T E M A S LIV R E S FR E E T H E M E S 2603 1 Departamento de Enfermagem, Faculdade de Medicina de Botucatu, Universidade Estadual Paulista. Distrito de Rubião Júnior s/n, Rubião Júnior. 18618-970 Botucatu SP. mtduarte@fmb.unesp.br 2 Departamento de Saúde Pública, Faculdade de Medicina de Botucatu, Universidade Estadual Paulista. 3 Departamento de Neurologia, Psicologia e Psiquiatria, Faculdade de Medicina de Botucatu, Universidade Estadual Paulista. 4 Departamento de Medicina Preventiva, Faculdade de Medicina, Universidade de São Paulo. Motivos do abandono do seguimento médico no cuidado a portadores de hipertensão arterial: a perspectiva do sujeito Reasons for medical follow-up dropout among patients with arterial hypertension: the patient’s perspective Resumo A hipertensão arterial é um expressivo problema de saúde pública enquanto fator de ris- co para as doenças cardiovasculares e principal grupo de causas de mortalidade no Brasil. A baixa adesão e o abandono do tratamento estão entre os principais obstáculos às estratégias individuais de controle. Estudam-se os motivos do abandono do seguimento médico em uma coorte de pacientes em tratamento de hipertensão arterial, em servi- ço de atenção primária à saúde, acompanhados por um período de quatro anos. Foram realizadas entrevistas semiestruturadas com cinquenta pes- soas com hipertensão que abandonaram o segui- mento médico. As respostas foram analisadas me- diante a técnica de análise temática de conteúdo. Os motivos relatados para o abandono do segui- mento mostraram predomínio de razões ligadas ao próprio serviço de saúde - sua organização, estrutura e a relação médico-paciente - e, ainda, tratamento em outro serviço de saúde. Razões de natureza psicossocial, como a ausência de sinto- mas, a melhora e/ou a normalização da pressão arterial e o consumo de álcool também contribu- íram para o abandono do cuidado. Estudar os motivos do abandono na perspectiva do próprio sujeito permitiu verificar a riqueza e diversidade de problemas envolvidos no cuidado requerido. Palavras-chave Hipertensão arterial, Abando- no, Atenção primária à saúde, Serviços de saúde Abstract Arterial hypertension is a relevant pub- lic health problem as it is a risk factor for cardio- vascular diseases, the major cause of mortality in Brazil. Low compliance and treatment dropout are among the main obstacles to individual con- trol strategies. This study aimed at assessing the reasons for failure in medical appointment fol- low-up among a cohort of patients under treat- ment for four years in a primary care service. Thus, semi-structured interviews were conduct- ed with 50 individuals who had dropped out of medical appointments. Statements were assessed by using thematic content analysis. The reported reasons for dropping out were most frequently related with the healthcare service itself - its or- ganization and structure, and doctor-patient re- lationship - or treatment at another healthcare service. The reasons related with the patients themselves, such as absence of symptoms, improve- ment and/or normalization of arterial hyperten- sion, as well as alcohol consumption contributed to the discontinuation of the treatment. To study the reasons for treatment dropout through the patients’ eyes showed the abundance and diversi- ty of problems involved. Key words Arterial hypertension, Dropout, Pri- mary healthcare, Healthcare service Marli Teresinha Cassamassimo Duarte 1 Antonio Pithon Cyrino 2 Ana Teresa de Abreu Ramos Cerqueira 3 Maria Ines Battistella Nemes 4 Massako Iyda 2 2604 D u ar te M T C e t a l. Introdução A elevação da pressão arterial é fator de risco independente, linear e contínuo para doença car- diovascular1 e o mais fortemente associado às doenças cerebrovasculares2. Inquéritos de base populacional3 realizados em algumas cidades do Brasil mostram preva- lência de