Gastronomia .1
GOSTO
Estética do
TATIANA LUNARDELLI
Instituto de Artes
Programa de Pós-Graduação em Artes
Mestrado
Ficha catalográfica preparada pelo Serviço de
Biblioteca e Documentação do Instituto de Artes da
UNESP
Lunardelli, Tatiana, 1974 -
L961e Estética do gosto / Tatiana Lunardelli. -
São Paulo : [s.n.], 2012.
151 f.
Orientador: Profa. Dra. Geralda Dalglish.
Coorientador: Profa. Dra. Mariza Bertoli.
Dissertação (Mestrado em Artes) - Universidade
Estadual Paulista, Instituto de Artes.
1. Gastronomia. 2. Estética. 3. Alimentos –
Avaliação sensorial. 4. Paladar . 5. Chefes de cozinha.
I. Dalglish, Lalada. II. Bertoli, Mariza. III. Universidade
Estadual Paulista, Instituto de Artes. IV. Título.
CDD - 641.013
_ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _
Redação Tatiana Lunardelli
Orientação Prof. Dra. Geralda Dalglish
Co-orientação e revisão Prof. Dra. Mariza
Bertoli
Projeto Gráfico Luciana Inhan
lucianainhan@gmail.com
Fotografia Studio Oz | www.studiooz.com
Estúdio Gastronômico |
www.estudiogastronomico.com.br
Impressão InPrima | www.inprima.com.br/
À força divina.
A todos os mestres que passaram pela minha vida e que me deram a
base do pensamento crítico. Em especial a Profa. Dra.Véra Lucia Maciel
Barroso, Prof. Dr. Ricado Fitz, em Porto Alegre e Prof. Dr. Claudio Ba-
benko em São Paulo.
À Profa Dra. Geralda Dalglish pela acolhida no programa de pós gra-
duação da UNESP.
Aos colegas, professores e funcionários da UNESP que sempre fize-
ram o possível para contribuir para o desenvolvimento desse trabalho.
A Profa. Dra. Mariza Bertoli pela gentileza, sabedoria, disponibilidade
e generosidade em sempre contribuir e compartilhar suas memórias pri-
meiras relacionadas a comida.
Aos chefs queridos do meu coração Raphael Despirite, Henrique Fo-
gaça e Helena Rizzo, que tão gentilmente sempre me receberam e cola-
boraram com suas idéias, concepções, técnicas, aromas e sabores para
minha pesquisa.
À Profa. Dra. Sandra Ramalho por aceitar participar do meu processo
de pesquisa de maneira tão generosa.
Ao Prof. Dr. Omar Khouri por aceitar participar da banca.
A CAPES pela bolsa que viabilizou minhas inúmeras viagens e livros.
Aos amigos e fotógrafos Daniel Ozana, Ana Cláudia V. Rodrigues e
Luna Garcia pelo olhar.
A jornalista e diagramadora Luciana Inhan pela sensibilidade e pro-
fissionalismo.
Ao meu marido Hélio pelo companheirismo, apoio e por tornar meu
sonho possível.
Aos queridos amigos Sara Accioly, Julia Rocha Pinto, Paula Aversa,
Elaine dos Santos, Marcelo Mendes, Silvana Rocha Pinto, Luiza Christov,
Tarcísio Garcia do Nascimento, Moira Bush, Carlos Alberto Dória, Viviana
Venosa e Luiz Monforte por me ajudar a manter a sanidade mental e a
alegria no trabalho.
Agradecimentos
Dedico esse trabalho a todos aqueles que
domam um fogão por dia, a todos os que se
expressam, não através de tintas e palavras,
mas sim através de memórias, aromas e sabores.
Mas principalmente dedico àqueles que
conseguem ver, perceber e entender tudo isso.
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2. Gastronomia
Sumário
INTRODUÇÃO
Todos os passos
CAPÍTULO 1
Hedypathea
Tratado dos Prazeres
O Islã Medieval
E os Séculos Silenciosos
na Europa
Boas Maneiras
Sua invenção e
a Mesa Cristã
Renascença
(entre século XIV e XVI)
A queda da Bastilha
período 1789-1799:
A revolução, as refeições
comunitárias e a
invenção do restaurante
Carême
O cozinheiro dos reis
e o rei dos cozinheiros
CAPÍTULO 2
Alimentação no Brasil
História e influências
Matriz indígena
Matriz africana
Matriz portuguesa
06.
60.
14.
24.
38.
44.
48.
56.
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Gastronomia .3
CAPITULO 3
O desafio de traduzir o
inenarrável
A gastronomia como
objeto estético e
linguagem
Restaurante Mani
Restaurante Marcel
Restaurante SAL
CONSIDERAÇÕES
FINAIS
REFERÊNCIAS
BIBLIOGRÁFICAS
Periódicos
Filmografia
Internet
Teses e dissertações
ANEXO 1
Jantar dos Rothschild –
transcrição do livro de
Ian Kelly
ANEXO 2
Entrevistado: Helena
Rizzo
ANEXO 3
Entrevistado: Raphael
Despirite
ANEXO 4
Entrevistado: Henrique
Fogaça
LISTA DE FIGURAS
84.
118.
124.
128.
133.
139.
144.
146.
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Gastronomia .5
RESUMO
Esta dissertação analisa a gastronomia como objeto estético. Assim, considerando a
mesma como um campo da estética, recorri da memória gustativa, de fotos de pra-
tos desenvolvidos pelos chefs brasileiros Henrique Fogaça, Rafael Despirite e Helena
Rizzo e da linguagem visual de cada um dos restaurantes para construir o que entendo
por estética do gosto. Essa pesquisa fundamentou-se na concepção de que o belo não
está presente no objeto em si, mas é uma construção do observador, ou do degustador:
o fato sensível fundamental para a experiência estética é a vivência pessoal de cada
um. A comida une o chef e o degustador através da estética do gosto, do despertar do
paladar. Trata da arte de produzir sabores e da recepção desses e suas extensões. Quer
pontuar aspectos do papel da alimentação, desde o achamento do Brasil e do desenro-
lar desse processo no ritual alimentar, que acompanha as mudanças comportamentais
ocorridas principalmente na Europa e no Brasil: da necessidade ao requinte, até atingir
um mundo de delícia, que chegou a ser aproximado dos pecados da gula e da luxúria.
É feita uma narrativa histórica da alimentação desde a Antiguidade clássica até o início
da Era moderna, e enfoca o Brasil, com seu sincretismo, e as influências primeiras dos
portugueses, dos negros e dos índios, que compõem a nossa originalidade. A argu-
mentação se funda no trabalho dos chefs nominados e na forma como desenvolvem
sua linguagem. Do preparo dos ingredientes à apresentação dos pratos, até o ambien -
te do restaurante. Considerou-se como ponto de partida a percepção para a apreciação
de diversos aspectos dos pratos desses chefs, tais como cor, forma, textura, cheiro,
gradações de calor que, aliados às evocações da memória – enfim, a experiência de
quem prepara e de quem come – desencadeia o que se considera a estética do gosto.
Palavras-chave: Alimento, Estética, Gastronomia, Poética, Arte.
ABSTRACT
Thus, considering it a field of aesthetic, utilizing dishes created by Brazilian chefs Henrique
Fogaça, Rafael Despirite and Helena Rizzo and the visual language of their restaurants to make
up what I understand as the aesthetic of taste. This research was based on the concept that
beauty is not present in the subject itself, but it is a construction of the observer (beauty lies
in the eyes of the beholder) or the taster in this case, the most critical and sensitive fact to the
aesthetic experience is one’s own experience. Food unifies the chef and the taster through the
aesthetics of taste, the awakening of the palate. It is about the art of producing flavors and the
response to these flavors and their extensions. This will point out some aspects of the role of food
since the discovery of Brazil and the unfolding of this process in the eating ritual that follow the
behavioral changes, mainly in Europe and Brazil: from the necessity to the exquisiteness, to the
point of reaching a world of delight that was very close to the sins of gluttony and luxury. The
author makes a historical narrative of food from the ancient world to the early modern age and
focusses in Brazil with its syncretism, and the first influences of the Portugueses, africans and
native Indians which make up our originality. The argument is based on the work of renown
chefs and how they develop their language. From the preparation of the ingredientes and the
presentation of the dishes to the ambiance of the restaurant. It was considered as a starting point
the perception of the appreciation of various aspects of the dishes such as color, shape, texture,
smell, temperature variation, allied to the evocation of memory – in short, the experience of
those who cook and those who eat – initiates what is considered the aesthetic of taste.
Keywords: Food, Aesthetic, Gastronomy, Poetics, Art.
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6. Gastronomia
› Introdução
passosTodos os
Da concepção à execução do projeto
Restaurante D.O.M., entrevista realizada por Tatiana Lunardelli com o chef Alex Atala no ano de 2006.
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Gastronomia .7
interesse pela pesquisa surgiu no
início da especialização em His-
tória da Arte na Universidade São Judas Tadeu
quando percebi, de forma mais incisiva, que a
comida, o ritual que a envolve, seu preparo, seus
ingredientes, sua maneira de servir eram temas
recorrentes na arte de todos os tempos e prati-
camente de todos os povos. Independentemente
disso, tenho lembranças de infância e de viagens
ligadas à comida.
Nada melhor do que o cheirinho de uma
cebola sendo refogada, de um café coado. O fo-
gão aceso é o coração pulsante da casa, assim
como a madeira estalando no fogo e o ruído da
panela de pressão. Muitas vezes, os cheiros, os
sons, traziam muito mais à minha lembrança do
que somente o gosto do prato que em breve se-
ria servido. Isso tudo levava justamente às re-
cordações infantis, recordações de família, das
festas, da casa da avó, de vida de uma maneira
geral.
Mas a grande questão que surgia era: como
colocar todo esse interesse de maneira formal
num trabalho acadêmico? Como não ser mais
um livro de fotos belíssimas e não ter base
teó rica? Como não ser reduzido a um livro de
culinária? Como não ser mais um crítico gas-
tronômico?
