Interdisciplinar • Ano VIII, v.19, nº 02, jul./dez. 2013 Itabaiana/SE | ISSN 1980-8879 | p. 191-202 191 TELETANDEM INTERINSTITUCIONAL PORTUGUÊS X ESPANHOL Rozana Ap. Lopes Messias (FCL – Unesp/Assis) Kelly C. H. P. de Carvalho (FCL – Unesp/Assis) RESUMO: Este trabalho faz parte de pesquisa em andamento e objetiva observar como alunos brasileiros de um curso de Letras, habilitação português e espanhol, organizam e põem em prática o ensino de português para parceiros hispanofalantes, no contexto Teletandem. Buscamos compreender como/se são planejados os conteúdos de LP que ensinam e o impacto das práticas de Teletandem para a formação desses professores de línguas. Tal investigação ancora-se no arcabouço da pesquisa qualitativa crítica, fundamentada na visão de Carspecken. Os dados coletados até o momento mostram que pela proximidade das línguas, esse contexto virtual de aprendizagem requer a presença de um mediador que sinaliza aos aprendizes questões linguísticas e culturais que devem ser consideradas. PALAVRAS-CHAVE: Teletandem; Ensino-aprendizagem de português/LE; Formação de professores. RESUMEN: Este trabajo es parte de una investigación todavía en curso y objetiva observar cómo alumnos brasileños de la carrera de Letras - portugués y español - organizan y ponen en práctica la enseñanza del portugués a parejas hispanohablantes, en el contexto Teletandem. Buscamos comprender cómo/si son planificados los contenidos de LP que enseñan y el impacto de las prácticas de Teletandem a la formación de esos profesores de idiomas. Esta investigación es basada en la metodología cualitativa crítica, más específicamente en la visión de Carspecken. Los datos obtenidos hasta ahora muestran que, debido a la proximidad de las lenguas, este contexto de aprendizaje virtual requiere la presencia de un mediador que les señale a los aprendices aspectos lingüísticos y culturales que deben ser considerados. PALABRAS-CLAVE: Teletandem; Enseñanza-aprendizaje de portugués/LE; Formación de profesores. Rozana Ap. Lopes Messias e Kelly C. H. P. de Carvalho ________________________________________ 192 Interdisciplinar • Ano VIII, v.19, nº 02, jul./dez. 2013 Itabaiana/SE | ISSN 1980-8879 | p. 191-202 INTRODUÇÃO Com o avanço dos processos de globalização e internacionalização, torna-se cada vez mais necessário o conhecimento e a fluência em línguas estrangeiras. Verificamos tal exigência nos mais variados setores de atividade da sociedade. Nesse cenário, já muito comum, observamos, em decorrência, que o campo de estudos relacionado ao ensino-aprendizagem de línguas estrangeiras ocupa um novo espaço, ganhando novas configurações, o que, de certa forma, exige rever práticas pedagógicas, aprofundar teorias e métodos e, sem dúvida alguma, incluir “novos” recursos tecnológicos, já tão presentes em nosso cotidiano. A propagação das tecnologias de informação e comunicação ampliou as fronteiras e, dessa forma, constatamos que a relevância da inclusão desses recursos em contextos educativos é inquestionável. Sendo assim, “não podemos deixar de considerar e refletir sobre ações pedagógicas que almejem incluir nossos alunos em uma realidade social, cujas práticas se tornam cada vez mais tecnologizadas” (GARCIA; NORTE; MESSIAS, 2012). Com esse intuito, apresentamos neste trabalho uma breve reflexão sobre uma experiência de ensino-aprendizagem das línguas portuguesa/LE e espanhola/LE, desenvolvida no contexto Teletandem. De forma sintética, o Teletandem é definido como um contexto virtual e colaborativo de aprendizagem de línguas, no qual indivíduos nativos e/ou proficientes de diferentes línguas trabalham de forma colaborativa para aprender a língua do outro mediante o uso de ferramentas de conversa e/ou mensagem instantânea (Skype); nesse contexto, cada um se torna, portanto, aprendiz de língua estrangeira e tutor (professor) de sua própria língua (www.teletandembrasil.org). No contexto do projeto a que se refere essa prática (Projeto: Teletandem: Transculturalidade na Comunicação On- line em Línguas Estrangeiras por