada por diversos autores, a começar pelo filósofo francês Jean-François Lyotard (1979). Segundo a bibliografia comentada de Stéphane Huchet (in Didi-Huberman, 1998), Lyotard analisa “questões da figurabilidade, do deslocamento, do procedimento imagético do sonho, do figural como opacidade, verdade e evento [...]” e continua: Para a Teoria da Arte, Discours-figure13 realizou, portanto, uma virada na direção do corpus freudiano, mas num nível transcendental e não unilateralmente ideológico [...]. Vários núcleos da doutrina freudiana forneceram a Lyotard um material de elaboração daquilo que ele chamava de “outro espaço”, um espaço articulado com as conquistas pós-cézannianas das vanguardas tanto plásticas quanto discursivas. (HUCHET In: DIDI-HUBERMAN, 1998, p. 16) Segundo Huchet (in DIDI-HUBERMAN, 1998), Lyotard anuncia o que mais tarde será tratado por Hubert Damisch (1984) e, seu discípulo, Georges Didi- 12 Citação retirada, segundo Kon, de: S. Freud, Correspondência de Amor e Outras Cartas (1873- 1939), 1982. 13 LYOTARD, Jean François. Discurso, figura. Barcelona: Editorial Gustavo Gilli, 1979. 41 Huberman (2012), que se dedica às “fantasias da pintura”, em La peinture incarnée14, a partir do pensamento lacaniano, com semelhanças e complementariedades ao livro de Damisch, Fenêtre jaune cadmium ou les dessous de la peinture15. Ambos são baseados em um conto de Honoré de Balzac (1799 - 1850), porém Damisch visa “aludir ao paradigma freudiano do trabalho do sonho na constituição das imagens pictóricas” (HUCHET In DIDI-HUBERMAN, 1998, p. 11), conforme será retomado no quinto capítulo. Noemi Moritz Kon observa que, em Introdução à psicanálise, Freud apresenta “um caminho de regresso que conduz a fantasia à realidade: a arte” (FREUD apud KON, 1996, p.147). A autora pensa o ato psicanalítico pelo “vértice estético”, no livro Freud e seu duplo (1996), no qual relaciona o fazer artístico e o fazer psicanalítico: Enfim o gesto do pintor, tal qual Merleau-Ponty o apresenta, é, ao meu ver, emblemático do ato psicanalítico, no sentido de que nesse gesto criador podemos ver nascer uma realidade que não terá existência a não ser por meio desse fazer. “A arte não reproduz o visível, faz visível”, disse Paul Klee em “Schöpferische Konfession”. [...] Parodiando o pintor, a psicanálise não reproduz o audível, ela faz audível (KON, 1996, p. 28-29). A intenção desta pesquisa não é a de aplicar a psicanálise à arte, nem mesmo seu oposto, mas explorar um conceito específico de sua teoria em relação às artes plásticas, partindo da prática artística. Assim, interessa observar como é vista a relação entre psicanálise e arte. Freud não coloca o que faz como tratamento ou cura, mas análise psíquica, assim psicanálise (REGNAULT, 2001, p. 36). A psicanálise aplicada se refere a terapia ao sujeito por meio da fala e da escuta, conforme observa François Regnault (2001), referindo-se a Lacan: “Conhecemos a inversão operada por Lacan em relação à perspectiva freudiana: não existe psicanálise aplicada às obras de arte”. “[...] A psicanálise só se aplica, em sentido próprio, como tratamento e, portanto, a um sujeito que fala e ouve” (apud LACAN 1958: 747). Assim, não se psicanalisa nem os mudos, nem os surdos, nem os mortos!” (REGNAULT, 2001, p.19). A psicanálise se aplica ao sujeito, não ao objeto. Logo, não se aplica a psicanálise à arte, nem mesmo para tratar o sujeito que a produz. Ou seja, um trabalho 14 DIDI-HUBERMAN, Georges. Pintura encarnada. São Paulo: Escuta, 2012. 15 DAMISCH, Hubert. Fenêtre jaune cadmium ou les dessous de la peinture (Janela amarelo cádmium ou os debaixo da pintura) Paris, Ed. Du Seuil, 1984. 42 de arte não pode ser visto, em primazia, como sintoma ou como reflexo de um distúrbio psíquico do indivíduo que o produziu. Considero um assunto importante, já que, ao ver os trabalhos onde machuco alguma parte do corpo – por exemplo, como na pintura Ocultações (figura 3) ou no vídeo Feito à mão (figura 1) – disseram-me, algumas vezes, que eu deveria fazer tratamento, pois estava com algum distúrbio psíquico. Houve, inclusive, quem me contasse de sua conversa sobre meus trabalhos em consulta, sendo a necessidade de tratamento confirmada pelo psicoterapeuta. Assim, o trabalho artístico não foi visto como um trabalho artístico, que pode trazer reflexos de seu autor de diversas formas, dentre elas de manifestações do inconsciente ou mesmo de distúrbios, o problema está em considerá-los acima de qualquer outro caráter. Mas, em geral, a arte não é vista como sintomática, do contrário a maioria dos artistas que tenho como referência teria sido internado ou estaria em tratamento. De acordo com Regnault (2001), Lacan trouxe a questão: “[...] por mais que Lacan tenha declarado, por exemplo, que Hamlet não é um caso clínico, que ele não é talvez nem histérico nem neurótico obsessivo (ou que antes é um e outro) (Lacan 1958-9, aula de 18 de março de 1959) [...]” (REGNAULT, 2001, p. 22). Para