No último semestre da especialização, em
2006, algumas dessas questões foram respondi-
das fazendo a disciplina Estética e Análise Críti-
ca da Obra de Arte. Vi que era possível pensar
a comida de maneira diferente, olhar a comida
como quem olha um quadro e o analisa de forma
“absoluta”, não com gostos pessoais e sim como
base teórica, avaliando elementos de cor, forma,
luminosidade, rugosidade e, porque não dizer,
até de sonoridade.
Baseado na ideia de que beleza não pode ser
uma propriedade do objeto, mas sim uma cons-
trução do espírito do observador – ou do de-
gustador – um dos fatos sensíveis fundamentais
para a experiência estética é a vivência pessoal
O
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8. Gastronomia
› Introdução
de cada um, não importa mais a obra ou o pra-
to, mas sim o que a pessoa experimenta dentro
de si provando cada ingrediente. Será defendido
que toda experiência sensorial tem importância
e que só é possível a partir da vivência subjetiva
da obra em si.
A culinária é uma categoria alimentar hu-
mana – e denomino categoria no sentido de clas-
sificação de ideias – que tem um inegável caráter
cultural.
A comida também adquire um papel de
comunicação com o outro, convivência com o
outro, divisão da mesma mesa e confraterniza-
ção com o outro. O chef Anthony Bourdain é
um bom exemplo disso: em inúmeras viagens
para lugares onde não se fala inglês, onde não
se come nada semelhante a “nossa alimenta-
ção ocidental”, e onde mal se sabe onde fica a
América, ele consegue um elo de comunicação e
comunhão através da comida. Comungar em la-
tim significa dividir, partilhar, comunicar, talvez
nesse momento onde a comida se torna o único
elo inicial possível, simbolicamente ela assume
�Anthony Bourdain
é chef de cozinha
e apresentador do
programa “Sem
Reservas”, exibido
no Brasil pelo canal
Discovery Travel &
Living.
A culinária é uma categoria
alimentar humana – e
denomino categoria no
sentido de classificação
de idéias – que tem um
inegável caráter cultural.
Cozinha do Restaurante D.O.M., de Alex Atala.
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Gastronomia .9
um papel de entrega da alma, dos costumes e
hábitos daqueles habitantes.
Atualmente a gastronomia é uma das esferas
da cultura em que a criatividade está alcançando
os níveis mais altos de excelência e inovação. E
neste aspecto convém destacar que, sobretudo, a
renovação da vanguarda gastronômica brasileira
está sendo protagonizada por um grupo de cozi-
nheiros, como Helena Rizzo, Raphael Despirite,
Henrique Fogaça, cuja produção será meu obje-
to de estudo; assim como inúmeros outros chefs
brasileiros, à frente dos quais brilha, com luz pró-
pria, a figura de Alex Atala, que foi capaz de criar
e desenvolver no Restaurante D.O.M., em São
Paulo, uma linguagem nova que revolucionou o
mundo da gastronomia brasileira, entendendo
que a técnica deve sempre estar a favor do ingre-
diente e revelar deles o seu melhor.
No âmbito desta pesquisa, e na tentativa de
responder as questões iniciais, o foco será diri-
gido ao uso de bibliografia diversa, que passeia
por diferentes campos, como a teoria da arte, a
história, a antropologia e a gastronomia, além
de entrevistas e visitas a restaurantes. Neste
momento é prudente dizer que gastronomia, ao
contrário do que se possa entender, não é o mes-
mo que culinária – que é dela parte integrante –,
vai muito mais além. Pois como bem diz Antonio
Roberto Chiachiri Filho, em sua tese de doutora-
do intitulada O Sabor das Imagens,
(...) gastronomia é todo um conjunto de fatores
que se entrelaçam (preparo da refeição, pesso-
as, lugares, arrumação, decoração, ambiente
etc.) para fazer daquele momento da refeição,
um momento muito especial, pois os prazeres
da mesa convidam outros prazeres. Não só os
prazeres do gosto, mais os prazeres da vida.
(FILHO, 2008, p. 18)
Daí talvez a ligação tão comum entre comida
e o sexo, ou o pecado da gula e da luxúria, pois
comer é uma experiência sensual e sensorial, e
a reunião em torno da mesa é um ato social. E o
gosto está sendo apresentado como a habilidade
de perceber o alimento, quase como um sentido
humano, como um despertar do desejo.
Já desde os primórdios, a gula, assim como
a luxúria, seu pecado gêmeo, reflete um sem
número de atitudes ligadas pela confluência da
necessidade e do prazer. Ao contrário dos outros
pecados – soberba, avareza, inveja, ira e pregui-
ça – a gula e a luxúria estão relacionadas por
serem atitudes ligadas à sobrevivência do indi-
víduo e preservação da espécie. João Cassiano,
teólogo monástico do século V, já falava em
oito vícios principais: ganância, raiva, tristeza,
tédio, ambição, orgulho, luxúria e gula, porém
entendia que essas duas últimas não poderiam
ser combatidas da mesma forma pelos fiéis, que
teriam curas complexas.
A solução estava na sugestão de que o pe-
cado só surgia no momento em que a gula e a
luxúria passassem a ser apreciados, e não ser
simplesmente uma necessidade, ou seja, seria
possível se alimentar e fazer sexo, contanto que
isso não fosse prazeroso. Assim, o autêntico fiel
teria o desafio de se multiplicar sem sentir luxú-
ria e de comer sem saborear a comida. Como diz
�João Cassiano,
em latim Johannes
Cassianus, monge e
escritor monástico.
Depois de viver sete anos
no deserto do Egito,
tornou-se diácono em
Constantinopla (400-404).
Suas obras foram muito
populares na Idade Média,
entre elas De institutis
coenibiorum et de octo
principalibus vitiis (sobre
os oito vícios principais),
de 420. In: Disponível
em: . Acesso em
01/04/2011.
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10. Gastronomia
› Introdução
Francine Prose (2004, p. 17-18), “tanto a luxúria
quan to a gula são menos uma questão de ação
que de motivação, menos de conteúdo que de
desejo, menos de impulso que de compulsão”.
A mentalidade medieval coloca definitiva-
mente a gula e a luxúria lado a lado, São Tomás
de Aquino (2005), apoiando-se em São Basílio,
ao debater se a gula deveria ou não estar entre
os pecados capitais – pois ela já que era conside-
rada um pecado que leva à outros – especificava
seis outros pecados que o excesso de comida
iria certamente gerar: “alegria excessiva e in-
conveniente, grosseria, impureza, loquacidade e
um incompreensível embotamento do espírito.”
Também talvez a gula e a luxúria sejam pecados
extremamente “visuais”, de fácil representação,
ao contrário dos outros que se tornam extrema-
mente difíceis pois são falhas mais interiores ou
�São Basílio:�“pelo
sentido do prazer
em degustar - que
sempre seduz para
a gula pelo engolir,
o corpo, engordado
e excitado pelos
humores suaves
que borbulham
incontrolavelmente no
interior, é levado a
um frenesi rumo ao
prazer da relação
sexual” in PROSE,
Francine, 2004:24.
puramente psicológicas. Bosch, no quadro O Juí-
zo Final, coloca os glutões como comida, servi-
dos como um gigantesco ensopado; já Brueghel,
na ilustração chamada Gula, adverte na legenda
sob os desenhos: “Afaste a embriaguez e a gula,
porque o excesso faz o homem se esquecer de
Deus e de si mesmo”. No caso de Dante Aliguieri
(1996), aos glutões cabe o terceiro círculo do in-
ferno, região mais baixa que a ocupada pelos
luxuriosos, apesar da semelhança entre esses
pecados no aspecto de rompimento com a mo-
deração e temperança.
Mais modernamente a indústria cinema-
tográfica vem se utilizando desse “casamento”
entre gula e luxúria. Um bom exemplo disso é o
filme “O cozinheiro, o ladrão, sua mulher e o aman-
te”, onde, no ápice da crueldade, o personagem
principal chamado “Spica”, mata o amante de sua
esposa e esta, em conluio com o chef Richard,
transforma o morto em um belíssimo assado e faz
(...) o pecado só
surgia no momento
em que a gula e a
luxúria passassem
a ser apreciados,
e não ser
simplesmente uma
necessidade, ou
seja, seria possível
se alimentar e fazer
sexo, contanto
que isso não fosse
prazeroso.
�Hieronymus Bosch
(1450-1516) pintor
holendês
O Juízo Final, Hieronymus Bosch.
�Pieter Brueghel, o velho
(1525-1569) pintor belga.
�Dante Alighieri
Florença, 1285 -
Ravenna, 1321.
�Título original: The cook,
the thief, his wife & her
lover(1989) Direção Peter
Greenway.
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Gastronomia .11
Cenas do filme “O cozinheiro, o ladrão, sua mulher e o amante”.
Gula, Brueghel.
“Afaste a
embriaguez e
a gula, porque
o excesso faz
o homem se
esquecer de
Deus e de
si mesmo”
Brueghel
o marido glutão Spica comer. Outro exemplo é o
filme “9 e meia semanas de amor”, onde o perso-
nagem principal, John (vivido por Mickey Rouke),
venda a amante, Elizabeth (interpretada por Kim
Basinger), e a coloca sentada em frente à geladei-
ra com a porta aberta. Ali começa um jogo sensu-
al onde John vai colocando alimentos variados na
boca de Elizabeth para que ela adivinhe através
do cheiro, da textura e do sabor cada um deles.
Em nossos dias essa associação continua
viva, talvez a gula já não seja um pecado tão
grave, pois, com a Revolução Industrial, foi re-
tomada a ideia de que fartura, abundância e até,
porque não dizer, desperdício, eram plenamente
aceitáveis. Com a crescente preocupação com o
envelhecimento dos anos 1990, mencionada por
Prose, as advertências do inferno eterno foram
suplantadas pela própria morte, “a obsessão de
viver para sempre nos faz sentir duplamente in-
sultados pelo espetáculo dos obesos, cuja carne
parece declarar que o prazer do momento foi
escolhido em vez da promessa da longevidade.”