Webcam1), empreendemos uma parceria entre a universidade em que atuamos como professoras de língua e metodologia de ensino de línguas, Unesp/Assis, e uma universidade mexicana, com a finalidade de 1 Versão atualizada do Projeto Teletandem Brasil: línguas estrangeiras para todos - projeto temático colaborativo entre o curso de Letras da FCL Unesp/Assis e do Ibilce Unesp/São José do Rio Preto, desenvolvido como o apoio da Fapesp – Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo – Processo 2006/03204-2. http://www.teletandembrasil.org. _________________________________________ Teletandem Interinstitucional Português X Espanhol Interdisciplinar • Ano VIII, v.19, nº 02, jul./dez. 2013 Itabaiana/SE | ISSN 1980-8879 | p. 191-202 193 propiciar espaço de interação (ensino e aprendizagem) aos nossos alunos do curso de licenciatura em Letras – português – espanhol/LE. Trata-se de um modelo de teletandem interinstitucional quando há um acordo entre mediadores de duas instituições que agendam horários específicos para as interações de seus alunos. Tais interações são, normalmente, efetuadas nos laboratórios de informática das respectivas universidades com a supervisão desses mediadores. As interações ocorridas sistematicamente no ano de 2012, uma vez por semana reuniram 30 parcerias, divididas em dois períodos de 1h, totalizando dez semanas. Após cada sessão de interação foram ainda organizados momentos de mediação, espaço em que as pesquisadoras acompanharam o andamento das sessões e buscaram formas de intervenção para auxiliar na potencialização do processo de ensino-aprendizagem no contexto síncrono on-line via Skype. Salientamos então, que na totalidade da investigação desenvolvida, ocorreram observações in loco, por meio de diários, anotações das ocorrências durante as sessões, gravações em áudio das mediações ocorridas imediatamente após cada uma das sessões de teletandem e, também, gravações do áudio e do vídeo das interações por meio de um aplicativo gratuito (IMcapture for Skype). Diante do exposto, ressaltamos que este trabalho tem como objetivo central a observação sobre a maneira como alunos do curso de Letras (no caso, os brasileiros), mais especificamente, alunos de língua espanhola/LE e portuguesa organizam e põem em prática o ensino de português para seus parceiros estrangeiros. A intenção é compreender (a) como/se planejam os conteúdos de língua portuguesa a ser ensinado e (b) qual o impacto dessa prática para sua formação, como professor de língua portuguesa e espanhola/LE. Por entendermos ser o modelo mais adequado para o que pesquisamos, pautamo-nos na metodologia qualitativa crítica. Com respeito a tal modalidade metodológica, Carspecken (2011, p. 396) salienta que a pesquisa qualitativa crítica permite-nos compreender que “o conhecimento social científico não é apenas sobre fenômenos sociais, mas é em si mesmo um aspecto dos fenômenos sociais”. Para ele, Uma sólida teoria do conhecimento deve abandonar teorias representacionais, nas quais o conhecimento sempre é sobre alguma coisa que não é em si mesmo conhecimento. O conhecimento deve ser compreendido ontológica e socialmente. É simultaneamente acerca da realidade social e Rozana Ap. Lopes Messias e Kelly C. H. P. de Carvalho ________________________________________ 194 Interdisciplinar • Ano VIII, v.19, nº 02, jul./dez. 2013 Itabaiana/SE | ISSN 1980-8879 | p. 191-202 também uma forma de autoconhecimento e um aspecto da realidade social e identidade humana”. (CARSPECKEN, 2011, p. 396) De acordo com o autor, temos de estar atentos à manipulação do conhecimento. Tanto aqueles conhecimentos produzidos por instâncias sociais institucionalizadas, quanto os produzidos popularmente. O conhecimento, muitas vezes, segundo ele, possui distorções sociais. Nesse sentido, “a pesquisa qualitativa crítica procura compreender a si mesma como uma prática que trabalha com pessoas para conscientizar criticamente, em vez de meramente descrever a realidade social” (CARSPECKEN, 2011, p. 397). Essa forma de conceber a observação e análise da realidade