TÂNYA MARQUES CARDOSO TEM BARULHO NESSE EMARANHADO: ensaios sobre música, poder e subjetividade e proposição das linhas de audibilidade para análise de dispositivos sonoro-musicais ASSIS 2020 TÂNYA MARQUES CARDOSO TEM BARULHO NESSE EMARANHADO: ensaios sobre música, poder e subjetividade e proposição das linhas de audibilidade para análise de dispositivos sonoro-musicais Tese apresentada à Universidade Estadual Paulista (UNESP), Faculdade de Ciências e Letras, Assis, para a obtenção do título de Doutora em Psicologia (Área de Conhecimento: Psicologia e Sociedade) Orientador(a): Elizabeth Maria Freire de Araújo Lima Bolsista: Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior - Brasil (CAPES) - Código de Financiamento 001 ASSIS 2020 Ao assobio de Adelinda, ao falatório de José e o berrante de Juarez, ao órgão do maestro Giuseppe Todesco. Ao resfolego da sanfona de Cláudio, às histórias chistosas de Pedro, aos gritos de Maria Bela e de Miriam Magno, in memoriam. AGRADECIMENTOS Agradeço à Vida e tudo que nela Vive, na melancolia de uma “estrada branca” (Tom Jobim), na beleza da “pureza da resposta das crianças” (Gonzaguinha), à minha Orientadora, Professora Livre-docente Elizabeth Maria Freire de Araújo Lima, possuidora de incríveis técnicas e pincéis de dar contornos a pensamentos disformes ainda em elaboração, de inspiração de movimentos e passos que dão visibilidade a sons que ainda estamos improvisando e de uma verdadeira escuta companheira que dá “voz”, “da minha minha bússola [à] minha desorientação” (Caetano Veloso), às bancas de defesa - membros titulares professora Dra. Marly Chagas Oliveira Pinto, professor Dr. Guilherme Gonzaga Duarte Providello, professor Dr. Silvio Yasui e professor Dr. Gustavo Henrique Dionísio e dos membros suplentes professora Dra. Laíze Soares Guazina, professor Dr. Marcus Vinicius Machado de Almeida, professor livre-docente Hélio Rebello Cardoso Jr. e professora Dra. Cristina Amélia Luzio; e de qualificação, titulares os professores livre-docente Hélio Rebello Cardoso Jr. e Dra. Marly Chagas Oliveira Pinto e como membro suplente o professor Dr. Luiz Fernando Zanetti, pela disponibilidade de estar conosco e receber nosso trabalho, pelas importantes colaborações à tese e a minha pessoa, pelo empréstimo “da palavra poesia” (Ceumar), ao apoio da Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior - Brasil (CAPES) (Código de Financiamento 001 - processo nº 1750406), forças para “segurar esse rojão” (Chico Buarque), à toda equipe da seção de pós-graduação, pela solicitude, resolutividade e gentileza com que sempre nos tratou. Ao grupo de pesquisa/orientação que sob a batuta da maestrina Beth Lima e interpretação coreográfica de Juliana Aleixo, corporal de Juliana Araújo, pictórica de Paula Aversa, musical de Guilherme Providello, educacional de Rafael Oliveira, literária de Taís Barrenha, expressiva-mística de Lívia Pelegrini, e pelas presenças esporádicas de visitantes, amigos, familiares dos orientandos e da orientadora, tocamos um piano a 16 mãos ou talvez mais. E deu certo: a música tinha várias direções, mas ao mesmo tempo, possuía um eixo grupal, ético e afetivo comum. Aos professores Abílio da Costa-Rosa, Silvio Yasui, Fernando Teixeira Silva Filho, Alberto Ignácio da Silva, José Sterza Justo, Gustavo Dionísio, Danilo Veríssimo, Fernando Zanetti, Sônia França; meus professores durante o doutorado. A leitura e considerações zelosas sobre o projeto feitas pelo professor Dr. Rafael Oliveira Rodrigues na aula de Seminários de Pesquisa. Aos funcionários da biblioteca da Unesp na pessoa da Vânia Favato, aos concursados e terceirizados desde os vigias da entrada até os funcionários da manutenção do último prédio da FCL. A Cledione de Freitas pela revisão geral do texto, Waldir Périco pelas indicações e revisões em psicanálise; Jonas, Telles-Quésia e Eriton Oliveira pelas dicas de leitura sobre segurança do trabalho; Julianus Nunes pelas discussões sobre música; Roberto Nascimento pela estética e coreopolítica; Michel Vilalva pelas sugestões sobre síntese e português, a Juarez Marques pela ajuda na área da arquitetura, engenharia e com a impressão. Conversas com Margarida Cardoso. A turma de doutorado: Vivian, Tatiana, Camila Cuencas, Ana Flávia, Blenda, Eduardo, Hernani, Paulo, Fábio, Daniel; à Cizina, Caio Russo, Monique, Juliana Ferreira, Barbara Sinibaldi, professora Soráia G.F.P. Cruz, aos demais colegas, ex-colegas e professores dos cursos de graduação e pós-graduação e da Unesp-Assis de modo geral. Aos que contribuíram direta ou indiretamente com esse trabalho - Adelinda, José, Juarez, Carolina, Vladmir, Toxaica, Muamba, Virgulina, Iara Pinheiro, Isaac David, Olga, Cida, Mariana (Joso in memorian), Cledione, Laurico, Divino, Adriene e família, (Jerônima in memorian), Pitchula, Hannah; Cadu, Waldir Périco, Nelson de Souza Jr., Aline Cacuria, Fabiana Ribeiro e família, Jenifer Zagatti e família, Vanessa Favoni, Eduardo Atílio, Artur, Bernardo, Hugo, analistas, terapeutas e estudantes do Instituto Sage, Luciene Cavalcanti, Marv Luthier, Cíntia Carvalho e família felina, Geraldino Carneiro, Ana Cláudia Santos, Ana Luiza e mãe, Hélio Braunstein, Izabela-Lara-Bárbara-Thaís Costa- Bigata, Vivian e filhos, Pedro e Paula, Maico-primo, Joaquim, Felizardo, Naeli e Enzi, família Nascimento, Jacqueline Martiniano, Doraci, Gabriel, Adailton, Matheus Mouco, Taís Barrenha e família, Beth Lima e família, Isabela Franchini, Letícia Alves e família, Marly Chagas/AMTRJ, Ed, Brenda Alberguini, Suelen, Jaqueline (in memorian), Rosiane, João Gabriel, Maria Clara, Cida, Zé Toninho Lopes, Fernanda Catossi e Janete Massi e suas famílias; Priscila-Juliano Kanamota e filhos, Jaqueline José, Wellington Francisco, Gilmar, Silma, Túlio, Guilherme, Eliza e Lúcia. Comunidade Quilombola do Cedro. Aleskeimy Lara Turruelas, Marlene da escola, Simone da Silva e Samuel Subires, Rosana Câmara, Fabiana, Heitor, Flaviane, Agentes Comunitárias de Braúna, Priscila Stevanato, Sandra e enfermagem da UBS de Braúna; Maria, Camila, Eliane, “Buiú” e usuários do CRAS de Braúna. Douglas Magrini, Douglas e Fabiano Moreira e Sr. Bagim, Tais bailarina e família, aos amigos de Araçatuba. Companheiros da Missão Univida 2016, Letícia, Daniel Soares, Taís cabelereira, Taísa, Katiane e Kátia. Padre Eduardo Lima, população indígena da Reserva de Dourados/MS e de todo o Brasil, Brô MC’s. Douglas Rossi Ramos e família. Victor Hugo, Anderson, Miriam, Gabriel Diogo, Vitor Bruno, Lucas Bento, Cristhian Donat, Andreza, Sueli e Anderson, Tamires, Kauan Fábio, Kauany e família, Nayara, Mariana, Rosângela e família, Daniel Kerry, Emerson e Alessandra, Wesley, Diego. Seu Pedro e dona Elvira, Ronaldo, Rafaela, Cauê, Júlia, Mateus, João Marcelo, Guilherme, Alessandra Dias, Luan, Andressa, Giovanas, José, Tati. Ciro(c), Luciano, Jackson, Rogério, Ivanir, Rafael Nunes. Jenifer Zagatti, Jeferson gaitista, grupo dos Flávios, seu Agenor do violino, equipes de música da Comunidade São José de Aspásia, Nossa Senhora de Fátima e São Benedito de Urânia. Amigos de Aspásia, rapper Paulinho, Dete, todos os “Ro” e família Gonçalves; família Campos e amigos da região de Jales. Amigos professores, funcionários, estudantes e músicos da FAMA – Mineiros, UFMS de Paranaíba e da FATEC de Jales, do Coral e Oficinas de Sucata de Informática da FATEC, da Escola de Música Santa Cecília de Jales; profissionais e pacientes do CAPS, do Ambulatório de Saúde Mental de Jales, terapeuta ocupacional Soráia. Centro Cultural América e prof. Ms. doutorando Luciano Franco. Aos estudantes de flauta doce e teatro de Aspásia, professora Vera do Batata, à Escola Comunitária de Música Maestro “Padre Giuliano Todesco” de Urânia; E.E. José dos Santos, o extinto CEFAM Jales, Objetivo de Jales, aos muitos da Unesp de Assis e amigos da Unicamp de Campinas. Amigos da Musicoterapia do Rio de Janeiro, do Conservatório Brasileiro de Música do Rio de Janeiro, professoras Lia Rejane, Marly, Martha, Márcia, turma de 2017/2018; amigos de bandas e equipes de música, grupos de câmara da EMMO - Ourinhos, grupo “Sons”, bloquinho “Musicoquê”/RJ, aos momentos com a banda Matura, turma de São Paulo do Modelo Benenzon, 2019; professores e turma do Método G.I.M. de 2019. Ao vô Pe. Giuliano Todesco, à dra. Tina (Margherita Arrigoni). Aos familiares nordestinos e migrantes, os descendentes de Deolinda e família Marques/Azevedo. In memoriam de Pedro, Santa, Cláudio, Belo e Ana; Joice Bridas, Oswaldo Barbosa, Aline Campos, Paulo Henrique Crema, Márcio Renan Lemos; o nosso velho professor Abílio da Costa-Rosa. Safira, Branco de Neves, Lassie- Shake-Pimpo-Pluto-Ioiô, Toxai, Lambão, Tofica-Tovai. Minha analista e as anteriores. Às minhas professoras de piano erudito Juliane e Maria Antônia e professor Francismir, de piano popular. A todos os que são ou já foram meus pacientes e estudantes. E aos que se dão ao trabalho de ler todos os agradecimentos, posto que na verdade não é grande trabalho: é a parte mais agradável de uma tese, mas ainda assim, muito obrigada. Espero que os que me são queridos e que auxiliaram nesse processo se encontrem aqui simbolizados mesmo que não conste o nome, representados por um coletivo, instituição, situação, um gesto, uma música dedicada já que a minha memória não é “tão vasta quanto o mundo” (Drummond) e nem tão precisa quanto os sonetos. Vou confiar na recompensa divina a estas vítimas do meu olvido (com L mesmo), e na inutilidade do “cálculo das probabilidades” que “é uma pilhéria” (Bandeira), vou tirar os ouvidos (com U) do piano e estender as mãos para essa Roda Viva (Chico Buarque); para quem se identifica com ela, eu estendo minha mão porque nela “ninguém solta mão de ninguém”. Dedico: Rancho do Vale (Tião Carreiro e Pardinho), Não mexe comigo (Maria Bethânia), Ainda acho pouco (Dominguinhos), Wave, (Tom Jobim), Saudosa Maloca (Adoniran Barbosa), Louvação (Gilberto Gil), Deixa eu dizer (Cláudia), Amigos pela fé (Anjos de Resgate), Palco (Gilberto Gil), Bem simples (Roupa Nova e Ed Motta), Aquele abraço (Gilberto Gil), Nada será como antes (Beto Guedes e Milton Nascimento), Canção pra você viver mais (Pato Fu), Divina Comédia Humana (Belchior), Grande Valsa Brilhante (Chopin), Mourão (Guerra-Peixe), Toada (Boca Livre), Apanhei-te cavaquinho (Ernesto Nazareth). Quem tem ouvidos, ouça. Estribilho bíblico E como uma estranha música, o mundo começava ao seu redor. O mal estava feito. Clarice Lispector in Amor CARDOSO, Tânya Marques. Tem barulho nesse emaranhado: ensaios sobre música, poder e subjetividade e proposição das linhas de audibilidade para análise de dispositivos sonoro-musicais. 2020. 