(PROSE, 2004, p. 74) O deleite puro e simples foi
abandonado em detrimento da nutrição.
�Título original: Nine ½
weeks (1986) Direção:
Adrian Lyne
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12. Gastronomia
› Introdução
Portanto, se nos primórdios o alimento
cumpria sua função básica, caracterizando-se
por uma linguagem estética, hoje temos uma ar-
tistificação desses mesmos alimentos em deter-
minadas tendências da gastronomia e uma ten-
tativa de retorno ao puro deleite. Diante disso, a
comida parece evoluir para uma percepção de
arte, transformando-se talvez em linguagem ar-
tística. Surge então uma relação extremamente
interessante: o alimento de construção estética
com sua total fugacidade convive com o supor -
te como elemento perene. Permanente e efême-
ro reagindo mutuamente.
Para abordar aspectos ligados à construção
estética dos alimentos – estética entendo por
aesthésis, que é a percepção através dos senti-
dos, e percepção sendo colocada como uma
experiência agradável, como é mencionada por
Dewey – penso numa dissertação divida em
três capítulos. O primeiro é fundamentalmente
histórico e tem por base o uso de bibliografias
de estudiosos da alimentação como Roy Strong,
Massimo Montanari e Paul Freedman, entre-
laçados com o conhecimento e entendimento
adquiridos durante minha formação na gradu-
ação. Os momentos elencados nesse capítulo
foram escolhidos por representarem de manei-
ra significativa uma mudança de abordagem
(...) hoje temos uma artistificação desses
mesmos alimentos em determinadas
tendências da gastronomia e uma
tentativa de retorno ao puro deleite.
na maneira de servir e preparar os alimentos,
tendo adquirido uma certa originalidade, e pa-
rafraseando Sandra Ramalho e Oliveira (2010),
“isto quer dizer que a originalidade pressupõe a
quebra das normas vigentes, por meio do uso de
novas regras, ou da desobediência, simplesmen-
te, das normas conhecidas”.
A linha de tempo apresentada vai desde a
Antiguidade Clássica, passando pela Idade Mé-
dia na Europa e países islâmicos, a Renascença
e a Revolução Francesa, onde temos a invenção
do restaurante, o aparecimento dos talheres, da
importância da beleza da comida, da estética ao
servir e consumir um prato, a mudança no for-
mato das mesas e o cerimonial, envolvendo todo
esse processo. Encerro essa parte mostrando
como estava a Europa e seu imaginário diante da
perspectiva de uma vida nova no Novo Mundo .
O segundo capítulo começa justamente
nesse encontro com o outro. O encontro não só
de europeus com americanos, mas de culturas,
hábitos e mentalidades. Faço um panorama ge-
�DEWEY, Jonh. A arte
como experiência. São
Paulo: Martins Fontes,
2010.
Filé mignon de queixada.
Raviloli de fumaça.
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Gastronomia .13
ral do Brasil antes do achamento e para isso me
utilizo de autores como Carlos Fausto. Depois
vejo como o intercâmbio de ingredientes e cos-
tumes, propiciado pelo trânsito de portugueses
e escravos africanos vai desembocar no tronco
principal da formação da identidade gastronô-
mica brasileira, ou seja, a contribuição de negros,
índios e portugueses na nossa formação e para
isso me utilizo por exemplo de Laura de Mello
e Silva, Carlos Alberto Dória, Câmara Cascudo,
Sérgio Buarque de Holanda, entre outros.
O terceiro e último capítulo apresenta a re-
flexão sobre a significação da comida dos três
chefs selecionados, incluindo a simbologia en-
volvida numa refeição e os elementos artísticos
que são colocados nos pratos que foram esco-
lhidos para compor essa dissertação. As entre-
vistas realizadas foram transcritas de maneira
literal, utilizando-se para isso bibliografia espe-
cífica que explica essa metodologia. Os pratos
que serão apresentados foram uma escolha pes-
soal, mas sempre mantendo o critério do uso de
ingredientes brasileiros em cada uma das exe-
cuções. A construção dessa escolha começou
na observação de elementos comuns nos res-
taurantes que frequento na cidade de São Paulo.
Além da louça, que invariavelmente é branca,
formas até podem existir inúmeras, mas a cor
é sempre o branco; os ingredientes, de alguns
anos para cá, também começaram a ser apre-
sentados de maneira cada vez mais minimalis-
ta, deixando-se de lado as concepções às vezes
até um tanto kitsch de alguns chef formados em
escolas mais tradicionais, e sem grandes influên-
cias de novas tendências.
Foi então que surgiu a ideia de dar um olhar
mais aprofundado para essas questões e para
isso me utilizo de pratos onde os ingredientes
de cor branca são predominantes, criando uma
apresentação de aparência estéril, discreta e
neutra, porém, com outras grandes qualidades
além da visualidade. Desta forma, a cor que é
um elemento estético cheio de significação, que
apreende o olhar o apreciador, é neutralizada
de maneira a chamar a atenção para outros ele-
mentos. Nesse momento entram em cena os teó-
ricos da cor, da simbologia e da percepção para
tentar desvendar o que pode haver por detrás de
elementos estéticos desses restaurantes e cada
um desses pratos selecionados. A identificação
dos elementos que constituem a identidade vi-
sual desses restaurantes, apresentam a gas-
tronomia como uma linguagem particular que
tenta desvendar as razões que fazem um grupo
optar entre este ou aquele restaurante. �
(...) os ingredientes, de
alguns anos para cá,
também começaram
a ser apresentados de
maneira cada vez mais
minimalista, deixando-se
de lado as concepções às
vezes até um tanto kitsch
de alguns chef (...).
�A palavra
“achamento”, escrita por
Pero Vaz de Caminha
em sua famosa Carta
do Achamento do Brasil
datada de 1 de maio
���������
���
�
����
achado casual. Dentro
do seu tempo e da sua
história, empregava-
se para designer
o mais intencional
dos descobrimentos
portugueses. (DIAS,
Manuel Nunes.
“Expansão Européia
e Descobrimento do
Brasil”. São Paulo:
Difusão Européia do
Livro, 1968, in: CARDOSO,
Fernando Henrique.
“Brasil em Perspectiva”.
São Paulo: Difusão
Européia do Livro, 1968.
Confit de pato.
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14. Gastronomia
Tratado dos
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Gastronomia .15
CAPÍTULO 1: HEDYPATHEIA
prazeres
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16. Gastronomia
› Capítulo 1: Hedypatheia
Symposium
e Convivium
Symposium, 420 a.C. Ânfora de Cerâmica, 33 cm de diâmetro. Salamanca, Espanha.
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Gastronomia .17
isture vinho mais forte. Uma taça para as mãos de cada
convidado aqui debaixo do meu teto estão os homens
que mais amo.’ Ele fez uma pausa. Pátroclo obedeceu ao seu grande
amigo, que deixou um pesado cepo à luz da lareira e atravessou nele
um lombo de carneiro, de cabra gorda e o longo corte de um porco
adulto, reluzente de banha. Automedon segurou as carnes enquanto
o nobre Aquiles as cortou em quartos, retalhou-as bem em pedaços,
perfurou-as com espetos, e Pátroclo apagou a lareira, um homem fei-
to um deus remexendo o fogo. Quando o fogo apagou e as chamas
morreram, e ele espalhou a brasa e atravessando os espetos sobre as
cinzas, suspendeu-as sobre os suportes e salpicou sal puro. Quando
as carnes estavam assadas e servidas em travessas, Pátroclo trouxe
o pão, colocou-o na mesa em grandes cestas de vime. Aquiles serviu
a carne. Então, face a face com seu nobre convidado Ulisses, tomou
seu lugar na parede oposta, pediu ao seu amigo que sacrifi casse aos
deuses e Pátroclo atirou os primeiros cortes ao fogo. Eles se serviram
das boas coisas que estavam à disposição. (Homero, Ilíada,IX)
Toda discussão sobre os gregos antigos, in-
cluindo tópicos de culinária e sabor, aqui nosso
tema, deve começar por Homero, segundo a his-
toriadora Veronika Grimm (2009). Era assim que
pessoas civilizadas recebiam convidados, ami-
gos ou desconhecidos no antigo mundo heroico
retratado nos grandes poemas épicos.
No caso da Grécia poucas publicações abor-
dam o tema, e o que se sabe sobre a culinária,
está contida em um livro chamado Os Deipnosofi s-
tas. Foi provavelmente concluído no ano seguinte
à morte do Imperador Cômodo, em 192 d.C. e in-
clui 15 livros com forma de conversas fi ccionais
que aconteciam durante os jantares em Roma,
com inúmeros tópicos, inclusive gastronomia na
Grécia Antiga, pois os gregos foram os primeiros
a reconhecer a culinária como uma das habilida-
des e artes básicas da vida humana.
Grimm ainda menciona que sobre o ban-
quete há um relato em forma de poema de au-
toria de Filoxeno de Leucas, onde é descrita
uma festa que pode ser datada do fi nal do sé-
culo V ou o começo do século VI a.C. Trata-se
�GRIMM, Veronika, in
FREEDMAN, Paul (Org.)
“A história do sabor”.
São Paulo: Senac, 2009.
������
� ���������� De
Athenaeus Neucratis,
Os sábios comensais, é
comumente chamado
de O banquete dos
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seja “fazer (eu faço)
a refeição principal” e
não necessariamente
um banquete; ceia seria
mais apropriado. Como
é frequente, e mais
curto, usa-se somente
uma palavra grega no
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� �����������
Disponível em: .
Acesso em 23/03/2006.