vai ao encontro daquilo que acreditamos ser o ideal para justapor duas circunstâncias constituídas social e historicamente de maneira distinta: uma universidade pública brasileira, do interior do Estado de São Paulo e uma universidade mexicana, situada na capital federal do México. RECORTES DE INTERAÇÕES E MEDIAÇÕES: UM OLHAR SOBRE OS DADOS Os dados observados no presente trabalho, conforme já descrito, são oriundos de uma experiência realizada no segundo semestre de 2012, em uma proposta de parceria que, apesar de institucionalizada, possui características que a diferem das demais. Nesse caso específico, os interagentes falantes de língua espanhola e aprendizes de língua portuguesa não são alunos regulares de um curso de idioma, são alunos de cursos diversos, em nível de graduação e pós-graduação, que procuram apoio em uma Mediateca – um espaço de aprendizagem autônoma. Nessa conjuntura, são auxiliados por uma mediadora que lhes orienta com relação aos materiais de língua portuguesa que melhor se adaptam às suas necessidades e características pessoais de aprendizagem. Nossa parceira professora de uma universidade mexicana atua, então, como uma mediadora de aprendizagem de língua portuguesa desse espaço em que o aluno aprende autonomamente. As práticas de Teletandem foram propostas, então, como mais uma forma de facilitar e potencializar a aprendizagem de língua portuguesa para os estudantes mexicanos interessados. _________________________________________ Teletandem Interinstitucional Português X Espanhol Interdisciplinar • Ano VIII, v.19, nº 02, jul./dez. 2013 Itabaiana/SE | ISSN 1980-8879 | p. 191-202 195 Em contrapartida, do lado brasileiro a maioria dos interagentes são alunos do curso de licenciatura em Letras - habilitação em português e espanhol/LE. Dessa forma, podemos caracterizá-los como futuros professores das línguas portuguesa e espanhola em processo de formação inicial. Nessa experiência específica, as interações foram acompanhadas por duas professoras, uma de Língua Espanhola e outra de Prática de Ensino. Acrescentamos a essa questão, que as atividades de Teletandem para esses alunos significam a possibilidade de falar com um nativo ou um falante proficiente em um contexto de interação que, dificilmente, aconteceria fora desse ambiente, tendo em vista a localização geográfica da cidade de Assis/SP (interior do Estado) e as escassas possibilidades de viajar a outros países, mesmo os mais fronteiriços, vizinhos na América do Sul. Com relação à prática de Teletandem, temos que considerar dois aspectos, pois estão justapostas duas pessoas que interagem e que, ao mesmo tempo, desempenham duplo papel: o de “ensinador” de uma língua, um fator, e o de aprendiz de outra, outro fator. Segundo a natureza dos objetivos de pesquisa, a análise nesse contexto de ensino-aprendizagem de línguas pode, portanto, ser desenvolvida considerando-se várias perspectivas. Em nosso caso, temos: (a) o aluno brasileiro que aprende espanhol/LE; (b) o aluno brasileiro que ensina português/LE; (c) o aluno mexicano que aprende português/LE e (d) o aluno mexicano que ensina espanhol/LE. Considerando o espaço a que estamos submetidas, enfocaremos aqui, conforme já relatamos, apenas uma dessas perspectivas: como o aluno brasileiro desempenha o papel de ensinar a língua portuguesa a hispanofalantes no contexto das interações de Teletandem acima especificadas. Outra questão de relevância absoluta é a especificidade desse contexto de contato entre línguas genética e tipologicamente próximas, mas que, ao mesmo tempo, são definidas por características socioculturais, estilísticas e dialetais particulares. Como resultado natural desse contato e de uma enganosa sensação de competência espontânea entre luso e hispanofalantes, surge o “portunhol”. Sendo assim, torna-se importante observar tais interações com o objetivo de refletir sobre as implicações que a prática do Teletandem pode promover nesse encontro entre o português e o espanhol e as ações necessárias delas decorrentes. Como contexto autêntico de uso da