Lacan, conforme aponta Regnault, a arte poderia trazer revelações à teoria psicanalítica, fazendo o oposto, uma psicanálise que incluísse a arte, ou poderia se dizer aplicando a arte à psicanálise: “Lacan, portanto, não aplicará a psicanálise à arte nem ao artista. Mas aplicará a arte à psicanálise, pensando que, porquanto o artista preceda o psicólogo, sua arte deve fazer avançar a teoria psicanalítica” (REGNAULT, 2001, p. 20). Há indivíduos que, após diagnosticados com uma doença psíquica, acabaram desenvolvendo seu potencial artístico. Arthur Bispo do Rosário (1909-1989), teve uma visão de Cristo, acompanhado de anjos azuis, que o incumbiu de reconstruir o mundo em miniatura. Bispo dirigiu-se a um Mosteiro, apresentando-se como o escolhido, onde não foi santificado, mas encaminhado pelos padres a um hospital psiquiátrico, onde ficou internado (HIDALGO, 2009). Lá dentro realizou uma grande produção de arte, em conjunto com psicoterapia, surgindo, entre a loucura e a realidade, a arte. A arte de Bispo trazia uma produção que foi chamada de “a poética do delírio”, título do livro de Marta Dantas16, de 2009. Sua arte é vista como linguagem da esquizofrenia, 16 Referência do livro: DANTAS, Marta. Arthur Bispo do Rosário: a poética do delírio. São Paulo: UNESP, 2009. 43 conforme colocam Ana Celma Dantas Lima e Rejane Lucia Veiga Oliveira Johann (2015). Figura 20 – Arthur Bispo do Rosário, Atenção: Veneno, sem data17. O trabalho do Bispo tinha em seu processo a obsessão, expresso na repetição, na quantidade de trabalho, que trazia o bordado em sua maioria. Em casos como o dele, com produção dentro do hospital psiquiátrico, o trabalho de arte pode aparecer como uma forma de comunicação com o mundo, sendo que muitos desenvolveram seu potencial artístico enquanto internados. Trancafiado entre quatro paredes também já foram produzidas algumas das maiores obras literárias já realizadas, como 17 ROSÁRIO, Arthur Bispo do. Y&R Brasil Blog. Imagem disponível em http://yrbrasil.com.br/tag/arthur-bispo-do-rosario/. Acessado em 20 de fevereiro de 2017. http://yrbrasil.com.br/tag/arthur-bispo-do-rosario/ 44 Graciliano Ramos, “Memória de um Cárcere” [escrito em 1936-1937, publicado em 1953], ou Dante Alighieri, com “A Divina Comédia” [1304-1321]. O psiquiatra e psicanalista Enrique Pichon-Rivière (1907-1977), em seu livro El proceso creador, discorre sobre a solidão do artista e a transcendência desta: “Así el creador consigue resolver su soledad que podría paralizarlo y transciende” (PICHON- RIVIÈRE, 2011, p. 27). O autor é considerado um dos fundadores da psicologia social. Sua obra foi uma busca pelo “saber da tristeza”18 (PICHON-RIVIÈRE apud QUIROGA, 2008). Pichon-Rivière discorre sobre os esquizofrênicos, afirmando que a quantidade de pacientes internados criativos é de apenas 2%, mas que, em geral, eles têm a necessidade de se expressar e regridem a formas arcaicas de expressão, como o uso de símbolos, ornamentos, “predomínio de perfis de figuras de frente”, o que “esconde a destruição dos vínculos com o mundo” (PICHON-RIVIÈRE, 2011, p. 30). Segundo o autor, os “alienados” têm algo de pensamento mágico (ibidem). O autor analisa a tendência dos homens de superarem a angústia causada pelo “caráter sinistro" da genitália feminina, levando às fantasias da mulher fálica, tendo a aranha como símbolo (Pichon-Rivière, 2011, p. 45). Essa analogia do autor me remeteu às enormes aranhas de Louise Bourgeois (1911-2010). O trabalho de Bourgeois é extremamente simbólico, como que mostrando aspectos do inconsciente. Ela possui uma obra em série intitulada Células, que são instalações montadas em ambientes fechados, nas quais se pode observar o dentro de fora, formadas por materiais que mudam em cada célula, como a gaiola, no caso da Aranha, de 1997. 18 Fonte em espanhol: “mi búsqueda ha sido saber del hombre y en particular saber de la tristeza”, em biografia de Enrique Pichon-Rivière, publicada por Ana P. de Quiroga. Disponível em http://www.intersubjetividad.com.ar/website/articulop.asp?id=186&idioma=&idd=3. Acessado em 16 de fevereiro de 2017. http://www.intersubjetividad.com.ar/website/articulop.asp?id=186&idioma=&idd=3 45 Figura 21 - Louise Bourgeois. Aranha. 199719 Pichon-Rivière refere-se ao estranho como “sinistro” e identifica nele, em sua ocorrência enquanto experiência estética, a presença do maravilhoso: “[...] Es decir, que lo maravilloso es la elaboración, por medio de procesos mentales complejos, de la vivencia de destrucción, de muerte y de lo siniestro” (PICHON-RIVIÈRE, 2011, p. 18) O autor discorre sobre um dos elementos do estranho, a repetição, observando que a repetição do semelhante só causa estranheza em determinadas situações e identifica a “repetição involuntária”: El factor de la repetición de lo semejante provoca bajo ciertas circunstancias la sensación de lo siniestro, recordando la zozobra que acompaña a muchos sueños. Lo mismo sucede con el retorno involuntario a un mismo lugar. El factor de la repetición involuntaria es sólo lo que nos hace aparecer siniestro lo que en otras circunstancias sería inocente, imponiéndonos así la idea de lo nefasto, de lo ineludible, donde en otro caso sólo habríamos hablado de “casualidad” [grifo do autor] (PICHON-RIVIÈRE, 2011, p. 47) Para o autor, a morte é uma das situações que será sentida como sinistra na maior parte das vezes, assim como tudo relacionado a ela, como cadáveres e espíritos (PICHON-RIVIÈRE, 2011, p. 48): 19 Trabalho em exposição no Museu de Louisiana, Dinamarca. Fotografia própria em visita realizada em 31 de janeiro de 2017. 