M
AF_GASTRONOMIA_sangria15mm.indd 17 23/07/12 15:52
18. Gastronomia
de uma produção muito elaborada, com apenas
homens presentes – cada um com seu escravo,
reclinados em divãs, com pequenas mesas nas
mãos (pág. 19). A influência vinda do Oriente era
crescente assim como o aumento da opulência:
o uso abundante de utensílios de prata e ouro
durante a sequência do serviço com entradas,
pratos com carne, frutos do mar, terminando
com frutas, nozes e bolos, onde até recipientes
individuais eram distribuídos para que cada con-
vidado pudesse levar comida para casa se assim
quisesse. O comer e beber em conjunto era uma
forma de tornar iguais os cidadãos, e o banquete
era fundamental no funcionamento da pólis, mas
entenda-se igualdade como algo dos membros
de um grupo específico que partilhava dos mes-
mos valores e também poder político; mulheres,
crianças, estrangeiros e escravos não tinham lu-
gar nesse sistema.
Contudo, dentro da estrutura de poder, sur-
ge o banquete cívico como uma forte expressão
comunitária de unidade entre os cidadãos da
pólis. Esses eventos sempre eram realizados co-
meçando com um sacrifício de sangue feito para
�Pólis: Modelos das
antigas cidades
gregas até o período
clássico, vindo a perder
força no domínio
romano.
os deuses, após, a carne era dividida igualmente
entre os cidadãos, cozida e comida em conjunto.
A admissão no banquete garantia a cidada-
nia, embora a festividade tivesse um caráter de
liturgia de Estado, era extremamente importan-
te para aqueles que conseguiam tomar parte.
Havia a divisão entre o jantar e a festa da bebi-
da, e talvez essa divisão fosse o elemento mais
marcante aplicado nos banquetes comunitários
e que atravessou o tempo como costume, pois
ainda hoje persiste em inúmeras culturas onde,
em algumas casas, as mulheres deixam a sala de
jantar enquanto os homens lá ficam, entregan-
do-se a muita bebida e conversa. Na Grécia, esse
ritual recebeu o nome de symposiun.
O symposium era um universo masculino,
um pequeno mundo à parte. O dono da festa
decidia o que ia acontecer, o tema dos discur-
sos, músicas a serem tocadas, tipo de mímica
ou de dança que ia ser apresentada, ou que
competições iam ser feitas entre os participan-
tes, também podia ser um encontro homosse-
xual. Platão em Symposium (385 a.C.) descre-
ve como Alcebíades tentou seduzir Sócrates
durante um evento desse tipo. Nessas mesmas
ocasiões aconteciam as libações, que era o ato
de derramar vinho, água ou azeite com a fi-
› Capítulo 1: Hedypatheia
Symposium, 490-480 a.C. Fragmento
de cerâmica de ânfora, 9 x 24 x 31 cm.
Louvre, Paris.
Cena de banquete, 460-450 a.C.. Prato de
cerâmica, 31,1cm de diâmetro.
Prato com peixes, 350-325 a.C. Cerâmica 3,8 x 19,8 cm.
Louvre, Paris.
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Gastronomia .19
nalidade religiosa ou ritual, em honra de um
deus, tal como aparece na Gêneses 35:14. “E
Jacó pôs uma coluna no lugar onde falara com
Ele, uma coluna de pedra; e derramou sobre ela
uma libação, e deitou sobre ela azeite.”
São essas refeições que diferenciam os seres
humanos dos deuses, os gregos dos não gregos,
e os cidadãos no interior de sua pólis. Porém,
nem todo ser humano está apto para o banque-
te. Essa prática é fortemente marcada pelo sinal
da civilidade e, no sistema de representação dos
gregos, os seres não-civilizados ou o ignoram,
ou fazem mau uso dele. Aos olhos deste povo,
a ausência de banquetes entre os não gregos re-
vela, entre outras coisas, ou que essa população
precisava de vida comunitária, ou que tinha vida
nômade. Todo povo civilizado deveria conhecer
os banquetes. O não grego era considerado bár-
baro e seus “banquetes” não eram reconhecidos
como tal.
Esse foi o legado da Grécia para Roma. Ao
contrário da primeira, que tinha o olhar voltado
para o Mediterrâneo, consequentemente para
seus benefícios, os romanos se atentavam para
a terra e sua relação com a comida – o ato de
São essas
refeições que
diferenciam os
seres humanos dos
deuses, os gregos
dos não gregos,
e os cidadãos no
interior de sua
pólis.
comer era dominado por uma dualidade. Os ali-
mentos eram divididos entre fruges, produtos do
solo e percudes, produtos ligados ao sacrifício ri-
tual, como bois, carneiros e porcos. Os que con-
sumiam essas carnes de sacrifício – confinados
às classes superiores – eram identificados como
membros civilizados de uma comunidade. Os
que se comportavam como as tribos germânicas,
cuja dieta consistia em grande parte de qualquer
tipo de carne, eram considerados bárbaros.
Para Veronika Grimm, poetas e satiristas da
antiguidade clássica viam na descrição de hábi-
tos alimentares ridículos um instrumento prático
para caracterização de seus alvos, pois a intenção
dos autores romanos raramente era a descrição
objetiva do sabor ou da culinária. A maioria dos
escritores usava o alimento e a bebida como ins-
trumentos de expressão de opiniões, atitudes e
emoções. Tendo como pano de fundo uma filoso-
fia que enfatizava a frugalidade e a moderação de
apetites como base da moralidade, uma pessoa
boa era descrita como alguém que comia con-
�GRIMM, Veronika.
In: FREEDMAN,
Paul (Org.) A
história do sabor.
São Paulo: Senac,
2009
Kylix de figuras vermelhas (490-480A.C.), retratando uma cena de um symposium:
dois convidados, um flautista e um menino com uma jarra de vinho e uma concha
para encher os copos. os convidados estão jogando kottabos, jogo competitivo para
ver quem consegue derrubar o alvo precariamente equilibrado.
AF_GASTRONOMIA_sangria15mm.indd 19 23/07/12 15:52
20. Gastronomia
troladamente, enquanto os inimigos dos poetas
eram ridicularizados remexendo em quantidades
imensas da mais grotesca comida. Percebendo
que imagens alimentares continham uma riqueza
de associações sensuais, fossem sedutoras ou re-
pulsivas, os poetas romanos tornaram-se mestres
no seu uso como metáforas vívidas dos excessos,
reais ou imaginários, da própria sociedade.
As primeiras descrições existentes sobre o
banquete aparecem nos restos de um texto do
século I chamada Satyricon, de Petrônio. O an-
fitrião do banquete, chamado Trimálquio, que
havia sido escravo, consegue acumular uma
grande riqueza, maior ainda que seu senhor, e,
orgulhoso, quer mostrar sua fortuna a todos. Es-
banja seu dinheiro adotando um comportamen-
to que julga ser aristocrático, culto, para ganhar
a admiração de amigos e estranhos. Contudo,
Trimálquio é retratado pelo autor como um
fanfarrão, bêbado, aproveitador e que batia na
�Satyricon: é uma
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mistura prosa e poesia,
sua autoria é atribuída
a Gaius Petronius.
Datado do século I D.C.
�Banquete: Federico
Fellini fez uma livre
adaptação desse
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“Satyricon” de 1969.
mulher. Um novo-rico vulgar e ignorante, cujas
tentativas de imitar seus superiores acabavam
em lamentáveis fracassos.
A narrativa em si trata das aventuras de um
par de homossexuais, o narrador Encólpio e seu
amigo Gitão. A certa altura do texto aparece um
terceiro personagem inescrupuloso, Ascilto, que
decide separar os amantes. Encólpio e Ascilto
são convidados de Trimálquio, que serve como
exemplo de como funcionavam esses espetá-
culos gastronômicos na Roma antiga. Embora
o jantar de Trimálquio seja reconhecido como
uma sátira que mostra o desdém aristocrático
pelas classes médias, o episódio é usado como
exemplo toda vez que se discutem os banquetes
da rica elite romana.
Segundo o historiador Roy Strong, chegan-
do na casa do anfitrião os convidados eram le-
vados pelo porteiro por uma galeria cercada de
colunas e decorada com cenas que glorificavam
› Capítulo 1: Hedypatheia
Cena do filme Satyricon, de Federico Fellini.
�STRONG, Roy.
Feast: a history
of grand eating.
Londres: Jonathan
Cape, 2003.
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Gastronomia .21
o anfitrião. Na entrada da sala de jantar um es-
cravo dizia aos convidados para entrarem com
o pé direito, o que prontamente era obedecido.
Havia vários escravos pelo salão servindo be-
bida, oferecendo água para lavarem as mãos,
cantando e dançando. Os inúmeros convidados
instalavam-se nas almofadas e quando a esposa
do anfitrião tomava seu lugar, a refeição tinha
início.
O relato do banquete descreve a entrada do
primeiro prato e logo depois segue em grande
estilo.
Nesse momento, Trimálquio, enfeitado de púr-
pura e jóias, entra numa liteira ao som de fan-
farra. Sem se desculpar com os convidados por
chegar após o primeiro prato ter sido servido,
instala-se no lugar habitualmente destinado ao
hóspede mais importante. Mesmo então conti-
nua ignorando os convidados, sem interromper
um jogo de tabuleiro. Escravos trazem uma
grande travessa com uma cesta contendo uma
galinha de madeira com as asas estendidas, no
ato de pôr ovos. Ao ‘som ensurdecedor da músi-
ca’ os escravos pegam na palha, debaixo da ga-
linha, grandes ovos pesando 250 gramas, feitos
de farinha de trigo e fritos em óleo. Os ovos são
distribuídos entre os convidados que, ao abrí-
-los, encontram passarinhos enrolados em gema
de ovo temperada. (STRONG, 2003, p. 12)
O espetáculo continua, são servidos vários
tipos de carne e iguarias para cada signo do
Zodíaco, escravos continuam servindo pão e
vinho. Aparece então um trinchante – figura que
por muitos séculos será a figura central dos ban-
quetes – e corta as carnes ao ritmo da música. A
sala de refeições tem divãs inclinados chamados
de triclínios, onde os convidados estão acomoda-
dos. Ainda segundo Strong, a festa parecia não
ter fim, surgiam acrobatas, atores, coroas de
ouro e jarras de perfume descendo do teto; bolos
que jorravam açafrão nos convivas e, por fim, o
secundae mensae, que era a sobremesa: tortas re-
cheadas de passas e nozes, marmelos parecendo
ouriços do mar. Havia um ganso gordo cercado
de todos os tipos de pássaros e escravos traziam
ânforas de onde caíam cascatas de ostras e viei-
ras, meninos de cabelos compridos lavavam os
pés dos convidados com perfume e enfeitavam
suas pernas com guirlandas.