hipertensão arterial (pressão arterial > 140/90 mmHg) variando de 22,3% a 43,9%. A hipertensão arterial (HA) é, direta ou indi- retamente, responsável pela maioria das compli- cações cardiovasculares, acarretando grande ônus à sociedade, seja por hospitalizações, inva- lidez ou mortes precoces4. No Brasil, em 2005, ocorreram mais de um bilhão de internações por doenças cardiovasculares, com custo global de R$ 1.323.775.008,283 e, em 2003, 27,4% dos óbi- tos foram decorrentes de doenças cardiovascu- lares, atingindo 37%, quando excluídos óbitos por causas mal definidas e por violência5. A ele- vada prevalência, a morbidade e mortalidade associadas e os custos sociais da hipertensão ar- terial constituem importantes problemas de saú- de pública, cujo controle figura entre as priori- dades, propostas pelo Ministério da Saúde, no Pacto pela Saúde – 2006 e na Política Nacional da Atenção Básica6. Estudos7,8 realizados desde a década de ses- senta têm demonstrado a eficácia da medicação anti-hipertensiva no controle da pressão arterial e redução da morbimortalidade associada. O tra- tamento medicamentoso tem indicações preci- sas; porém, a adoção de práticas que reduzam o consumo de sódio, o sedentarismo e a obesida- de, entre outras medidas, estão indicadas a todos os pacientes3,9. Inúmeros estudos, entretanto, têm aponta- do a enorme dificuldade vivida pelas pessoas com hipertensão para persistirem seguindo as reco- mendações médicas, com expressiva frequência de abandono do tratamento10-15. Estima-se que cerca de dois terços dos pacientes em seguimento de HA não têm seus níveis pressóricos adequa- dos devido, em grande parte, ao seguimento in- correto do tratamento medicamentoso3. Estu- dos internacionais10,11,16 e nacionais14,17-20 mos- tram grande variação nas taxas de adesão e de abandono observadas. Essa variação deve-se a vários fatores, entre eles o método de medida utilizado, o ponto de corte adotado para a defi- nição de adesão e a seleção da amostra estudada. A adesão ao seguimento, definida como o comparecimento às consultas médicas, num dado serviço de saúde, tem sido utilizada em vários estudos internacionais10,11 e nacionais18,19 como medida da adesão do paciente ao tratamento da HA. Embora se aceite que parte dos que abando- nam o seguimento podem ter optado pelo segui- mento em outros serviços, poucos trabalhos têm procurado investigar o problema21,22. Por outro lado, se reconhece que a assistência a pessoas com doenças crônicas, como a HA, o diabetes e ou- tras, requer considerar a complexidade do cui- dado (e do autocuidado) em condições de croni- cidade. Destaca-se, neste reconhecimento, a críti- ca à abordagem estritamente técnica da adesão do paciente e à restrita consideração das dificul- dades vividas em seu cotidiano23. Reconhecendo a importância de melhor compreender esses aspectos das práticas de saú- de, este estudo estabeleceu como objetivos iden- tificar as razões expostas por portadores de HA para o abandono do seguimento médico em ser- viço de atenção primária à saúde e as estratégias que empregam para o controle da hipertensão arterial. Métodos Este artigo apresenta parte dos resultados da pes- quisa “Estudo da assistência prestada aos porta- dores de hipertensão arterial em serviço de aten- ção primária à saúde” 24, cujos sujeitos compõem uma coorte que incluiu o universo de usuários, do Centro de Saúde Escola da Faculdade de Me- dicina de Botucatu, com diagnóstico de hiperten- são realizado em 1995. Os 192 pacientes que com- puseram essa coorte foram acompanhados num período compreendido entre 01/01/1995 e 31/07/ 1999. O tempo de seguimento da coorte variou de três anos e meio (pacientes com diagnóstico em dezembro de 1995) a quatro anos e meio (pacien- tes diagnosticados em janeiro de 1995). Considerou-se como abandono do segui- mento o não comparecimento à consulta médica