46 “Por eso dice Freud que con gran consecuencia y casi correctamente desde el punto de vista psicológico, la Edad Media atribuía todas las manifestaciones mórbidas a la influencia de los demonios, y que no se asombraría de que, para algunos, el mismo psicoanálisis fuera algo siniestro, ya que se ocupa de revelar dichas fuerzas secretas” [grifo do autor] (PICHON-RIVIÈRE, 2011, p. 49) O autor coloca que a obscuridade, a solidão e o silêncio possuem um caráter sinistro e sua origem encontra-se na infância, na angústia sofrida pela criança pequena em busca de proteção, que esta sensação nunca desaparece por completo e que “sua percepção na realidade remete às piores situações de perigo sofridas pelo homem durante sua infância”20 (PICHON-RIVIÈRE, 2011, p. 49 e 50). Pichon-Rivière vê o maravilhoso como uma superação do caráter angustiante do sinistro, em nota de rodapé coloca: Con lo siniestro, sentimiento de carácter negativo, debe relacionarse otro de carácter positivo – lo maravilloso -, antítesis del anterior, que apenas se esboza en los Cantos de Maldoror. Estos dos sentimientos, tan opuestos desde el punto de vista fenomenológico, están estrechamente relacionados dinámicamente, siendo lo maravilloso la superación de lo siniestro. Cuando el yo del sujeto es capaz de dominar ese sentimiento angustiante surge el otro como expresión de la calma y superación de la angustia. Este sentimiento de lo maravilloso se relaciona también con el éxtasis místico, que representa una aceptación de la castración, de la pasividad frente al superyó (padre = Dios) [grifo do autor] (PICHON-RIVIÈRE, 2011, p. 51) 20 Texto original em espanhol: “Su percepción en la realidad recuerda las peores situaciones de peligro sufridas por el hombre durante su infancia” 47 Figura 22 - Trabalhos de Yayoi Kusama21 Yayoi Kusama (1929) é uma artista plástica que vive voluntariamente em uma instituição psiquiátrica. A artista tem a necessidade de produzir arte para diminuir o medo que causam suas alucinações. De acordo com a jornalista Elizabeth Blair (2017), a artista conta em sua autobiografia, Infinity Net (2013), que sofre com alucinações desde a infância, como quando “violetas em um campo de repente tinham rostos e vozes parecidos com humanos” (KUSAMA apud BLAIR). Seu trabalho todo distorcido e cheio de pontos e manchas trazem a repetição de forma obsessiva e parecem ser a própria alucinação. É como se a artista tornasse suas visões reais, algo tangível que se possa tatear, ou para os outros verem o que ela vê, por meio da arte. Conforme colocado por Pichon-Rivière, o maravilhoso e o sinistro, ou estranho, são sentimentos opostos e um pode tomar o lugar do outro, pois, segundo o autor, o maravilhoso é a superação do estranho. Porém, nas artes plásticas, a sensação do 21 Na exposição ”Yayoi Kusama: Obsessão Infinita”, no Instituto Tomie Ohtake, em São Paulo. Fotografia própria em visita realizada em 2014. 48 estranho pode vir acompanhada do maravilhoso. Essa mescla pode ser mais comum por meio de um trabalho artístico ou literário, ou o prazer estético. Em situações da vida real tal mescla seria algo mais raro, pelo caráter assustador presente no estranho. No caso de Kusama, seu trabalho estaria mais ligado ao maravilhoso, mas seu processo de trabalho possui muito do estranho, como a obsessão, a repetição, as alucinações, a angústia e o medo. Pichon-Rivière discorre sobre as violentas reações causadas pela mutilação da imagem, a partir das quais o público por vezes tem o desejo de destruir os trabalhos, sendo esta uma reação de negação de uma possível mutilação de sua própria imagem. O autor relaciona o medo de ser enterrado vivo com a fantasia de voltar ao ventre materno e vê também em imagens de corpos mutilados, amputados, no grotesco, o estranho: Los miembros separados, una cabeza cortada, una mano desprendida del brazo, miembros que danzan solos, aparecen como algo siniestro, más aún si llegan a tener una actividad independiente, debiéndose este carácter a su relación con el complejo de castración. Para muchos aparece como siniestra la idea de ser enterrados vivos en estado de catalepsia, pero, como dice Freud, el psicoanálisis ha demostrado que esta terrible fantasía es sólo la transformación de otra que en su origen no tenía nada de espantoso: la fantasía de regresión al vientre materno [grifo do