A essa altura todos estão bêbados, e a história
termina com Trimálquio reclinado como um ca-
dáver, enquanto os músicos tocam uma marcha
fúnebre e lêem seu testamento em voz alta. Nes-
se ponto, Encólpio, Ascilto e Gitão se retiram.”
(STRONG, 2003, p. 13)
Esta cena seria uma descrição fiel de um
convivium romano? Pela literatura disponível que
contém o relato é mais fiel do que possamos jul-
gar com nosso “juízo contemporâneo”.
Os banquetes já tinham um grande papel
na política dinástica, quanto mais provisões
fossem consumidas significava que maior era
a capacidade de cobrança de tributos do sobe-
rano e quanto mais exóticos os ingredientes, ou
seja, quanto maior a distância para buscar tais
elementos, maior era o poder do governo. “Os
representantes de domínios reais que desejavam
bajular o rei enviavam deliberadamente iguarias
(...) quanto mais provisões fossem
consumidas significava que maior
era a capacidade de cobrança de
tributos do soberano e quanto mais
exóticos os ingredientes, (...) maior
era o poder do governo.
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22. Gastronomia
para tentar o paladar real e o apetite dos convi-
dados poderosos.” (STRONG, 2003, p. 15)
É evidente que desde essa época o uso de
ingredientes raros e o desenvolvimento da hau-
te cuisine – cozinha clássica que era servida aos
reis – como decorrência da hierarquia, ligavam-
-se claramente à manipulação de um grupo por
outro com finalidades políticas.
Contemporaneamente os banquetes conti-
nuam exercendo um papel bastante semelhante,
grandes decisões são tomadas à mesa, acordos
são firmados, são conciliadas oposições, apro-
ximam-se os contrários, e quanto mais cara,
exótica e exclusiva é a refeição, mais o convi-
dado vai se impressionar e, de certa forma, ficar
“embriagado” com o ambiente, com os pratos,
tornando mais propícia a manipulação do an-
fitrião. Contudo, a sedução pela mesa não está
necessariamente destinada ao sucesso. Mais
contemporaneamente ainda, nos anos 1990,
o então presidente da França, Jacques Chirac
lança a macieira como logotipo da campanha
presidencial e o slogan “Comam maçãs!” exal-
tando as virtudes da cidra, que o tornou um lí-
der simpático à opinião pública. Numa tentativa
semelhante, José Serra, então candidato à pre-
sidência da República Federativa do Brasil pelo
PSDB, comeu buchada de bode num restaurante
popular no município de Samambaia, no Distrito
Federal.
À medida que Roma passou de República
para a capital de um vasto Império, a oposição
entre essas duas abordagens da culinária foi no-
tada e os luxos modernos eram vistos como um
sinal de decadência se comparados à nobre fru-
galidade de tempos passados.
Na verdade as satisfações complacentes es-
tavam à disposição de quem podia pagar por
elas. À medida que o império crescia, as igua-
rias do mundo conhecido fluíam para Roma.
Aulos Gellios, em seu Noctes atticae, descreve
uma sátira de Marcos Varro (116-27 a.C.) que
mostra até que ponto esse tipo de gulodice im-
perial podia chegar. O poeta em sua sátira trata
de elegância sofisticada nos banquetes e lista
iguarias que os glutões buscavam. (STRONG,
2003, p. 24)
A alimentação também era uma maneira
de mascarar o abismo econômico entre ricos
e pobres, pois havia uma crença verdadeira de
que Roma havia sido construída sob o cultivo
de uma rígida frugalidade, portanto era preciso
controlar o estilo de vida dos ricos durante o pe-
ríodo imperial, já que deixar esse aspecto fora de
controle poderia significar uma ameaça a esta-
bilidade social. A verdade é que, para a maioria
da população, a comida consistia em uma sopa
grossa de aveia e carne com pão, suplementada
por nabos, azeitonas, feijão, figos, queijo e, de vez
em quando, porco.
Mas a capacidade de usufruir riquezas
deixou sua marca na gastronomia do Império
Romano. No apogeu, a culinária romana foi a
primeira cozinha internacional da história da
Europa Ocidental e era praticada, com varia-
ções regionais, de um lado a outro do Império.
O que começou como uma culinária rústica e
vegetariana no tempo da República, tornou-se
no Império cada vez mais sofisticada. O Alto
› Capítulo 1: Hedypatheia
�Distrito Federal:
GOUTHIER, Márcia. FHC
elogia Serra, sonho e
Buchada. Folha de São
Paulo, 01 ago. 2002.
Disponível em: . Acesso em: 10
mar. 2012.
(...) quanto mais cara, exótica e exclusiva
é a refeição, mais o convidado vai se
impressionar e, de certa forma, ficar
“embriagado” com o ambiente, com
os pratos, tornando mais propícia a
manipulação do anfitrião.
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Gastronomia .23
Império iria seguir essa tradição que, apesar de
toda sua elegância, ainda tinha certo grau de
restrição e conduziu-o na direção da decadência
e do excesso. Com o fim do Império nos séculos
V e VI d.C., a gastronomia romana gradualmen-
te desintegrou-se.
No entanto, é ainda dessa época que surge a
primeira escola de culinária. Fundada em Roma
por M. Gabio Apício, um gourmet rico e excên-
trico na ânsia de aproveitar melhor os alimentos
e desenvolver exóticas receitas, teria inventado
um tipo de foie gras de gansos alimentados ex-
clusivamente com figo, ensinava haute cuisine na
primeira metade do século I d.C., durante o reina-
do de Tibério e Augusto. Strong relata que mui-
tas das receitas de Apício tornaram-se famosas
e pratos que não eram dele receberam seu nome
em sua homenagem. Apício escreveu em torno
de 470 receitas que foram divididas em 11 livros,
essa coleção chega até nossos dias, em sua maior
parte, em dois manuscritos do século IX.
Muitas dessas receitas tinham claramente
em vista um grupo específico de usuários, como
fazendeiros que desejavam aprender como con-
servar alimentos, mas também havia um núcleo
derivado de fontes médicas. No geral as receitas
apresentadas não eram, de maneira nenhuma, de
excessos, embora incluíssem o infame arganaz –
rato silvestre – recheado. Apesar de sua preferên-
cia teórica pela simplicidade, Apício revela que os
romanos não gostavam de nenhum ingrediente
em sua forma pura, nos livros quase não há recei-
ta que não leve um molho que mude radicalmente
o gosto dos ingredientes, ou seja, mudavam a per-
cepção dos alimentos pelos comensais.
Os molhos, nesse momento, tem portanto
objetivos variados, podiam modificar ou aumen-
tar o sabor, dar cor ou retirar a mesma, azedar
ou adoçar. Molhos adocicados predominavam
nos pratos com carne; nos pratos de peixe os
molhos agridoce. Para o preparo deles, usavam
uma gama enorme de especiarias, 90% das re-
ceitas pediam caras ervas e temperos importa-
dos. A pimenta, seguida pela canela, gengibre,
noz-moscada, cravos da Índia, Ceilão, baía de
Bengala e China. Essa verdadeira obsessão por
especiarias importadas, afirma Strong, seria na
verdade o maior legado romano à Idade Média.
Contudo, até hoje Apício continua sendo um do-
cumento confiável e de leitura agradável. �
Os molhos, nesse momento,
tem portanto objetivos variados,
podiam modificar ou aumentar
o sabor, dar cor ou retirar a cor,
azedar ou adoçar.
�Apício: "De Re
Coquinaria”, (do latim
“Sobre a Cozinha”),
possivelmente escrito por
Apício no século I DC,
durante o reinado de
Tibério. O livro é composto
de onze partes, divididas
por alimentos e suas
preparações: 1. Epimeles,
2. Sarcoptes, 3. Cepuros,
4. Pandecter, 5. Ospreos,
6. Tropetes Aeropetes,
7. Polyteles Volatilia, 8.
Tetrapus Quadripedia,
9. Thalassa Mare, 10.
Halieus Piscatura e 11.
Excerpta para Vinidario.
Disponível em: .
Acesso em 20/03/2006.
Cena de Symposium.
AF_GASTRONOMIA_sangria15mm.indd 23 23/07/12 15:52
› Capítulo 1: Hedypatheia
24. Gastronomia
› Capítulo 1: Hedypatheia
Consumo
O Islã Medieval e os Séculos
Silenciosos na Europa
Os Prazeres do
Essa obra é uma representação de um jantar de Bahram Gur
com uma princesa indiana e sua grande comitiva com alimen-
tos considerados halal.
AF_GASTRONOMIA_sangria15mm.indd 24 23/07/12 15:53
prática islâmica, na Idade Média
ia se tornando sofisticada e os
árabes conquistavam as culturas culinariamente
mais aventureiras. Algumas correntes islâmicas
passaram a proibir muçulmanos de consumir
especialmente animais carnívoros – como as
aves de rapina, alguns moluscos, a maioria dos
insetos, répteis, “animais com presas” e bebi-
das alcoólicas. Apesar disso ainda restava uma
gama de ingredientes com os quais os primeiros
cozinheiros muçulmanos medievais começaram
a construir uma culinária islâmica com identida-
de. Grãos, leite, mel, vegetais, frutas, nozes, ani-
mais abatidos de forma correta, peixes e carne
de caça – como javali, eram considerados permi-
tidos, consequentemente, apropriados para uma
refeição muçulmana e utilizados em larga escala
pelos cozinheiros.