após 180 dias da data de agendamento da mes- ma. Os pacientes foram classificados em três gru- pos - aderente, abandono/aderente e abandono -, compostos, respectivamente, por 62 indivíduos que nunca abandonaram o seguimento médico, 41 com seguimento médico irregular e 89 que haviam abandonado o seguimento médico. Os dados foram obtidos por meio de entre- vista semiestruturada orientada por roteiro pre- viamente testado. Dos 89 sujeitos em abandono de seguimento, entrevistaram-se cinquenta (56,1%), aos quais se referem os resultados apre- sentados neste artigo. Trinta e nove (43,82%) não 2605 C iência & Saúde C oletiva, 15(5):2603-2610, 2010 foram entrevistados pelas seguintes razões: não localização (32), recusa (três), falta de condições físicas (dois) e óbito (dois). As entrevistas foram realizadas pela primeira autora, de fevereiro a março de 2000, e ocorre- ram, em sua grande maioria, no domicílio do entrevistado. As informações foram anotadas à medida que iam sendo prestadas, procurando- se registrá-las literalmente. A análise temática de conteúdo foi a técnica utilizada para o tratamento das respostas dos entrevistados25. Esta modalidade de análise per- mite, segundo Blanchet e Gotman26, um recorte transversal do corpus, tendo o tema como uni- dade, desfazendo-se a singularidade do discur- so, e recortando-se o que, de uma entrevista a outra, se referir ao mesmo tema. O projeto dessa pesquisa foi aprovado pela Comissão de Ética em Pesquisa da Faculdade de Medicina de Botucatu e todos os entrevistados assinaram termo de consentimento livre e escla- recido. Resultados Caracterização dos sujeitos A maioria (62%) dos entrevistados era do sexo feminino, predominando os pacientes com sessenta anos ou mais (28%), seguidos dos que tinham idade entre quarenta e 49 anos (26%), sendo que apenas três pacientes (6%) tinham menos de trinta anos. Mais de dois terços (78%) eram casados. O nível de escolaridade predomi- nante foi o primeiro grau incompleto (64%), embora 24% tivessem o segundo grau completo ou mais anos de estudo. Com relação à posição na ocupação, o percentual de entrevistados que trabalhavam, 52%, foi discretamente maior que o dos que não trabalhavam (48%). Quanto à ocupação, observou-se inserção em vários setores produtivos, sendo que a maioria, 58%, atuava na área de prestação de serviços; 15% trabalhavam no comércio; 15%, em áreas sociais como saúde e educação, e 11%, na agri- cultura. O material empírico foi analisado buscando- se identificar e recortar referências aos motivos para o abandono do seguimento médico e estra- tégias utilizadas pelos portadores no controle da hipertensão. Motivos de abandono do seguimento médico O abandono do seguimento médico, no ser- viço de saúde em estudo, não significou, efetiva- mente, abandono de cuidado e, até mesmo, de seguimento, uma vez que 56% (28) dos entrevis- tados estavam frequentando outros serviços de saúde para o tratamento da HA. Dentre as causas relatadas para o abandono do seguimento médico no serviço investigado, predominaram as razões ligadas à própria insti- tuição - sua organização e estrutura e caracterís- ticas da relação médico-paciente -, seguidas da- quelas denominadas psicossociais, e, ainda, as relacionadas à busca de tratamento em outro serviço de saúde, à ausência de sintomas, à nor- malização da pressão arterial (PA) e à distância do domicílio ao serviço. A organização e estrutura do serviço enquan- to causas do abandono foram decorrência de di- ficuldades, incompatibilidades e insatisfações com diferentes dimensões dos serviços prestados pela instituição, dentre as quais se destacaram o inter- valo longo entre as consultas; dificuldade para agendar consulta; demora em ser atendido; ho- rário de atendimento incompatível com o do tra- balho e/ou com as ocupações diárias; mudança de médico responsável pela assistência e impossi- bilidade