205 f. Tese (Doutorado em Psicologia). – Universidade Estadual Paulista (UNESP), Faculdade de Ciências e Letras, Assis, 2020. RESUMO A presente tese visou produzir uma análise teórico-reflexiva sobre alguns dispositivos sonoro- musicais, sua historicidade e seus desdobramentos no contexto de suas articulações com o poder e a subjetividade. A partir da cartografia das diversas linhas destes dispositivos, buscamos forjar teoricamente uma linha de audibilidade como proposição conceitual necessária para a análise dos aspectos musicais e sonoros envolvidos naqueles. Foram investigados os atravessamentos históricos, científicos e socioculturais da experiência musical e sonora do sujeito em instituições determinadas e em variados locais e períodos. No primeiro ensaio, foi estudado o método e o referencial teórico que orienta esta pesquisa, a saber, a noção de dispositivo em Foucault, Deleuze e Agamben e sua articulação com a arqueogenealogia como inspiração metodológica e com o campo das músicas e sonoridades. O segundo ensaio se propôs a pensar o uso da música nas formas de tratamento medievais e renascentistas da loucura, tal como se apresentam em uma obra foucaultiana. O terceiro ensaio realiza o debate acerca da relação entre dois dispositivos – música e linguagem – como se poderia descrever os jogos de força que se estabelecem entre eles, produzindo enunciados adotados em diversas ciências que se utilizam da música para finalidades sociais, clínicas, políticas. O quarto ensaio discute sobre a audibilidade como recurso especializado das clínicas psicoterapêuticas e musicoterapêuticas, enfatizando alguns conceitos cruciais que fundamentam a Psicanálise e algumas abordagens e práticas da Musicoterapia. O quinto ensaio trabalha a articulação entre o campo sonoro-musical e o poder na produção de subjetividades a partir de tecnologias institucionais como a panausculta, panáudio, panótico e pámphonos nos contextos do poder disciplinar e de regulação e o uso da música em contexto beligerante e de tortura no estado de exceção como governo. Por fim, sintetizamos a noção de audibilidade elaborada ao longo do texto, na tentativa de produzir considerações que melhor delimitem a dimensão de análise tecida por nós, para tornar audíveis o intensivo e o sensível como forças inaudíveis nos dispositivos. Palavras-chave: Foucault, Michel, 1926-1984; Subjetividade; Música; Musicoterapia; Poder (Controle). CARDOSO, Tânya Marques. There is noise in this tangle: essays on music, power and subjectivity and proposition of lines of audibility for the analysis of sound-musical devices. 2020. 205 f. Thesis (Doctorate in Psychology). São Paulo State University (UNESP), School of Sciences, Humanities and Languages, Assis, 2020. ABSTRACT The present thesis aimed to produce a theoretical-reflective analysis on some sound-musical devices, their historicity and their consequences in the context of their articulations with power and subjectivity. From the cartography of the different lines of these devices, we seek to theoretically forge a line of audibility as a necessary conceptual proposition for the analysis of the musical and sound aspects involved in those. The historical, scientific and socio- cultural crossings of the subject's musical and sound experience were investigated in specific institutions and in different places and periods. In the first essay, the method and the theoretical framework that guides this research were studied, namely, the notion of device in Foucault, Deleuze and Agamben and its articulation with archeogenealogy as methodological inspiration and with the field of music and sounds. The second essay set out to think about the use of music in the medieval and Renaissance forms of treatment of madness, as they appear in a Foucauldian work. The third essay discusses the relationship between two devices - music and language - how one could describe the power games that are established between them, producing statements adopted in various sciences that use music for social, clinical, political purposes. The fourth essay discusses audibility as a specialized resource of psychotherapeutic and music therapy clinics, emphasizing some crucial concepts that underlie Psychoanalysis and some approaches and practices of Music Therapy. The fifth essay works on the articulation between the sound-musical field and power in the production of subjectivities based on institutional technologies such as panausculta, panáudio, panotic and pámphonos in the contexts of disciplinary power and regulation and the use of music in a belligerent context and of torture in the state of emergency as a government. Finally, we synthesize the notion of audibility elaborated throughout the text, in an attempt to produce considerations that better delimit the dimension of analysis woven by us, to make the intensive and the sensitive audible as inaudible forces in the devices. Keywords: Foucault, Michel, 1926-1984; Subjectivity, Music; Music Therapy, Power (Control). LISTA DE FIGURAS Figura 1. Ilustração do Prólogo do poema de Sebastian Brant.................................................49 Figura 2. Ilustração do Capítulo “Não aceitar críticas”, do poema de Sebastian Brant............51 Figura 3. Stultifera navis de Hieronymus.Bosch ...................................................................... 52 Figura 4. Paciente em estado hipnótico facilitado pelo som de instrumento percussivo, século XIX............................................................................................................................................61 Figura 5: Hugo Van der Goes exposto ao canto em coro como tratamento para a melancolia..................................................................................................................................65 Figura 6: Um sujeito internado toca violino no Hospital Bethlehem, em Londres...................66 Figura 7. Cassandra’s Dream – Song Flute, de Brian Ferneyhough ........................................ 83 Figura 8. Trecho de “Unity Capsule for Solo Flute - 1,2 moviment”, peça para flauta e voz, de Brian Ferneyhough ................................................................................................................... 84 Figura 9. Trechos da partitura de “La Terre est Un Homme”, de Brian Ferneyhough ............ 85 Figura 10. Trecho de uma valsa de Yamasaki Atushi ............................................................ 887 Figura 11. Cópia do mandado de desocupação de escola em Brasília e autorização de práticas de restrição à habitualidade do local – Página 1. .................................................................... 153 Figura 12. Cópia do mandado de desocupação de escola em Brasília e autorização de práticas de restrição à habitualidade do local – Página 2. .................................................................... 154 LISTA DE TABELAS Tabela 1. Levantamento de termos afins à música na obra “História da Loucura” de Michel Foucault. ................................................................................................................................... 48 Tabela 2. Os dois níveis de biopoder ........................................................................................ 25 LISTA DE ABREVIATURAS E SIGLAS ABNT Associação Brasileira de Normas Técnicas AMTRJ Associação de Musicoterapia do Estado do Rio de Janeiro BBC British Broadcasting Corporation BPM Batidas por minuto CD Compact Disc Read-Only Memory CEPCT/RJ Comitê Estadual para a Prevenção e Combate à Tortura do Rio de Janeiro CETESB Companhia de Tecnologia de Saneamento Ambiental do Estado de São Paulo (mudou para Companhia Ambiental do Estado de São Paulo). CID 10 Classificação Internacional de Doenças CRAS Centro de Referência de Assistência Social dB Decibel ECA Estatuto da Criança e do Adolescente EPI Equipamento de Proteção Individual ENEM Exame Nacional do Ensino Médio G.I.M. Bonny Method - Guided Imagery Music INEP Instituto Nacional de Estudos e Pesquisas Educacionais Anísio Teixeira LRAD Long Range Acoustic Device NBR Norma Brasileira NHO Norma de Higiene Ocupacional NR Norma Regulamentar OPCAT Protocolo Facultativo das Nações Unidas para Prevenção à Tortura PEC Proposta de Emenda à Constituição PPRA Programa de Prevenção de Riscos Ambientais RAP Rhythm and Poetry RPb Reforma Psiquiátrica brasileira SUS Sistema Único de Saúde UTI Unidade de Tratamento Intensivo SUMÁRIO INTRODUÇÃO ...................................................................................................................... 15 Referências Bibliográficas .................................................................................................. 23 ENSAIO 1: A MÚSICA COMO DADO SOCIAL NO CAMPO DAS SUBJETIVIDADES: mapa dispositivo, caminho arqueogenealógico ............................... 25 1. Caminhos cruzados: o dispositivo e a arqueogenealogia, para pesquisar música- subjetividade ........................................................................................................................ 29 2. A autofuncionalidade do dispositivo: subjetivação, dessubjetivação e as playlists ... 33 3. Da sagração à profanação como contradispositivo: a recepção da audição .............. 37 4. Considerações finais ....................................................................................................... 40 Bibliografia consultada ....................................................................................................... 44 ENSAIO 2: MÚSICA, CURA E TRATAMENTO: linhas de visibilidade e de enunciação da relação música-subjetividade em “história da loucura” de Michel Foucault .............. 47 1. As palavras ...................................................................................................................... 48 2. Linhas de visibilidade ..................................................................................................... 49 2.1. Música e loucura entre o sagrado e a profanação .................................................... 49 3. Linhas de enunciados ...................................................................................................... 53 3.1. Música e cura do corpo e alma .................................................................................. 53 3.2. A música combinada aos princípios de tratamento ................................................... 58 4. Considerações finais ....................................................................................................... 66 Referências Bibliográficas .................................................................................................. 68 ENSAIO 3: MÚSICA E LINGUAGEM: uma relação entre dispositivos a partir de linhas de enunciados cartografadas do campo musical e musicoterapêutico ................... 71 1. Dois dispositivos em relação: música e linguagem ....................................................... 74 2. Dinâmicas da relação de força entre música e linguagem .......................................... 77 2.1. As relações de forças na “unidade” escrita musical .................................................... 82 2.2. As relações de força na “unidade” canção ................................................................... 89 3. Dinâmicas das relações de força entre música e palavra ............................................ 93 4. Considerações finais ....................................................................................................... 96 Referências Bibliográficas .................................................................................................. 97 ENSAIO 4: ENSAIO 4: A AUDIBILIDADE COMO PROCEDIMENTO CLÍNICO: a produção sensível de uma escuta ......................................................................................... 103 1. A estetização da escuta do musicoterapeuta e da escuta de si do sujeito do inconsciente ........................................................................................................................ 108 1.1. A associação livre .................................................................................................... 108 1.2. A atenção flutuante................................................................................................... 113 2. Considerações finais ..................................................................................................... 116 Referências Bibliográficas ................................................................................................ 117 ENSAIO 5. AUDIBILIDADE E PODER: o sonoro-musical nos processos da disciplina, regulação e do estado de exceção como governo ................................................................ 121 1. Uma síntese sobre a questão do poder ........................................................................ 124 1.1. Do panóptico à panausculta: tecnologias de vigilância acústica............................ 126 1.2. Audibilidades adestradas: o disciplinamento do ouvido em instituições totais....... 130 1.3. Biopolíticas de regulação do ouvido: da vontade de ouvir à obediência voluntária para manutenção do corpo-espécie ................................................................................ 133 1.4. Dispositivos sonoro-musicais nas instituições: o panáudio, o panótico e o pámphónos ...................................................................................................................... 139 2. Violência e poder no estado de exceção: o caso da Primavera Secundarista .......... 149 3. A música como arma e como tortura .......................................................................... 156 4. Considerações finais ou como dormir com esse barulho ........................................... 162 Bibliografia consultada ..................................................................................................... 165 CONSIDERAÇÕES SOBRE AS LINHAS DE AUDIBILIDADE: da audição como condição humana aos processos de construção de escutas ............................................... 172 1. Primeira consideração .................................................................................................. 174 2. Segunda consideração ................................................................................................... 175 3. Terceira consideração ................................................................................................... 176 4. Quarta consideração ..................................................................................................... 177 Referências Bibliográficas ................................................................................................ 177 APÊNDICE ........................................................................................................................... 179 15 INTRODUÇÃO É fácil, para muitas pessoas, compartilhar da musicalidade do mundo. Acompanhar um bloco de carnaval em marcha, receber um grupo de folia de reis que bate à porta pedindo prendas, aumentar o volume do rádio para de uma música que parece agradável. São gestos não apenas “fáceis demais” (FOUCAULT, 2010)1: produzem emoções de imediato, sensação de comunhão e pertença cultural entre pessoas que não se conhecem, enfim, são tão festivos e naturais que chega a ser uma ideia “empedernida e cruel”2 pensar músicas como problema. No entanto, não se pode esquecer que de forma insensível, por vezes brutal, também se tomam as produções e criações musicais e sonoras como objetos, não de reflexão, mas para práticas de consumo e produção em série, para influência social e até tortura humana. Pode-se fechar os olhos para isso, mas não os ouvidos não se fecham. O desejo de buscar pensamentos sobre músicas e sonoridades como problemáticos, tentando me esquivar da idealização do objeto e de um saber total que explicasse e gerenciasse as relações entre pessoas e músicas, é o que impulsionou esses presentes escritos3. Como problema, entende-se aquilo que é captado por indivíduos em suas práticas discursivas e não-discursivas cotidianas que promovem indagações e deslocamentos a uma ideia tida como óbvia, investindo nela como enigma a ser pensado. E problematização seria uma maneira de analisar os alcances gerais e até anônimos de um objeto, constituído em certo jogo de forças entre falso e verdadeiro, conforme referência ao filósofo francês, Michel Foucault, autor que serviu de referencial teórico desta pesquisa4, juntamente com minha práxis e as cartografias relativas as interfaces música-musicoterapia-saúde-subjetividade. O que se dá entre músicas e subjetividades naquilo que se dá a ouvir, a ver e a falar em diversos contextos sociais e históricos foi objetivo de interesse geral para esta pesquisa. A Musicoterapia realiza na prática o que nessa pesquisa se faz teoricamente: tomar música como problema em relação ao humano, operacionalizada para certos objetivos. Há teorias e técnicas musicoterápicas que advertem que música e fazer musical não são curativos por si só, como já foram consideradas pela farmacopeia musical e meloterapia de séculos passados5, reeditadas em alguns discursos contemporâneos. São antes, acontecimentos que 1 “Fazer a crítica é tornar difíceis os gestos fáceis demais” (FOUCAULT, 2010). 2 Vf. discurso final de Charles Chaplin em “O Grande Ditador”, 1940. 3 Pesquisa financiada pela bolsa de doutorado da CAPES no país. Ligada aos grupos de pesquisa “Deleuze/Guattari e Foucault: elos e ressonâncias” e “Saúde Mental e Saúde Coletiva”, cadastrados no CNPq. 4 Cf. Discussões de Eduardo Restrepo e Christian Fernando Ribeiro Guimarães Vinci. 5 Temas estudados em nossa dissertação de mestrado, intitulada A que(m) serve a música na Reforma Psiquiátrica brasileira? (CARDOSO, 2014). 16 ocorrem sempre em alguma relação, variável da mais específica e atual até a mais geral e historicamente remota. Sendo assim, a música como objeto prático-problemático para a musicoterapia, e analogamente, epistêmico-problemático para a pesquisa teórica está, por condição, em relação a algo ou alguém, interessando a nós, subjetividades e práticas constituídas nesse entremeio. Esta condicionalidade nos permite pensar a música e sua extensão ao sonoro como formação histórica, conforme os estudos deleuzeanos da obra de Foucault, que se insere na lógica da noção de dispositivo. Aqui, pretendi pensar alguns dispositivos musicais e sonoros, estabelecendo aproximações entre a perspectiva arqueogenealógica como fundamentação teórica. Pela pluralidade de linhas e das direções que os vetores destes dispositivos tomam, optei pela escrita que se inspira na forma ensaística que confere tanto interdependência aos capítulos, associada aos desdobramentos dos objetivos específicos deste trabalho, quanto a autonomia necessária para se descrever linhas em constante movimento, cruzamento, bifurcação. Ensaios são escritos autônomos entre si, mas que possuem um rastro comum; é uma forma de fazer ciência que não exclui a experiência sensível e a criação, permitindo abertura ao pensamento sem fechar a experiência da escrita à pura objetividade positivista (COSTA, 2016). Eles formam um conjunto no qual a tese principal se construiu, a partir de discussões que se dirigiram a diferentes problemáticas que a relação música-subjetividade institui. Estes ensaios se propuseram o máximo de brevidade na exposição, tentando estabelecer relações temáticas entre si e com o objetivo geral da presente pesquisa, o que permitirá organizar a ordem dos ensaios por temas. Cada ensaio possui seu próprio arquivo, de obra única ou de um conjunto delimitado por tema, mantendo em comum a cartografia das linhas e dos aspectos relativos ao poder, a subjetividade e sua ligação com o musical e o sonoro do dispositivo referido, na busca por caracterizar aspectos específicos das linhas de audibilidade. Entretanto, reiteramos que estes ensaios possuem uma relação de conjunto, transmitindo a ideia de audibilidade que pretendeu ganhar consistência durante o processo de produção e leitura deste texto. Todo saber é uma produção que possui uma história. A deste trabalho dá continuidade a práticas e leituras, levantamentos e questões advindas de diferentes práxis em que utilizei músicas na última década. No campo das terapêuticas, tive experiências nas Psicologias Clínica e Social operacionalizando Oficinas de Música como tecnologia de Atenção Psicossocial. Atualmente, também nas Musicoterapias Social e Comunitária e em Saúde Mental, realizei atendimentos de grupos de crianças e adolescentes nos mais diversos contextos institucionais e de adultos usuários de serviços ambulatoriais e substitutivos aos 17 manicômios. No campo da educação, minha atuação como professora de cursos livres em música, em musicalização terapêutica6 e no campo do fazer artístico como ouvinte e musicista em formação livre promoveram interrogações. Minhas investigações anteriores se dirigiram, primeiramente, à música e sua relação com os modos de subjetivação, fundamentada em teóricos franceses contemporâneos como Félix Guattari, Gilles Deleuze e Michel Foucault. Foram seguidas por um levantamento acerca das práticas musicais em Saúde Mental nas instituições ligadas à Reforma Psiquiátrica brasileira permitiu outros esboços da ideia que agora ganha corpo, nessa tese7. Nas teorizações primeiras (CARDOSO, 2009), no Platô do Rizoma (DELEUZE e GUATTARI, 1995), encontrei a estreita ligação entre um constructo filosófico e a música, por meio do conceito de ritornelo e seus diversos desdobramentos. A inventividade do pensamento dos filósofos da diferença está na associação de conceitos que os afetam para criar sua filosofia: como uma raiz de planta pode se associar à música, para pensar as subjetividades no contemporâneo? Articulei subjetividade com as noções de biopolítica de Michel Foucault e de biopotência de Peter Pal Pelbart, para discutir a escuta musical rizomática. A partir dessa leitura de Guattari e Deleuze, a música teria certos aspectos rizomáticos que singularizam o encontro entre a experiência musical e os modos de subjetivação insertos numa realidade biopolítica. Dentre esses aspectos rizomáticos da música, temos os de caráter extrínseco e intrínseco (CARDOSO JR., 2005; CARDOSO, 2009). Os caracteres extrínsecos remetem à relação música-subjetividade, porém os modos de subjetivação ganham mais força na medida em que a música opera na produção destes modos. Já os caracteres intrínsecos sugerem maior ligação com o caosmos e os processos existenciais e coletivos que a música tem condições de dar passagem. Sendo assim, os caracteres rizomáticos da música expressam a relação música- subjetividade, tanto na maneira como se dá o acontecimento musical que manifesta sua potência na subjetividade quanto o contrário. Já que música e subjetividade, na lógica do rizoma, estão intensamente conectadas, sabe-se também que o encontro dessas forças cria mundos e o desencontro os inviabiliza. A experiência e fruição musical, a não-percepção da paisagem sonora e a escuta são algumas das possíveis linhas que se produz no cruzamento entre esses vetores de força. Por conseguinte, pensar conceitualmente a relação música- 6 Vf. obra de Ana Sheila Tangarife e/ou Ana Sheila M. de Uricoechea. 7 Ligado aos processos nº 2011/16633-7 – bolsa de Mestrado no país, de 01/03/2012 a 31/10/2013, sob orientação de Elizabeth Maria Freire de Araújo Lima – e Processo nº 2008/10911-2 – Iniciação Científica, de 01/02/2009 a 31/12/2009, orientada por Hélio Rebello Cardoso Jr, sendo ambos orientadores, figuras representativas e inspiradoras para continuidade de nosso trabalho acadêmico. 18 subjetividade exigiu traçar alguns modos de como se dá a experiência musical em suas características. Os caracteres rizomáticos extrínsecos à música compreendem: 1. A música como pensamento das sensações, em que o estímulo sonoro como arte não possui conceitos, mas produz pensamento que atravessa os afetos, processo com potência afirmativa para a vida (DELEUZE e GUATTARI, 1997; CARDOSO JR., 2005). Na música, pensamento e sensação não estão numa relação hierarquizada, ambas possuem virtualidade e potência para a reflexão e para intensidades. 2. A ausência de modelos na música, em que a música e a escuta não possui modos pré- definidos de experimentação, a sensação que a música produz independe de quem a experimenta e isso amplia o alcance da música com relação à fruição subjetiva dos sujeitos a quem ela é oferecida (id.). Isso também poderia remeter à ausência de modelos individuais de escuta e experimentação sonora, no sentido de ultrapassagem da identidade, evocando a alteridade. 3. A definição de acordes como sensações, mesmo consonantes ou dissonantes, que se autoconservam pela sua sustentação, sob a perfeição ou imperfeição sonora (id.). Os acordes apresentariam modos de expressividades dos afetos, por suas características harmônicas e de duração na música, que dão base para o trabalho melódico que geralmente é mais fugaz e ligeiro, comparativamente ao acorde. Introduz-se certa ruptura com os parâmetros da música e da escuta ocidental, que em geral, se definem pela marcante ênfase na melodia em detrimento do pulso (WISNIK, 1999). Já os caracteres rizomáticos intrínsecos à música incluem: 1. A captação de forças inaudíveis, que permite o encontro da música com as forças do universo, a captação de suas forças cósmicas, fazendo com que seja possível ir além dada opinião e da repetição do mesmo (DELEUZE, GUATTARI, 1997; CARDOSO JR., 2005). Desse modo, a música tem condições de captar forças que a linguagem não capta, ao “dizer” aquilo que não é enunciável e nem reproduzível. 2. A multisensorialidade da música, que admite diversos sentidos que podem ser atribuídos à música para além da audição, não limita a fruição musical apenas pelo sentido da escuta (id.), como é o caso de algumas composições e algumas escutas-compositoras, que veem a cor e a textura do som dentre outras sensações. 3. O ritornelo é um agenciamento territorial, que possibilita ouvir as forças não-audíveis do universo (id.). Este conceito foi amplamente estudado por diversos pesquisadores da música na obra de Guatarri e Deleuze, como Ferraz (2002; 2004), Obici (2006), Bogue (2003) e diversos outros. 19 O rizoma se apresentaria como um sistema aberto que se faz a partir de suas circunstâncias de crescimento, capaz de fazer alianças e ir se inventando. A música, pensada por intermédio do conceito de rizoma, portanto, é uma expressão ou pensamento, podendo fazer circular afeto para qualquer lugar, afetar subjetividades das mais variadas formas e intensidades e fazer com que a música não se limite à reprodução de sons ou fazer ouvir sonoridades já existentes. Ela seria também capaz de “captar forças não audíveis do universo” (CARDOSO JR., 2005, p. 02, grifos nosso/do autor). Isso representa uma capacidade própria da música de produzir novos modos de subjetivação, sendo a música um constante vir-a-ser, que permite um raro ato de criação e de indisciplina aos códigos em sobrecodificação (RIBEIRO, 2008). Esse ato criativo em música dar-se-ia por uma “escuta compositora” (CARDOSO, 2009), análoga ao rizoma, conseguindo ir além do deciframento e significação que geralmente direciona a experiência musical. O que é rizomático, portanto, não é um estilo de composição musical, mas antes é isto: a experiência singularizada que o sujeito pode ter com a música, pela audição ou por outras formas. Nesse sentido, a música é capaz de captar forças inaudíveis do universo e demonstrar que, a partir desse conceito, não há fronteira entre música e processos de subjetivação (CARDOSO, 2009). Isso dinamiza a noção de música para se pensar em músicas, ir além da forma ou conteúdo pré-concebidos, provocando rupturas nas racionalidades que tentam definir “que música seria essa, capaz de tornar audíveis forças inaudíveis”. As composições citadas por Guattari e Deleuze, de Pierre Boulez e Edgar Varèse por exemplo, são, por vezes, tomadas por seus comentadores como exemplares do que os referidos filósofos entendem como músicas rizomáticas. O problema desse exercício é tentar caracterizar pela música aquilo que não está somente nela, mas no seu encontro com o sujeito-ouvinte, sendo ele atravessado ainda pelo contexto social, econômico, pela história. Tornar visível e enunciável o que foi uma força audível requer considerar toda multiplicidade caósmica que foi levada a um plano inteligível, para efeitos de conceituação, não de definição. Se as obras desses compositores são capazes de tornar audíveis o conceito desenvolvido pelos autores, elas o fazem pela experiência de captação de forças audíveis e inaudíveis que esses autores vivenciaram. Mas o que são essas “forças audíveis” e como elas se exercem? Permeada por novos objetos de pesquisa e perspectivas de trabalho8, desdobrei essa questão na associação entre música e processos de subjetivação dentro de algumas estratégias 8 Em especial, o trabalho como Musicoterapeuta, o estágio e a formação na área no Conservatório Brasileiro de Música do Rio de Janeiro nos permitiram não apenas realizar parcerias e ampliar horizontes musicais e 20 e práticas em Saúde Mental (CARDOSO, 2014). Ciências como a psicologia, a psiquiatria e a musicoterapia, esta última como ciência especializada na relação música-sujeito, promoveriam algumas práticas disciplinares e de controle, mas também de criação e resistência através do uso das artes (LIMA, 2009). A investigação, em que utilizei de um método de inspiração arqueogenealógica, localizou na história o tempo e o espaço onde ocorreram diversos jogos de força: o uso da música em hospícios, momento anterior à Reforma Psiquiátrica brasileira (RPb). No início do século XX, em que ocorreu o fortalecimento do discurso da higiene mental e crescimento dos manicômios brasileiros, ganhou força também um discurso que defendia certos tipos de música como mais salutares que outros (CARDOSO; LIMA, 2016). Isso legitimou saberes para o estabelecimento de certas sonoridades, como produtoras de saúde e cura. Já no final do século XX e início do século XXI, ocorreu um processo de recuperação de práticas musicais antigas e atualização destas para aplicação nos novos serviços de Saúde Mental, a partir do processo de fechamento dos manicômios por meio da Luta Antimanicomial e da Reforma Psiquiátrica. Antes consideradas práticas alternativas da medicina no século XIX e XX, a meloterapia e a farmacopeia musical dão lugar a práticas instituídas por leis de Estado e por políticas especializadas da RPb (CARDOSO, 2014). Bandas, grupos musicais, corais, trabalhos solos, oficinas sonoras e musicais, atividades de musicoterapia, experiências de rádios e blocos carnavalescos foram encontrados como experiências musicais associadas à RPb (id.). Os processos sociais que realizaram usos diversos da música na saúde mental produziram efeitos na relação música-subjetividade. Nesse caso, a música adquiriu variadas funções como educativo-pedagógicas, expressivas e estéticas, terapêuticas, sociabilizantes; funções essas que podem se dirigir tanto para o controle quanto para a resistência à biopolítica. E os sujeitos construíram para si outras posições na música e no mundo: músicos, cantores, compositores, produtores musicais, lo(u)cutores de rádio, coletivos carnavalescos etc; os que outrora encontravam-se cristalizados no lugar da loucura. Como os dados encontrados nessa pesquisa são experiências vivas e sonoras, estudadas por inúmeros teóricos mas também vividas por sujeitos, foi necessário dar audibilidade a essas músicas por meio de apresentação musical e gravação de CD. A apresentação da banda LokoNaBoa9 tornou humano, vivo e audível os modos de viver e de se expressar musicalmente nos mundos que estavam sendo estudados. Também foi necessário profissionais, como também, nos deixaram relevantes impressões das vivências e estudos com colegas e professoras e indagações que aparecem nos interstícios deste trabalho 9 Agradecimentos especiais aos integrantes da Banda LokoNaBoa, pela apresentação musical em ocasião da defesa da dissertação de mestrado, em 2014, na sala de congregação da UNESP – FCL – Assis/SP. 21 construir um arquivo sonoro, o anexo audível10, para dar corpo a existência sonora daquilo que na pesquisa se mostrou como discurso. Forjei então o conceito de linha de audibilidade para nomear aquilo que se fez ouvir como questão11: existiria um regime de audibilidade, que poderia ser proposto para teorização e contribuir com a noção de dispositivo? Essa indagação e a outra anteriormente levantada - que são “forças audíveis” e de que maneira são exercidas? - resultantes dos estudos descritos, são basilares para nós. Propor e fundamentar a existência de forças audíveis e inaudíveis em regimes de audibilidade, cartografando linhas de dispositivos sonoro-musicais foi o objetivo geral desse trabalho. Supõe-se que a experiência com músicas e sonoridades seja um acontecimento inescapável para o sujeito. Pela escuta, pelas vibrações sentidas na pele, pelas invocações e evocações que são suscitadas em infinitas possibilidades de experiências, se manifesta uma dimensão de audibilidade. Quando a música e as sonoridades atravessam os objetos e os corpos e se produzem neles, provocando diversos modos de subjetivação pelo seu ritmo e outros elementos da música e propriedades do som, o audível corporifica-se. Mesmo quando as sonoridades aparentemente são “inaudíveis”, ou não provocam nada sensorial e objetivamente “audível” – captável por uma percepção atentiva12 – parecem ainda exercer certo controle da paisagem sonora e manter certo estado de coisas ou, ao contrário, suscitar movimentos de rupturas e de criação. Por isso, a necessidade de localizar os jogos de forças entre o audível e inaudível, a audibilidade e as demais linhas do dispositivo, a saber, de enunciabilidade, visibilidade e subjetivação. Para articular o problema de pesquisa aos diversos campos que emergem dele, campos estes capazes de tornar audíveis os enunciados e visibilidades das questões (bio)políticas da música no contexto social e das subjetividades, parti da seleção de arquivos bibliográficos. Tanto os campos como os arquivos relativos a eles foram escolhidos de maneira singularizada e contextual, para construção de análises localizadas histórica e institucionalmente, capazes de tornar enunciável e visível o problema da audibilidade e da escuta musical. A intenção foi estabelecer uma discussão teórico-conceitual a partir desses regimes de audibilidade que se mostravam pertinentes. Pretendi, ainda, contribuir para as especificidades da relação entre músicas e subjetividades em diferentes contextos sociais, operacionalizados nos dispositivos descritos. 10 O anexo audível encontra-se disponível em forma de playlist em https://www.youtube.com/watch?v=RfpxLhpQWTI&list=PL_f7GSibML4yq8P0rkj2OEO9y4H-XEWF1, com acréscimos de outras experiências em atualização. 11 A partir das ricas indicações dos professores Hélio Rebello Cardoso Jr. e Marcus Vinicius Machado de Almeida na banca, Cardoso Jr. sugeriu que a linha de audibilidade deveria ser conceituada. 12 Contribuição de Pedro Henrique Santos Decanini Marangoni. https://www.youtube.com/watch?v=RfpxLhpQWTI&list=PL_f7GSibML4yq8P0rkj2OEO9y4H-XEWF1 22 O dispositivo, conceito de Michel Foucault discutido por outros autores como Gilles Deleuze e Giorgio Agamben, foi esmiuçado nos estudos metodológicos, que diz respeito ao primeiro ensaio desta tese e também se articula à ideia de música como dado social. O ensaio segundo investigou a genealogia das práticas musicais em saúde e da musicoterapia a partir da presença da música n’A História da Loucura. Ao buscar, na obra foucaultiana em pauta, os saberes menores dos experimentos sonoros como sendo curativos junto ao louco, dentro de um saber maior que se impõe como verdade, o da clínica psi em construção; obtive como efeito a história da música no campo da psiquiatria, contada pelos arquivos da loucura reunidos e relatados por Foucault. O cruzamento de saberes e práticas discursivas e musicais buscavam formas de intervenção sobre subjetividades desviantes, mas também auxiliavam a pensar o utilitarismo existente nas relações entre música e subjetividade de modo geral, bem como perceber proveniências de algumas hipóteses empregadas na Musicoterapia atualmente. O terceiro ensaio seguiu um viés arqueológico, dirigindo-se às reflexões sobre a relação entre os dispositivos música e linguagem, a fim de cartografar as forças constituintes de enunciados e linhas de enunciação que se cruzam em suas movimentações. A forma, o conteúdo e a letra, a comunicação, a escrita e notação musical são alguns temas pelos quais passei para caracterizar diferentes linhas desses dispositivos em relação, que ora as une e busca homogeneização, ora as autonomizam e afirmam suas discrepâncias. Já o quarto ensaio foi dedicado às especificidades da escuta no campo das terapêuticas, a partir de algumas vertentes de investigação: 1. A estetização da audibilidade da escuta nas clínicas psi e musicoterapêutica, com uma caracterização da escuta do musicoterapeuta. 2. A escuta musical, posicionada a partir da análise musical empreendida pelo viés da Musicoterapia e as noções de atenção flutuante musical e associação livre musical para uma escuta como atividade. O quinto ensaio diz respeito ao estudo do poder relacionável à audibilidade, nos modos como ela é gerenciada para que as populações e indivíduos percebam mais ou menos as sonoridades a sua volta. As noções de panausculta, pámphónos, panótico e panáudio foram exploradas para problematizar a produção de subjetividade a partir do campo sonoro-musical, nos arranjos entre poderes disciplinar e de regulação. A produção da vontade de ouvir como forma de cuidado, de preservação auditiva e segurança acústica são objetos de práticas institucionais de regulação populacional, questão também abordada no escrito. Dispositivos sonoro-musicais em práticas de violência legitimadas pelo estado de exceção são mencionados para pensar situações degradantes e de desconforto, ações de tortura e produção de armas não-letais, também com justificativas de segurança da população. Conviver com 23 esse “barulho” exige das subjetividades um esforço por uma outra audibilidade, uma que permita um reposicionamento da escuta. É digno de nota que, com exceção do quinto ensaio que foi escrito durante os quatro anos do doutorado, os demais foram construídos cronologicamente no tempo da pesquisa, na ordem em que se apresentam no presente texto. Embora não perca sua ligação com a natureza descritiva e com a análise teórica dos dados, o ensaio quinto possui certa inspiração cartográfica, uma vez que traz temas que nos atravessaram no período em que o processo de pesquisa fora vivido. Por fim, as considerações finais sintetizam o que foi perscrutado ao longo do trabalho para tecer considerações sobre o que caracteriza as linhas de audibilidade. Contando com os dispositivos sonoros-musicais já presentes nos ensaios anteriores, à caracterização da linha de audibilidade foi acrescentada de exemplos dispostos no apêndice. Este, somado às “Considerações...”, formam um texto ensaístico et quidem. Portanto, é um apêndice pelo fato de ser autoral e experimental, mas se lido como parte das “Considerações...” confere sentido para todo o texto em termos de experiência. Com isso, visei principalmente diferenciar a audição e o ouvir da escuta em desdobramentos do dispositivo “clínica da Musicoterapia”. Esse dispositivo foi a escolha para concluir com a experiência. Com vida. E com a defesa de uma escuta eticamente implicada com o sujeito e com o sonoro, enquanto possível colaboração da perspectiva do audível para a noção de dispositivo por um lado, e por outro, contribuir com as críticas que os debates sobre o dispositivo proporcionam à Musicoterapia. Referências Bibliográficas BOGUE, R. Deleuze on Music, Painting, and the Arts. New York, Routledge, 2003. CARDOSO, T. M. A música como expressão da biopotência nos modos de subjetivação da contemporaneidade: um estudo dos conceitos de resistência ao biopoder, por meio da estética da existência relacionada à música. Relatório Final de Iniciação Científica. Assis, Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo. 2009. CARDOSO, T.M. A que(m) serve a música na Reforma Psiquiátrica brasileira? Linhas de audibilidade nas práticas musicais e sonoras da Saúde Mental Coletiva. 2014. 184 f. Dissertação (Mestrado em Psicologia) - Faculdade de Ciências e Letras, Universidade Estadual Paulista, Assis, 2014. CARDOSO, T.M.; LIMA, E.M.F.A. Terapêutica musical na Saúde Mental de São Paulo: recorte sobre higienismo, psiquiatria e disciplina no hospital do Juqueri, início do século XX. Cadernos de História da Ciência V. 12, n. 1, p.113-144, jan. 2016. Disponível em , acesso em 07 fev. 2016. https://bibliotecadigital.butantan.gov.br/arquivos/167/PDF/PDF-completo-113-144.pdf 24 CARDOSO JR., H.R. Tornar audíveis forças não audíveis - lições de Deleuze sobre a música e educação musical rizomática, s/l, 2005. COSTA, M. F. A Clínica da Urgência na Unidade de Pronto Atendimento: da privatização da Saúde a uma aposta no Sujeito do inconsciente. 2016. 176f. Dissertação (Mestrado em Psicologia). – Faculdade de Ciências e Letras, Universidade Estadual Paulista “Júlio de Mesquita Filho”, Assis, 2016. DELEUZE G.; GUATTARI F. Mil platôs: Capitalismo e esquizofrenia. Rio de Janeiro: Ed. 34, vol. 1, 1995. DELEUZE G.; GUATTARI F . Mil Platôs: capitalismo e esquizofrenia. Rio de Janeiro: Ed. 34, vol. 5, 1997. FERRAZ, S. Ritornelo: composição passo a passo. Campinas. Revista da Associação Nacional de Pesquisa e Pós-graduação em Música – ANPPOM issn – 0103-7412, [p.63], Opus, 10 – dez. de 2004. Disponível em: , acessado em outubro de 2007. FERRAZ, S. Varèse: a composição por imagens sonoras. 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Disponível em: , acessados em julho de 2008. 25 ENSAIO 1: A MÚSICA COMO DADO SOCIAL NO CAMPO DAS SUBJETIVIDADES: mapa dispositivo, caminho arqueogenealógico Deusa cigana, és dama profana, embala enlaça e desata tantas emoções abrindo caminhos, sorrisos, paixões (...). Envolve, desenvolve, arrebata sem perdão. Musa Música, Marie Gabriela Música. Entre jogos de sons e silêncios relativos, ela é ouvida com um sentido variável desde o lugar de ente sagrado até de coisa banal do cotidiano. Músicas13 ocupam o tempo sem pedir permissão ou atenção, fazem território sem necessariamente ocupar espaços, fazem discursos serem repetidos e/ou ocultados, brincam entre as linhas do tecido social e subjetivo. Alguns processos desse imbricamento que se dá na intersecção entre música, subjetividade e sociedade constituem um complexo operacionalizável pela noção de dispositivo. Este serve como forma de análise conceitual, que permite interpelar saberes e práticas que se apropriam do sonoro para constituir enunciados, subjetividades, exercícios de poder. Parti das reflexões de Michel Foucault e autores afins para essa empresa. Diversas pesquisas que possuem a(s) arte(s) como objeto para pensar dimensões humanas e sociais como a subjetividade, o contexto sociocultural e da comunicação; têm se utilizado do conceito de dispositivo a partir de leituras foucaultianas para fazê-lo (KLEIN, 2007; VILLAÇA, 2011; CARVALHO, 2011; SANDER, 2011; MARQUES, 2012; SÁNCHEZ, 2015). Obras que tomam a música como dispositivo não foram acessados em língua vernácula. O verbete dispositivo significa “aparelho”, “equipamento”. Entretanto, ele ganha novo sentido já nas primeiras conceituações do filósofo francês Michel Foucault na década de 1970, em entrevista publicada em português na obra “Microfísica do poder” (FOUCAULT, 1992). E ele comenta sobre o termo: um conjunto caracterizado pela heterogeneidade discursiva, institucional, arquitetônica, legislativa, administrativa, científica, filosófica, moral e outras. É composto, portanto, pelo dito e o não-dito e se inscreve em um jogo de forças condicionantes e de co-criação entre poder e saber. Também diz respeito à demarcação do tipo de relação que estes elementos heterogêneos estabelecem entre si, como formação que responde a uma urgência em dado momento histórico. 13 Sobre a noção de músicas no plural, Cf. WISNIK, José Miguel. O som e o sentido. Uma outra história das músicas. São Paulo, Companhia das Letras, 1999 e ZISKIND, Hélio. O som e o sint - Uma trilha para O som e o sentido. CD integrante do livro, 1999. 26 Seria isto, o “dispositivo: estratégias de relações de força sustentando tipos de saber e sendo sustentadas por eles” (FOUCAULT, 1992, p. 139). Em “Vigiar e punir” (1987), Foucault vai admitir não só uma função estratégica ao dispositivo, mas também atribuiria a ele uma forma de concepção diferencial da que é utilizada nas teorias de Estado. Essa posição se dá pelos estudos genealógicos de dispositivos escolhidos como objetos de análise, o que permite abordar os movimentos históricos de certos vetores. A partir da genealogia é possível investigar como saberes tornaram-se verdades e poderes em formas de vida, o que permite vislumbrar novos caminhos de resistência e ruptura com a naturalização desse objeto. O filósofo italiano Giorgio Agamben (2009) considera o termo “dispositivo” como decisivo na obra de Foucault. Mas é também um conceito marginal, encontrado em entrevistas e breves passagens de suas palestras. É usado com maior frequência a partir de 1975 nos estudos sobre o “governo dos homens”, na passagem da arqueologia para a genealogia. Na arqueologia, o interesse estava nas práticas discursivas que produziam subjetividades determinadas; na genealogia, ele estava interessado naquilo que os homens fazem e não apenas naquilo que dizem. Já o filósofo francês contemporâneo a Foucault, Gilles Deleuze (1989), na obra “O que é o dispositivo” discute o conceito admitindo quatro dimensões características que estão em movimentação e interpenetração contínuas. A primeira é a de que o dispositivo possui curvas de visibilidade e regimes de luz, que torna algumas coisas não apenas visíveis, vistas e vigiadas como também ocultadas pela seleção que a incidência da luz produz. A segunda dimensão é a de que há enunciabilidade e regimes de dizibilidade, que torna alguma coisa passível de ser dita no plano do discurso verbal e da escrita, como algo que faça sentido naquele momento histórico. Além de constituir práticas discursivas e arquivo, esses registros criam enunciados que passam a ser repetidos, visando à reprodução social de determinados ditos e faz calar outros. A terceira dimensão são as linhas de força em embate, que buscam meios de controlar as palavras e as coisas, mas também de resistir ao controle; é o exercício do poder sobre o que se diz e o que se faz para ser visto. A quarta dimensão são as linhas de subjetivação e seus efeitos de subjetividades insurgentes a partir desses elementos que se cruzam, são linhas de fuga que atualizam identidades. Ademais, o dispositivo possui aquilo que é estratificado ou consolidado e aquilo que é atualidade, ou seja, o que está ainda em processo de se tornar, mas não chega a produzir identidade (DELEUZE, 1989). É notável que o campo do musical e dos sons não aparecem de maneira explícita nessas dimensões. Disso suspeitamos que a música pudesse não ser propriamente um dispositivo, senão uma formação histórica (DELEUZE, 2017), que possibilitaria a instauração 27 de uma série de dispositivos a partir dela. Entretanto, encontrei estudos que associam esta ideia de dispositivo à Musicoterapia. O trabalho do musicoterapeuta argentino Pedro Altamiranda (2015) adota a Musicoterapia como um dispositivo, já o conceito de panáudio, articulado pela musicoterapeuta brasileira Laize Guazina, é descrito como dispositivo na práxis da Musicoterapia Institucional (GUAZINA; TITONI, 2009). A noção de formação histórica advém da junção dos termos formação, de inspiração geológica, que diz respeito às camadas de enunciados e visibilidades, que são heterogêneos, mas que se sedimentaram no decorrer da história, o outro termo envolvido. Um método para se trabalhar uma formação histórica deve passar pela arqueologia, que possibilita a extração de enunciados e visibilidades dos arquivos, rocha bruta a ser conhecida em seus saberes, discursos, práticas, leis, regras, mostrando as variações do visível e do enunciável (MARINO; MEDEIROS, 2019). Sendo assim, um recorte possível é o da análise de alguns dispositivos sonoro- musicais um a um. O dispositivo da música como terapia ou da musicoterapia, outros dispositivos sonoro-musicais na psiquiatria, na psicanálise, na saúde possuem dimensões descrevem alguma coisa que não é nem enunciado, nem visibilidade, ao que estamos chamando de linhas de audibilidade. Antes é preciso salientar que nesse contexto, ver não é ter visibilidade, dizer não é o mesmo que se utilizar de um enunciado. A coisa vista e a palavra falada não correspondem ao comportamento de ver ou de dizer, para efeitos dessa filosofia. O “ver” e o “falar”, na interpretação deleuzeana de Foucault, são condições que tornam visíveis e enunciáveis certas formações históricas, são o “fazer ver” e o “fazer falar”, portanto (DELEUZE, 2017). Isso não significa que em um dispositivo não haja também um regime físico de luz, o estado selvagem da luz bruta que forma um limiar de visibilidade e enunciação, por exemplo (ESCOBAR, 1991). Da mesma forma, um dispositivo comporta o regime físico de ondas e vibrações, que formariam um limiar de audibilidade e de dizibilidade, sem que audível e o dizível na análise de um dispositivo se reduza ao ouvir e ao falar. Não são os olhos, a boca e o ouvido que constituem por seus atos voluntários ou involuntários as visibilidades, enunciados e audibilidades em dispositivos. Esses atos do corpo são efeitos de sentido de instauração de modos de se comportar pelo fato de ser visto ou vigiado, de uma condição de expressão que traduz a mentalidade de uma época, de escutar a partir de certa posição em relação ao objeto produtor de sonoridades. A princípio, uma formação história é aquilo que consegue ver e dizer tudo aquilo que é capaz, dentro de uma época determinada. A prisão é exemplar disso - como “o lugar de 28 visibilidade do crime, tal como o asilo é o lugar de visibilidade da loucura” (DELEUZE, 2017, p.19). Em ambos, o dispositivo panóptico, com a arquitetura pensada para a melhor distribuição de iluminação nesses estabelecimentos, permite ser visto sem ver e ver sem ser visto. Outro exemplo ainda é a pintura, o quadro, são as artes da visibilidade, com seus jogos de luz e sombra (p.20-21). Portanto, o que produz evidências, por meio de regimes de luz, diz respeito à visibilidade. Por outro lado, há o enunciado. Ao tomamos a prisão como forma de conteúdo, o direito penal seria a “forma de expressão (...) [da] forma-prisão” (DELEUZE, 2017, p.27). Se o hospital geral é uma forma de conteúdo e é local de visibilidade da loucura, a medicina é a enunciabilidade das doenças da cabeça e seus enunciados produzem uma forma de expressão. O hospital vem da polícia e não da medicina, a medicina não trata no hospital, mas fora dele – são duas diferentes formações que se encontram e possuem, cada qual, uma genealogia própria. Ver e falar são irredutíveis um ao outro nessa perspectiva. A medicina, a psiquiatria e a psicologia formam regimes de enunciados, chamados de discursividades ou formações discursivas. O visível seria da ordem das formações não-discursivas. E o sonoro, onde está? Na prisão e no hospital, o som representa uma antecipação do “fazer ver”, tenta produzir uma previsibilidade dos acontecimentos na medida em que se espera ouvir o som das coisas, o “silêncio” ou máxima quietude dos sujeitos e os desvios destas sonoridades esperadas. Tem como efeito o sussurro dos pacientes e a fala de baixo volume dos profissionais como forma de manter a norma, vigiar e informar outros profissionais com algum sigilo; mas há por outro lado, o aumento da intensidade vocal e verbal em momentos de emergência. Isso refere ao grau de emissão sonora, de composição com a paisagem sonoro-musical da instituição, mas e o ouvir, a audibilidade, como fica nesses espaços? No ensaio 5, trabalhamos melhor essa noção, para agora, adiantamos um aspecto: a audibilidade varia entre o ouvir como ação compulsória do corpo e o escutar, que implica numa ética e numa relação estética com o sensível, na tentativa de produzir uma potência para um “fazer não ouvir”. Deleuze cita uma passagem de Arqueologia do Saber, em que Foucault afirma que o discursivo tem relações discursivas com o não-discursivo, o que confere ao discursivo um primado sobre o visível, o que não reduz o visível ao enunciado. Já no início de As palavras e as coisas Deleuze identifica que não há conformidade entre o ver e o falar, que não há como fazer ver o que se diz e nem fazer falar o que se vê; ver não é o mesmo que falar e vice-e- versa. Mesmo que se descreva imagens ou utilize metáforas, isso não torna visível o que se fala, empiricamente. Escrever o que se diz seria um modo de tornar registrável um dizer 29 tornando-o visível, mas não instaura um “fazer ver” tal como é pensado por Foucault, mas apenas transformar performances verbais em documentos, em códigos ou representações gráficas. Ainda assim, já não são o ver e o falar propriamente, não há conjunção ou isomorfismo entre esses dois, mas uma relação de disjunção, de paradoxo, uma profunda relação de heterogeneidades. Imanente à performance verbal da qual o falar e o fazer falar são, em algum nível, tributários, está o campo do visível. Nesse caso, a visibilidade e o enunciado teriam, ambos, primado sobre a audibilidade. Contudo, se com a visibilidade a audibilidade tem uma relação de disjunção por “ilegalidade”, com o enunciado tem uma relação de imanência (DELEUZE, 2017). No cinema, há um filme de imagens visuais – os acontecimentos mudos, e um filme das vozes – acontecimentos cegos, exemplo que demonstra a diferença radical entre o enunciado e o visível. Além dos acontecimentos que ganham enunciabilidade com as palavras faladas pelo filme das vozes e visibilidade pela imagem visual, propomos uma tese que incluiria aquilo que não é nem visível e nem enunciável, que busca afetar as sensações sem chegar necessariamente à percepção, sendo em algumas ocasiões, feita sob medida para ser não-racionalizável. Levando em conta nosso objeto de estudo, chamamos isso de audibilidade. Tornar audíveis alguns aspectos das coisas visíveis em suas relações com os personagens e ambientes cênicos e das palavras ditas, com relação à história contada pelos enunciados, ainda no exemplo do cinema. Isso diz respeito à sonoplastia – os acontecimentos sonoros, os sons não-verbais, as musicalidades – os passos, os aplausos e risos, as máquinas, os pássaros, a trilha sonora etc. A audibilidade seria imanente ao enunciado, na medida em que a voz que enuncia se dirige a algum ouvido – não seria preciso falar se não fosse igualmente necessário ouvir. 1. Caminhos cruzados14: o dispositivo e a arqueogenealogia, para pesquisar música- subjetividade O dispositivo é uma rede estabelecida entre dito e não-dito que viabiliza um jogo operado por discursos para responder à uma urgência. Isso possibilita a produção de: I. práticas veladas e silenciadoras, produzidas por meio de justificativas, mascaramentos e por programas institucionais; II. práticas reinterpretadas, que possibilitam novas produções de saberes (FOUCAULT, 1992). Esse último diz respeito a potência revolucionária do dispositivo. 14 Título de uma canção de Tom Jobim, interpretada por Rosa Passos. 30 Em sua conferência apresentada no Brasil em 2005, Agamben fala da relação ontológica e política do homem com o tempo (o contemporâneo), com a vida e o modo de dividi-la, repartindo o próprio fato de existir com os outros (a amizade), e com os dispositivos. Ao compartilhar a existência com os dispositivos, os sujeitos abrem precedentes para “criação e proliferação de mecanismos da política contemporânea para controlar a conduta e as opiniões de todos os seres humanos na sociedade capitalista” (KRETTE JÚNIOR, 2010, p. 183, grifo nosso). O autor propõe a seguinte síntese para o dispositivo: a) É uma rede que se estabelece entre discursos, instituições, leis e normas, proposições filosóficas em um conjunto heterogêneo, linguístico e não-linguístico; b) sua concretude concerne a uma função estratégica, inscrita sempre numa relação de poder; c) é resultado do cruzamento entre as relações de saber e poder. Um dispositivo é uma estratégia que surge para responder a uma urgência em determinado momento histórico, “para obter um efeito mais ou menos imediato” (AGAMBEN, 2009, p.35). Uma estratégia que envolve manipulação racionalizada de relações de força, para utilizá-las, orientá-las, fixá-las, interrompê-las. Sendo assim, não haveria um só momento na vida do indivíduo em que ele não estivesse sob controle, efeito ou função de algum dispositivo (id.). O dispositivo, portanto, faz o social funcionar de formas mais ou menos determinadas, que é onde está sua positividade, seu fazer acontecer. Esse processo conserva o sentido de “aparelho”, como meio ou coisa que promove algum mecanismo de funcionamento. Na tentativa de criar uma imagem conceitual para o dispositivo, se chegou à ideia de um “novelo de teias” (CARDOSO, 2014). As variadas linhas possuem cores, espessuras e materiais diferentes, sem um carretel que as fixem. Elas estão frouxamente enroladas, permitindo a passagem de luzes, sombras, objetos e de vazios entre elas. Estas linhas, porém são elas próprias teias, como as de aranha, que se desdobram em outras teias emaranhadas entre si, com fios que se unem e outros que estão rompidos. Formam desenhos ora simétricos ora assimétricos, em fios frágeis, antigos e de aparência inofensiva ou ao contrário, elásticos, atuais, ameaçadores. A dinâmica do dispositivo engloba dois processos: “a sobredeterminação funcional e o preenchimento estratégico” (SILVA, 2014, p.146) sendo o primeiro, responsável pela vinculação dos elementos – a rede entre dito e não-dito – que se reajustam ao conjunto pertinente ao dispositivo; já o segundo, implica em recapturar o que se suspende no jogo de forças entre dominação e resistência, sagração e profanação. 31 Os dispositivos como “máquinas de fazer ver e falar” (DELEUZE, 1989), são constituídos por “linhas de força, que envolvem o ver e o dizer e que promovem o movimento, o deslizamento” (SILVA, 2014, p. 147). Eles se definem pelo grau de criatividade e novidade, “que marca ao mesmo tempo sua capacidade de se transformar ou de se cindir em proveito de um dispositivo futuro, ou ao contrário, de fortificar-se sobre suas linhas mais duras, mais rígidas ou sólidas” (DELEUZE, 1989, p. 05). O potencial dinâmico de equilibrar passado e futuro no presente, de instaurar formas de individuação hegemônicas que tanto correspondam quanto rompam com o saber-poder vigente fazem do dispositivo uma lógica da qual a saída seria entrar em outro(s) dispositivo(s). Mas também um meio que faz circular saberes, discursos e práticas para benefício da vida e sua manutenção. A indissociabilidade entre práticas discursivas e não-discursivas, respectivamente, linhas de enunciação e de visibilidade, existe em meio a uma multiplicidade de forças, visando ir além da dualidade entre forças contrárias. O regime de produção de discursos investigados pela arqueologia e, a análise histórica promovida pela genealogia sobre os modos como o poder se estabelece são, ambos, modos de abordar dispositivos que emergiram em meio aos procedimentos de análise foucaultianos (STASSUN; ASSMAN, 2010). A noção de dispositivo teria, a partir das problematizações foucaultianas, uma função metodológica (SILVA, 2014). Não seria o dispositivo um método, mas uma forma de olhar para o objeto, uma postura problematizadora como procedimento, que permite a um experimentador investigar certos exercícios sempre em perspectiva15. Essa engenhosa fabricação é relatada como ficção pelo pesquisador, que visa mostrar de que modo foram inventadas linhas que tiveram efeitos na realidade. O resultado são roteiros com base em arquivos. Composto por documentos, relatórios, ao que se acrescentaria músicas, contos literários, poesias etc., o(s) arquivo(s) exibem o caráter ficcional da pesquisa em ciências humanas. Os componentes da pesquisa: pessoa(s) que fazem a pesquisa, método, arquivo, referencial teórico portanto; estão implicados teórica, práxica e eticamente com a história e geografia das ficções que criaram determinados exercícios sobre os sujeitos. Sustentado pelas análises da arqueologia e da genealogia, o dispositivo funciona “como grade de inteligibilidade aplicada sobre determinado campo e objetos (...) [que forja] ‘uma cena dentro de outra cena’” (SILVA, 2014, p. 158). O pesquisador-experimentador atua como “um desembaraçador das linhas entrelaçadas, percorrendo-as como as divisões de um mapa, 15 A propósito dessa postura na produção das ciências humanas, agradeço às colaborações do pesquisador Cledione Jacinto de Freitas na revisão da tese como um todo e, especialmente, nos aspectos metodológicos e epistemológicos. 32 constatando desníveis e desvios do terreno” (DELEUZE, 1989, p. 01). Se um método é um caminho, o dispositivo é um mapa (STASSUN; ASMAN, 2010) para conhecer as várias localizações dessa grade de inteligibilidade, a da relação música-subjetividade. A genealogia se constitui modo de realizar a pesquisa, um caminhar que cria procedimentos para conquistar um saber. Ela se propõe a investigar de onde processos, instituições e formas de vida a elas correlatas emergiram e quais jogos foram travados entre os discursos para que alguns saberes desaparecessem e outros fossem reproduzidos. A arqueologia, por seu turno, se divide entre estudar a história e os problemas metodológicos, fazendo uma análise das discursividades (FOUCAULT, 1992). Buscar as proveniências e o modo como ocorreu a emergência de dado um objeto é empreendimento da genealogia. Como foram produzidos conhecimentos sobre ele, como ele se modificou no decorrer do tempo, a ponto de tornar-se o que e se naturalizar no contexto atual, como produziu inscrições nos sujeitos e suas formas de vida nos diferentes momentos históricos (DREYFUS; RABINOW, 1995). Genealogia visa desassujeitar saberes soterrados em nome dos efeitos de poder, mostrando quais discursos foram instituídos e legitimados. Investigar o pensamento humano e as práticas discursivas, a história dos saberes a partir do que é dito e reproduzido, escrito e documentado, bem como o que é pensado como ciência é tarefa da arqueologia. O pensamento humano deixa seus enunciados em arquivos que podem ser colhidos, organizados, avaliados e interpretados segundo as relações de poder e saber que produziram sobre e para os sujeitos. Analisar os enunciados requer desnaturalizá-los e localizá-los institucional, temporal e espacialmente, trazendo à tona como eles objetivaram as práticas sociais (FOUCAULT, 1992). Entre conhecer as formas como os saberes foram criados, legitimados e perpetuados – próprio à arqueologia – e as táticas que os engendraram como verdades históricas e tornaram possíveis o exercício de poder, conforme a genealogia; não há grande distância. Pelo contrário, arqueologia e genealogia não só compartilham dos mesmos materiais como se abastecem mutuamente, fundindo-se (ARAÚJO, 2006). Por isso, este trabalho tem realizado, a partir do viés arqueogenealógico, a cartografia de algumas linhas de dispositivos sonoro-musicais, em seus modos de constituir sujeitos do conhecimento (saber), de ação moral (ética) sobre outros sujeitos (poder) no campo das músicas e sonoridades. Os limites geográficos e históricos dessa pesquisa são específicos a cada capítulo, considerando que a emergência, os efeitos e a atualização dos acontecimentos se entrecruzam, se desdobram, se globalizam ou se territorializam de diferentes maneiras, momentos e lugares. Escrito em forma de ensaio, cada capítulo busca construir um arquivo próprio, que seja capaz de fazer aparecer a racionalidade e as linhas do dispositivo em análise. 33 Já os procedimentos do trabalho como um todo se baseiam nas proposições foucaultianas para escolha e tratamento detalhado do material em função do problema; localização cronológica e outras informações para situar o contexto; identificação de pontos estratégicos que foram eleitos em detrimento de outros na formação histórica desse objeto (FOUCAULT, 2008; STASSUN; ASMAN, 2010). Por fim, é necessária a escolha de elementos que possam ser analisados em relações suscetíveis de solução, mas sem que haja a obrigação de dizer tudo. Os arquivos dessa pesquisa poderão ser bibliográficos, para produção de uma análise documental ou ainda musicais, para produzir enunciados, visibilidades e audibilidades sobre a música, apoiada nas discussões da Musicoterapia dentre outros. A análise documental refere-se à escritos e estudos já realizados, para construção de conceitos em quadros de referência (SANTAELLA, 2001). Não obstante, os enunciados e visibilidades sobre as músicas se pautam no conteúdo e imagens audiovisuais que sejam capazes de dizer e tornar visíveis as formas de subjetividades as quais elas se dirigem. Os efeitos que visam produzir a partir daquilo que a materialidade sonora torna audíveis e descritíveis constituem a audibilidade, no intento de relacionar formas de produção sonora, os afetos do indivíduo e o contexto social. As músicas, portanto, se prestariam como recursos arquivísticos para uma arqueogenealogia, com o tratamento específico. Mas há uma diversidade de estudos nos campos da física e da biologia, para além da música e da teoria musical, que tratam sobre o tema da audibilidade com a intenção de tornar esse objeto materialmente conhecido e mensurável, que será discutido adiante no ensaio 5. 2. A autofuncionalidade do dispositivo: subjetivação, dessubjetivação e as playlists Segundo Agamben (2009), ao escrever a Arqueologia do Saber, Foucault utiliza o termo positivité para definir o objeto de suas pesquisas, herança de seu professor Jean Hyppolite, que usara o termo para analisar a visão de religião em duas obras hegelianas. Diferenciando natural de positivo, natureza de positividade, a dialética entre razão e história, abstração e concretude, entre liberdade e coerção, Hyppolite pensa a positividade como elemento histórico. Este impõe instituições e regulações de várias espécies por um poder externo aos indivíduos, que se interiorizam por meio de sentimentos e crenças (id.). Foucault não deixa de se inspirar em tal ideia para alcunhar como dispositivo “a relação entre os indivíduos como seres viventes e o elemento histórico, entendendo com este termo o conjunto das instituições, dos processos de subjetivação e das regras em que se concretizam as relações de poder” (AGAMBEN, 2009, p. 32). 34 A oikonomia, termo grego de relevante função na teologia dos primeiros séculos da história da Igreja, designava a gestão ou administração do oikos – a casa, o governo de Deus sobre os homens, por meio dos dogmas. Um dogma inquestionável e determinante das formas de ser, agir e pensar, promovendo a cisão entre ação e fundamento no ser, se apresenta como oikonomia. Modos de gerir, controlar e orientar, por meio de um conjunto de saberes, medidas, práxis e instituições os pensamentos e gestos humanos, é isto a oikonomia. Traduzida para o latim dispositio, levou consigo a proposta de dividir ser de práxis, entre o fundamento do ser e a atividade. Uma ontologia das criaturas ou substâncias – os viventes; que se orienta para um governo que os guie para o bem. Isso se aproxima do conceito de dispositivo de Foucault: “os dispositivos devem sempre implicar um processo de subjetivação, isto é, devem produzir seu sujeito” (AGAMBEN, 2009, p. 38). Assim, se apresenta o dispositivo como “qualquer coisa que tenha de algum modo a capacidade de capturar, orientar, determinar, interceptar, modelar, controlar e assegurar os gestos, as condutas, as opiniões e os discursos dos seres viventes” (AGAMBEN, 2009, p. 40). Sujeito é o que resulta da relação “do corpo a corpo entre os viventes e os dispositivos” (id., p. 41). O dispositivo é uma máquina de governo que, no contato com os viventes produz sujeitos e assujeitamento. Os dispositivos tradicionais como a confissão e o panóptico, a prisão e as escolas operavam a partir de um novo processo de subjetivação que se dava pela negação de um velho sujeito em detrimento do novo: o marginal, inadequado e indisciplinado devia ser negado. Já os novos dispositivos – a internet, os aparelhos celulares smartphones, a televisão, computadores, os equipamentos e tecnologias de difusão e (re)produção sonora16 são alguns exemplos que produzem um sujeito espectral por meio da sobreposição de pseudossubjetividades. Um neosujeito, produzido por “uma recíproca indiferenciação entre subjetivação e dessubjetivação” (SCRAMIN; HONESKO, 2009, p.13). O mesmo indivíduo pode ser lugar de produção de múltiplos processos de subjetivação; “quanto menos subjetividades são formadas no corpo a corpo dos indivíduos com os dispositivos tanto mais dispositivos são criados como tentativa inelutável de sujeição dos indivíduos às diretrizes do poder” (AGAMBEN, 2009, p. 14). Isso não significa que a subjetividade no capitalismo atual é uma categoria superada, interrompida, vacilante ou inconsistente. Pelo contrário, há uma disseminação de subjetividades, acumulação e 16 Rádio, caixas de som amplificadas, fones de ouvido, autofalantes, instrumentos musicais digitais e elétricos, samplers, controladores e workstations digitais, aplicativos para celular/tablet/computador para composição, mixagem, gravação; sites da Internet e aplicativos de reprodução streaming de músicas que conta com sugestões aproximadas ao gosto do sujeito, contando com o histórico de pesquisa combinado a logaritmos desenvolvidos pela inteligência artificial, enfim, as mais diversas tecnologias sonoras de potencial subjetivante-dessubjetivante de indivíduos e coletividades. 35 proliferação de dispositivos “que leva ao extremo o aspecto de mascaramento que sempre acompanhou toda identidade pessoal” (AGAMBEN, 2009, p. 42). Isso vem ao encontro das discussões de Sueli Rolnik (1996) sobre as subjetividades prèt-à-porter, formas identitárias que orbitam em torno dos ditames do mercado e que trocam compulsiva e compulsoriamente seus regimes de identidade (ROLNIK, 1996). Nesse ínterim, esboça-se um quadro de “toxicomanias de identidade”, desde aquelas fixações e dependências, até as infinitas ofertas de subjetividades, prontas para serem usadas e descartadas. Destruir ou usar corretamente os dispositivos são soluções ingênuas: quebrar o smartphone que torna as relações humanas mais abstratas não seria a solução ou ainda, uma utilização “correta” e disciplinada da internet, com restrição de horários para reduzir o uso excessivo, tampouco é a saída. Isso porque todo dispositivo, para funcionar como dispositivo de governo, implica um processo de subjetivação, o que se pode comparar com o funcionamento da relação de poder que sempre implica a resistência. Em cada caso supracitado – quebrar o smartphone ou utilizá-lo com parcimônia – há modos de subjetivação e de resistência envolvidos. Os dispositivos na sociedade disciplinar visam docilizar os corpos, mantendo-os livres para assumir sua identidade de sujeito “no próprio processo do seu assujeitamento” (AGAMBEN, 2009, p. 46). Antes, o dispositivo é “uma máquina que produz subjetivações e somente enquanto tal é também uma máquina de governo” (id.). A confissão é um exemplo: a formação da subjetividade ocidental passa pelo dispositivo penitencial plurissecular, que incute ao eu a negação de um “velho eu”, operando uma cisão que possibilita encontrar a verdade a partir da não-verdade do ente rechaçado. Isso funcionou bem até determinada altura do capitalismo, porém em sua atual fase, requer um pouco mais. Se produzir subjetividade a partir da negação de outra era prática comum, trata-se agora de produzir uma dessubjetivação que seja indiferente à subjetividade anterior. Espectros de subjetividades se formam, mas prescindem de um encontro da verdade pela não-verdade, que outrora tinha por função validá-las (AGAMBEN, 2009, p. 46-47). O telefone celular como um dispositivo, bem como a televisão, não possibilita a criação de uma nova subjetividade, mas torna possível determinados processos de dessubjetivação. Várias identidades criadas por um sujeito podem ser expostas, modificadas e apagadas, em aplicativos de celular e sites. A sofisticação dessa lógica está no fato do sujeito ser controlado, ao se sentir livre para trocar de subjetividade por outra(s) nova(s) a todo momento, enquanto se percebe como aquele que controla. Os manuais de instrução não são mais necessários na medida em que os sujeitos se adaptam às coisas, mas creem que são as coisas que foram 36 criadas adaptadas às suas necessidades: não existe forma de uso correto, importante é haver uso. Da audiência ou do zappeur, e “se a todo dispositivo corresponde um processo de subjetivação (ou, neste caso de dessubjetivação), é totalmente impossível, que o sujeito do dispositivo o use ‘de modo correto’” (AGAMBEN, 2009, p. 48). Em outros termos, o sujeito foi formado para usar o dispositivo de determinada maneira e esta sempre será adequada ao dispositivo se o mantiver em funcionamento, portanto, não é o sujeito que usa o dispositivo, mas é o dispositivo que se utiliza do sujeito (BAPTISTA, 2015). O aplicativo Spotify de reprodução musical de playlists pré-fabricadas ou feitas pela audiência são exemplares desse processo do dispositivo. Ao se cadastrar na área gratuita da plataforma, o indivíduo tem acesso a todo conteúdo com a condição de deixar suas informações pessoais. Isso permite aos aplicativos saber o que o sujeito “quer” ouvir e usar de parâmetros de probabilidade para produzir novos “quereres” por meio de sugestões de obras e intérpretes de estilo e gênero musical semelhantes às pesquisadas pelo usuário. Também possibilita o conhecimento do local de onde o usuário ouve por meio de rastreamento; com quem ele compartilha músicas através do aceite de acesso aos contatos virtuais do cadastrado. Esses e outros dados são utilizados para vender a versão premium, área paga que permite acessar os aplicativos sem limites de internet, de downloads e até mesmo de ordem com a qual uma playlist pode ser escutada sem interrupções de propagandas. Além disso, outros aplicativos que utilizam músicas podem estar diretamente articulados à versão premium dessas tecnologias sonoras streamings. O aplicativo Parkinsounds, utilizado por musicoterapeutas, fisioterapeutas e outros profissionais em técnicas de cuidado do paciente com síndrome de Parkinson, se articula à versão premium do Spotify. Ou seja, para que se possa escolher a música que quiser ouvir com o registro de BPM17 sobreposto pelo Parkinsounds, é preciso estar na área paga do Spotify. O bilhete para o “camarote virtual” depende ainda de acesso à Internet para que eles funcionem: mecanismos implicados entre si para a si próprios manterem, com o benefício da praticidade para o sujeito. Existem listas de músicas para ouvir em outras plataformas que envolvem procedimentos imediatos mais simples, mas não menos sofisticados. As playslists, disponibilizadas em sites gratuitos ou cuja maior parte é acessada gratuitamente, como o YouTube, podem ser criadas por qualquer usuário que tenha um login (cadastro), com qualquer título e quaisquer músicas que estejam disponíveis no próprio site. Ao digitar 17 Unidade rítmica que consiste na divisão de “batidas por minuto”. 37 playlist no site YouTube18, se tem como resultado listas dos mais variados gêneros musicais. Ao associar ao termo playlist à palavra “de” retorna listas de classificações por época, gosto do usuário ou tema. Já a associação ao conectivo “para” resulta em listas específicas de músicas relacionadas a práticas cotidianas como “transar”, “arrumar a casa”, “estudar”, “dormir”, “superar pé na bunda” etc. O site de canais permite ainda o upload de composições do próprio usuário, com vídeos ou imagens integradas, para acesso livre à toda comunidade virtual ou limitado, conforme acordado pelo usuário no aceite das políticas de privacidade. Há, nesse caso e em outros, uma política sonora giratória na autorreprodução, na autogestão de si própria. O sujeito facilita suas experiências de audição musical por meio desses aplicativos e sites. Ao mesmo tempo, ele os mantém funcionando ao continuar ouvindo e alimentando estes dispositivos de dados, informações e até mesmo de composições sonoras feitas em casa e/ou em estúdios. É essa gestão que o dispositivo faz de si próprio que mostra a luta da vontade de dominação por transformar as necessidades e práticas dos sujeitos em novos dispositivos que sejam capazes de se manterem e de manter os sujeitos ligados a esses. Eles mantêm o estado de coisas, mas em troca, economizam tempo, trabalho e em certa medida, a mente do sujeito. O sujeito é poupado de alguns esforços, seja o de pesquisar e escolher em meio a uma amostra infinita de possibilidades; seja o recusar ou aceitar as sugestões automáticas na construção de sua história sonoro-musical. 3. Da sagração à profanação como contradispositivo: a recepção da audição O poder na atualidade se vê diante de um corpo social dócil e frágil: cidadãos das democracias pós-industriais que obedecem a comandos de dispositivos em todos os mínimos detalhes da vida diária. A câmera e o gravador sonoro, outrora meros agentes de produção de arte, memória e até de vigilância, tornaram-se também testemunhas da existência e comunicação cotidiana do sujeito. Da alimentação aos pensamentos e desejos, há regras e modos de fazer para tudo. Há aplicativos de celular e sites especializados em ensinar qualquer coisa passo a passo – como o wikiHow. Para quaisquer necessidades, demandas e desejos, mesmo os mais específicos, há algum tipo de consultoria ou coaching, vídeo-tutoriais e canais temáticos no YouTube, receitas na televisão e até em letras de canções. Se existe, por um lado, o potencial de disseminação da produção de conhecimentos, por outro lado, há 18 Levantamento realizado em janeiro de 2019, sem considerar logaritmos de pesquisa salvos no computador como influentes nos resultados. 38 desvitalização e redução da complexidade envolvida nos processos necessários para produzi- lo, muitos deles singularizados. Esses cidadãos, nós, as pessoas comuns são consideradas pelo poder como terroristas virtuais19, são temidos por um elemento ingovernável e imperscrutável pelo poder e que justifica o uso do estado de exceção como instrumento político. O dispositivo funciona como uma forma de divisão dos viventes em relação à própria vida como ela se lhe apresenta, isto é, dessacralizada e de uso comum. Quanto mais os dispositivos se difundem e disseminam o seu poder em cada âmbito da vida, e quanto mais docilmente os sujeitos a eles se submetem, tanto mais o governo se encontra diante de um elemento inapreensível, que parece fugir de seu domínio quanto mais docilmente os sujeitos a eles se submetem. Isto não significa que o dispositivo represente em si mesmo um elemento revolucionário contra o governo, nem que possa deter ou ameaçar a máquina governamental, mas que se multiplicam as incertezas e os modos de dissidência ou deserção. Essa cisão operada pela oikonomia separa o vivente de si mesmo e de sua relação imediata com o ambiente, que torna a relação imediata do sujeito com as coisas mediada pela interrupção e estímulo de fenômenos desinibidores e receptores. Não em vão, a audição em musicoterapia é uma experiência musical considerada como receptiva por alguns métodos e como ativa e/ou interativa em outras abordagens de sua clínica. O método das Imagens Guiadas e Música, o G.I.M. (BONNY, 2002; BRUSCIA, 2002), traduz a primeira perspectiva. Ele consiste em administrar músicas orquestrais e/ou de câmara ao indivíduo ou grupo para escuta de peças previamente selecionadas, de acordo com as questões subjetivas referidas pelo(s) paciente(s). A técnica receptiva da audição possibilita, durante e/ou posteriormente a aplicação, fazer associações sobre as imagens evocadas pela escuta em palavras ou desenhos de mandalas ou outros. Ocorre uma espécie de circuito entre a receptividade musical e expressão, entre a escuta e a desinibição para falar, desenhar, escrever. Ao sair de um dispositivo que não permite expressar algo, o sujeito encontra saída em outros dispositivos para a abertura expressiva, como no caso do método G.I.M., que constrói uma forma especial de audição, de músicas cuidadosamente escolhidas para abordar questões arquetípicas que os sujeitos apresentam. Desse modo, o método aplicável na musicoterapia e em psicoterapias permite novas formas de subjetivar, de experienciar a vida 19 Pode-se desdobrar tal ideia em duas questões, a primeira de Agamben, em que tal população possui a virtualidade para o terrorismo, justamente pela dessubjetivação que lhes constituem vacilantes. A segunda é que são possíveis terroristas que agem como tal na rede virtual, tendo a internet uma característica facilitadora desse processo, pois possibilita uma forma específica de relação que dissocia artificialmente o uso comum da vida e um uso espetacularizado da vida. 39 por meio da escuta. Ocorre que “Na raiz de todo dispositivo está [...] um desejo demasiadamente humano de felicidade, e a captura e a subjetivação deste desejo, numa esfera separada, constituem a potência específica do dispositivo” (AGAMBEN, 2009, p. 44). Baptista (2015, p. 10-11) parte dos estudos de Agamben para localizar a “dissolução da vida em diversas formas de vida [...] presa a rótulos variáveis de acordo com a situação em que o sujeito se encontra”. Há qualificações que recaem sobre o corpo, a sexualidade, o trabalho, o desejo de felicidade dentre outras formas que, quanto mais diversificadas, mais produzem formas de vida e impossibilitam a unidade do sujeito em uma forma-de-vida que instaura num novo uso das coisas do mundo: “os dispositivos se apresentam como a possibilidade de realizar a unidade na diversidade, mas, efetivamente, estão a serviço da confirmação e manutenção dessa fratura. Mantendo a pluralidade das formas de vida, impedem a ascensão da forma-de-vida e da política que vem” (BAPTISTA, 2015, p.12). O dispositivo é rede da qual quase nada escapa – discursos oficiais, silêncios oficiosos e sussurros revolucionários, instituições e regulamentos legitimados, questionamentos mais livres e informais. Se por um lado, há a atividade da audição e/ou a percepção vibrátil do som como compulsória em uma sociedade musical e sonora, em contrapartida, há aquilo que ainda não é possível de ser visto ou dito, mas que existe e é sentido. Há algumas linhas que controlam e vigiam, “proposições filosóficas e pensamentos menos amigos do saber que do poder” (BAPTISTA, 2015, p. 12) que formam dizeres, imagens e sons, e outras que resistem e criam forças não-audíveis, numa afirmação radical da existência de algo singular e fugidio à supremacia do significado e da reprodutibilidade. Dispositivo é também uma rede que mantém a si próprio, evitando sua fragilização por meio da sustentação de formas de vida fragmentadas e alienadas das outras potencialidades de viver, tornando a governabilidade mais importante que os governados. Todavia, essa meta de manter-se a si mesmo em ordem enfraquece a origem e o impacto de um dispositivo – que seria o de manter o movimento de forças e capturar aquelas que promovem mudanças de posição dos governados, para benefício próprio. Ao se transformar em máquina de automanutenção, pura atividade de governo sem fundamento no Ser, perde seu caráter de produção para assumir a pura m