Em várias passagens do Alcorão, começando
com Surah 2:172-173, Alá ordena aos muçulma-
nos que “comam as coisas boas que Nós lhes for-
necemos” e os proíbe de consumir o que é ilegal,
mais especificamente carniça, sangue, porco,
animais abatidos de modo impróprio, bebidas
intoxicantes e qualquer coisa dedicada em ado-
ração a outro que não Alá. Deste modo, para os
muçulmanos os alimentos foram divididos, des-
de o início, em duas categorias, halal e haram,
ou seja, o que é permitido e o que é proibido.
(FREEDMAN, 2009, p.135)
Contudo, apesar do rigor da dieta dos pri-
meiros muçulmanos – ou até quem sabe por
causa disso –, o Alcorão está repleto de alusões
sobre a alimentação que aguarda um fiel na sua
chegada ao Paraíso. Rios de vinho, leite que não
talha e mel puro,
fluindo por jardins com árvores frutíferas de
todo tipo, onde a pessoa se senta em um tro-
no dourado e a “carne de aves” é servida por
saudáveis huris de olhos castanhos, enquanto
A
Gastronomia .25
SIMS, Eleanor. Peerless images: persian paiting and its sour-
ces. Yale University Press, 2002, p.176. Esta cena representa um
grupo de “darvishes”, num prado numa montanha tentando
uma união mística com Deus por meio da ingestão de algumas
bebidas alcoólicas, depois da expansão do Islã isso não foi
mais permitido nem retratado, pois o alcoól era algo considera-
do haran, ou seja, era algo proibido.
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26. Gastronomia
› Capítulo 1: Hedypatheia
jovens esguios mantêm permanentemente cheio
seu cálice de ouro e cristal”. (H.D. MULLER,
In: FREEDMAN, 2009, p. 137).
Relato muito semelhante aos encontrados
em Roma e Grécia, onde todos os fiéis seriam
recepcionados “no paraíso” com rios interminá-
veis de vinho e leite.
Com a morte de Maomé e a expansão do
Islã em 632, houve um grande crescimento de-
mográfico dos adeptos da religião, e a extensão
para além do deserto árabe concentrando-se em
torno de Meca e Medina, colocou os primeiros
muçulmanos em contato com gregos, egípcios e
persas. Cada um desses encontros e cada região
conquistada adicionava sabores e pratos típicos
à culinária um tanto restrita pelas imposições do
Alcorão.
Por volta da metade do século VII, a capi-
tal Meca foi mudada para a recém-conquistada
A proximidade geográfica com a
Mesopotâmia e com as montanhas
do Líbano e o Mediterrâneo,
garantiam a Damasco uma grande
variedade de alimentos (...).
Califa recebendo convidados para banquete.
AF_GASTRONOMIA_sangria15mm.indd 26 23/07/12 15:53
Gastronomia .27
SIMS, Eleanor. Peerless images: persian paiting and its sources. Yale University Press, 2002, p. 109. Esse manuscrito reflete a
vida na cidade. Na parte inferior se vê um príncipe recebendo convidados para um banquete, esses convidados recebem taças
de vinho, os serviçais vem trazendo frutas e açúcar em forma de cones.
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28. Gastronomia
› Capítulo 1: Hedypatheia
Damasco, citada por Freedman, como a cidade
mais cosmopolita que os invasores muçulma-
nos já tinham visto. A proximidade geográfica
com a Mesopotâmia e com as montanhas do
Líbano e o Mediterrâneo, garantiam a Damas-
co uma grande variedade de alimentos, bem
maior do que a simples dieta do deserto com-
posta de grãos, tâmaras e carne. A mudança de
Meca – bem limitada no terreno agrícola – para
Damasco ainda garantiu os primeiros contatos
com a culinária bizantina e persa, além de cos-
tumes e hábitos da corte greco-romana.
Em 762, a capital muda novamente, de Da-
masco para Bagdá. Cidade planejada às margens
do rio Tigre, erguida quase totalmente sobre as
ruínas de antigas cidades da Babilônia e Sassâ-
nidas, com material aproveitado dessas ruínas.
Construída em três círculos concêntricos, tinha,
ao centro, o palácio do califa e a grande mesqui-
ta. De acordo com Freedman, foi justamente em
Bagdá que a culinária muçulmana atingiu seu
mais alto status.
No começo do século IX, durante o reinado do
lendário califa Haroun al-Rashid, a elite social
de Bagdá já estava completamente obcecada
por comida; não apenas por comer bem, mas
também por ler e escrever sobre artes culinárias
e até mesmo pela prática em si. Nesse clima de
epicurismo, cozinhar não era tarefa a ser rea-
lizada por simples criados nos confins obscu-
ros da cozinha imperial, mas uma atividade à
altura do próprio califa. De fato, em uma das
mais fascinantes histórias de as Mil e uma noi-
“Nesse clima de
epicurismo, cozinhar não
era tarefa a ser realizada
por simples criados nos
confins obscuros da
cozinha imperial, mas
uma atividade à altura
do próprio califa.”
AF_GASTRONOMIA_sangria15mm.indd 28 23/07/12 15:54
Gastronomia .29
tes, Sheherazade conta como Haroun al-Rashid,
disfarçado, cozinha para um casal de namora-
dos um prato de peixe que ele próprio pescara
no rio Tigre.
Se cozinhar peixe não era uma atividade abai-
xo da dignidade dos califas abássidas, que logo
após a mudança para Bagdá adotaram o estilo
reservado e semidivino dos reis persas, além de
seus extravagantes hábitos alimentares, escrever
sobre culinária com certeza tinha igual valor.
(FREEDMAN, 2009, p. 140
Como em outras civilizações, no mundo
muçulmano as refeições também representa-
vam status. O cardápio de banquetes era algo
tão elaborado que era digno de registro em poe-
mas, algo no entanto corriqueiro em se tratando
de califas, que eram os soberanos espirituais en-
tre os muçulmanos. A humildade defendida por
Maomé séculos antes cedia lugar a uma extra-
vagância jamais vista desde a queda de Roma.
Em feriados e dias especiais, uma refeição com-
posta de vários pratos era servida para milha-
res de pessoas à custa do califa. E, quando os
califas jantavam em casa com amigos, podiam
se vangloriar do fato de que ao menos trezentos
(...) desde o início desse período de
“culto ao estômago” havia muitos
médicos que, por questões de saúde,
faziam restrições alimentares.
Frangos sendo assados num espeto. Romance of Alexander, Bruges, 1338-44 (The Bodleian Library, Oxford, MS 264 fol 170v).
pratos diferentes eram servidos numa só refei-
ção. Assim como o número de mulheres no ha-
rém do califa, o número de pratos servidos em
um jantar representava mais do que apenas o
prazer de consumir. Era também uma manei-
ra de o califa expressar sua riqueza e poder, e
de os cidadãos de Bagdá sentirem orgulho da
grandiosidade de seu governo e de vivenciarem,
de forma indireta, as façanhas de um grande
homem. (H.D.MULLER. In: FREEDMAN,
2009, p. 143)
H.D Muller explica ainda que desde o início
desse período de “culto ao estômago” havia mui-
tos médicos que, por questões de saúde, faziam
restrições alimentares. Foram escritos vários
tratados sobre alimentação, em grande núme-
ro baseados em teorias médicas gregas antigas.
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30. Gastronomia
› O Invenção das Boas Maneiras e a Mesa Cristã
30. Gastronomia
› Capítulo 1: Hedypatheia
Geralmente os estudiosos que escreviam sobre
dieta, fossem eles médicos judeus, muçulmanos
ou cristãos, eram vistos como figuras importan-
tes na corte do califa. Eles eram frequentemente
consultados durante o preparo de alimentos e,
de modo frustrante, às vezes tinham o papel de
proibir o califa de comer alguma coisa que jul-
gassem incorreta.
Contudo, alguns dos que se opunham ao con-
sumo exagerado das elites sociais o faziam
com base moral, argumentando que a devoção
excessiva ao estômago impedia a verdadeira
iluminação. Era o caso de Salih b. ‘Abd Al-
-Quddus, que escreve no final do século VIII que
‘vivemos no meio de bestas sempre à procura
de novas pastagens, mas que não procuram a
compreensão. Escrever sobre peixes e verduras
é para eles um mérito, mas a exposição de as-
suntos realmente científicos os deixa entediados
e cansados’. Realmente, o califa al-Mahdi achou
os trabalhos de Abd al-Quddus tão entediantes,
cansativos e heréticos que, em 793, mandou
matá-lo. (H.D.MULLER. In: FREEDMAN,
2009, p. 144)
Neste contexto, a Bagdá medieval ficava
situada ao centro do movimentado mundo islâ-
mico, por onde passava uma enormidade de co-
midas exóticas e de tradições culinárias, ditan-
do o que era consumido e como era consumido.
Um famoso exemplo, citado por H.D.Muller (In:
FREEDMAN, 2009, p. 144), de como a cultura
culinária de Bagdá influenciava o mundo é a
história de Ziryab, um escravo liberto e músico
que conseguiu emprego em Córdoba, na atual
Espanha, na corte do bisneto do último omíada,
tornando-se um dos maiores conselheiros de eti-
queta já registrados.
Córdoba, em início do século IX, em nada
podia ser comparada à Bagdá. Na época, recém
liberta dos visigodos, encontrava-se como uma
cidade em que a gula desenfreada e grossei-
ra era uma das únicas maneiras da classe alta
expressar sua riqueza. A comida, preparada de
(...) a gula desenfreada
e grosseira era uma
das únicas maneiras
da classe alta
expressar sua riqueza.
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Gastronomia .31 Gastronomia .31
modo pouco criativo apesar da grande varieda-
de de ingredientes, era amontoada nos pratos e
rapidamente devorada pelos comensais arma-
dos de colhe res de pau e facas. A chegada de
Ziryab a Córdoba, em 822, colocou fi m a tudo
isso. Embora tivesse sido contratado como mú-
sico, rapidamente estabeleceu um padrão para
o comportamento das mulheres e homens an-
daluzes em questões como etiqueta, moda e
culinária. Sua infl uência sobre hábitos culinários
espanhóis e europeus persiste até hoje, segundo
o texto de Muller.