língua, no qual se estabelece uma interação efetiva, o Teletandem possibilita aos seus usuários o contato com outros Rozana Ap. Lopes Messias e Kelly C. H. P. de Carvalho ________________________________________ 196 Interdisciplinar • Ano VIII, v.19, nº 02, jul./dez. 2013 Itabaiana/SE | ISSN 1980-8879 | p. 191-202 interlocutores “reais”, além de seu professor de LE. Dessa maneira, o professor deixa de ser a única voz de referência na língua estrangeira e com quem os interagentes podem comunicar-se. Em geral, observamos que nessa relação (parceiro mais competente x parceiro menos competente), desconfigura-se o modelo convencional de ensino-aprendizagem de línguas (pautado na relação professor – aluno – sala de aula), proporcionando um contexto, no qual os interagentes se arriscam com mais facilidade na língua estrangeira, bem como se sentem mais confortáveis para solicitar e/ou atender as dúvidas que apresentam. Percebem ainda que, mesmo sem ter um conhecimento avançado da LE, podem e são capazes de comunicarem-se nela, ainda que de forma “deficiente”. A negociação de significados e a correção mútua (nos diferentes níveis: fonético, morfológico etc.) favorecendo o aprendizado são manifestadas, especialmente, quando há certo comprometimento por parte dos interagentes, com o objetivo do Teletandem, cujas atividades são realizadas com base em princípios comuns de reciprocidade e de autonomia compartilhados pela parceria. Não se trata de uma simples conversação entre um par bilíngue; os participantes do Teletandem são pessoas interessadas em aprender a língua do outro, a distância e de forma relativamente autônoma (TELLES, 2009, p. 47), tal como observamos no excerto a seguir: (1) B: ah:: eu pesquisei lembra que você tinha perguntado como que era campesinos? M: Aha B: então olha só... eu perguntei pra um monte de gente porque eu não sabia como era a palavra na minha língua ((risadas)) mas... M: o que você:: encontrou? B: Então...latifundiário são mesmo os grandes pro/ os grandes é:: detentores de terra né? M: Aha B: Agora aqui no Brasil os pequenos produtores os pequenos é:: como que eu vou dizer aqueles que não tem muitas terras... a gente chama de é:: de pequenos é: ai como é que eu vou explicar... porque eu não consegui uma definição sabe? É porque as pessoas normalmente chamam de sitiante que são aquelas pessoas que vivem daquilo que elas produzem na terra... aí a gente chama de sitiante que mora no sítio... é um sítio mesmo não é uma fazenda porque fazenda é algo maior né é um sítio M: Fa[s]enda? Fa[s]enda que é uma fa[s]enda? B: Fazenda é vários alqueires de terra M: Eu acho que é como español hacienda B: Isso isso M: Fa[s]enda vocês dizem ((tenta corrigir a pronúncia)) _________________________________________ Teletandem Interinstitucional Português X Espanhol Interdisciplinar • Ano VIII, v.19, nº 02, jul./dez. 2013 Itabaiana/SE | ISSN 1980-8879 | p. 191-202 197 B: Isso... então... a gente chama de sitiante ou mesmo de pequenos produtores rurais que são aquelas pessoas que produzem é mas produzem mais pra subsistência ou não....produzem alguma coisa mas é mais é:: pouco não é muito entendeu? M: Sim eu comprendo, eu entendo mas não usam a palavra campone[s]es? B: Não usamos camponeses M: Pequenos produtores rurais B: Isso pequenos produtores rurais... agora pode ser que alguém que saiba mais da sua área saiba achar M: É especialidade B: É:: saiba achar é:: mas eu acho que é isso mesmo porque camponeses a gente não usa mesmo M: Aha /é bom conhecer saber isso... B: Que bom! M: Obrigada! Muito obrigada B: Magina! As correções inerentes aos princípios e objetivos do Teletandem, por outro lado, exigem certo grau de conhecimento e reflexão sobre a própria língua e realidade. Por vezes, encontramos, por parte dos brasileiros, nesse contexto específico, várias explicações e/ou comentários equivocados, evidenciando suas próprias dificuldades e, em decorrência, a necessidade de formar e preparar os interagentes para atuarem no sentido de exercerem/desempenharem melhor o papel de “ensinar português para hispanofalantes”: em geral, percebem certas “notas dissonantes” na produção de seus parceiros mexicanos, mas não conseguem identificá-las com precisão e/ou dar-lhes esclarecimentos claros e precisos. Tais problemas se evidenciam tanto em nível de conhecimento linguístico, estritamente, como se observa no excerto (2), a seguir, como em nível de “conhecimento de mundo”. A parceira brasileira, diante da dificuldade explicitada por seu companheiro mexicano quanto à pronúncia das vogais abertas e fechadas, confunde os critérios fonético-fonológicos com os de ortografia (acentuação), tentando relacioná-los de forma inapropriada; introduz, ainda, um comentário reducionista e não pertinente: o de que “as vogais abertas são acentuadas”. O fato de serem licenciandos em Letras, no nosso entender, faz com que supervalorizem a metalinguagem e as regras, o que dificulta a busca por explicações mais simples e mais voltadas para a prática de uso da língua. Não deixa de ser uma forma de concretizar o imaginário do que seja ser um bom professor de línguas. (2) M: Isso é sons... sonidos B: SONS (( a interagente corrige sua pronúncia nasal)) a vogal fechada essa M: Eu não logro aprender quando a gente usa as vogais fechadas e abertas B: Só um minutinho... você não consegue distinguir quando tem que usar as vogais fechadas e abertas? Rozana Ap. Lopes Messias e Kelly C. H. P. de Carvalho ________________________________________ 198 Interdisciplinar • Ano VIII, v.19, nº 02, jul./dez. 2013 Itabaiana/SE | ISSN 1980-8879 | p. 191-202 M: i/ i/ isso... primeiramente eu não sei quais são as vogais fechadas... quais são as abertas... eu somente consigo escutar os falantes nativos que fazem diferenças mas não sei quando tem B: as vogais/ as vogais... as vogais abertas normalmente levam acentuação sabe que é acentuação? M: Sí os circunflexos... grave B: Isso M: Sí B: Normalmente levam acento agudo M: Ah... as palavras com acento agudo B: Como está ó... peraí... ((anota no chat)) M: ParaBÉNS ((esforça-se para realizar a nasal)) B: ParaBÉNS é:: M: Não é parabéns... é parabéns ((tenta realizar igual a sua parceira) B: Sabe o que é parabéns? M: É felicitações ((mistura palavra do espanhol com pronúncia do português)) Conforme já assinalamos, no contexto do Teletandem, dada a relação diferenciada por ele proposta, os interagentes se arriscam com mais facilidade na língua estrangeira. Nesse “território”, uma relativa intercomunicação já num estágio elementar é possível, o que dá margem ao uso do “portunhol”. Portanto, em relação ao contato espanhol - português, evidencia-se, em vários momentos, a ocorrência de transferências linguísticas (interlíngua) ou, então, mal entendidos, decorrentes de usos inapropriados de expressões e seus respectivos usos. No caso dos mal entendidos, se tais conflitos são esclarecidos, podem, de certa forma, favorecer uma aprendizagem mais efetiva, uma vez que seus usuários são desafiados a esclarecer ou negociar os significados para darem continuidade ao diálogo. No relato a seguir, extraído de uma das sessões de mediação (momento posterior às interações, quando o grupo, formado por mediadores e interagentes, dialoga a respeito das experiências vivenciadas por estes durante a interação), observamos esse tipo de ocorrência, no que se refere aos falsos cognatos: (3) Mediador: Y sobre la interacción en portugués… has conseguido aclararle algo? Aluno: Algunos falsos cognados… yo esclarecí muchas cosas… él no sabía muchas cosas… entonces pimenta para ellos es nuestro pimentão… entonces… e pimenta mesmo é o chile entonces yo hablaba pimenta arde, pimenta queima e ele não mas pimenta não arde... como que não… peraí… e eu falou não não arde… eu falei assim nossa será que eles são tão resistentes... que no arde un poco no quema pero después nos entendemos... _________________________________________ Teletandem Interinstitucional Português X Espanhol Interdisciplinar • Ano VIII, v.19, nº 02, jul./dez. 2013 Itabaiana/SE | ISSN 1980-8879 | p. 191-202 199 Por outro lado, quando essa negociação não ocorre, a ação discursiva fica prejudicada e o aprendizado na língua estrangeira também pode deixar de se efetivar. O exemplo, a seguir, ilustra um momento em que o interagente brasileiro não soube esclarecer uma dúvida de vocabulário apresentada por seu interagente mexicano: alberca (em espanhol, variante mexicana) = piscina (em português). Deflagra, ainda, a pouca habilidade para manipular as ferramentas disponíveis na internet (Google, dicionários on-line, por exemplo), que, sem dúvida, poderiam auxiliá-lo, nesse momento. Mostra, ainda, a necessidade de vincular a conversa a questões de metalinguagem. Nesse sentido, também reafirmamos a importância do mediador para assessorar as interações, considerando a necessidade da instrução quanto ao uso das informações da rede para aprimorar o seu próprio desenvolvimento no Teletandem. Segue o excerto: (4) M: Bom eu gosto de ir ao cinema de universidade /ir também ao alberca, não sei como se diz B: Como? M: Alberca onde as pessoas nadam/ nadar? B: Ah eu não sei / é/ como que é a palavra? Você pode escrever ela pra mim? M: Aha ((escreve no chat)) Não sabe? B: Não / eu nunca ouvi falar essa palavra? É como se fosse um clube né? M: É clube/ mas é um deporti / as pessoas estão na água B: Água M: Água B: Só que aqui é / que pra gente é uma palavra feminina / a água / pra vocês é diferente né? M: É masculina el agua / então eu estava falando porque eu gosto de morar no meu bairro... Ainda, no próximo excerto, temos um exemplo de como as línguas misturam-se facilmente: a interagente mexicana faz uso inadequado do vocábulo “aborrecido” (da língua portuguesa), como tradução mais próxima para a palavra “aburrido” do espanhol. Mais adequado seria utilizar a expressão: “chato”. Sua parceira brasileira, entretanto, não a corrige, pois, ao compreendê-la, provavelmente, não percebe tal emprego que em português seria incomum. São as diferenças sutis entre os dois idiomas: (5) M: Eu estava lendo o vocabulário sobre coisas que estão na rua... posso falar sobre minha rua coisas que estão na minha rua não sei se é aborrecido? B: Não não vamo lá Rozana Ap. Lopes Messias e Kelly C. H. P. de Carvalho ________________________________________ 200 Interdisciplinar • Ano VIII, v.19, nº 02, jul./dez. 2013 Itabaiana/SE | ISSN 1980-8879 | p. 191-202 M: Como? B: Não... tudo bem... pode ir M: Pode repetir? B: Você me ouve? M: Sim B: Então pode falar... é um livro de português que você estava estudando? M: Sim B: Ah sim M: Eu acho que é aborrecido/ mas B: Não vamo lá é bom pra gente aprender M: Bom eu moro num bairro que tem muitas pessoas... Um dos princípios da aprendizagem em tandem é, segundo os autores, não misturar línguas. Esse princípio prático tende a promover o compromisso do aprendiz com a tarefa (TELLES, 2009, p. 24). No entanto, no caso da interação português – espanhol, as fronteiras entre as línguas, como vimos, nem sempre são tão evidentes, em especial, se ocorre entre aprendizes iniciantes. Dessa forma, acreditamos, mais uma vez, que a presença e a supervisão de um professor mediador sejam importantes para que os participantes possam obter melhor aproveitamento nesse processo. O professor mediador pode, em seu trabalho de monitoração, observar e avaliar as interações e, dessa maneira, intervir ajudando seus alunos a observarem tais ocorrências, assim como as marcas de sua interlíngua, bem como a de seu parceiro. Embora, em princípio, possamos aceitar as manifestações dessa interlíngua (como resultado natural desse processo), é necessário saber que uma coisa é reconhecer sua existência; outra, muito diferente, é levar os alunos a assumirem o estudo do português/LE e do espanhol/LE de forma a superá-lo e a não se contentarem com a mera possibilidade de atender às necessidades primárias de comunicação por meio do “portunhol” que, em geral, está longe de qualquer forma usual de expressão na língua-meta. (CELADA e RODRIGUEZ, 2004, apud BRASIL, 2006). Em outras palavras, é fundamental, nesse processo, evitar a fossilização, conforme afirma Almeida Filho: O indesejável