autor] (PICHON-RIVIÈRE, 2011, p. 49). A psicanalista e doutora em psicologia social, Noemi Moritz Kon (1996), relaciona psicanálise e criação artística em seu livro Freud e seu duplo. De acordo com João Augusto Frayze-Pereira, que introduz seu livro, a autora trata do “ato analítico que, mais amplamente, pode se traduzir na questão da criação, no problema do fazer psicanalítico pensado por meio do fazer artístico” (FRAYZE-PEREIRA in KON, 1996, p. 17). Segundo Frayze-Pereira, Kon compara o psicanalista ao pintor: Ora, como o pintor – Freud e Seu Duplo permite-nos pensar -, também o psicanalista e o poeta vivem na fascinação, isto é, entre eles e o visível-audível os papéis invertem-se inevitavelmente. Assim como o pintor circunscreve e projeta o que nele se vê, sob inspiração o poeta- psicanalista escuta-escreve o que se pensa, o que se articula nele. E tudo o que se diz neste livro [...] permite pensar o ato psicanalítico, não pelo vértice científico, como prefeririam alguns, mas pelo vértice estético – não para reduzir apressada e ingenuamente a Psicanálise à Arte, mas para fazer pensar aquele por esta (FRAYZE-PEREIRA in KON, 1996, p. 18). 49 De acordo com Noemi Moritz Kon (1996), em pensamento exposto por Freud em carta a André Breton, em 1932, Freud escolhe como seu “duplo” o escritor e médico Arthur Schnitzler, em carta de 14 de maio de 192222. Escreve Freud: Seu determinismo e seu ceticismo – que as pessoas chamam de pessimismo -, sua profunda apreensão das verdades do inconsciente e da natureza biológica do homem, o modo como o senhor desmonta as convenções sociais de nossa sociedade, a extensão em que seus pensamentos estão preocupados com a polaridade do amor e da morte, tudo isso me toca com uma estranha sensação de familiaridade (FREUD apud KON, 1996, p. 128). Essa carta serve como parte central do estudo de Kon, que relaciona o fazer artístico à prática psicanalítica, analisando dessa forma o contexto de Freud e sua relação com a arte, assim como as contribuições da arte para a psicanálise. Ao pintor e também ao psicanalista, em nossa concepção, resta essa atitude de estranhamento diante da existência que insiste incessantemente em ser recomeçada, o mistério da aparição de alguém na natureza, mistério renovado a cada vez que olhamos - o pintar torna-se emblemático também do ato psicanalítico (KON, 1996, p. 47). Noemi Moritz Kon (1996) teoriza sobre o fazer artístico, sobre a relação entre fantasia e realidade na criação artística, quando, por exemplo, refere-se ao texto de Freud: “Depois de ter apresentado o trabalho da fantasia como um processo de satisfação à margem do real, Freud aponta, em Introduction à la psychanalyse, a existência de ‘um caminho de regresso que conduz a fantasia à realidade: a arte’” (KON, 1996, p. 147). “O embate de Freud com a figura do artista torna-se, então, emblemático de sua própria atividade: Freud é um cientista-escritor, o doctor-poeta, como era apelidado A. Schnitzler, o Dichter, que apreende a força mágica das palavras” (KON, 1996, p. 201). É assim que a obra de Freud suscita o interesse dos meios artísticos e críticos, que já na época tinham a tendência de considerar a obra de arte como expressão de uma consciência subjetiva que comportava certa afinidade com as produções oníricas e que carregava em si traços das fantasias inconscientes de seu autor (KON, 1996, p. 203- 204). Kon encara a escrita de Freud como um processo de criação, conforme a própria autora coloca, no livro procurou “salientar o que se poderia denominar de 22 Carta transcrita integralmente no livro Freud e seu duplo (1996), de Noemi Moritz Kon, páginas 127-128. 50 experiência estética de Freud diante de sua escrita [...], de sua pesquisa e de sua prática” (KON, 1996, p. 31). Para a autora, foi a própria força nos escritos de Freud o que permitiu que a psicanálise existisse: A obra de Freud, sua força de literatura, nesse sentido, ampliaria a noção de verdade, ao mesclar, ou mesmo imiscuir, ficção e teoria, ao criar conceitos, tais como pulsão e realidade psíquica. Sua busca da verdade implicaria, justamente, a transmutação desse conceito e de seu próprio objetivo ao introduzir a criação, pela inauguração de uma nova inteligibilidade do homem no lugar de um desvelamento de uma verdade pronta e dada desde sempre. A psicanálise, essa fantasia científica, permite, antes, uma nova gama de verdades, ou um novo lugar para elas, gerando possibilidades, até então inusitadas, de entendimento do homem (KON, 1996, p. 53). Para Kon, Freud “fez de sua escrita um ato artístico, expressivo” (KON, 1996, p. 59), na criação de um universo regido pela linguagem, que cura pela palavra, forte como os encantamentos das bruxas: É a palavra que surge aqui com todo seu poder de criação de uma nova subjetividade. As palavras mágicas das bruxas, que haviam sido postas porta afora pela assepsia feita nas histéricas, voltam agora de forma triunfal pela linguagem do médico. As palavras deixam de ser apenas veículos de comunicação de ideias que transmitem um conhecimento já dado, mesmo que soterrado. A palavra é fundadora, cria sentido, significa; é a palavra que “cura”. O aparelho psíquico freudiano é um aparelho de linguagem; o homem não pode se pensar a não ser no mundo da linguagem. Não mais mundo das coisas que se dão para o homem, mas mundo construído por ele (KON, 1996, p. 124). Segundo a autora, “a memória torna-se, então, ato criador”, pela qual o passado não é mais visto como realidade, mas como “criação ficcional do presente” (KON, 1996, p. 116). Kon observa que “o processo de criação de Freud pode ser definido, aqui, em suas próprias palavras: ‘a sucessão de um jogo audacioso da fantasia e de uma implacável crítica em nome da realidade’” (FREUD [em carta endereçada a Fereczi, de 8 de abril de 1915] apud KON, 1996, p. 57). Assim, podemos vislumbrar a ruptura anteriormente exposta entre essas duas visões de mundo – da reflexão e da fantasia, da análise e da evasão, da dissecação e da entrega, da ciência e da intuição – que o moderno pretende acolher numa relação inédita e inesperada de intimidade (KON, 1996, p. 55) Interessante observar que, para Kon, o estranho “remete ao feminino, à onipotência dos pensamentos das crianças e dos ‘primitivos’ e ao desejo de imortalidade” (KON, 1996, p. 155). Nesses temas, a autora reconhece uma vertente 51 edipiana: “o desejo pela mãe, a impotência infantil e o impulso de alcançar algo além do que o próprio pai conquistou” (KON, 1996, p. 155). François Regnault, autor do livro Em torno do vazio (2001), realiza um estudo acerca da diferença entre Freud e Lacan, analisando alguns de seus ensaios relativos à arte. Seu texto gira em torno do vazio, espacial e simbólico, e aborda como a arte usa do imaginário para organizar esse vazio, que também é da ordem do real (REGNAULT, 2001, p. 30). Os únicos dois estudos de Freud relacionados diretamente às artes plásticas são a análise de uma lembrança de infância de Leonardo da Vinci, na qual analisa o artista partindo de seus escritos e de seus trabalhos, e a análise de uma obra, o Moisés, de Michelangelo. Por meio destas escolhas de estudo também se pode perceber seu gosto para as artes plásticas. Depois de visitar o Moisés diversas vezes, de 1901 a 1912, de acordo com Regnault: “Em 1912, de volta a Viena, Freud lê tudo o que pode sobre o assunto, se provê das obras mais próximas de sua questão, Jones lhe dá material, fontes, assim como fotografias detalhadas do Moisés de Roma. Freud retorna a Roma em 1913 e escreve a Jones” (REGNAULT, 2001, p. 125). O psicanalista se mostra inseguro de seu texto devido ao material enviado por Jones, que continha uma fotografia da estátua de Donatello, o São João, que poderia ter servido de inspiração para o Moisés de Michelangelo. Freud ficou abalado quanto à ideia de que Michelangelo pode ter tido inspiração “puramente artística”, de acordo com cartas de Jones de 30 de outubro e 8 de novembro de 1912 (REGNAULT, 2001, p. 125) E, na verdade, posso relembrar minha própria desilusão quando, durante minhas primeiras visitas a San Pietro in Vincoli, costumava sentar-me em frente à estátua, na esperança de que então a visse levantar-se sobre o pé alçado, atirar ao chão as Tábuas da Lei e dar vazão a sua ira. Nada disso aconteceu. A imagem de pedra tornava- se cada vez mais imobilizada, uma calma quase opressivamente solene dela emanava e eu era obrigado a compreender que ali estava representado algo que permaneceria imutável; que aquele Moisés ficaria sentado assim, em sua cólera, para sempre (FREUD, 2001, p. 114-115). Regnault relaciona este trecho de Freud ao conceito de angústia de Lacan, “no lugar do que esperamos, a falta, ou melhor, a falta da falta, no sentido de que esperamos uma experiência que constitua um corte, uma ruptura, a prova de uma falta, e de que é essa própria prova que é recusada. Como se o visitante esperasse ao menos um fantasma [...]” (REGNAULT, 2001, p. 127) 52 2.3 - LEONARDO E MICHELANGELO EM FREUD Freud faz uma investigação sobre Leonardo da Vinci a partir de uma lembrança de sua infância, uma visita de um abutre a ele em seu berço, que abriu sua boca e fustigou seus lábios com sua cauda (DA VINCI in FREUD, 1997 p. 32), conforme será visto mais adiante. Antes de analisar sua lembrança, Freud faz um recorrido sobre a vida de Leonardo da Vinci (1452-1510), sua forma de trabalho e sua sexualidade. Leonardo da Vinci nasceu em 1452, filho ilegítimo de Ser Piero da Vinci, que era tabelião. Seu nome descende da localidade Vinci. Ele foi educado na casa do pai, até se mudar, como aprendiz, para o estúdio de Andrea del Verrochio. Seu pai era casado com Donna Albiera e não teve filhos desse casamento. Não há relatos sobre sua mãe, Caterina (FREUD, 1997 p. 31). Freud nos conta que Leonardo era alto, belo, alegre, amável e requintado e vale a citação colocada por Freud do Trattato della Pittura: Pois seu rosto fica empoeirado em mármore, de modo que mais parece um padeiro; fica também todo salpicado de flocos de mármore que fazem com que pareça ter estado na neve – sua casa é cheia de poeira e de lascas de pedra. Quanto ao pintor, seu caso é bem diferente... pois o pintor senta-se em frente ao seu trabalho, cercado de todo o conforto. Veste-se bem e utiliza pinceis delicados e leves, que mergulha em cores lindas. Usa roupas que lhe agradam e sua casa é imaculada e repleta de belos quadros. Muitas vezes trabalha ao som de música ou, então, cercado de homens que lhe lêem trechos de obras lindas e varadas que pode ouvir prazerosamente sem barulho do martelo e outros ruídos (LUDWIG, Trattato della Pittura (1909,36), apud FREUD, 1997 p. 11). Mesmo em sua época, Leonardo já era admirado e reconhecido, ao mesmo tempo em que “começara a parecer um enigma, tal como nos parece hoje em dia” (FREUD, 1997 p. 9). Segundo Freud, Leonardo foi solitário em seu trabalho como pesquisador e isso o afastou da pintura, não se preocupando com sua finalização ou seu destino. Isso o levou a ser alvo de críticas da época, ao mesmo tempo em que havia os que o defendiam, dizendo que a inconstância era característica dos grandes artistas. A observação de um dos alunos destaca-se: “Parecia tremer o tempo todo quando se punha a pintar e, no entanto, nunca terminou nenhum trabalho que começou, sentindo 53 um tal respeito pela grandeza da arte que descobria defeitos em coisas que, aos outros, pareciam milagres”23 (FREUD, 1997 p. 13). Freud procurou demonstrar que Leonardo rejeitou sua sexualidade (FREUD, 1997 p. 17) ao não encontrar registros de desenhos eróticos ou obscenos, de fantasias sexuais, apenas anatômicos. O psicanalista conta que quando Leonardo ainda era aprendiz de Verrocchio, foi acusado de ter tido práticas homossexuais, que eram proibidas, mas foi absolvido. Depois de virar mestre, um de seus alunos, Francesco Melzi, viajou com Leonardo para a França, ficou com ele até a sua morte e foi seu herdeiro (FREUD, 1997 p. 20). O autor acha improvável que tivesse uma grande atividade sexual e, como indício disso, mostra problemas anatômicos na posição do casal e do órgão sexual feminino, em um desenho que representa o ato sexual de pé. Figura 23 - Desenho de Leonardo Da Vinci24. 23 Freud não deixa claro a referência da citação, apenas que “Solmi menciona a observação de um de seus alunos”. A suposição é que seja Edmond Solmi (1874 – 1912). 24 Imagem no livro: FREUD, 1997 p. 19. 54 Freud traça o percurso de pesquisa de Da Vinci, dos estudos de proporção e perspectiva, luz e sombra, cores, de animais, plantas e da anatomia humana, em direção aos estudos funcionas e internos, à mecânica, “até chegar ao ponto de poder escrever em seu livro, com letras enormes, sua descoberta: Il sole non si move” [o sol não se move] (FREUD, 1997 p. 25). Assim, segundo Freud, após um tempo de pesquisa e investigação da natureza, sua forma de pensamento mudou e não conseguiu mais ver o trabalho artístico isolado, encontrando problemas intermináveis em um quadro e acabando por deixá-lo inacabado: O que o interessava num quadro era, acima de tudo, um problema; e após o primeiro via inúmeros outros problemas que surgiam, como costumava acontecer com suas intermináveis e infatigáveis investigações sobre a natureza. [...] Depois de esforços exaustivos para exprimir numa obra de arte tudo o que tinha em seu pensamento com relação a ela, era forçado a desistir, deixando-a inacabada ou declarando-a incompleta (FREUD, 1997 p. 25-26). Freud coloca que o caráter pesquisador de Da Vinci teria sido reforçado pelo instinto sexual. Originalmente, na infância, seria uma força advinda das forças sexuais, substituindo, mais tarde, parte da vida sexual: “Uma pessoa desse tipo poderia, por exemplo, dedicar-se à pesquisa com o mesmo ardor com que uma outra se dedicaria ao seu amor, e seria capaz de investigar em vez de amar” (FREUD, 1997 p. 26). De acordo com o autor, o instinto sexual é uma força que pode ser direcionada não somente à atividade sexual, mas para outras áreas, sendo que a maioria das pessoas direciona parte do instinto sexual para atividade de cunho profissional. Essa força pode ser direcionada ao “instinto de investigação” ou a outros que se tornem intensos. “O instinto sexual presta-se a isso, já que é dotado de uma capacidade de sublimação: isto é, tem a capacidade de substituir seu objetivo imediato por outros desprovidos de caráter sexual e que possam ser mais altamente valorizados” (FREUD, 1997 p. 27). Freud explica que há três tipos de vertentes do “impulso de pesquisa”, “resultantes de sua relação primitiva com interesses sexuais”. O primeiro tipo, ligado à religião, tem uma inibição da curiosidade e limitação na liberdade da atividade intelectual, caracterizado pelo que chama de “inibição neurótica”. Em um segundo tipo, há uma repressão sexual na infância que se converte em uma compulsão pela pesquisa, que é: 55 [...] suficiente forte para sexualizar o próprio pensamento e colorir as operações intelectuais, com o prazer e a ansiedade característicos dos processos sexuais. Neste caso, a pesquisa torna-se uma atividade sexual, muitas vezes a única, e o sentimento que advém da intelectualização e explicação das coisas substitui a satisfação sexual; mas o caráter interminável das pesquisas infantis é também repetido no fato de que tal preocupação nunca termina e que o sentimento intelectual, tão desejado, de alcançar uma solução, torna-se cada vez mais distante (FREUD, 1997 p. 29). Já no terceiro tipo não há inibição, pois desde o início a libido é sublimada em curiosidade e se fortalece na pesquisa (FREUD, 1997 p. 29). Nesse caso há uma certa compulsão à pesquisa, que substitui a atividade sexual, mas não há a neurose compulsiva por ter havido a sublimação e não o retorno do inconsciente: “não há ligação com os complexos originais da pesquisa sexual infantil e o instinto pode agir livremente a serviço do interesse intelectual” (FREUD, 1997 p. 30). Freud categoriza Leonardo como no terceiro tipo, com “poderoso instinto de pesquisa e a atrofia de sua vida sexual” (ibidem). Freud parece fazer neste artigo uma análise de si mesmo, comparando-se a Leonardo Da Vinci. Nessas categorias de impulso à pesquisa, parece buscar compreender seu próprio impulso de pesquisa. Buscando conhecer mais sobre a vida de Leonardo, em meio aos seus textos, Freud encontra uma lembrança de sua infância: Numa passagem acerca do voo dos abutres ele se interrompe subitamente para descrever uma recordação de sua tenra infância, que lhe veio à memória ‘Parece que já era meu destino preocupar-me tão profundamente com abutres; pois guardo como uma das minhas primeiras recordações que, estando em meu berço, um abutre desceu sobre mim, abriu-me a boca com sua cauda e com ela fustigou-me repetidas vezes os lábios (DA VINCI apud FREUD, 1997 p. 32). Pelo fato dessa situação parecer tão irreal, Freud não acredita que tenha realmente acontecido, a não ser como uma fantasia de Leonardo transposta para a infância. Porém, ao mesmo tempo, acredita que considerar apenas uma fantasia seria menosprezar sua história, cometendo uma injustiça. Freud explica que a história em si é uma criação do homem, feita a partir dos vestígios da antiguidade, que mesmo com distorções representam uma realidade. O mesmo ocorre com o indivíduo, cujas lembranças, ainda que distorcidas, não devem ser desconsideradas: A despeito de todas as distorções e mal-entendidos elas ainda representam a realidade do passado: representam aquilo que um povo constrói com a experiência de seus tempos primitivos e sob a 56 influência de motivos que, poderosos em épocas passadas, ainda se fazem sentir na atualidade; e, se fosse possível, através do conhecimento de todas as forças atuantes, desfazer essas distorções, não haveria dificuldade em desvendar a verdade histórica que se esconde atrás do acervo lendário. Isto se aplica também às lembranças da infância ou às fantasias do indivíduo. O que alguém crê lembrar da infância não pode ser considerado com indiferença; como regra geral, os restos de recordações – que ele próprio não compreende – encobrem valiosos testemunhos dos traços importantes de seu desenvolvimento mental (FREUD, 1997 p. 34 e 35). Assim, uma lembrança não pode ser observada com indiferença, pois faz parte da verdade do indivíduo. Em nota, Freud se recorda da lembrança de infância de Goethe: Na história de sua vida, que Goethe escreveu aos sessenta anos (Dichtung und Wahrheit), há uma descrição nas primeiras páginas de como, incentivado pelos vizinhos, ele jogou à rua, pela janela, pequenos objetos de louça e depois outros maiores, quebrando-os em pedacinhos. A referida cena é, na verdade, a única que ele conta de sua primeira infância. [...] a ausência, nesse trecho, de qualquer referência a um irmãozinho que nasceu quando Goethe tinha 3 anos e nove meses e que morreu quando ele tinha perto de dez anos – tudo isso levou-me a intentar uma análise dessa recordação de infância (FREUD, 1997 p. 35). Então Freud estabelece uma possível conexão com a lembrança de Da Vinci, a relação com a mãe: A curta análise [“Uma Recordação de Infância em Dichtung und Wahrheit”] tornou possível reconhecer o ato de atirar a louça como sendo um ato mágico contra um intruso indesejável; [...] a intenção seria a de um triunfo sobre o fato de que um segundo irmão viesse, com o correr do tempo, perturbar sua relação íntima com sua mãe. Se as recordações mais longínquas da infância, assim disfarçadas – tanto no caso de Leonardo como no de Goethe – giram em torno da mãe, o que haveria de tão estranho nisso? (FREUD, 1997 p. 35). O sonho de Leonardo “revelaria um conteúdo erótico”. A “cauda, coda” é símbolo do órgão sexual masculino em expressões em italiano e outras línguas, observa Freud. A situação da lembrança do artista corresponderia a um ato de “fellatio”, ou sexo oral (FREUD, 1997 p. 36), o qual Freud relaciona com