de acesso ao médico especialista. Alguns entrevistados relataram terem buscado tratamen- to em outros serviços de saúde motivados por esses fatores: Lá, na ocasião, estava com falta de médico. Num ano só me consultaram uma vez. Aí eu não fui mais e, também, porque demorava mui- to para ser atendida. Pedi pra minha filha me colo- car no convênio [de saúde]. (Maria de Fátima, que já frequentava outro serviço de saúde) Eu já procurei pra marcar, mas ainda não es- tavam marcando. É difícil pra marcar consulta. (Lucinda, sem seguimento médico) A relação médico-paciente foi outro motivo relatado pelos sujeitos como causa do abando- no do seguimento no serviço, expresso como se- gue: descontentamento, constrangimento ou in- satisfações, como fatores apontados para o aban- dono do seguimento na unidade, que, em alguns casos, motivaram, também, a procura por ou- tro serviço de saúde: Pela maneira como fui tra- tada dentro do consultório, da maneira como con- versou, da maneira como expôs meu corpo. [O médico me] falou:”tem mania de comer igual por- co”. O gordo não gosta de ser tratado de gordo. Per- di todo pique de continuar. (Miriam, frequentava outro serviço de saúde) 2606 D u ar te M T C e t a l. Porque ninguém se interessou pela minha dor de cabeça. Não me senti bem atendida pelo médico. (Antonia, frequentava outro serviço de saúde) Para outros entrevistados, o abandono do seguimento no serviço decorreu da saída de pro- fissional com o qual tinha confiança e boa rela- ção. Alguns deles passaram a ser atendidos pelo mesmo médico em outra instituição de saúde: Porque meu médico saiu de lá. Mudou-se. Como ele já trabalhava no hospital, eu passei a ser aten- dida lá, por ele. (Elvira, frequentava outro serviço de saúde) As razões aqui denominadas de psicossociais compreenderam motivos de caráter mais subje- tivos (como timidez, medo, falta de motivação e abuso de álcool) e objetivos (dificuldades finan- ceiras, ligadas ao trabalho e à família, limitações físicas, baixa escolaridade e mudança de cidade ou bairro). Esses foram reconhecidos tanto pelo grupo de pacientes que frequentava outro servi- ço de saúde, como também pelo grupo sem se- guimento médico: Às vezes, não tenho dinheiro pra ir no dia da consulta e, também, porque eu não sei ler, às vezes, passa o dia da consulta. (Apareci- da, que frequentava outro serviço de saúde) Porque minha filha trabalha no hospital e me leva lá. É mais fácil pra ela me levar. (Alina, fre- quentava outro serviço de saúde) Os relatos de Alina e de outros entrevistados expressaram condição bastante comum entre os idosos, que é a dependência de um acompanhante ou cuidador, limitando a sua autonomia para fre- quentarem um serviço de saúde de sua escolha. A ausência ou remissão de sintomas, bem como a normalização da pressão arterial, foram relatadas como causas para o abandono do se- guimento médico: Na minha opinião, eu não via necessidade de vir, porque nunca senti dores. Eu achei que tava bom. (Antonio Carlos, frequenta- va outro serviço de saúde) Algumas vezes até expondo a ausência de uma noção de direito à assistência: Porque eu não sin- to nada. Graças a Deus, tô bom. E a gente tando bom, tem que deixar o lugar pra quem precisa. (Carmelino, sem seguimento médico) A ausência de melhora com o tratamento foi também apontada como razão para o abando- no do seguimento médico: Porque todas as con- sultas que tirava lá era a mesma coisa. Não tinha novidade. Não via melhora. A música era quase todos os dias iguais. A gente quando vê que toma remédio e não melhora, a gente precisa ter espe- rança. (Francisca, sem seguimento médico) A procura por tratamento em outro serviço de saúde foi apresentada como causa de aban- dono e relacionada pelos entrevistados ao acesso a serviços privados por convênio de saúde; à busca por serviço mais próximo da residência e ao tra- tamento em