do Portunhol é o seu congelamento num dado patamar (em geral baixo, embora comunicativamente suficiente na percepção do usuário), gravando a interação com o ônus extra para o interlocutor falante-padrão que tem que filtrar continuamente os ruídos do sistema da interlíngua estacionária. (2001, p. 18) _________________________________________ Teletandem Interinstitucional Português X Espanhol Interdisciplinar • Ano VIII, v.19, nº 02, jul./dez. 2013 Itabaiana/SE | ISSN 1980-8879 | p. 191-202 201 ALGUMAS CONSIDERAÇÕES Segundo os dados observados nesta breve análise, podemos destacar que as práticas de Teletandem em que línguas próximas (como o português e o espanhol) estão em contato funcionam desde que exista comprometimento dos parceiros e das instituições envolvidas, certo domínio e conhecimento das línguas e um monitoramento por parte dos professores mediadores, de maneira a estimular a conscientização sobre as deficiências e debilidades com relação ao uso da língua entre os alunos envolvidos. No que diz respeito ao papel do mediador, é latente o fato de que estar preparado para observar o contexto sociocultural em que se encontra inserido ele e seus alunos, é de fundamental importância para que as intervenções sejam realmente eficientes e produtivas. É preciso fazer refletir sobre o papel do professor de línguas. A sua verdadeira atuação e o que a maioria das pessoas acredita ser a sua função. Ao professor de línguas cabe ensinar o quê? A gramática da língua? A cultura relacionada a essa língua? A usar uma língua em contextos diversos? São essas e tantas outras questões que carecem ser discutidas nos processos de mediação. A verdade é que os fatos observados nos dados são férteis e, pensamos, devam ser ilustrados em outros contextos de mediação, pois revelam também a necessidade de reflexão mais profunda sobre a prática do professor formador, no caso, a nossa própria prática docente como professoras de língua e de prática de ensino. Com relação ao contexto de trocas culturais propiciado pela interação via Skype, da mesma forma, ratificamos que as questões postas pelos interagentes, muitas vezes, são relegadas a um nível de superficialidade. Pensando essa relação com o outro pelo viés, ainda, da interculturalidade que “remete a confrontação e ao entrelaçamento, aquilo que sucede quando os grupos entram em relações e trocas” (CANCLINI, 2007, p. 17), podemos, como mediadores, certamente, potencializar os processos de ensino-aprendizagem de língua-cultura. A partir dessa observação preliminar dos dados obtidos nas experiências de interação no contexto virtual do Teletandem e mediação efetuada com o grupo de interagentes, concluímos que esse ambiente é um contexto de práticas discursivas que contribui para o desenvolvimento da autonomia, da responsabilidade e do compromisso dos aprendizes e dos formadores, levando-os à reflexão e conscientização crítica sobre sua língua, sua cultura e o papel do professor. Rozana Ap. Lopes Messias e Kelly C. H. P. de Carvalho ________________________________________ 202 Interdisciplinar • Ano VIII, v.19, nº 02, jul./dez. 2013 Itabaiana/SE | ISSN 1980-8879 | p. 191-202 REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS ALMEIDA FILHO, J. C. P. (Org.). Português para estrangeiros interface com o espanhol. 2.ed. Campinas: Pontes, 2001. BRASIL. Secretaria de Educação Básica. Linguagens, códigos e suas tecnologias: conhecimentos de Espanhol. In: Orientações Curriculares para o Ensino Médio. Brasília: Ministério da Educação, 2006. p. 127-156. CANCLINI, N. G. Diferentes, desiguais e desconectados: mapas da interculturalidade. 2. ed. Rio de Janeiro: UFRJ, 2007. CARSPECKEN, P. F. Pesquisa Qualitativa Crítica: conceitos básicos. Educação e Realidade, Porto Alegre, v. 36, n.2, p. 395-424, maio-ago, 2011. GARCIA, D.; NORTE, M. B.; MESSIAS, R. A. L. Tecnologias de informação e comunicação – TICs aplicadas ao Ensino de LE. In: NORTE, M. B.; SCHLÜNZEN JUNIOR, K.; SCHLÜNZEN, E. T. M. (Orgs.). Língua inglesa. 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