a amamentação. Freud então coloca que a recordação de Leonardo era do ato de sugar o seio da mãe, que foi transformado em uma “fantasia sexual passiva” e analisa o motivo da mãe ter sido substituída por um abutre na lembrança. O autor recorda os hieróglifos do antigo Egito, nos quais o abutre representava a mãe. “Os egípcios veneravam também uma Deusa-Mãe que era representada com 57 cabeça de abutre ou, então, com várias cabeças, das quais pelo menos uma era de abutre” (FREUD, 1997 p. 39). Era a deusa Mut e Freud observa a semelhança com Mutter, que significa mãe em alemão. Segundo Freud, Leonardo provavelmente não tinha conhecimento desse fato, já que o primeiro homem a decifrar os hieróglifos, François Champollion, nasceu em 1790, porém, acredita que conhecia “a fábula científica responsável por ser a figura do abutre usada para representar a ideia de mãe” (FREUD, 1997 p. 40). A fábula dizia que todos os abutres eram fêmeas, concebidas pelo vento, algo que foi amplamente divulgado pelos padres nas igrejas. Dessa forma, houve a transformação da lembrança em fantasia, que “significava que ele também havia sido uma tal cria de abutre – tinha mãe, mas não tinha pai. E essa lembrança se associava [...] com a reminiscência que podia subsistir do prazer que teria sentido sugando o seio de sua mãe” (FREUD, 1997 p. 42). Assim, Freud interpreta que essa fantasia, na qual o abutre toma o lugar da mãe, indica que Leonardo passou os primeiros anos de infância com sua mãe, que havia sido abandonada e que a criança sentia a ausência do pai (FREUD, 1997 p. 42- 43). Ser Piero da Vinci casou-se com Donna Albiera no mesmo ano em que Leonardo nasceu, a criança, poucos anos mais tarde foi morar com eles, o que só ocorreu por não terem tido filhos no casamento (ibidem, p.43). Freud relaciona a fantasia de Leonardo com a deusa egípcia Mut, a qual aparece com órgão masculino e seios, que representa uma mescla do homem e da mãe, porém não se constitui como hermafrodita, que seria uma “representação infantil do corpo materno” (FREUD, 1997 p. 50). A interpretação do próprio Leonardo sobre a lembrança do abutre comprova, para Freud, as precoces investigações sexuais que o influenciaram durante toda a vida: “Isso foi numa época em que minha curiosidade afetuosa era toda dirigida à minha mãe, e que eu pensava ter ela um órgão genital igual ao meu” (DA VINCI apud FREUD, 1997 p. 51). Interessante observar que a visão infantil do corpo materno refere-se à visão infantil masculina – já a que visão feminina sobre o corpo da mãe não seria com o órgão masculino – referindo-se a uma época em que obrigatoriamente se mamava nos seios, se não da mãe, da ama-de-leite, conforme demonstra Freud: [...] quando ainda mamávamos (“essendo io in culla”) e púnhamos em nossa boca o bico do seio de nossa mãe (ou ama-de-leite) e o sugávamos. A impressão orgânica dessa experiência – a primeira 58 fonte de prazer em nossa vida – permanece, sem dúvida, indelevelmente marcada em nós (FREUD, 1997 p. 37). Atualmente, não são todas as crianças que tem esse contato primeiro da amamentação, quando este é substituído pela mamadeira. Poder-se-ia aqui apenas imaginar como seria a visão infantil feminina do corpo do pai. Freud coloca que a fantasia do abutre tem “palavras que tão claramente sugerem a descrição de um ato sexual”, mas ao mesmo tempo a interpreta como “‘minha mãe beijou-me apaixonada e repetidamente na boca’. A fantasia surge da lembrança de ser alimentado ao seio e de ser beijado pela mãe” (FREUD, 1997 p. 62). Apesar de associar a cauda do abutre ao órgão sexual masculino e acreditar que o ser amamentado é uma situação passiva, Freud não cogita o fato de ter ocorrido um abuso sexual de um homem ao bebê Leonardo e associa o abutre à mãe e a cauda ao seio no momento da amamentação. Acredita-se que seria uma outra possibilidade de interpretação, que não consta em sua análise. Freud observa a vagareza de Leonardo na execução dos trabalhos, como exemplo da Última Ceia, a qual levou três anos pintando, e Mona Lisa, a mulher de Francesco del Giocondo, que mesmo ao pintar por quatro anos a considerou inacabada. “Muitas vezes passava horas diante de sua obra, somente analisando-a mentalmente” (FREUD, 1997 p. 14). Freud não encontra justificativa para a não finalização dos trabalhos, que considera uma inibição cujo sintoma estaria na vagareza, como um “prenúncio” de seu desinteresse pela pintura (ibidem, p. 15). Em 1493 morre sua mãe. Uma dedução do “escritor psicólogo” Merezhkovsky, feita a partir de anotações de Leonardo que lista os custos do funeral de uma mulher chamada Caterina (FREUD, 1997 p. 59). Ao investigar o quadro de Mona Lisa, encontra uma relação com sua mãe: Se as lindas cabeças de criança eram a reprodução da sua própria pessoa, como ele era na sua infância, então as mulheres sorridentes nada mais seriam senão a reprodução de sua mãe Caterina, e começamos a suspeitar a possibilidade de que esse misterioso sorriso er