unidade especializada, associando essas causas a uma crítica ao serviço estudado: Porque minha filha fez um convênio [de saúde] e lá é mais rápido. Os exames são feitos na hora. Numa ocasião que teve greve, eu não pude fazer os exames e fiquei mais de um ano sem ser atendida. Ia e não dava certo. Aí veio o convênio que facili- tou. (Dirce, frequentava outro serviço de saúde) Para alguns entrevistados, o consumo abu- sivo do álcool foi o motivo do abandono do se- guimento médico: Todas as vezes que comecei tra- tamento pra pressão, eu parei, por causa da bebida. (Aparecido, sem seguimento médico) Estratégias empregadas para controle da hipertensão arterial A maioria dos participantes dessa pesquisa, a despeito do abandono do seguimento no serviço estudado, empregava diferentes estratégias para o controle da PA, dentre as quais o uso da medi- cação anti-hipertensiva; realização de atividade física; adoção da recomendação dietética; verifi- cação regular da pressão arterial; uso de terapias caseiras e seguimento médico em outros serviços de saúde. Aqueles que relataram utilizar a medicação prescrita o fizeram de modo regular, irregular e esporádico. O uso regular da medicação anti- hipertensiva foi relatado por 45% (dezenove) dos entrevistados, assim caracterizados por utiliza- rem-na de modo regular (diária e ininterrupta) no momento da entrevista. A maioria desses (14%) referiu nunca ter interrompido o uso da medicação, apresentando expressões como “nun- ca parei”, “é sagrado”, “é religião pra mim”. O uso irregular da medicação foi identifica- do em 14% (sete) dos entrevistados com base em relatos de não tomada de uma das doses em um dia, interrupção por alguns dias ou abando- no de uso de parte da medicação prescrita. A utilização da medicação anti-hipertensiva era feita por 21% (nove) dos sujeitos, apenas quando havia a presença de sintomas ou eleva- ção da pressão arterial, assim manifestada: “tomo o remédio de vez em quando”, “tomo quando acho que a pressão sobe”, “tomo quando sinto alguma coisa”. O seguimento da dieta prescrita foi relatado por 28% (catorze) dos entrevistados, enquanto 60% (trinta) deles informaram que faziam alguma restrição no consumo de sal de cozinha. As associ- 2607 C iência & Saúde C oletiva, 15(5):2603-2610, 2010 ações de várias recomendações de medidas de con- trole foram relatadas, sendo as mais frequentes a restrição de sal e dieta alimentar; restrição de sal, dieta alimentar e realização de atividade física e res- trição de sal e realização de atividade física. Mais da metade (56%) dos entrevistados re- latou utilizar outros serviços de saúde para tra- tamento da HA, destacando-se, entre esses, uni- dades de natureza ambulatoriais públicas e pri- vadas. Apenas uma pessoa referiu frequentar pronto-socorro público. A verificação, regular ou esporádica, da pres- são arterial como medida de controle foi relata- da por 72% (36) dos entrevistados. Terapias ca- seiras mencionadas por alguns entrevistados fo- ram a infusão de folhas de chuchu e dentes de alho em água. Discussão Os dados aqui obtidos, bem como os relatados por Oignam et al.17, sugerem que a adesão ao seguimento médico, num dado serviço, não é expressão final da assistência utilizada pelo paci- ente, uma vez que o mesmo pode buscar outros serviços, o que, também, se aplica ao tratamento com um todo. Relatos apontando a organização e estrutura de funcionamento do serviço de saúde como motivos do abandono do seguimento médico na instituição denotaram a percepção dos pacientes das diferentes barreiras impostas pelo serviço, especialmente aquelas que restringiam o acesso ao cuidado. Dentre tais obstáculos, apontaram a mudança frequente de médico como uma das razões para o abandono do seguimento, o que limitou a continuidade do cuidado médico - con- dição essencial para o estabelecimento de vínculo e confiança -, e, consequentemente, de uma boa relação médico-paciente. Considerando que a maioria dos entrevistados trabalhava, pode-se compreender por que o horário de funcionamen- to da unidade de saúde, bem como o tempo de espera para ser atendido, foram apontados como motivos para o abandono do seguimento. Diante de dificuldades impostas pela organi- zação do serviço ou de sua relação com o médi- co, os pacientes assumiram comportamentos diferentes quanto a sua motivação para o trata- mento. Assim, alguns buscaram atendimento em outro serviço de saúde, enquanto outros ficaram sem acompanhamento médico. A influência da estrutura e organização do serviço de saúde e a qualidade da relação médi- co-paciente na adesão foram bem estabelecidas em vários estudos sobre doenças crônicas em geral, especialmente enfocando os aspectos aqui relatados27-29. A realização de tratamento em outro serviço, enquanto motivo de abandono, permitiu reco- nhecer distintas restrições de acesso ao serviço de saúde, aquelas de natureza geográfica e as relati- vas à própria organização da instituição. Como já descrito, alguns pacientes afirma- ram que abandonaram o seguimento no serviço estudado por terem acesso a serviços privados, financiados por seu convênio de saúde, ou a ser- viços de atenção secundária. Nos relatos de fre- quência aos serviços conveniados, observou-se a expressão de uma série de vantagens dessas or- ganizações, o que contrasta com as barreiras já apontadas. Os relatos que expressaram a busca de tratamento de outra condição, em serviço de atenção secundária, como motivo do abandono do seguimento, não apontaram a percepção de barreiras no atendimento do serviço estudado e, sim, maior facilidade de tratamento num único serviço de saúde. A distância entre a moradia e o serviço foi claramente relatada como um obstáculo ao se- guimento. Cohn et al.30 referem que a proximi- dade do serviço de saúde, entre outros fatores, rege a orientação de seguimentos sociais urba- nos periféricos, para a utilização de serviços de saúde. Os motivos de abandono do seguimento médico de natureza psicossocial foram classifi- cados, segundo Di Matteo e Di Nicolla27, em sub- jetivos (fatores intrapsíquicos envolvendo pen- samentos, sentimentos e atitudes) e objetivos (fa- tores ambientais correspondendo a aspectos de vida dos pacientes). Vários autores27,29 reconhe- cem que as crenças e normas subjetivas que os pacientes constroem e mantêm influenciam, subs- tancialmente, na sua adesão. Outros estudos11,31 encontraram relatos de causas semelhantes, em sua maioria, às aqui re- latadas. Caldwell et al.11 observaram, além des- sas, a falta de apoio familiar, e Florenzano et al.31 relataram número excessivo de comprimidos prescritos e duração do tratamento. Nenhuma dessas pesquisas encontrou, como motivo de abandono de seguimento, o consumo de álcool e o tratamento em outros serviços de saúde, aqui relatados. O abuso do álcool apontado como razão para o abandono do seguimento, na unidade de saúde investigada, bem como em outros servi- ços de saúde, já foi bem documentado nos tra- 2608 D u ar te M T C e t a l. balhos sobre abandono do tratamento de tuber- culose32 e a não adesão ao tratamento da aids33. Em relação às estratégias utilizadas para contro- le da hipertensão arterial, observou-se que a maio- ria dos pacientes entrevistados relatou que empre- gava uma ou mais ações para controlar a HA. A medicação anti-hipertensiva, ainda que uti- lizada de forma irregular por alguns pacientes, ou mesmo de forma esporádica por outros, foi uma das ações bastante relatadas para controle da HA, como verificado em outra investigação17. Nesse mesmo sentido, Martins34 afirma que a medicação anti-hipertensiva passa a fazer parte obrigatória do cotidiano do paciente, mesmo que as instruções médicas não sejam seguidas à risca, como no caso daqueles que a usam irregular- mente ou apenas na presença de sintomas. Pesquisa17 realizada em serviço ambulatorial público, questionando pacientes que também foram previamente classificados como em aban- dono do seguimento médico, observou que 60% dos sujeitos referiram utilizar regularmente a medicação e 10% faziam uso irregular. Uma das estratégias de controle utilizada pelos sujeitos deste estudo foi a verificação da pressão arterial, como também observado em outra inves- tigação12, na qual se identificou o automanejo dos medicamentos em função da sintomatologia per- cebida, deixando de utilizá-lo e/ou de cumprir com as recomendações e o seguimento médico. Tal aspecto é particularmente importante, uma vez que os pacientes mantêm a regularidade do tratamento medicamentoso e, até mesmo, o seguimento ou não das recomendações para mudanças no estilo de vida e do acompanha- mento médico, recorrendo à percepção de sinto- mas ou do nível da pressão arterial. As autoava- liações do nível pressórico como adequado ou normal podem ser resultado do tratamento, que, quando interpretadas como cura, provocam a interrupção da medicação, possivelmente acar- retando, em pouco tempo, o descontrole da pres- são arterial. Mais da metade (56%) das pessoas entrevis- tadas relatou que estava sendo acompanhada em outros serviços de saúde para o tratamento da HA. Dados semelhantes foram relatados por Oigman et al.17 que, com base em registros dos prontuários médicos, obtiveram uma taxa de 70% de abandono do seguimento médico, no ambulatório de HA. Porém, ao entrevistarem os pacientes inicialmente considerados em abando- no, observaram que praticamente a metade rela- tou estar em acompanhamento em outros servi- ços de saúde. Apenas cerca de um terço dos pacientes rela- tou mudanças no estilo de vida como estratégia de controle da HA. A baixa adesão ao tratamen- to não medicamentoso vem confirmar os dados da literatura que apontam menor adesão dos pacientes aos regimes de tratamento que requei- ram realização permanente de mudanças de esti- lo de vida29,35,36. Conclusão O problema do abandono do tratamento é um dos aspectos fundamentais no controle indivi- dual da hipertensão arterial, uma vez que pode comprometer sua efetividade, com consequên- cias sérias para o próprio paciente, sua família e comunidade. Constatou-se que o abandono do seguimento médico em serviço de saúde não corresponde ao abandono do tratamento, uma vez que parcela expressiva dos que deixaram de frequentar a insti- tuição estudada mantinham parte das medidas prescritas e/ou frequentavam outros serviços. Estudar os motivos do abandono na pers- pectiva do próprio sujeito permitiu verificar a riqueza e diversidade de problemas envolvidos no cuidado requerido. Os resultados alcançados mostram a necessidade de os serviços de saúde identificarem aspectos de sua organização que, ao restringirem o acesso dos usuários, limitam suas possibilidades de autocuidado. No âmbito da assistência, cabe aos profissionais orientarem suas práticas na identificação, conjunta com seus pacientes, dos diversos obstáculos presentes no cotidiano destes, bem como no apoio a seu en- frentamento. 2609 C iência & Saúde C oletiva, 15(5):2603-2610, 2010 Colaboradores MTC Duarte participou da revisão da literatura, elaboração do projeto, coleta de dados, análise dos resultados e redação final. AP Cyrino parti- cipou da revisão da literatura, elaboração do pro- jeto, análise dos resultados e redação final. ATAR Cerqueira contribuiu para a orientação metodo- lógica, análise dos resultados e redação final do artigo. MIB Nemes colaborou com a elaboração do projeto, análise dos dados e revisão do artigo. M Iyda contribuiu com a orientação do projeto e análise dos resultados. Referências Levington S, Clarke R, Oizilbash N, Peto R, Collins R, for the Prospective Studies Collaboration. 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