Na cozinha Ziryab ensinou aos chefs anda-
luzes novos pratos orientais e convenceu os co-
mensais de que valia a pena experimentar um
velho ingrediente usado em Damasco: o aspargo.
Uma de suas inovações mais signifi cativas foi a
introdução da prática do jantar composto de vá-
rios pratos. Embora já conhecido em Bagdá, esses
jantares eram pouco usuais. “Entretanto, tornou-
-se um costume elegante na metade ocidental do
mundo muçulmano, e, sob a direção de Ziryab, o
jantar começava com sopa, seguida de peixe e,
depois, ave ou carne e sobremesas; por fi m, um
pequeno prato de pistache ou amêndoas.” (H.D.
MULLER. In: FREEDMAN, 2009, p.145) Perce-
be-se que esse é um estilo de jantar que permane-
ce entre nós até hoje.
Ao contrário da Europa, no mundo islâmico
sobreviveram alguns livros para contar a histó-
ria dessa culinária dos tempos dos califas, com
sua alta gastronomia medieval. Uma edição do
século X, chamado Kitab al-tabikh, em portu-
guês, livro de culinária, é provavelmente o mais
antigo livro culinário do período medieval em
qualquer idioma. Lista centenas de alimentos,
pratos, bebidas, utensílios, mas tudo com caráter
enciclopédico. Outro exemplar já do século XI,
ano 1226, é bem mais curto, contudo mais efi caz
que o antecessor no que diz respeito a ingredien-
tes e às instruções específi cas de preparo.
Muitos pratos descritos nesse livro tem,
além do sabor azedo, apresentam uma comple-
xidade no preparo. Todos tem várias etapas mi-
nuciosas, incluindo moer diversos ingredientes
em diferentes níveis de granulação, coar líqui-
dos, misturar cuidadosamente várias especia-
rias e adicionar ingredientes especiais em mo-
mentos específi cos do processo.
Nesse momento histórico é dada atenção
especial ao aroma e impacto visual do prato. Se-
gundo Freedman, pouco antes de irem à mesa
os pratos eram borrifados com água de rosas,
para realçar o aroma, a decoração era feita cui-
dadosamente com pequenos pedaços de frutas
ou nozes, ou ainda ovos pochê, que podiam ser
coloridos com açafrão. A instrução dada aos co-
zinheiros muçulmanos medievais era, ao fi nal
de cada receita, limpar a borda dos pratos para
simplesmente realçar a apresentação.
Pouco se sabe sobre as receitas existentes
entre Apício e as do século XIV na Europa, mas
alguns relatos, como o do monge Giralus Cam-
brensis – que escreve em terceira pessoa – so-
(...) a decoração era
feita cuidadosamente
com pequenos
pedaços de frutas ou
nozes, ou ainda ovos
pochê, que ainda
podiam ser coloridos
com açafrão.
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› Capítulo 1: Hedypatheia
32. Gastronomia
passava os pratos aos monges que serviam, e es-
tes, por sua vez, levavam-nos como presentes às
mesas mais baixas; e havia aqueles para quem
esses presentes eram dados, que faziam seus
agradecimentos, e todos gesticulavam com os
dedos, mãos e braços, e assobiavam uns para os
outros em vez de falar, comportando-se de ma-
neira extravagante, com modos mais liberais e
frívolos do que decorosos; de modo que Giraldo
parecia estar sentado num palco ou entre atores
e bufões... E quanto ao número de pratos, devo
dizer apenas que muitas vezes ouvi o próprio
Giraldo declarar que 16 ou mais, muito caros,
tinham sido postos à mesa em ordem, para não
dizer de modo contrário a toda ordem [isto é,
à ordem monástica]. Finalmente foram levadas
todas as verduras a todas as mesas, embora
pouco provadas. Havia muitos tipos de peixes,
assados e cozidos, recheados e fritos, muitos
pratos feitos com ovos e pimenta por hábeis co-
zinheiros, diversos temperos e condimentos com-
postos com a mesma habilidade para estimular
a gula e despertar o apetite. Além disso podia-se
ver em meio àquela abundância ‘vinhos e bebi-
das fortes’, hidromel e clarete, mosto e suco
de amoras, e tudo que pode embebedar, bebidas
tão finas que a cerveja, tal como é feita na Ingla-
terra e acima de tudo em Kent, não tinham lugar
entre elas. (STRONG, 2003, p. 45)
Durante a Idade Média aconteceram inú-
meras mudanças nos hábitos alimentares que
afetaram profundamente a história da gastro-
nomia. A cultura bárbara não se baseava na
agricultura como a romana, mas na exploração
de recursos naturais – gado criado solto e caça.
A trindade mediterrânea de pão, óleo e vinho
tinha sua contrapartida bárbara em carne, leite
e manteiga. No entanto, a longo prazo, a deca-
�Hidromel: Bebida
fermentada a base de
mel e água.
�Clarete: Bebida
produzida de maneira
semelhante ao vinho
tinto, mas com uma
boa proporção de uvas
brancas, deixando o
vinho com pouca cor.
�mosto: Mistura
açucarada destinada
à fermentação
alcoólica.
Durante a Idade Média
aconteceram inúmeras
mudanças nos hábitos
alimentares que afetaram
profundamente a história
da gastronomia.
bre o jantar na abadia de Santo Agostinho em
Canterbury, Kent no ano de 1180, descreve que
já estavam em ação cozinheiros treinados, ca-
pazes de produzir pratos interessantes, mesmo
trabalhando somente com tradição oral.
Ele notou duas coisas: a multidão de pratos e
a excessiva superfluidade de sinais que monges
faziam uns para os outros. Havia o prior, que
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Gastronomia .33
O jardim das delícias, Hieronymus Bosch. Detalhe central da obra carregada de uma mentalidade medieval. Traz a representação da luxúria, do gozo e
do prazer efêmero.
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34. Gastronomia
› Capítulo 1: Hedypatheia
34. Gastronomia
(...) seria um erro
considerar que nos séculos
XIV e XV predominava um
sistema culinário estável,
parece impossível falar de
uma cozinha medieval.
dência de Roma e a ascensão de reinos bárba-
ros resultaram numa síntese culinária e não em
uma batalha. A passagem para alimentos deri-
vados de florestas, pastos, riachos, lagos e rios
era compensada pelo fascínio bárbaro diante
das tradições romanas que sobreviveram nos
territórios conquistados. Tal fascínio seria for-
çado pela progressiva conversão ao cristianis-
mo, uma fé enraizada na tradição
clássica, com pão, óleo e vinho
sendo utilizados em suas cerimô-
nias mais importantes. Contudo,
seria um erro considerar que nos
séculos XIV e XV predominava
um sistema culinário estável, pare-
ce impossível falar de uma cozinha
medieval. Nesse campo da gastro-
nomia medieval, que ainda é bem pouco explo-
rado, as falsas pistas são quase tão abundantes
quanto as teorias duvidosas.
Ao mesmo tempo, a comida tornou-se cada
vez mais ligada a hierarquia. Tal diferenciação
já estava presente na antiguidade, mas acabou
permanecendo e até crescendo na medida em
que a sociedade feudal assumia sua estrutu-
ra piramidal. A dieta da elite era, ao mesmo
tempo, mais variada e seletiva na qualidade de
alguns alimentos. A ciência dietética exposta
por um antigo, chamado Antimo, hoje chamado
São Antimo de Roma, já havia recomendado a
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Gastronomia .35
carne, produto básico da dieta bárbara, como
essencial para a força física. E essa era a força
que preocupava diretamente a nobreza feudal,
cujo papel na sociedade limitava-se a lutar e
caçar como um treinamento para a guerra. Ine-
vitavelmente, portanto, a carne, sendo a fonte
de proezas físicas, passou a ser encarada como
um atributo de poder e comando. Da mesma
forma, a interdição de carne para malfeitores
de alta estirpe no período carolíngio enfatiza-
va seu significado como fonte de força e poder.
Essa somatória entre carne e poder explica
também as quantidades imensamente esban-
jadoras consumidas pelas classes dominantes.
Comer bastante era literalmente um sinal de
verdadeira nobreza e o consumo de alimentos
frescos um sinal de status.
Na Idade Média, as Cruzados começam a
fazer contato com a culinária do Islã, promoven-
do assim um intercâmbio e um refinamento da
culinária medieval. Fora isso os árabes desde o
século VIII estavam estabelecidos na Sicília e
no século IX ficaram a um passo da Itália e a
Península Ibérica era ocupada em grande parte
por eles.
Nas tradições árabes o açúcar, açafrão e pi-
menta eram tidos como possuidores de grandes
virtudes médicas.
O mundo muçulmano influi bem menos do que
se supunha para essa mudança de gosto. Essa
Nas tradições árabes o açúcar,
açafrão e pimenta eram tidos
como possuidores de grandes
virtudes médicas.
BRUEGHEL, Pieter. A luta entre o Carnaval e a Quaresma, 1559. Óleo sobre madeira de carvalho, 118 x 1645cm. Museu Kunsthistorisches, Viena.
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36. Gastronomia
› Capítulo 1: Hedypatheia
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Gastronomia .37
infl uência se deve, mais do que aos costumes tra-
zidos das cruzadas, à introdução no Ocidente
dos textos médicos traduzidos do árabe, e com
eles todo um arsenal farmacêutico do qual fa-
ziam parte as especiarias.
A mudança das preferências em matéria de es-
peciarias traduziu-se pelo desinteresse pela pi-
menta, que fazia parte de 80% das receitas de
Apicius. No fi m da Idade Média ela perdeu sua
importância na cozinha ocidental, principal-
mente para o gengibre. Na França, o declínio foi
mais precoce e mais acentuado, a ponto de essa
especiaria, outrora muito preciosa, ser margina-
lizada a partir daí. Isto vale pelo menos para
a cozinha mais elaborada, porque a pimenta
continua sendo maciçamente importada pelos
mercadores venezianos. Não há nisso qualquer
paradoxo: com certeza seu preço baixo fez com
que deixasse de ser privilégio de uma elite, sen-
do por isso preterida por esta. Prova disso é que
a ela passou a preferir substâncias igualmente
picantes, mas muito mais caras, como o pimen-
tão da Insulíndia ou a malagueta, cujo mapa de
distribuição é exatamente inverso ao da pimenta
do reino. (MONTANARI, 1998, p. 452)
O livro mais antigo de culinária da França
data do século XIV. O Viandier, cita uma com-
binação de elementos ácidos com especiarias,
e essa combinação aparece em mais da metade
dos pratos da mesma compilação, defi nindo um
gosto tipicamente francês pelo picante. O Vian-
dier também identifi ca o domingo, a terça-feira e
a quinta-feira como os dias de carne.
A associação entre dieta e virtude era um
padrão alimentar determinante no mundo anti-
go. Depois do século IV, o cristianismo começa a
estimular a abstinência por acreditarem nos seus
benefícios espirituais: a salvação da alma seria
facilmente alcançada pela privação de gorduras
da carne e laticínios, ou seja, pela privação da
carnalidade e seus vícios associados, por exem-
plo gula e luxúria. Todo esse culto ao jejum é fun-
damental para a compreensão da culinária e da
identidade da gastronomia medievais.
Na Inglaterra, no fi nal do século XIII, uma resi-
dência nobre praticava a abstinência de carne em
quase metade dos dias do ano: durante a Quares-
ma, todas as sextas-feiras e sábados, em muitas
quartas-feiras, na véspera das festas dos evange-
listas e das grandes festas Marianas, além de mais
alguns dias, de acordo com a devoção pessoal. Os
mais devotos adotavam períodos adicionais. Em
outras partes da Europa os costumes eram dife-
rentes. (FREEDMANN, 2009, p.166) �
A privação de gorduras de carne e
de laticínios, consequentemente da
carnalidade e seus vícios associados,
como gula e luxúria, ajudaria a
assegurar a salvação da alma.
Viandier. Edição do século XIV.
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38. Gastronomia
› Capítulo 1: Hedypatheia
Sua invenção e a mesa cristã
Boas
Maneiras
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Gastronomia .39
Embora os alimentos estivessem
intimamente ligados à crença
religiosa nas culturas grega e romana, em caso
algum a religião tentou controlar quando e o que
as pessoas comiam. Do tempo de Homero (séc.
VIII a.C. aproximadamente) até a suspensão
cristã do sacrifício pagão no final do Império Ro-
mano, o papel da comida na adoração e nos fes-
tejos a ela associados, permaneceu basicamente
o mesmo: sacrifício solene de um animal, segui-
do pela divisão da carne, com uma porção para
a divindade colocada no altar e o resto partilha-
do, igualmente, cozido e consumido numa festa
– na qual se considerava a divindade presente
como convidada de honra. Segundo Roy Strong
(2003), com a conversão do imperador Constan-
tino em 312, quando o cristianismo tornou-se a
religião oficial do Império Romano, tudo isso foi
condenado a mudar.
O cristianismo herdou da tradição judaica
de prática regular, o que e quando as pessoas
comiam. Juntamente com o sexo, a comida
tornou-se sujeita a regras determinadas por
Deus e, portanto, uma questão de conduta ética.
Mas isso evoluiu ao longo do tempo. Os evan-
gelhos, bem como as epístolas paulinas, não de-
monstram qualquer preocupação especial com
a comida. Sua abordagem é natural e casual,
encoraja o bem-estar entre os que assistiam ao
banquete, considerando as numerosas ocasiões
para comerem juntos como meio de fortalecer
o sentimento de irmandade e convivência. Em-
bora o jejum tivesse tanto lugar na tradição reli-
giosa greco-romana como na judaica, não havia
qualquer tentativa no cristianismo primitivo de
promovê-lo, visto apenas como um poderoso
suplemento da oração.
No cristianismo jejum era um “martírio”
auto-imposto durante um período de persegui-
ção. Seu desenvolvimento como sinal de san-
tidade vem tanto da tradição judaica, quanto
dos escritos dos filósofos pagãos, defensores
da serenidade e do rigor sexual. Envolvia tam-
bém uma certa resistência ao culto difundido na
A antiguidade pelo corpo saudável, forte e boni-
to, o que poderia ser em parte conseguido pela
observação cuidadosa de certas regras na dieta.
O efeito a longo prazo dessa prática foi uma for-
ma de ascetismo cristão no qual a fome volun-
tária se transformou num aspecto do caminho
para a perfeição.
No século VI, o ato de comer era visto como
uma tentação que levava ao pecado da gula.
Aos poucos, sob a égide da Igreja Católica, o
jejum sistematizou-se. Na Igreja ocidental, quar-
tas-feiras e sextas-feiras tornaram-se dias de je-
jum, que também precedia o batismo e acompa-
nhava qualquer penitência prolongada. Inicial-
mente praticado apenas da Sexta-Feira Santa à
manhã de Páscoa, estendeu-se de início por toda
a Semana Santa, e depois, no século IV, pelos
40 dias que vieram a ser chamados de Qua-
resma. Para os leigos, jejuar não significa uma
redução global da quantidade de comida, mas
sim total abstinência de carne, aqui apresentada
em seu papel de símbolo de violência, morte e
todas as formas de corporeidade e sexua lidade.
(STRONG, 2003, p. 49)
Os documentos monásticos são os únicos
registros detalhados sobre a comida e a mesa
desses séculos. Foram estabelecidas uma série
de regras, coisas permitidas e proibidas entre os
monges. O monge não pode ser um “bebedor de
vinho” nem “um grande comedor”. Cabia que fi-
zesse as refeições em silêncio, se precisasse se co-
municar deveria fazê-lo somente com sinais, era
estabelecido o número de refeições por dia e em
quais horários deveriam ser servidas. O que fica
claro nesse momento, é a construção de regras de
conduta, de boas maneiras à mesa e, de alguma
forma, no mosteiro haverá a continuidade do que
a vila interrompeu, inclusive foi preser vado um
aspecto que só irá reaparecer com a vila renas-
centista: uma sala usada apenas para as refeições.
Outra mudança importante ocorrida nesse
período diz respeito a posição do comensal à
�Vila renascentista,
ver em: CANFORA,
Luciano. “Um ofício
perigoso”. São Paulo:
Perspectiva, 2003.
Na página ao lado,
festejo medieval.
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40. Gastronomia
mesa, de reclinado para sentado. É possível esta-
belecer uma datação dessa mudança a partir de
pinturas da Última Ceia. Se a posição do comen-
sal mudou, o mesmo aconteceu no formato da
mesa, que por volta de 1100 tornou-se retangular
e quase universal. E por volta de 1300 muda tam-
bém o lugar de honra, que anteriormente era ao
centro da mesa como na figura abaixo de Vero-
nese, e transfere-se para a extremidade esquerda
como na figura de Caliari.
O banquete continua sendo, nessa época,
uma importante forma de “contenção” social, e
durante os séculos XI e XII torna-se fundamen-
tal, esse importante evento culinário celebrava a
relação entre senhor e seus vassalos – e o poder
que essa relação produzia.
Na própria cozinha as relações hierárquicas
ficavam cada vez mais fortes com o surgimento
de novas e importantes funções, e com a espe-
cialização: como o senescal, mordomo, camaris-
ta, pasteleiro, cuteleiro, zelador. Comer tornou-
-se cada vez mais um ato solene onde toda casa
tomava parte.
A divulgação da etiqueta à mesa começou a
ser feita de forma escrita, retirando dos mostei-
ros a exclusividade dessas regras e demonstran-
do sua importância e a demanda por tais orien-
tações. O mais antigo tratado de boas maneiras,
O Convidado Italiano, de Tommasino di Circlaria,
data aproximadamente de 1215 e foi escrito em
forma de poema, por um italiano para os germâ-
nicos. O poema era dirigido aos jovens cavaleiros:
› Capítulo 1: Hedypatheia
�Senescal: Mordomo
das casas reais. Tinha
sob seu comando um
comprador de alimentos;
três cozinheiros; um
zelador, que tomava
conta do fogo na
cozinha e no salão; um
cuteleiro, que tomava
conta do sal e da
cutelaria; um mordomo,
com uma equipe que
cuidava do vinho; um
pasteleiro, que com
uma equipe de quatro
ajudantes, produzia o
pão necessário para
cada refeição. In:
STRONG, 2003, p.63.
�Germânicos: Der
Wälsche Gast (O
Convidado italiano). Tem
forma de um poema
com cerca de 15 mil
linhas, da autoria de
Tomasino de Zerclaere
(Tommasino di Circlaria).
Quando ele começa a comer,
Com a mão nada toca
Além da comida: isto é fazer bem as coisas.
Não se deve comer o pão
Antes de serem trazidos os primeiros pratos.
O homem deve ter muito cuidado
De não pôr [comida]
Nos dois lados da boca.
Neste momento deve ficar em guarda
Para não beber ou falar
Enquanto tiver alguma coisa na boca.
Aqueles que se viram com o copo para os
companheiros,
Como se estivessem prestes a entregá-lo,
Antes de afastá-lo dos lábios, que balançam o
vinho de dentro,
Que, bebendo, olham sobre o copo
[Fazem o que] não é adequado a homens
cortezes.
(STRONG, 2003, p. 64)
Além da divulgação escrita das boas manei-
ras aparecem inúmeros livros de culinária, o que
pressupõe uma classe alta consciente do que co-
mia, obviamente que para os cozinheiros medie-
vais, provavelmente analfabetos, sua tradição
continuava sendo transmitida oralmente e esses
manuscritos, feitos um a um, e naturalmente ca-
ros, não pertenciam aos que cozinhavam e sim
àqueles para quem eles trabalhavam. Essa mul-
tiplicação de manuscritos denota também um
interesse leigo pela culinária, assim como nos
VERONESE, Paolo. Casamento em Cana, 1563. