Universidade Estadual Paulista “Julio de Mesquita Filho” Instituto de Artes MARÍLIA ALVES DE CARVALHO (NÃO) FAÇAM SILÊNCIO: ensino de arte e o direito à palavra de meninas e mulheres na escola pública São Paulo 2020 MARÍLIA ALVES DE CARVALHO (NÃO) FAÇAM SILÊNCIO: ensino de arte e o direito à palavra de meninas e mulheres na escola pública Dissertação apresentada ao Curso de Pós-Graduação em Artes, do Instituto de Artes da Universidade Estadual Paulista - Unesp, como requisito parcial para obtenção do título de Mestre em Artes Visuais. Área de concentração: Arte e Educação. Linha de Pesquisa: Processos artísticos, experiências educacionais e mediação cultural. Orientadora: Profª. Drª. Rita Luciana Berti Bredariolli São Paulo 2020 A Ficha catalográfica preparada pelo Serviço de Biblioteca e Documentação do Instituto de Artes da UNESP C331n Carvalho, Marília Alves de 1987-. (não) façam silêncio: ensino de arte e o direito à palavra de meninas e mulheres na escola pública / Marília Alves de Carvalho. - São Paulo, 2020. 221 f. : il. color. Orientadora: Profª. Drª. Rita Luciana Berti Bredariolli. Dissertação (Mestrado em Artes) – Universidade Estadual Paulista “Julio de Mesquita Filho”, Instituto de Artes. 1. Educação – aspectos sociais. 2.Educação – aspectos políticos. 3. Escolas públicas - Brasil. 4. Intervenção (Arte). 5. Arte e educação. I. Bredariolli, Rita Luciana Berti. II. Universidade Estadual Paulista, Instituto de Artes. III. Título. CDD 707 (Mariana Borges Gasparino - CRB 8/7762) MARÍLIA ALVES DE CARVALHO (NÃO) FAÇAM SILÊNCIO: ensino de arte e o direito à palavra de meninas e mulheres na escola pública Dissertação apresentada ao Instituto de Artes da Universidade Estadual Paulista “Júlio de Mesquita Filho” como requisito parcial para obtenção do Título de Mestre em Artes, defendida perante a seguinte comissão examinadora: Profa. Dra. RITA LUCIANA BERTI BREDARIOLLI - Orientadora Departamento de Artes / Instituto de Artes da Unesp Profa. Dra. REJANE GALVÃO COUTINHO Departamento de Artes / Instituto de Artes da Unesp Profa. Dra. JOCIELE LAMPERT DE OLIVEIRA Departamento de Artes Visuais / Universidade Estadual de Santa Catarina Data de aprovação: 21 de agosto de 2020. São Paulo 2020 n o t a O resultado dessa pesquisa foi concebido originalmente como um livro-obra. Para o projeto gráfico desta versão digital foi feita uma adaptação aos recursos gráficos, visuais e materiais da versão impressa, por isso recomenda-se a visualização deste arquivo em páginas duplas. A quem puder interessar a dimensão da materialidade do trabalho, há um registro em vídeo disponível através do link: https://youtu.be/v1En7cGuJms (ou poderá encontrá- lo pesquisando pelo título da dissertação na busca no youtube.com). O livro-obra encontra-se disponível na Biblioteca do Instituto de Artes da Unesp. A quem nos deixou durante esta caminhada (inclusive os bichinhos Chewie, Vader e Zica). a g r a d e c i m e n t o s A todas as mulheres da minha família, as professoras com as quais estudei e trabalhei, a todas que vieram antes de nós. Embora isso não tenha sido uma opção, agradeço também pela minha trajetória escolar nas escolas públicas por onde andei, que me trouxeram até aqui. A minha mãe, Eliana, por ser a primeira voz a me instigar a não ficar em silêncio, pelas coisas que precisou abdicar nestes caminhos e por nunca deixar de aprender coisas novas. Ao meu pai, Paulo, por me ensinar que todos esses que dão nomes às ruas e monumentos da cidade provavelmente foram algum filho da puta e por todos os livros do mundo. A Bel e a Titi, agradeço pela sorte que eu dei, por todo amor, cuidado, apoio e pelas bruxarias. Ao meu avô Pedro ( in memorian) agradeço por sempre me incentivar a estudar, "porque estudar é bom". A Luara, agradeço por me mostrar que somos melhores juntas, por sempre me trazer pro chão sem deixar perder o horizonte de vista; por segurar minha mão com leveza e firmeza, por me ensinar o amor e coragem de tentar viver aquilo que acredita. Ao meu companheiro Danilo por partilha a vida e os dias, por sempre me lembrar de descansar, me encorajar, me acreditar e por não deixar de acreditar que o mundo pode ser um lugar melhor se estamos juntos. A Preta e a Branca, por toda ternura e companheirismo que tem me proporcionado desde que vivemos juntas. As que me ensinaram que nem só de silêncio se faz a escola pública: Yasmin, Bianca, Juliana, Clariane, Mainara, Kallynca, Thalia, Thalitiane, Rayanne, Elaine, Sarah, Priscylla, Danielle, Ana Julia, Larissy, Melissa, Evelyn e especialmente a Carol, pela força, determinação e sensibilidade que não me deixaram desistir nem desacreditar. E ao Kauã, Gustavo, Victor, Klebson, Gabriel e tantos e tantas mais que não cabem aqui. As professoras e professores com os quais estive lado a lado no chão da escola ou na rua: Ayni Estevão, Mariana Santos, Mariana Teixeira, Lucilene Freitas, Fernanda Queiroz, Léia Netto, Kauê Vinicius, Fellipe Rinco, Felipe Yanez, Virgínia André, Fabiana Fanganiello, Thaís Nihi, Juliana FS, Marina Alegre, Marcela Dias, Diogo Marciano, Danilo Heitor e especialmente Andrea Giunta pela incrível parceira, confiança e por não me deixar desmoronar em 2019. E a todas as professoras e professores do comando de greve da ZN/JT. As pessoas que participaram do Grupo de estudos de pedagogia libertária pelo apoio mútuo e acolhimento, por tantas leituras e práticas compartilhadas, pelas discussões e reflexões que me trouxeram a esta pesquisa: Dri, Patrick, Max, Luara, Mands, Zé, Mayra, Martin, Maralice, Michel, Giba, Perê. Ao Rafael Lucio, por aquele bombom e por todas as conversas que o sucederam, por me ajudar a enxergar nosso lugar de fala a partir da escolarização pública e a questionar a autoridade discursiva "espinafre com manga". A Nozomi Arisawa por partilhar a descrença na humanidade e na masculinidade, mas não deixarmos de acreditar uma na outra. A Laila Carol por me receber e me levar pra ver o mar num dia qualquer no meio do caos. A Jac e Renato, por me ensinarem tanto sobre conviver e viver junto. Ao Leandro, Pri e Jô por nunca nos esquecermos ou abandonarmos, mesmo que o tempo e a distância digam não. A Celia, por todo carinho e generosidade, e Luciana e Justin pelo apoio e pelo espaço de respiro para começar a escrever esta pesquisa enquanto vivíamos uma grande aventura. Zé Maria, Mayra, Isa, Sam, Drew, Zurya, Lachlan por abrirem suas casas e partilharem seus wifis para eu poder seguir escrevendo pela estrada, a caminho, pelo mundo. A Kelen, por sempre querer e estar aqui e correr juntas. A Camila, por toda poesia e por me fazer ver e dar nome aos silêncios que aprendi ao longo da minha vida escolar. Ao Zé, por me ensinar sobre a pré-figuração, por sua insubordinação, pelos livros emprestados, pela amizade e apoio. A Mayra Oi por toda sua generosidade, pelo olhar e palavras certeiras, pelo incentivo. A Mayra, Luara, Mands e Zé agradeço ainda pela revisão e leitura atenta e crítica deste trabalho e a Elena por se dispor a fazê-lo. As amigas e amigos Mona Perlingeiro, Paula Yurie, Fabio Caiana, Gui Pacheco, Pedro Costa, Divina Prado, Carolzinha, Erica Rapu, Marina Herling, Maryah Monteiro, Fernando Siviéro, Junior, Vinicius Nakamura, Vê Gelesson, Yukie Matuzawa, Aline Monfredine, Finamore, Letícia Scrivano, Marcel Couto... por nossa linda juventude e pelas alegrias do tempo em que podíamos nos aglomerar. A todas as pessoas que fizeram parte do Espaço Autônomo Casa Mafalda e do Cursinho Livre da Lapa, tendo elas colocado o guizo no gato, ou não. A Sandra e Vinícius do Centro de Referência de Saúde do Trabalhador (CRST) da Lapa pela generosidade, acolhimento e sensibilidade para olhar o adoecimento mental da categoria docente como uma questão social e coletiva e a todas as professoras e professores com quem pude compartilhar esse espaço e não só perceber que não estou sozinha mas pensar juntas em formas de sobreviver. As funcionárias e funcionários da seção de pós graduação, da biblioteca e do Staepe do Instituto de Artes da Unesp, em especial ao Fábio, Rodrigo, Clarissa, Mariana e Alexandre. E ao Edimilson, pelo otimismo, apoio e receptividade sempre que nos encontramos no IA. A todas as pessoas do GPIHMAE pelas trocas e incentivo para seguir em frente, em especial a Camila Feltre, Priscila Passos, Auana Diniz, Thelma Löbel, Levi Pinto e Mariana Benatti. As professoras Rita Luciana Berti Bredariolli, pela (des)orientação e por acreditar no meu trabalho, Rejane Galvão Coutinho e Jociele Lampert pela leitura cuidadosa e encorajamento não só da minha pesquisa, mas do meu trabalho como professora. r e s u m o Esta pesquisa busca investigar os espaços de voz e silêncio que estudantes têm na escola pública, enfatizando em um primeiro momento como os processos de escolarização ensinam, de forma implícita, o disciplinamento dos corpos, a obediência e o silêncio, destacando o papel fundamental da arquitetura e da estrutura escolar nesse sentido. Os aspectos da visualidade e da cultura visual produzida e vivenciada no espaço escolar são pontos de partida para uma análise acerca dos discursos e significados mediados por elas e para as propostas de intervenção realizadas junto a estudantes do Ensino Fundamental II em uma escola da rede municipal de ensino da cidade de São Paulo, durante as aulas de arte e em projetos no contraturno da escola, estabelecidos na tentativa de ocupar os espaços da escola com as vozes das estudantes e observar as repercussões e desdobramentos dessas ações. Também é intenção aqui debater o entendimento das imagens que ocupam a escola como escolhas pedagógicas que dão visibilidade a determinados discursos visuais ao mesmo tempo em que invisibilizam outros, assim como a relevância que essas imagens podem ter no encorajamento ou no silenciamento das vozes das estudantes. Por fim, há uma reflexão sobre a formação de um grupo de meninas na escola entre 2018 e 2019, acompanhada de uma análise sobre a ação coletiva como forma possível de identificar, reconhecer e assumir a própria voz. Enfatizando as desigualdades vividas pelas diferentes trajetórias escolares, sobretudo as de gênero, classe e raça, a pedagogia libertária anarquista orienta a perspectiva pedagógica e política adotada tanto nas práticas pedagógicas quanto artísticas, apontando nas considerações finais para o entendimento das estratégias visuais como práticas artísticas, políticas e pedagógicas que podem desestabilizar algumas certezas, questionar hierarquias e vislumbrar o exercício da liberdade como ação que deve ser praticada e construída de forma coletiva. palavras-chave: Escola pública. Cultura Visual. Intervenção artística. Silenciamento. a b s t r a c t This research aims to investigate the spaces of voice and silence that students have in the public school, emphasizing at first how schooling processes implicitly teach the disciplining of bodies, obedience and silence, highlighting the fundamental role of school architecture and structure in this sense. The aspects of visuality and visual culture produced and experienced in the school space are a starting points for an analysis about the speeches and meanings mediated by them; and for the intervention proposals carried out with elementary school students in a municipal public school in the city of São Paulo, during art classes and after-school projects, that was established as a way of trying to occupy school spaces with the voices of students and observe the repercussions and consequences of these actions. It is also intended here to debate the understanding of the images that occupy the school as pedagogical choices that give visibility to certain visual discourses while making others invisible, as well as the relevance that these images can have in encouraging or silencing students’ voices. Finally, there is a reflection about the formation of a girls’ group in the school between 2018 and 2019, accompanied by an analysis of collective action as a possible way of identifying, recognizing and assuming their own voice. Emphasizing the inequalities experienced in different school trajectories, especially those of gender, class and race, the anarchist libertarian pedagogy guides the pedagogical and political perspective adopted in both pedagogical and artistic practices; pointing at the final considerations to the understanding of visual strategies as artistic, political and pedagogical practices that can destabilize some certainties, question hierarchies and envision the exercise of freedom as an action that must be practiced and built collectively. keywords: Public school. Visual Culture. Artistic intervention. Silencing. l i s t a d e i m a g e n s Imagem 1 – Foto da autora, ninguém se importa (2017). Fonte: arquivo pessoal. p. 17 Imagem 2 – Foto da autora, cartaz produzido por estudante do 8º ano (2018). Fonte: arquivo pessoal. p. 31 Imagem 3 – Foto da autora, Foto da autora, pôr-do-sol de dentro da escola (2017). Fonte: arquivo pessoal. p. 32 Imagem 4 – Montagem feita a partir de fotos da intervenção com post-its escritos por estudantes do 8ºano (2018). Fotos (2018) e montagem da autora (2020). Fonte: arquivo pessoal. p. 61 Imagem 5 – Foto da autora, último dia de aula (2018). Fonte: arquivo pessoal. p. 69 Imagem 6 – Gravura em EVA, Y. e C. (2017). Fonte: arquivo pessoal. p. 70 Imagens 7 e 8 – Fotos da autora, interior da escola (2019). Fonte: arquivo pessoal. p. 75 Imagens 9 e 10 – Fotos da autora, detalhes sala de aula (2019). Fonte: arquivo pessoal. p. 75 Imagens 11 e 12 – Foto da autora, interior da escola com trabalhos e imagens expostas (2019). Fonte: arquivo pessoal. p. 79 Imagens 13 e 14 – Foto da autora, interior da escola com paredes vazias ao final do semestre (2019). Fonte: arquivo pessoal. p. 85 Imagem 15 – Foto da autora, sala de aula vazia, (2019). Fonte: arquivo pessoal. p. 86 Imagens 16 a 31 – Fotos da autora, dizem as paredes, [2010-2019]. Fonte: arquivo pessoal. p. 89 Imagens 32 a 34 – Fotos da autora, placas produzidas por estudantes do 8º ano (2018). Fonte: arquivo pessoal. p. 95 Imagem 35 – Foto da autora, placa produzida por estudante do 8º ano (2018). Fonte: arquivo pessoal. p. 96 Imagem 36 - Bruno Perê, registro da intervenção Desobediência não tem cura,dória (2018). Fonte: instagram @desobedienciainaotemcura p. 97 Imagem 37 – Mujeres Creando, registro da Grafiteada en El Alto (2018), p. 98 Imagens 38 e 39 – Anônimo, cartaz da campanha gráfica #vivanosqueremos (2017). Fonte: mujerescreando.org. p. 100 Imagem 40 – Taller Popular de Serigrafia , diferentes deseos, iguales derechos. Fonte:Twitter: @museomalba. p. 101 Imagem 41 – Guerrilla Girls , As mulheres precisam estar nuas para entrar no Museu de Arte de São Paulo? (2017). Fonte: guerrillagirls.com. p. 102 Imagem 42 – Foto da autora, greve geral (2017). Fonte: arquivo pessoal. p. 105 Imagem 43 – Foto da autora, sala de aula após aula sobre intervenção (2018). Fonte: arquivo pessoal. p. 104 Imagem 44 – Foto da autora, lousa na E. E. Romeu Gomes durante a ocupação de estudantes (2015). Fonte: arquivo pessoal. p. 109 Imagem 45 – Foto da autora (2017). Fonte: arquivo pessoal. p. 110 Imagem 46 – Foto da autora, intervenção feita por estudante do 7º ano (2018). Fonte: arquivo pessoal. P. 115 Imagens 47 e 48 – Foto da autora, intervenção feitas pela autora (2018). Fonte: arquivo pessoal. P. 116 Imagens 49 e 50 – Foto da autora, intervenção feitas por estudantes (2018). Fonte: arquivo pessoal. P. 117 Imagens 51 e 52 – Montagens feita a partir de fotos das intervenções feitas por estudantes do 7ºano (2018). Fotos (2018) e montagem da autora (2020). Fonte: arquivo pessoal. p. 119 Imagens 53 e 54 – Fotos da autora (2018). Fonte: arquivo pessoal. p. 110 Imagem 55 – Foto da autora, exposição de cartazes em sala de aula (2018). Fonte: arquivo pessoal. p. 127 Imagem 56 – Foto da autora, cartazes produzidos e utilizados por professoras durante greve (2018). Fonte: arquivo pessoal. p. 127 Imagem 57 – Cartaz, Campanha pela liberdade para Rafael Braga (2014). Fonte: Facebook: Liberdade para Rafael Braga. P. 129 Imagem 58 – Foto da autora (2018). Fonte: arquivo pessoal. p. 130 Imagem 59 – Foto da autora, cartaz feito por estudante do 9º ano (2018). Fonte: arquivo pessoal. p. 130 Imagem 60 – Foto da autora (2018). Fonte: arquivo pessoal. p. 134 Imagens 61 a 68 – Fotos da autora, cartazes feitos por estudante do 9º ano (2018). Fonte: arquivo pessoal. p. 135-142 Imagem 69 e 70 – Fotos da autora, cartazes feitos por estudante do 7º ano (2018). Fonte: arquivo pessoal. p. 144-145 Imagem 71 – Estudante do 9º ano, esboço de cartaz (2018). Fonte: arquivo pessoal. p. 146 Imagem 72 – Foto da autora, intervenção de estudante do 7º ano (2018). Fonte: arquivo pessoal. p. 155 Imagem 73 – Foto da autora, porta do banheiro feminino (2019). Fonte: arquivo pessoal. p. 157 Imagem 74 – Foto da autora (2019). Fonte: arquivo pessoal. p. 172 Imagem 75 – Foto da autora, mural (2019). Fonte: arquivo pessoal. p. 173 Imagens 76 a 79 – Fotos da autora, produção do mural (2019). Fonte: arquivo pessoal. p. 177-178 Imagem 80 – Foto da autora, mulheres cansadas (2019). Fonte: arquivo pessoal. p. 181 Imagem 81 – Foto da autora, banheiro feminino (2019). Fonte: arquivo pessoal. p. 182 Imagens 82 a 87 – Fotos da autora, produção dos lambes (2019). Fonte: arquivo pessoal. p. 186-187 Imagem 88 – Foto da autora (2019). Fonte: arquivo pessoal. p. 188-189 Imagem 89 a 94 – Fotos da autora, portas do banheiro (2019). Fonte: arquivo pessoal. p. 190 - 191 Imagem 95 – Foto da autora, panorâmica do banheiro (2019). Fonte: arquivo pessoal. p. 192 Imagem 96 – Foto da autora (2019). Fonte: arquivo pessoal. p. 193 Imagem 97 – Foto: Andrea Giunta , detalhe post-it (2019), detalhe de lambe (2019). Fonte: arquivo pessoal. p. 194 Imagem 98 – Foto da autora, de onde dá pra ver o céu? (2019). Fonte: arquivo pessoal. p. 199 Imagem 99 – Foto da autora, estudante observam a janela (2019). Fonte: arquivo pessoal. p. 202 Imagens 100 e 101 – Foto da autora, reflexo das intervenções feitas na janela (2019). Fonte: arquivo pessoal. p. 21o e 211) 1. por que a escola tem grades? 1.1. trajetórias escolares e o direito à palavra 34 1.2. espaço, corpo e algumas coisas implícitas 38 essa tal liberdade 39 os espaços dos gêneros, os gêneros dos espaços 40 espaços e segregação 48 1.3. o chão da escola 51 professora módulo, professora regente 51 o ensino da arte na escola municipal em São Paulo 55 perguntar (nem sempre) ofende? 60 sobre a indisciplina e as violências escolares 65 2. f***-se seu machismo: imagens da escola, imagens 2.1. o ambiente escolar e a cultura visual 71 2.2. dizem as paredes 88 desobediência 95 institucionalização 103 ação direta e ajuda mútua 105 2.3. intervir na escola 111 falta tantas dúvidas 111 todo pokemón evolui 125 para onde aponta o dedo do meio? 143 2.4. discursos visuais e relações de poder 148 3. 3.1. sexismo na socialização escolar 159 3.2. projeto elas por elas 164 mural das mulheres cansadas 172 dizem as portas do banheiro 182 3.3. ação coletiva, identidade coletiva 195 considerações finais: de onde dá pra ver o céu? 18 [...] Quando é verdadeira, quando nasce da necessidade de dizer, a voz humana não encontra quem a detenha. Se lhe negam a boca, ela fala pelas mãos, ou pelos olhos, ou pelos poros, ou por onde for. Porque todos, todos, temos algo a dizer aos outros, alguma coisa, alguma palavra que merece ser celebrada ou perdoada. (GALEANO, 2010, p. 23) 19 Era abril. Meu segundo dia naquela escola, a segunda escola em que lecionei, minha terceira semana na rede municipal de ensino de São Paulo e como professora no ensino formal. Primeiro dia de aula com o 8ºC. Propus uma roda. Nos apresentávamos e conversávamos sobre arte e porque ter aula de arte na escola. Ao menos, toda minha energia concentrava-se nessa direção. De repente, não mais que de repente, uma mulher que eu nunca havia visto antes – era meu segundo dia de aula, afinal – abre a porta da sala. Sem se apresentar, sem pedir licença e sem hesitar em nenhum momento, ela entrou. Entrou e atravessou a roda, a conversa e todo aquele esforço que precisamos fazer para conciliar a dispersão, a desatenção, o desinteresse e os devaneios em uma conversa com estudantes entre 13 e 14 anos tendo pela terceira vez no ano uma primeira aula de artes – e era abril. Ela se colocou diante de mim e me inquiriu sobre o que havia acontecido na parede da sala do 8ºA: se já estava daquele jeito quando cheguei, quem estava na sala antes de mim, se eu sabia quem tinha feito aquilo. Atônita, perguntei a ela se essas respostas não poderiam esperar o final da aula; e perguntei a mim mesma como esse espaço da sala de aula pode ser tão frágil e exposto a tantas hierarquias pouco preocupadas com as relações que se estabelecem ali dentro. Uma aula antes desta, estive no 8ºA. A parede da sala havia sido descascada, exibindo algumas camadas de cores de pinturas antigas: antes de ser aquele verde bandeira claustrofóbico, já tinha sido azul “bebê” e um bege “cor-de-burro-quando- foge”. Comentei com estudantes que ali estavam como eu gostava de ver o tanto de memória que se escondia em cada camada de tinta. Não notei ou não dei muita importância para as cascas de tinta no chão e não tinha visto naquilo um problema até ter sido interpelada e atropelada pela ilustre desconhecida. Outro dia, outra sala de aula, vi escritas as palavras “ninguém se importa” com corretivo branco se destacando no verde da parede. Nunca soube quem as escreveu e nem se o que motivou aquele pixo-desabafo foi um coração partido, uma indignação com a estrutura escolar, com o sistema capitalista ou apenas uma piada interna da qual eu estava por fora. Assim como também nunca soube qual foi o desfecho daquele incidente da tinta descascada, se as pessoas responsáveis foram identificadas e devidamente punidas (que é a forma de resolver os problemas na escola e no mundo, de um modo geral) ou não. 20 Aquelas palavras me chamaram a atenção tanto quanto as camadas de tinta expostas principalmente pela forma como elas se apagaram no decorrer do ano: ao final do segundo semestre me dei conta de que não estavam mais lá e não pude perceber há quanto tempo tinham deixado de estar. Aquela escola possuía um arsenal de tinta verde para encobrir suas memórias e abafar a voz de quem ousasse se sobrepor, ainda que brevemente, a ordem estabelecida, para tapar os poros e não deixar respirar. A pixação ou qualquer manifestação espontânea vinda de estudantes, um crime, e aquela escola, com suas paredes lisas, verdes e frias, um espaço para aprender a ouvir e ficar quieto. Foi assim que a ideia da escola pública como produtora de silêncios passou a tirar meu sossego. Mas antes disso, foi também por ter vivido todos os níveis de escolarização em escolas públicas e só conseguir reconhecer o meu silêncio e a minha voz nesses espaços depois que já não estava mais neles. Agora, inserida no ensino como professora de arte em uma Escola Municipal de Educação Fundamental (EMEF) na cidade de São Paulo e por perceber o inevitável lugar de autoridade que minha voz e meus silêncios ocupam nesse contexto, me pergunto e tento identificar quais aspectos do ambiente e da convivência escolar influenciam na forma como as estudantes aprendem a se ver e a se colocar no mundo. Há valores cultivados na escola de um modo geral e na aula de arte especificamente que podem, simultaneamente, silenciar determinados grupos de pessoas enquanto outros se apoderam da palavra? Quais seriam eles? Como eu os aprendi e como posso evitá-los ou reforçá-los dentro da minha prática pedagógica? O que se aprende sobre modos de ser, de ver, de se ver e de agir no ambiente escolar e na forma como as relações são construídas neste espaço? Muitas das escolas públicas da cidade de São Paulo operam dentro da lógica da proibição e da restrição: grades dentro e fora das salas de aula, paredes monocromáticas e lisas, quase nenhuma área aberta e muros altos que, de dentro, nos restringem a vista do céu, do dia e do tempo. As filas, o sinal fabril, o banho de sol na hora do intervalo, mais grades que fecham o acesso ao pátio. Sabonete, papel higiênico e trinco apenas na porta do banheiro destinado às docentes, ao qual só estas têm acesso, assim como às chaves das portas das salas de aula. Assim é a escola em que por dois anos fui professora de arte, na periferia da zona norte da cidade, e a que atualmente leciono na zona oeste. Assim eram as duas escolas em que trabalhei em 2017, as que fiz estágio durante a graduação e as que, num passado mais distante, estudei, todas na zona sul da cidade. Através do controle, da violência e da disciplina, a arquitetura fria e hostil ensina o não, a obediência, a ordem e a subordinação, bem recompensados por um sistema de notas, avaliação e merecimento. A contenção dos corpos, que desde os seis anos vão deixando de brincar e aprendendo a se “comportar bem” e a seguir as regras 21 previamente estabelecidas, é incorporada e assimilada rapidamente pela maioria de estudantes. Quem não se encaixa nessa lógica prisional ou não se adequa facilmente a ela logo classifica-se como “aluna problema” e, se possível, é diagnosticada e medicada. Há várias respostas prontas para esses casos: “você acha que tem vontade própria?”, “quem manda aqui sou eu!”, “aqui você escuta e fica quieta!”. É sobre as violências, em especial as simbólicas, produzidas e reproduzidas cotidianamente pelo ambiente escolar, e o reflexo delas na construção das relações e da forma como estudantes aprendem a ser e a se colocar no mundo que se desenha o primeiro capítulo desta dissertação. Nele, as ideias da escritora feminista bell hooks1 (2017) são ponto de partida para confrontar as relações de classe e raça com a compreensão das desigualdades que constituem trajetórias escolares distintas, evidenciando o abismo existente entre o ensino privado e o público. Também são abordados os apontamentos de Linda McDowell (2000) e José Miguel G. Cortés (2008), que fundamentam a análise de aspectos arquitetônicos e espaciais decisivos para a corporificação de aprendizados implícitos – isto é, aqueles que não estão explicitados no currículo – e que podem ser entendidos como mecanismos de silenciamento e desencorajamento da fala e da voz de estudantes. Esse capítulo tem também o propósito de evidenciar como o processo de escolarização igualmente reforça – ao mesmo tempo em que produz – as diferenças de gênero, marcando como referência padrão a sexualidade masculina e heterossexual. Segundo Guacira Lopes Louro: Da arquitetura aos arranjos físicos; dos símbolos às disposições sobre comportamentos e práticas; das técnicas de ensino às estratégias de avaliação; tudo opera na constituição de meninos e meninas, de homens e mulheres — dentro e também fora da escola (uma vez que a instituição "diz" alguma coisa não apenas para quem está no seu interior, mas também para aqueles/as que dela não participam). Torna-se difícil, de fato, pensar sobre a escola sem que se considere, articuladamente, todos esses dispositivos, arranjos, técnicas ou procedimentos e sem que se perceba como eles agem sobre todos os sujeitos e, em especial, sobre estudantes e mestres. (1997, p. 91) Para aprofundar a compreensão acerca de como tais dispositivos, arranjos, técnicas ou procedimentos agem sobre as sujeitas faz-se necessário contextualizar a escola pública de onde falo: uma específica, cujo chão e paredes trouxeram os relatos e vivências que se desdobram nos capítulos dois e três desta pesquisa. É preciso contextualizar, também, os aspectos gerais da escola pública e municipal na cidade de São Paulo, perpassada por violências, silêncios, burocracias e escolhas políticas e 1 A grafia em minúsculo é uma opção da própria autora, que assim assina todas as suas obras. 22 pedagógicas comuns sob o pretexto de formar sujeitas igualmente comuns, além de apresentar uma caracterização da escola entendida como aparelho ideológico do estado. Não há a pretensão, entretanto, de expor ou pessoalizar cargos, funções ou indivíduos, daí a escolha por não nomear a escola específica de onde falo, tampouco seus agentes; a intenção é analisar a eles e aos lugares que ocupam como parte de uma instituição envolta por disputas de poder, o que de forma alguma os isenta de responsabilidade diante de seus posicionamentos, escolhas e omissões dentro desta estrutura, mas não faz deles alvo central dos apontamentos e críticas aqui dirigidas. Do mesmo modo, não nomearei as estudantes envolvidas em vista de resguardar suas identidades. Apoiada em referenciais teóricos dos estudos da cultura visual, como os de Irene Tourinho (2009, 2011) e Fernando Hernández (2005, 2009, 2011), o segundo capítulo desta pesquisa é dedicado a reflexões e questionamentos sobre a normatização visual através das imagens e da visualidade vivenciadas e produzidas no espaço escolar que, simultaneamente, mantém e são mantidas por discursos entendidos como “neutros”. Partilhando da ideia de hooks (2018, p. 49) de que a crítica por si só não leva à mudança, o capítulo segue com uma breve contextualização sobre a noção de intervenção a partir de referências artísticas, políticas e teóricas adotadas para a pesquisa artística e pedagógica desenvolvida na escola, orientada por práticas e ações de intervenções visuais pautadas na liberdade como princípio balizador. Assim, as questões centrais descritas e analisadas nesse capítulo se desenvolvem em torno dos processos de criação das intervenções realizadas na escola com as turmas dos 7ºs, 8ºs e 9ºs anos durante o ano de 2018, e das reverberações e desdobramentos dessas intervenções, que tinham como objetivo investigar e propor outras formas de vivenciar a visualidade no ambiente escolar e de repensar as formas de ver, estar ou ocupar seus espaços. Quando escrevi o projeto inicial desta pesquisa, em 2017, enquanto lecionava na escola das paredes do verde que chamei claustrofóbico (era algo próximo de um verde bandeira), minha preocupação voltava-se principalmente para como o silêncio ensinado ao longo da escolarização pública reflete no silenciamento de meninas e mulheres no mundo fora da escola. Naquela altura, eu não tinha ideia de que no ano seguinte me removeria2 para uma escola de paredes verdes e azul-bebê, que lá permaneceria por dois anos buscando alternativas para intervir naquelas cores pastéis e que essa busca 2 Profissionais da educação municipal podem deslocar-se para outras unidades escolares se assim o desejarem. A remoção ocorre através da indicação de unidades escolares e o deslocamento se efetiva dependendo da pontuação de cada candidata, pontuação relacionada a evolução na carreira. Para profissionais que estão no estágio probatório, isto é, nos três anos iniciais da carreira, acaba sendo mais difícil conseguir remover-se para escolas de mais fácil acesso ou em que seja possível completar a carga necessária de aulas, tornando complicada a permanência em uma mesma unidade e, consequentemente, comprometendo a continuidade do trabalho pedagógico. 23 mudaria o foco da pesquisa para os espaços de voz e silenciamento que as estudantes encontram dentro da própria escola. Entendendo a voz não apenas como a capacidade de emitir sons e falar, mas também como o espaço para se posicionar e ser ouvida a partir de sua própria perspectiva e do lugar social que ocupa; a fala, propriamente dita, como a capacidade de articular o pensamento e o corpo em palavras, gestos ou imagens e exteriorizá-las de forma que se faça entender; e o silêncio como a ausência da voz e/ou da fala e de condições favoráveis para que elas se estabeleçam, foi fundamental observar em que medida a construção social dos papéis de gênero, indissociáveis da questão de raça e classe, incentivam, restringem ou negam o direito à palavra dentro do processo de escolarização. A compreensão do ensino da arte, em que o “falar” constitui-se também em explorar, conhecer e criar outras formas de ler e se pronunciar sobre o mundo3, colide com determinadas práticas e aprendizados já cristalizados em que os termos estão definidos sob uma ótica branca, masculina, colonizadora e eurocêntrica, tida como neutra e, por isso, pouco problematizada ou colocada em questão. Então, o direito à palavra é ensinado através da escola como algo restrito e autorizado a quem “naturalmente” enxerga o mundo por essa ótica ou quem se adequa a ela, ignorando que, dentro da dicotomia em que escola e vida estão apartadas, a palavra é aprendida principalmente na rua, no convívio, na necessidade, reinventada pela proibição, e não na análise morfológica ou sintática. Até aqui, de onde vejo, as vozes das estudantes precisam pedir licença para existir e são constantemente abafadas pela ordem insípida e homogeneizante da limpeza e da contenção dos ruídos visuais e sonoros. Diante dessa perspectiva, que marca minhas trajetórias como estudante e como professora, outra ideia que passou a me perseguir foi a da escola pública como produtora de vozes: se lhe negam a boca, a voz humana “fala pelas mãos, ou pelos olhos, ou pelos poros, ou por onde for” (GALEANO, 2010, p. 23). Esta investigação passou então a caminhar lado a lado com o trabalho enquanto professora na busca pelo exercício da fala e da voz das estudantes através de propostas de intervenções artísticas e discussões realizadas durante as aulas de arte. Ao mesmo tempo, me vi às voltas com um processo artístico e criativo de investigação de possibilidades e redescobertas poéticas sobre as poucas janelas da escola onde bate sol. O terceiro capítulo é dedicado a traçar um breve panorama de práticas sexistas de escolarização e observar como tais práticas agem sobre a subjetividade das sujeitas 3 Referência à ideia de leitura de mundo em Paulo Freire: “A leitura do mundo precede a leitura da palavra, daí que a posterior leitura desta não possa prescindir da continuidade da leitura daquele.” (1989, p. 9). 24 dessa escolarização. O capítulo está centrado na formação de um grupo de meninas na escola, que teve início em 2018 por iniciativa das estudantes, e da realização de novas ações e intervenções por este grupo com foco específico nas questões levantadas por elas próprias. Me proponho ainda a refletir sobre a ação coletiva como forma de pertencer e de identificar espaços possíveis de voz e se estes seriam capazes de se sobrepor – ainda que brevemente – a toda a estrutura que impõe o silêncio e a obediência. Todo o percurso de trabalho e pesquisa aqui apresentados está cravado no chão da escola pública e enredado a um dilema crucial sobre esse espaço como espaço de dominação ou de resistência. Tendo essa questão como pano de fundo, trago a pedagogia libertária como fundamento para a forma como vejo a educação e oriento minha prática pedagógica, pautando a partir dessa perspectiva minhas considerações finais sobre o exercício da liberdade e as (im)possibilidades de transformação da educação pública e estatal no contexto de uma sociedade capitalista. A pedagogia libertária configura-se como uma proposta anarquista para a educação baseada, de acordo com o filósofo anarquista Silvio Gallo, na "afirmação da liberdade e na negação radical da dominação e da exploração" (2007, p. 20), tendo, portanto, o anticapitalismo, a ajuda mútua, a autonomia, a autogestão, a horizontalidade e a ação direta como princípios primordiais a partir dos quais, nas palavras de Gallo Os anarquistas assumem de vez tal caráter político da educação, querendo colocá-la não mais a serviço da manutenção de uma ordem social, mas sim de sua transformação, denunciando as injustiças e desmascarando os sistemas de dominação, despertando nos indivíduos a consciência da necessidade de uma revolução social (2001, p. 23). Tomei conhecimento da existência da pedagogia libertária em 2015, ao me aproximar e integrar uma experiência prática do que ela se propõe ser, o Cursinho Livre da Lapa4 (CLL). Organizado e gerido de forma autônoma e horizontal, o CLL surgiu dentro da Casa Mafalda (um espaço igualmente autônomo encerrado em 2016), com a proposta de ser não só um cursinho pré-vestibular preparatório para uma prova eliminatória e elitista como o vestibular, mas também uma experiência pré- universitária que abranja uma formação política e possibilite um ingresso na universidade de modo crítico. Foi ali também que um grupo de estudos se formou, disposto a aprofundar o entendimento sobre a pedagogia libertária, cujas leituras e 4 A este respeito ver mais em: https://lapalivre.wixsite.com/cursinho/quem-somos. Acesso em 22 jun. 2020. 25 discussões coletivas, além do apoio, me possibilitaram a elaboração das questões que orientaram minha prática pedagógica e esta investigação. Embora eu não integre mais o coletivo do CLL e o grupo de estudos tenha se dissolvido em 2019 por haver mais entusiasmo do que tempo, posso afirmar que o estudo coletivo aliado a práticas pedagógicas coletivas – ou a partilha coletiva delas – permitiram confrontar e conviver com as contradições de uma pedagogia que pretende ensinar e construir a liberdade em um mundo que a todo custo tenta nos fazer obedecer e ficar quieto (seja como estudantes ou professoras). Assim, a impossibilidade de uma prática pedagógica a partir de todos os princípios em que acreditamos exerce no coletivo a função de horizonte que nos faz continuar caminhando e “buscando estratégias políticas de transformação social. Abandonando, assim, a imobilidade de um passado de tradições para abrir-se ao futuro como um novo horizonte de possibilidade” (GALLO, 2007, p. 49). Outra questão não tão otimista que fica é como – e se – essa busca no chão da escola pode se efetivar de forma isolada e solitária, como vemos acontecer na maior parte do tempo. Nesse contexto de trabalho pedagógico no ensino formal na escola pública, considero importante ressaltar as adversidades postas primeiro diante da conciliação entre trabalho e pesquisa, dadas as extensas cargas horárias de dedicação exigida por cada uma das atividades, o desgaste físico e emocional proporcionado pelas longas horas de deslocamento pela cidade e a dificuldade de acompanhar as leituras e debates nas disciplinas depois de madrugar e encarar os 6ºs anos, levando ao consequente sentimento de impotência e de incapacidade refletido na vontade perene de desistir das duas coisas. 26 É preciso lembrar que, não à toa, professora é a categoria profissional que mais adoece e tem os maiores números de afastamentos por saúde no nosso país5 (TEIXEIRA, 2018, online). Ver diariamente colegas de trabalho adoecendo enquanto insistem em acreditar no papel da educação na transformação dessa sociedade injusta e desigual e, do mesmo modo, adoecer, precisando muitas vezes ceder a práticas que rejeito e desacredito em troca da tentativa de preservar um pouco da saúde mental, não é conciliável com muitos discursos que romantizam o papel da professora, que insistem nas supostas possibilidades ofertadas pelas brechas, pelas frestas e pelas exceções em que se constata que é possível fazer diferente e fazer “bonito” na escola pública. Não digo tudo isso para atenuar eventuais faltas ou falhas no processo desta investigação nem para enaltecê-la, mas para reforçar a ideia de que quem pisa o chão da escola precisa falar sobre ela. Esse é um processo de procurar saídas, tentar fechar feridas e ao mesmo tempo abrir e expor outras. Falar, ter voz, existir: Quando os acadêmicos de classe trabalhadora ou de origem trabalhadora partilham suas perspectivas, subvertem a tendência de enfocar somente os pensamentos, as atitudes e experiências dos materialmente privilegiados. A pedagogia crítica e a pedagogia feminista são dois paradigmas de ensino alternativos que realmente deram ênfase à questão de encontrar a própria voz. Esse enfoque se revelou fundamental exatamente por ser tão evidente que os privilégios de raça, sexo e classe dão mais poder a alguns alunos que a outros, concedendo mais “autoridade” a algumas vozes que a outras. (hooks, 2017, p. 246) Foi com bell hooks (2017, p. 243) que a ideia da escola pública como produtora de silêncios passou a tomar forma e palavras em mim. A autora aponta o quanto espaços de produção e legitimação de conhecimento como a academia reproduzem diversas hierarquias de classe, antagônicas à classe trabalhadora, como o uso de uma linguagem muitas vezes pouco didática e acessível e a imposição do silêncio, ambos mecanismos de manutenção de poder. De acordo com hooks, esses antagonismos de classe evidenciados na academia poderiam ser usados não para reforçar o sentimento de não pertencimento de estudantes e professoras de classe trabalhadora, mas para subverter e desafiar a estrutura existente. Segundo Belmira Oliveira Bueno (2002), diversas pesquisas têm destacado aspectos dos métodos autobiográficos que desencadeiam, através da subjetividade, uma valorização da voz da professora como sujeita da investigação e não apenas como objeto, 5 A esse respeito ver: PAPARELLI, Renata. Desgaste mental do professor da rede pública de ensino: trabalho sem sentido sob a política de regularização de fluxo escolar. Orientadora: SATO, Leny. 2009.Universidade de São Paulo, São Paulo, 2009. Disponível em: http://www.teses.usp.br/teses/disponiveis/47/47134/tde- 07122009-145916/. Acesso em: 01 ago. 19. 27 desconstruindo imagens estereotipadas formadas acerca dessas profissionais e reconceitualizando a forma como elas percebem a si e a relação teoria-prática no seu trabalho. Encontrar a própria voz como pesquisadora e como professora passa por repensar a investigação teórica não apenas como uma atividade acadêmica isolada (MESQUITA, 2011, p. 23) e por se reconhecer enquanto agente ativa dentro do processo pedagógico, entendendo as palavras como ação e compreendendo a produção teórica como uma prática social que pode ser libertadora, curativa e revolucionária se a dirigirmos nessa direção (hooks, 2017, p. 86). É desse lugar que falo. Um lugar em que minha trajetória como estudante – construída sobre silêncios de diversas ordens – e educadora se entrelaça à minha prática pedagógica e às relações de trabalho implicadas nela, ao meu trabalho artístico e ao meu envolvimento pessoal e afetivo em todas essas instâncias. Portanto, não foi tarefa simples estipular limites entre elas, até o momento em que, investigando, notei que isso não era possível nem preciso (assim como navegar), e que, antes de mim, outras pessoas já se depararam com embates parecidos e buscaram saídas, abriram caminhos, romperam com algumas estruturas silenciadoras e homogeneizantes, traçando a possibilidade de percursos em que, como este, o sentido é construído, e não encontrado ou descoberto (DIAS, 2014, p.252). Para tanto, as imagens integram esta pesquisa como memória, poética, metáfora e narrativa de um percurso investigativo simultaneamente pedagógico, artístico e teórico, dimensões que se fundem e confundem ao longo do processo, fazendo da visualidade e da produção da cultura visual escolar elementos tão importantes quanto as palavras escritas. Assim, reconheço com Luciana Gruppelli Loponte (2005, p. 119) que “o olhar analítico aqui é um olhar arbitrário, organizado a partir de determinadas escolhas teóricas e metodológicas, constituintes do próprio objeto que não está passivo esperando nossas chaves de interpretação”. Tais escolhas, portanto, permeiam um caminho metodológico híbrido entre o método autobiográfico e modalidades recentes de pesquisa como a a/r/tografia, uma derivação da Pesquisa Baseada em Arte (PBA) e da Pesquisa Educacional Baseada em Arte (PEBA)6 . De acordo com Belidson Dias (2013, p. 23), a PBA e PEBA, como método investigativos, desafiam as convenções acadêmicas, buscando “deslocar intencionalmente modos estabelecidos de se fazer pesquisa e conhecimentos em artes, ao aceitar e ressaltar categorias como incerteza, imaginação, ilusão, introspecção, visualização e dinamismo” (DIAS, 2013, p. 23). Nessa toada, a a/r/tografia abrange as 6 Correspondem respectivamente aos termos em inglês: Arts-based forms of research (ABR) e Arts-based educational research (ABER). Segundo Belidson Dias e Rita Irwin (2013, p. 23), no Brasil também se usa as terminologias Investigação Baseada nas Artes (IBA) e Investigação Educacional Baseada nas Artes (IEBA). 28 práticas artísticas, educativas e investigativas e privilegia tanto o texto escrito quanto a imagem, colocando a criatividade à frente do processo de ensino, pesquisa e aprendizagem e “incentivando novas maneiras de pensar, engajar e interpretar questões teóricas como um pesquisador, e práticas como um professor” (DIAS, 2014, p. 253). Rita Irwin complementa tal raciocínio apontando o caráter “intervencionista” que a a/r/tografia pode ter, já que muitas vezes os a/r/tógrafos "concentram seus esforços em melhorar a prática, compreender a prática de uma perspectiva diferente, e/ou usar suas práticas para influenciar as experiências dos outros” (IRWIN, 2013, p. 29). Já o método autobiográfico é, de acordo com Bueno (2002, p. 11), considerado a partir dos anos 1980, quando houve uma reconfiguração dos estudos sobre a formação docente que passou a dar ênfase na figura da professora, abarcando sua vida, carreira e percursos profissionais, considerando a subjetividade passível de constituir formulações teóricas em diversas áreas. Essa perspectiva apresenta-se como “opção e alternativa para fazer a mediação entre as ações e a estrutura, ou seja, entre a história individual e a história social” (BUENO, 2002, p. 17) e faz ser pertinente trazer algumas indagações de Loponte acerca da possibilidade de pensarmos em uma “arte-docência”. A autora nos pergunta se a “arte-docência” [...] é de certa forma desobediente a regras pré-determinadas, e inventiva na criação de novos modos de docência menos normalizados? Voltamos novamente nossos olhos ao espaço escolar: que sujeito é esse que está na escola? Que professora é essa subjetivada pelo conhecimento de manual, pelas imagens e discursos estereotipados dos livros didáticos? O que resta para essa professora, "encharcada" por essas relações de poder e saber? Que poética e ética são possíveis em uma escola ainda amarrada a um modo moderno de ver o mundo? Quais os espaços para práticas de liberdade? (LOPONTE, 2005, p. 93) Refletindo sobre essas indagações, recorro aos registros fotográficos, gráficos e anotações sobre os processos pedagógicos relatados nesta busca por espaços de liberdade docente e discente, assim como à minha memória, para construir relatos e narrativas não apenas como um acontecimento passado, mas algo capaz de decidir "o que fazer do passado no próprio momento do relato" (BRUNER, 1997, p. 104). Em outras palavras, o distanciamento temporal e crítico das experiências vivenciadas, em diálogo com a fundamentação teórica, permite elaborar os acontecimentos sob pontos de vista e perspectivas novos, de forma a ressignificá-los através dos relatos. Nesse processo, considero importante explicitar duas escolhas táticas de caráter político, relativas ao domínio da linguagem, feitas ao longo do processo de escrita e materialização desta investigação. Primeiro, renuncio à pretensa neutralidade da 29 terceira pessoal do plural, assumindo a primeira pessoa do singular sempre que necessário, como forma de ativar a narrativa e a perspectiva em que me coloco. A segunda escolha diz respeito a marcar o gênero feminino, aceitando o risco de tornar a leitura cansativa ou mesmo confusa, com o propósito de expor o quanto a utilização do “masculino como genérico tornou invisível a presença das mulheres na história, na vida cotidiana, no mundo” (RIO..., 2014, p. 25), em especial se tratando da categoria docente, profissão majoritariamente exercida por mulheres que, no entanto, é sempre referida na “neutralidade” do masculino7. Assim, opto pelo termo estudantes no lugar de alunos, por ser tanto um termo que não carregada o estigma da passividade que o dicionário (MICHAELIS, online) e boa parte da literatura pedagógica historicamente atribuem ao aluno (pessoa que tem pouco conhecimento; que recebe instrução), sendo definido como um sujeito ativo que busca adquirir instrução ou alguma habilidade, quanto um substantivo comum de dois gêneros, isto é, que pode ser empregado sem a necessidade de identificar o gênero a menos quando exige um artigo que, nesses casos, serão femininos, mesmo que o assunto inclua estudantes do sexo masculino. Do mesmo modo, utilizarei sempre as professoras ao me referir a um grupo de docentes, ainda que haja homens entre elas. Faço, contudo, ressalvas às citações diretas, em que respeito as grafias originais. Com essas escolhas pretendo reconhecer que as linguagens “não são inertes, e sim instrumentos em trânsito” (RIO..., 2014, p. 26), que os discursos são práticas e que, portanto, podemos reaprender a utilizá-los e reconstruí-los. Retomando hooks, fazer das palavras, ação, requer um esforço no sentido de não as usar para produzir e reproduzir hierarquias e, ao mesmo tempo, tê-las como armas e escudos úteis para nossa luta. “Para mim, essa teoria nasce do concreto, de meus esforços para entender as experiências da vida, de meus esforços para intervir criticamente na minha vida e na vida de outras pessoas” (hooks, 2017, p.97). E n t r e o c h ã o e a p a r e d e , c o n c r e t o s , a c o n c r e t u d e d a s p a l a v r a s . 7 A este respeito, consultar Manual para uso não sexista da linguagem. Disponível https://edisciplinas.usp.br/pluginfile.php/3034366/mod_resource/content/1/Manual%20para%20uso%20 n%C3%A3o%20sexista%20da%20linguagem.pdf. Acesso em: 04 mar 2019 30 32 33 Nunca me esqueci da vez em que ouvi uma professora dizer a um menino do 5° ano que ele deveria melhorar sua letra caso quisesse “ser alguém na vida”, pois ninguém era capaz de entendê-la. Isso foi durante a graduação, enquanto fazia os estágios de observação em uma escola pública na zona sul de São Paulo, há mais de dez anos. Desde então observo como a ideia de que a educação é uma etapa fundamental da vida para que se possa “ser alguém” é recorrente tanto no âmbito escolar, em salas de aula, sala de professores e reuniões pedagógicas, como no âmbito familiar e em discursos políticos. Sobre esse aspecto, bell hooks (2017, p. 235) argumenta como somos encorajados desde o Ensino Fundamental a entrar na sala de aula acreditando que esse é um espaço democrático capaz de nos igualar através do desejo de estudar e onde, a despeito das diferenças de classe, "o conhecimento será distribuído em proporções iguais e justas" e proporcionará a todas as mesmas chances de “chegar lá” e de “ser alguém na vida” ou, pelo menos, de alcançar algum lugar mais ou menos distante do nosso ponto de origem. Atribuir à educação o democrático papel de correção das desigualdades e injustiças sociais implica em apostar no esforço individual e meritocrático como o melhor caminho para “chegar lá” ou, nas palavras de hooks, “subir a escada do sucesso” (2017, p. 235). Esse percurso, entretanto, se revela injusto ao tornar evidente as distâncias assimétricas entre os pontos de “partida” e os de “chegada”. Segundo o sociólogo Luiz Antônio Cunha (1977, p.55), romantizar o lugar da educação como redentora e salvadora encobre a perspectiva de que tanto a escola quanto as desigualdades são produzidas e mantidas por uma mesma ordem econômica que, embora não seja sempre encarada ela própria como injusta e desigual, é sustentada exatamente por essas desigualdades. Autores como o antropólogo francês Pierre Bourdieu (2017) nos ajudam a deslocar essa discussão, até então centrada principalmente em fatores econômicos, para uma ótica em que a cultura é colocada em lugar e termos análogos à economia, como podemos observar na utilização de conceitos como “capital cultural” e “capital escolar”8. Assim, está em pauta não apenas a materialidade diretamente relacionada à ordem econômica, mas também as vantagens simbólicas produzidas através de determinados gostos, hábitos, modos de agir e se comportar, formas de socialização e relações sociais 8 Bourdieu emprega os termos capital cultural e capital escolar no sentido da apropriação institucional através da formação escolar, social e familiar de saberes e conhecimentos legitimados socialmente e que, por garantirem ou restringiram acesso a bens simbólicos, funcionam como instrumento de dominação (2017). 34 valorizadas em detrimento de outras. Na mesma direção, hooks (2017, p. 236) afirma que a classe social não se refere apenas ao dinheiro, mas que ela “molda os valores, as atitudes, as relações sociais e os preconceitos que definem o modo como o conhecimento será distribuído e recebido”. O processo de escolarização seria, então, uma das principais instâncias em que tudo isso será moldado. No Brasil, a escola pública, onde estudam as filhas e filhos das classes populares e trabalhadoras, está associada ao ensino implícito da obediência, do individualismo, da padronização do comportamento, do “ouvir e ficar quieto”. Ao mesmo tempo, escolas com projetos pedagógicos mais abertos e definidos, como as democráticas ou construtivistas, em sua grande maioria privadas, são conhecidas por praticar e incentivar a autonomia, a liberdade e estimular estudantes a falarem, terem dúvidas e questionarem. Essa diferença de práticas pedagógicas contribui para produzir um abismo entre as vivências de quem passou pela escolarização numa escola pública e quem viveu esse processo em uma escola privada. Neste capítulo, serão abordados alguns aspectos das violências escolares, principalmente as simbólicas, comuns nas escolas públicas; violências derivadas do processo de escolarização e que podem ser entendidas como mecanismos de silenciamento e desencorajamento da fala de estudantes. 1 . 1 . t r a j e t ó r i a s e s c o l a r e s e o d i r e i t o à p a l a v r a Analisando a evolução das estruturas de classe brasileiras entre as décadas de 1970 e 2000, o sociólogo Carlos Antônio Costa Ribeiro (2014, p. 208) destaca a educação como principal determinante da mobilidade social no Brasil. No entanto, o autor também conclui que a educação não elimina o efeito das classes de origem para a mobilidade social, já que a estrutura social brasileira é bastante rígida, principalmente quanto mais alta for a classe de origem. Em um outro estudo, Ribeiro, juntamente com Pedro Ferreira de Souza e Flavio Alex de Oliveira Carvalhaes (2014, p.20) investiga o efeito da origem social, da raça e da educação na desigualdade de oportunidades no Brasil com base em dados sobre a mobilidade social entre os anos de 1982 e 1996. Concluindo que o impacto da educação na mobilidade social é muito maior do que a classe de origem ou a cor, os autores afirmam que “os resultados sugerem, portanto, que o efeito mais forte da cor e da origem provavelmente se dá justamente nos processos de aquisição de escolaridade, e não na trajetória dentro do mercado de trabalho propriamente dito” (CARVALHAES; 35 RIBEIRO; SOUZA, 2014, p.82) e deixam indicativos de que novos estudos deveriam considerar os efeitos de cor e classes de origem nas trajetórias escolares ao invés de concentrarem-se no efeito recíproco apenas entre as duas variáveis. É importante levar em conta que vinte a cinquenta anos, com marcadas mudanças sociais e políticas, nos separam dos períodos investigados nos estudos citados. Dados recentes do IBGE (IBGE, 2016, online)9 nos mostram, por exemplo, que em dez anos, após a implementação de políticas de ação afirmativa como as cotas nas universidades públicas, o número de estudantes negros entre 18 e 24 anos que frequentam o ensino superior no Brasil quase dobrou, o que representa 12,8% dos negros nessa faixa etária matriculados na faculdade em 2015 (valor que equivale a menos da metade dos jovens brancos nas mesmas condições matriculados no ensino superior no mesmo período). Essas mudanças nas últimas décadas nos levam a crer que análises sobre a mobilidade social e sua interação com as variáveis de cor e classe partindo de dados atuais possivelmente obteriam resultados distintos. Nesses mesmos indicadores sociais do IBGE (2016) é possível perceber que a porcentagem de mulheres negras que concluem o ensino superior é drasticamente menor (menos da metade) do que a de mulheres brancas. Retomando os estudos já citados, que apontam para a existência de um abismo entre quem tem um diploma do ensino superior e os demais em termos de mobilidade social, fica evidente, então, que a diferença tende a aumentar quando entrelaçamos à trajetória escolar as barreiras raça, classe e gênero e que, portanto, tais barreiras merecem um olhar atento e cuidadoso. Em seu livro A distinção, Bourdieu (2017) destaca a autoridade conferida pelo diploma, reconhecida tanto por quem os detém como por quem não os detém. Tal autoridade traz legitimidade à palavra das pessoas “diplomadas”, que acabam sendo favorecidas em relação ao silêncio da incapacidade técnica “dos menos competentes, das mulheres, dos menos instruídos, daqueles que ‘não sabem falar’” e que delegam aos “autorizados” a responsabilidade dos assuntos políticos (BOURDIEU, 2017, p. 387). Segundo o autor, quanto menor o capital escolar, isto é, quanto menor a apropriação institucional da cultura “legítima” através da formação escolar, maior a propensão para delegar a outros essa responsabilidade. Em suas próprias palavras: [...] para compreender a relação entre o capital escolar e a propensão para responder às questões políticas, não basta levar em consideração a capacidade de compreender o discurso político, de reproduzi-lo e até mesmo de produzi-lo, que é garantida pelo diploma escolar; convém 9 A este respeito ver mais em: IBGE. Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios: síntese de indicadores 2015. 2016. Disponível em: https://www.ibge.gov.br/estatisticas-novoportal/multidominio/condicoes-de- vida-desigualdade-e-pobreza/9221-sintese-de-indicadores-sociais.html?edicao=9222&t=downloads. Acesso em: 13 jul. 2018. 36 fazer intervir, também, o sentimento – autorizado e incentivado do ponto de vista social – de ter bons motivos para dedicar-se à política, de ser autorizado a falar de política, de ter autoridade para falar politicamente das coisas políticas, implementando uma cultura política específica, ou seja, princípios de classificação e análises explicitamente políticos, em vez de responder pontualmente a partir de princípios éticos. (BOURDIEU, 2017, p. 383) A trajetória escolar compreenderia então o deslocamento ao longo do processo de formação escolar institucionalizada, envolvendo investimento de capital econômico e acumulação de capital cultural reconhecido como legítimo. Essas trajetórias são, portanto, uma das principais vias através das quais se constitui e se consolida o habitus10 de classe e a valorização de comportamentos, gostos e de uma “gramática de classe”, isto é, de um conjunto de normas e padrões considerados desejáveis e aceitáveis de acordo com determinados grupos e classes sociais. Ainda de acordo com Bourdieu (2017), as marcas mais eficientes das posições de dominação são transferidas para o plano simbólico uma vez que os gostos e comportamentos valorizados e incentivados ao longo das trajetórias escolares são aqueles hegemônicos e alheios às classes dominadas. O direito à palavra e a “gramática de classe” dizem respeito a aprender e assimilar uma postura corporal, um modo de ser e de se colocar no mundo, de falar, de gesticular, de organizar e exteriorizar suas ideias e pensamentos e, como coloca Bourdieu, estar autorizado e ser incentivado a ocupar determinadas posições. As diferentes trajetórias escolares, entretanto, explicitam as desigualdades relativas aos sistemas educacionais, não apenas no que se refere à qualidade de ensino, mas às práticas sociais como resultado das condições de vida de cada grupo social, no que diz respeito à alimentação, moradia, segurança e ao desenvolvimento físico e emocional (CUNHA, 1977), entre outras coisas, que também influirão sobre o silêncio, sobre não saber falar ou não ter bons motivos para ocupar ou disputar determinados espaços. De dentro da escola, a convivência entre crianças e jovens que partilham da mesma trajetória escolar, seja no sistema público ou privado, não dá a elas a dimensão da diferença que existe entre passar anos da vida sendo incentivada a questionar, duvidar e se sentir à vontade para levantar a mão e dar uma opinião ou fazer uma pergunta (mesmo sem ter certeza ou domínio do assunto em discussão) e apenas ouvir, obedecer e ficar quieto, cumprindo tarefas e regras sem necessariamente compreendê- 10 De acordo com Bourdieu (2017, p. 162), o habitus de classe se define como "princípio gerador de práticas objetivamente classificáveis e, ao mesmo tempo, sistema de classificação de tais práticas. Na relação entre duas capacidades que definem o habitus, ou seja, capacidade de produzir práticas e obras classificáveis, além da capacidade de diferenciar e de apreciar essas práticas e esses produtos (gosto), é o que se constitui o mundo social representado, ou seja, o espaço dos estilos de vida". Em outras palavras, o habitus pode ser entendido como um conjunto de práticas distintas e distintivas associadas aos estilos de vida pertinentes a determinadas condições econômicas e sociais. 37 las. Uma vez fora da escola, jovens se deparam com realidades muito distintas daquelas com as quais foram familiarizadas dentro de seus nichos escolares e familiares. Como afirma Ana Maria Freitas Teixeira (2011, p. 46-47): Em verdade, as desigualdades de acesso são continuamente reescritas na trajetória escolar desses jovens. Desigualdades reiteradas no momento em que se dá o ingresso, sobretudo nos primeiros períodos do curso de graduação, quando o enfrentamento de exigências institucionais e intelectuais mais complexas [...] vão esbarrar na história socioescolar desse grupo e evidenciar o movimento entre escolha e adaptação. Assim, o acesso à universidade, seletivo desde o valor da taxa de inscrição para o vestibular de universidades públicas ou das mensalidades em universidades privadas, não é democrático e tanto restringe a entrada de estudantes procedentes de escolas públicas e de maiorias socialmente marginalizadas, como dificulta sua permanência nesses espaços. Para essas estudantes, chegar à universidade pode significar confrontar silenciosamente aprendizados escolares implícitos: observar como alguns grupos de pessoas conseguem articular bem a fala e o pensamento teórico e intelectual e se posicionar com ideias contundentes e coerentes muitas vezes se transforma em frustração por não identificar em si essa mesma desenvoltura intelectual e argumentativa, trazendo à tona um sentimento de inadequação ou incapacidade que camufla as questões de classe, de raça e de gênero incrustadas na formação escolar. O direito à palavra, isto é, poder falar e existir em determinados espaços, é um dos aprendizados implícitos nos processos de escolarização e nos tipos de socialização e práticas sociais aprendidas nos espaços escolares, como veremos mais adiante. Embora refira-se a sua vivência como professora universitária nos Estados Unidos, hooks (2017, p. 236) coloca em perspectiva certas normas e condutas que, apesar de subjacentes, são ensinadas pelo exemplo e reforçadas por um sistema de recompensas passíveis de encontrar paralelo em uma sala de aula no ensino básico na cidade de São Paulo: Falar alto, demonstrar raiva, expressar emoções e até algo tão aparentemente inocente quanto uma gargalhada irreprimida eram coisas consideradas inaceitáveis, perturbações vulgares da ordem social da sala. Esses traços também eram associados à pertença às classes sociais inferiores. Se uma pessoa não provinha de um grupo social privilegiado, poderia progredir se adotasse uma conduta semelhante à de tal grupo. Os alunos ainda precisam assimilar os valores burgueses para ser considerados aceitáveis. (hooks, 2017, p. 236-237) 38 De acordo com a autora, é possível identificar na sala de aula de muitas universidades – assim como em muitas escolas de ensino básico – a imposição do silêncio associada a uma postura corporal e a "bons modos" que reforçam os valores burgueses de preservação da ordem através de estratégias pedagógicas tendenciosas dificilmente vistas dessa forma (hooks, 2017). Voltando a Bourdieu, a perspectiva da dominação simbólica acontece principalmente nesse âmbito escolar, através de discursos pedagógicos e curriculares em que os códigos culturais dominantes são ensinados, naturalizados e encarados como “oficiais”. Assim, como coloca Tomaz Tadeu da Silva (2011, p. 35), a partir das contribuições de Pierre Bourdieu e Jean-Claude Passeron, o currículo se baseia e se expressa na linguagem dominante, fazendo com que as crianças das classes dominadas que não pertencem a esses códigos não consigam decifrá-los ao mesmo tempo em que não reconhecem seus códigos como válidos e acabam por abandonar mais cedo essa trajetória. Enquanto isso, as crianças das classes hegemônicas se sentem confortáveis e familiarizadas com os códigos dominantes e deslizam com certa tranquilidade por sua trajetória escolar em que setas em neon piscando indicam o percurso “natural” a seguir11. 1 . 2 . e s p a ç o , c o r p o e a l g um a s c o i s a s i m p l í c i t a s “A liberdade não é teórica. A liberdade ou se vive ou mal se entende dela” afirma Luiz Telles12 (2012), arquiteto responsável pelo projeto do Centro Cultural São Paulo (CCSP) em parceria com Eurico Prado Lopes, em uma série de vídeos lançada no site do CCSP em sua homenagem. Nesses vídeos, o arquiteto reflete sobre o modo como a arquitetura interfere na forma das pessoas se relacionarem e como os espaços do Centro Cultural, através de seus vários percursos possíveis, diversas entradas, saídas e lugares para estar – sem a obrigação de consumir algo – favorecem o encontro, o convívio e o exercício da liberdade. 11 Silva (2011, p. 36) pondera, entretanto, que da análise de Bourdieu e Passeron sobre a escola como reprodutora e perpetuadora da dominação cultural, não se pode deduzir que a cultura dominante é indesejável e, em decorrência disso, a cultura das classes dominadas seria desejável. Segundo Silva, os dois autores franceses advogam que a pedagogia e o currículo proporcionem também às crianças das classes dominadas uma imersão na cultura dominante, tendo sido amplamente criticados e na mesma medida mal interpretados. É inegável, entretanto, que sua teorização foi fundamental para mudanças radicais na forma de pensar o currículo. 12 Informação verbal retirada de entrevista dada em comemoração aos 30 anos do Centro Cultural São Paulo publicada pelo canal Web Radio TV CCSP. Disponível em: https://vimeo.com/43268588. Acesso em: 25 mai. 2019. 39 Antes de abordar algumas investigações e teorias sobre como a arquitetura e os espaços ajudam a construir e organizar nossas experiências e significados (e as relações disso com nossas vivências escolares), se faz necessário discutir as ideias de liberdade e autoridade, partindo do ponto de vista da pedagogia libertária13 com o qual essa pesquisa dialoga para, a partir daí, voltar o olhar e o corpo para as percepções acerca dos discursos e da função social que a arquitetura exerce. e s s a t a l l i b e r d a d e A visão da liberdade enquanto prática colocada por Luiz Telles vai ao encontro de como o filósofo anarquista Silvio Gallo encara a liberdade dentro da educação: para Gallo14, talvez não faça sentido “educar para a liberdade”, pois assim supõe-se que o educador conduz a sujeita de uma condição de “não-liberdade” à condição de “livre”, o que seria um tanto paternalista. Segundo o filósofo, a liberdade deve ser praticada cotidianamente como um processo de autodeterminação da sujeita. Nesse processo, a criança, tendo como referência a atitude do educador, autor de si, pode encontrar o caminho para a constituição de sua subjetividade (GALLO, 1995, p. 75). Apoiado nas ideias do anarquista russo Mikhail Bakunin (1814-1876), para quem só é possível ser livre no coletivo e quando toda a sociedade for livre, Gallo aponta a escola como um lugar privilegiado para se aprender a liberdade coletivamente (1995, p. 80). De acordo com o autor (GALLO, 1995), a pedagogia libertária deve assumir o princípio da autoridade – e não do autoritarismo – como necessário dentro do processo de formação e aprendizado pré-político, isto é, na preparação das crianças para a vivência e ação política autônoma e livre dentro de uma sociedade em que a autoridade não esteja presente, cujas relações sejam de autonomia na igualdade. Essa autoridade pré-política, entretanto, não deve ser confundida com autoridade política, terreno onde ela se torna instrumento de poder, de coerção e exploração (GALLO, 1995, p. 72). Nas palavras de Bakunin, uma educação libertária “toma como ponto de partida a autoridade e deve sucessivamente desembocar na mais completa liberdade” (1989, p. 45), que deverá ser aprendida e conquistada como bem comum coletivo ao longo desse processo. 13 A noção de pedagogia libertária adotada ao longo de toda essa investigação está explicitada na introdução (p. 24) 14 Informação verbal retirada do debate “Conversas Libertárias”, realizado com Silvio Gallo em 07 jun. 19 no Espaço Capoeira Angola Omoayê, em São Paulo. 40 Sob a perspectiva liberal, a liberdade muitas vezes é vista como uma metodologia através da qual valoriza-se o indivíduo, seus aprendizados e escolhas de formas individualizadas, que devem ser respeitadas e, desde o início, exercidas pelas crianças de modo “livre e natural”. Com relação à autoridade, enquanto o liberalismo político a nega, assim como nega a função pré-política da escola ao relegar essa função a outras instituições, como a mídia, a educação tradicional vê “a autoridade pedagógica como a fundamentação para a autoridade sócio-política, fazendo da escola o local do aprendizado da submissão” (GALLO, 1995, P. 72). Para Gallo (1995), a pedagogia libertária propõe uma abordagem em que a noção de autoridade não é vista como imposição de poder ou força mas como a possibilidade que uma educadora tem de auxiliar a criança no processo de ampliar seus modos de ver e entender o mundo, as relações que estabelece nele e as formas possíveis de agir sobre ele. Nesse sentido, seria irresponsável se eximir de oferecer a elas referenciais a partir dos quais podem aprender a se autodeterminar – sempre em relação ao coletivo – como contraponto àqueles impostos pelo modo de produção capitalista (GALLO, 1995). A pedagogia libertária encara a liberdade como um horizonte, um objetivo a ser alcançado coletivamente que, para ser praticado, deve atravessar não apenas discursos e escolhas individuais, mas abarcar todas as vivências cotidianas com relação aos espaços e seus usos, às visualidades oferecidas, às decisões políticas e tudo o que se refira e faça parte da vida comum. Portanto, nesta dissertação e na minha prática pedagógica, adoto o conceito de liberdade oferecido por Gallo e Bakunin, e não aquele defendido pelo liberalismo político. Uma questão importante levantada por Silvio Gallo15 (2019), ainda, é como podemos, e se é possível, dentro dos nossos contextos escolares e inseridas em uma sociedade capitalista, produzir coletivamente práticas de liberdade. Essa questão será tratada com mais profundidade nos próximos capítulos e, por enquanto, retomaremos a discussão sobre os espaços, seus usos e como moldam e configuram as relações estabelecidas neles. o s e s p a ç o s d o s g ê n e r o s , o s g ê n e r o s d o s e s p a ç o s Planejar um espaço que propicie o encontro, o convívio e o exercício – coletivo – da liberdade, como aquele planejado por Luiz Telles e Eurico Prado Lopes, implica em 15 Informação verbal retirada do debate “Conversas Libertárias”, realizado com Silvio Gallo em 07 jun. 19, no Espaço Capoeira Angola Omoayê, em São Paulo. 41 concordar que a arquitetura é, como coloca José Miguel G. Cortés “uma estrutura que ajuda a construir e organizar nossas experiências; é um discurso que constrói significados e estabelece conteúdos”, e ainda que ela “tem uma participação muito importante na formação da imagem da ordem social e até mesmo em sua configuração e imposição” (2008, p. 39). Mas se é possível utilizar a arquitetura para construir experiências que promovem a liberdade e o encontro de pessoas, também se pode utilizá-la como um instrumento que representa a autoridade – aqui entendida no seu sentido tradicional de poder decidir ou fazer obedecer – ao mesmo tempo que, sob discursos tecnicistas pretensamente desprovidos de ideologia, é capaz de ocultar seus propósitos e mecanismos (CORTÉS, 2008, p. 39). Assim, tomando o ambiente escolar (de uma escola específica que ao mesmo tempo remete a tantas outras) como nosso interesse central, começamos por observar a criação de espaços assépticos e puros, em um sentido que aspira a neutralidade, cujas paredes de cores sólidas e frias (semelhantes ao que encontramos em hospitais e postos de saúde), associadas a amplas áreas comuns, como os pátios com poucos lugares para se sentar e estar e com poucos obstáculos para o movimento ou a visão, com uma intensa iluminação artificial e poucas janelas por onde podemos ver a luz do dia, configuram um ambiente pouco acolhedor e sujeito à constante vigilância, inclusive através de câmeras estrategicamente instaladas, que permitem disciplinar e controlar os corpos que por ali circulam. Ao mesmo tempo em que esta arquitetura escolar preserva, nas palavras do pensador francês Michel Foucault (2013, p 166), “o velho esquema simples do encarceramento e do fechamento – do muro espesso, da porta sólida que impedem de entrar ou sair”, tanto pelas portas da sala de aula quanto pelos portões que dão acesso à quadra e à rua, ela também abre espaço aos cheios e vazios, às passagens e à amplitude sem obstáculos das áreas como o pátio, onde se torna visível qualquer movimento de quem nele se encontra, assim como é possível visualizar todas as portas das salas de aula e acessos por onde qualquer pessoa precisa passar para entrar ou sair. Comentando sobre o esquema vigilante do panoptismo16 analisado por Foucault, Cortés entende que 16 O panoptismo refere-se ao projeto do britânico Jeremy Benthan que em 1787 publicou diversos textos explicando a figura arquitetural de uma prisão que nunca chegou a ser construída. Segundo Foucault, "o Panóptico é uma máquina de dissociar o par ver-ser visto: no anel periférico, se é totalmente visto, sem nunca ver; na torre central, vê-se tudo, sem nunca ser visto." De acordo com esse esquema, na torre central encontra-se um vigia e nas celas, localizadas no anel periférico, tranca-se "um louco, um doente, um condenado, um operário ou um escolar" (2013, p. 191). 42 são as formas arquitetônicas que, com seus projetos espaciais, são responsáveis pela observação e espionagem; uma arquitetura vigilante que tem objetivos disciplinares e que institucionaliza a tecnologia do poder com o objetivo de reprimir os indivíduos, fabricar corpos submissos e adestrados – e de impor o silêncio (2008, p.42). Todas as poucas janelas que adornam o prédio da escola estão cobertas por grades, o que torna impossível olhar o lado externo sem o intermédio das duras barras de ferro. Como se pode observar no cartaz que abre este capítulo com a pergunta “por que a escola tem grades?”, é recorrente ouvir de estudantes falas sobre o sentimento de aprisionamento e de que são vistas como bandidas que não podem fugir. Segundo Foucault (2013), a disciplina precisa distribuir e dividir as pessoas espacial e temporalmente e, para isso, utiliza diversos recursos, muitos dos quais podem ser identificados no ambiente escolar, notadamente: a cerca, ou muros, que delimita de maneira sistemática o espaço e tempo da clausura, de onde ninguém poderá entrar ou sair, ao mesmo tempo que isola e divide as indivíduas; a fila, que além de impor uma distância entre os corpos e, mais uma vez, individualizá-los, marca de modo incisivo a divisão entre meninas e meninos; as fileiras, que exercem a mesma função das filas, além de impedir o contato visual entre estudantes e direcionar seus olhares para a mesma direção; o horário, marcado por um sinal estridente e fabril, que regula o tempo que deve ser plenamente preenchido com ocupações determinadas, repetidas em ciclos, e estabelece o controle de quando, onde e o quê cada uma deve estar fazendo a cada ciclo. Trata-se, portanto, de estruturas criadas para educar o corpo e codificar seu comportamento a fim de torná-los dóceis e úteis (CORTÉS, 2008, p. 45). Outros elementos da arquitetura escolar, como a forma linear, a escassez de ornamentos, a claridade e a austeridade são bastante significativas pois, ainda segundo Cortés (2008, p. 57), remetem a aspectos de uma arquitetura quase militar que intenta reiterar a imposição da força masculina e evidenciá-la a toda a sociedade. No entanto, os aspectos comumente associados à masculinidade não devem ser descolados das construções sociais de gênero, isto é, a despeito das diferenças dos papéis considerados adequados aos homens e às mulheres e aos respectivos atributos aceitos de masculinidade e de feminilidade. O conceito de gênero já recebeu diversas formulações e, como aponta a historiadora norte-americana Joan Scott (1995), parece ter sido adotado inicialmente por feministas americanas como substituto para a palavra “mulher”, buscando legitimidade acadêmica para os estudos feministas nos anos 80. Mais adiante, a compreensão de que qualquer informação ou estudo sobre as mulheres também se refere aos homens e de que masculino e feminino não são esferas separadas uma da 43 outra ampliou a noção de gênero que, na síntese de Scott, pode ser entendida como uma “categoria social imposta sobre um corpo sexuado” (1995, p. 75). Autoras como Judith Butler foram fundamentais para que esse conceito não fosse cristalizado como algo estático, problematizando a heterossexualidade normativa e os vínculos entre a materialidade do corpo e a performatividade de gênero17 (BUTLER, 1999). Por ora, nos deteremos em enfatizar as relações sociais entre os gêneros com aporte dos estudos da geógrafa feminista Linda McDowell que nos propõe pensar sobre “a relação entre as divisões de gênero e as divisões espaciais, para descobrir como elas se constituem mutuamente e mostrar os problemas ocultos por trás de sua aparente naturalidade” (2000, p. 27). No livro Gênero, identidade e lugar: um estudo das geografias feministas, McDowell busca examinar em que medida homens e mulheres usufruem dos espaços e lugares de modos diferentes e identificar essas diferenças como constitutivas tanto do lugar como do gênero. De acordo com ela, muitas autoras têm demonstrado como esse sistema binário de divisão dos papéis de gênero está enraizado nas estruturas do pensamento ocidental e como ele estabelece hierarquias que reforçam a inferioridade feminina e menospreza características associadas à feminilidade (2000, p. 26). Assim, em suas palavras: [...] as mulheres e as características associadas à feminilidade são irracionais, emocionais, dependentes e privadas, e mais próximas da natureza do que da cultura; enquanto os atributos masculinos são apresentados como racionais, científicos, independentes, públicos e cultivados. Mulheres, como geralmente se afirma, estão à mercê do corpo e das emoções; os homens, por outro lado, representam a superação desses aspectos básicos; eles são para a mente o que as mulheres são para o corpo. (McDOWELL, 2000, p. 26, tradução nossa18) A autora segue argumentando que, por serem considerados “naturais”, os atributos associados à mulher e ao feminino geralmente não são vistos como dignos de análises acadêmicas sérias. Nessa direção, devemos destacar o quanto a escola reitera a dominação masculina não apenas pelo predomínio da racionalidade e do conhecimento científico em detrimento da natureza e do “irracional”, no que diz respeito à organização e distribuição do conhecimento entendido como válido, mas também pelo 17 A este respeito, ver mais em: BUTLER, Judith. "Corpos que pesam: sobre os limites discursivos do 'sexo'". In: LOURO, Guacira Lopes (Org.). O corpo educado: pedagogias da sexualidade. Belo Horizonte: Autêntica, 2000. p. 151-172. 18 Do original: “Así, las mujeres y las características asociadas a la feminidad son irracionales, emocionales, dependientes y privadas, y más cercanas a la naturaleza que a la cultura; mientras que los atributos masculinos se presentan como racionales, científicos, independientes, públicos y cultivados. Las mujeres, según suele afirmarse, se hallan a merced del cuerpo y las emociones; los hombres, en cambio, representan la superación de esos aspectos básicos; ellos son a la mente lo que las mujeres al cuerpo.” 44 disciplinamento do corpo que, situado na ordem da feminilidade, deve ser reprimido e adestrado, como já foi dito. Concordando com Cortés, “no mundo ocidental, a subordinação cultural do feminino por parte da masculinidade hegemônica se define, no caso específico da construção do espaço social, mais por tudo que é negado do que pelo que é dito” (2008, p. 135). Não é de se estranhar, portanto, que um dos poucos espaços escolares destinados ao domínio do corpo seja aquele onde se tornam mais explícitas as diferenças entre as formas de experimentar o corpo por meninas e meninos na escola: subentende-se que a quadra esportiva é de uso prioritariamente masculino – na grande maioria das aulas de educação física, o futebol, esporte predominantemente masculino, é irrefutável e os meninos se organizam e se revezam entre si para jogar; à maioria das meninas ficam reservados os cantos e espaços secundários das quadras, nos quais elas podem jogar outros jogos ou apenas ficar sentadas conversando; as poucas meninas que se atrevem a disputar esse espaço – para jogar futebol, apenas – muitas vezes são tratadas como “café-com-leite”, sendo subestimadas ou ignoradas durante os jogos ou, ainda, precisando assumir uma postura entendida como mais “masculina”, isto é, mais agressiva, para conseguirem jogar de igual para igual. A esse respeito, Louro (1997, p. 73-74) destaca a centralidade que a prática esportiva exerce na formação da masculinidade, como parte "natural" da existência masculina, e também aponta que no debate acerca das "diferenças de habilidades físicas" o mais importante não deveria ser determinar se essas distinções são naturais ou culturais, mas talvez [...] observar o efeito que essa questão vem tendo na organização e na prática da disciplina. Embora se valendo de discursos de diferentes matrizes, muitos professores e professoras atuam, ainda hoje, com uma expectativa de interesses e desempenhos distintos entre seus grupos de estudantes. A idéia de que as mulheres são, fisicamente, menos capazes do que os homens possivelmente ainda é aceita. (LOURO, 1997, p. 74) Tanto Cortés quanto McDowell compreendem o gênero e a arquitetura como produções culturais que, portanto, estão suscetíveis a mudanças derivadas do contexto social e histórico em que estão localizadas, bem como dos espaços e das relações da vida cotidiana (2008, 2000). Desse modo, as expectativas de comportamento e desempenho apropriado para cada gênero variam não só de uma época para outra, mas de acordo com o lugar e as interações que proporcionam, assim como as distintas formas de pensar e representar as relações de gênero criam o lugar e o lugar cria as relações de gênero (McDOWELL, 2000, p.20). 45 É comum que nas escolas, assim como na maioria dos ambientes da nossa sociedade, as expectativas sobre o comportamento das meninas sobressaiam e se façam presentes de forma mais contundente do que aquelas dirigidas aos meninos: que vistam roupas “adequadas” (leia-se como roupas que não exponham nem evidenciem o corpo), que se portem como “meninas”, isto é, sejam delicadas nos modos, não “deem ousadia” aos meninos nem falem alto ou respondam “como meninos”. Na sala dos professores, já ouvi comentários criticando estudantes que “se vestiam como vagabundas” ou sobre uma menina que foi repreendida pela professora porque um colega passou a mão nela, mas nunca ouvi nada parecido a respeito de meninos que as assediam ou mesmo que fazem comentários sobre o corpo das professoras. Pelo contrário, tolera-se mais a “indisciplina” vinda da parte dos meninos, assim como de estudantes brancos. Pensar as relações sociais e de poder propiciadas pelos espaços implica em pensar o corpo não apenas como um organismo material dotado de características físicas como forma e tamanho, mas como um tipo de código repleto de significados. Nesse sentido, o corpo pode ser visto como o primeiro lugar da experiência social, cuja representação e a forma de ser percebido pelos outros, que variam de acordo com os lugares que ocupam, nos ajudam a nos situar no mundo, a entender quem somos e a constituir nossa identidade (McDOWELL; CORTÉS, 2000; 2008). Cortés (2008) sustenta ainda que, por não existir um corpo natural e sem condicionamento, toda sociedade possui um código de representação desse corpo e, portanto, lida com a necessidade de conformá-lo aos valores que prevalecem nela. Em suas palavras: Com efeito, na sociedade ocidental, a configuração do nosso corpo influencia de forma mais que evidente nossa existência social e cultural. Desse modo, em uma época baseada na juventude, na saúde e na beleza física, o corpo se apresenta como um símbolo capaz de gerar grande ansiedade emocional. Em um mundo no qual a aparência e a “imagem” se transformaram nos valores supremos, o corpo não apenas transmite mensagens à sociedade em que vivemos como também se transforma no conteúdo dessas mensagens, refletindo até que ponto as normas socialmente reconhecidas foram assimiladas. Portanto, o corpo funciona como um signo econômico, espacial e cultural – um veículo que ajuda a fixar o vocabulário dos papéis dos gêneros. (CORTÉS, 2008, p. 125) Se por um lado a escolarização silencia continuamente os corpos, por outro, os corpos pré-adolescentes e adolescentes que ocupam o espaço escolar permanecem centrais à medida que são marcados não apenas pelas mudanças e transformações características da idade, que evidenciam fisicamente as diferenças sexuais, mas também pela imagem predominante do corpo tido como aceitável e a expectativa – na maioria das vezes frustrada – de se ajustar a essa imagem. Além da ansiedade emocional gerada 46 por esse processo, apontada por Cortés, a busca por aceitação e adequação do corpo afeta as adolescentes de modo particularmente perverso: nas portas dos banheiros femininos19 podemos ver o legado da institucionalização do patriarcado20 veladamente reforçado e dificilmente combatido de forma sistemática pela escola. Lá estão expostas as autodepreciações, disputas, comparações e ofensas trocadas entre as meninas, que serão abordadas no último capítulo desta pesquisa. A figura do corpo feminino é objetificada desde muito cedo e midiatizada como algo consumível – além de intrinsecamente consumidor. Na escola, antes mesmo de concluírem os anos iniciais do ensino básico (conhecido como Ensino Fundamental I, que corresponde do 1º ao 5º ano), a maioria das meninas assume a representação desse corpo cuja preocupação é se o “cabelo está ok, sobrancelha ok, maquiagem ok, unha está ok”, como canta Thiaguinho MT no hit do verão de 2020. Através da normatização das regras que o regula – como manter as pernas fechadas, não correr, não praticar esportes que exigem contato físico etc. – este corpo deve permanecer preservado e protegido. Uma escola onde o controle do uso do uniforme não é rigoroso abre pequenas brechas através das quais a escolha da própria roupa pode contrariar as regras que regulam e moldam o corpo. Muitas vezes, as escolhas das meninas acabam sendo usadas como justificativa, por exemplo, para o assédio sexual – inclusive o praticado por professores –, já que os corpos não estavam devidamente escondidos e preservados. Assim, o argumento difundido de que o propósito do uniforme escolar é a segurança e o fácil reconhecimento de estudantes fora da escola pode ser questionado quando voltamos nossa atenção para a necessidade e a utilidade de padronizar os corpos através de um aparato de origem militar que, de acordo com a professora Sandra Mara Corazza, é definido como aquilo que só tem uma forma. Uniforme também é dito de farda ou fardamento, como um vestuário padronizado de uso regulamentar em uma corporação, classe ou instituição criado para tornar os seus integrantes iguais, idênticos, semelhantes Uniformes são vidas, criaturas, condutas, sensações consideradas monótonas, regulares, constantes, imutáveis. Uniforme opõe-se à variedade e diversidade, por isso, costuma ser desqualificado como algo tedioso e indesejável por seu caráter padronizador. (2004, p. 55) 19 Refiro-me especialmente ao banheiro feminino da escola em que trabalhei entre 2018-2019. Apesar desse tipo de ofensas ou recados ser comum em diversos banheiros públicos, não deve ser entendido aqui como uma generalização. 20 De acordo com Maria Elena Acuña (2019, p.4), o termo "patriarcado" literalmente significa "governado pelo homem chefe da unidade social", tendo como exemplo a família tradicional. No entanto, no século XX pensadoras feministas começaram a usar esse conceito para referirem-se ao "sistema social de dominação masculina sobre as mulheres", fundamental em muitas discussões que tentam identificar as bases da subordinação das mulheres. Há diversos pontos de vista acerca de como o patriarcado se expressa, dentre elas a divisão sexual do trabalho, a violência e o capitalismo. Algumas críticas acusam a definição do termo de ser demasiadamente universalista e ahistórica ou, ainda, argumentam que ela reduz o problema da subordinação à relação homem-mulher (ACUÑA, 2019). 47 Não é apenas o corpo das estudantes que é uma questão controversa dentro do espaço escolar. Como professora do ensino básico, noto o esforço principalmente das professas em manter seus corpos despercebidos e padronizá-los, por exemplo, através do uso de aventais. Ainda assim, muitas vezes são alvo de comentários, constrangimentos, assédio e exposição não só por estudantes como também por colegas professores. Sobre a relação do corpo com o ensino, hooks (2017, p. 253) nos indaga o que fazer com ele na sala de aula, enquanto professoras. Compartilho, por exemplo, da dúvida que hooks enfrentou ao se tornar professora sobre o que nossas antecessoras faziam ao sentir vontade de ir ao banheiro durante uma aula. Do seu lugar de professora universitária, a autora aponta o quanto o corpo precisa ser apagado dentro do ensino institucional e argumenta que “chamar atenção para o corpo é trair o legado de repressão e negação que nos foi transmitido pelos professores que nos antecederam, em geral brancos e do sexo masculino” (hooks, 2017, p. 253). O corpo docente, no sentindo literal e físico, é um corpo amorfo e destituído de vontades e desejos. Mais branco e masculino quanto maior o nível de escolaridade, o espaço que este corpo ocupa pretende dele uma neutralidade que o camufle entre os também pretensamente neutros muros e discursos escolares. Entre os professores homens, portanto, não existe a mesma preocupação em se camuflar no ambiente – estão mais próximos da aparente neutralidade, afinal –, tampouco em evitar estabelecer alguma proximidade física – ainda que de afeto – com as estudantes e reconhecer todas as camadas de poder que eles representam – enquanto professor, homem, mais velho e, em sua maioria, branco – diante delas. Enquanto o corpo feminino é objetificado e passivo, o ideal para o corpo masculino sempre foi, segundo Cortés, a ação (demonstrada ou implícita), e por isso, para o autor, “um dos maiores medos masculinos é o da passividade e o que isso implica em termos de perda de privilégios e de possibilidade de vir a se tornar como uma mulher” (2008, p. 125). Medir a sexualidade masculina a partir do ideal da ação implica não apenas em afirmar o papel social de subordinação destinado à mulher, mas também em consolidar o imperativo da ordem binária heterossexual que, limitada ao par feminino/masculino, inferioriza o corpo masculino que não corresponde a esse ideal, associando-o ao feminino e o diminui por isso. Dentro dessa lógica binária em que o feminino corresponde ao passivo, a ordem masculina, com seu ideal de ação, ocupa o lugar de sujeito ativo, instituindo-se como autoridade e apresentando-se como parâmetro hegemônico para todas as relações sociais, comportamentos, atitudes, utilização do espaço etc. (CORTÉS, 2008, p. 140). 48 Considerando que o corpo cria e produz o espaço ao mesmo tempo em que é criado e produzido por ele, Cortés (2008, p. 145) enfatiza o quanto a predominância do eixo vertical nas grandes cidades está relacionada ao estado ereto do homem, ao estar de pé e se projetar sobre a cidade, frisando o modo como a valorização da verticalidade reflete os valores da masculinidade considerados desejados, como a dominação e a superioridade. A comparação entre a dominação do corpo masculino e a cidade sugere outra analogia – guardadas as devidas proporções – entre o corpo e o ensino na sala de aula: a mesma relação de pequenez e insignificância do ser humano diante da imponência de um arranha-céu, em contraste com a superioridade de quem olha tudo do alto, podemos estabelecer entre a câmera baixa do cinema, que nos faz olhar o super herói de baixo para cima, vendo-o forte e poderoso, enquanto a câmera alta, que encara os simples mortais de cima para baixo, os torna fracos e impotentes. A configuração tradicional da sala de aula reproduz esse esquema de jogos de força, onde a figura central permanece em pé, de onde pode visualizar o topo da cabeça de todas as outras pessoas, fracas e impotentes, vistas em câmera alta, e tem, por exemplo, o poder de permitir ou negar que estudantes saiam da sala de aula seja por qual motivo for, inclusive ir ao banheiro. Aos poucos, ano a ano, os corpos aprendem a se conter, a permanecer sentados, a sempre pedir licença e a não conseguir ver o céu. e s p a ç o s e s e g r e g a ç ã o Não é apenas nas relações de gênero que as hierarquias se estabelecem. Os códigos de representação do corpo também dizem respeito “à percepção, por parte dos outros, de nossa pessoa como um ser com um lugar reconhecível no sistema cultural” (CORTÉS, 2008, p. 125). A ornamentação, o jeito do corpo, os movimentos e formas de gesticular, de falar e de se portar são associados à pertença de classe, vinculando os corpos não apenas a grupos sociais como aos espaços que o constituem e pelos quais são constituídos, com os quais se relacionam e fazem parte ou com aqueles de onde são excluídos. Para a arquiteta e urbanista Joice Berth “as cidades são espaços de disputa em que o traçado nos permite identificar os discursos opressores que se formaram pelo curso da história e estruturaram nossa sociedade” (2019, online). Em São Paulo, podemos reconhecer tais discursos a partir da forma como, na ausência de um planejamento urbano consistente, as populações negras e pobres são empurradas para as bordas da 49 cidade à medida que determinadas áreas desta cidade são valorizadas e expandidas. Em acordo com McDowell, para quem “os espaços surgem das relações de poder; as relações de poder estabelecem as normas; e as normas definem os limites, tanto sociais quanto espaciais, porque determinam quem pertence a um lugar e quem é excluído” (2000, p. 15, tradução nossa21), podemos notar como a distribuição e vivência das pessoas nos espaços desta cidade reproduzem hierarquias herdadas do nosso passado colonial. Pautando seus argumentos nessa mentalidade colonial que constitui nossos espaços e perpetua as relações entre a casa grande e a senzala, Berth (2018) enfatiza como os espaços da cidade que possuem uma infraestrutura bem resolvida são centrais e brancos, enquanto a negritude vive em massa nas periferias que, pelo senso comum, são regiões violentas e, portanto, justificam a repressão e a violência policial. Quanto mais distante daquilo que se considera o centro e as ditas “áreas nobres” da cidade, mais difícil o acesso a infraestruturas básicas, serviços e direitos primo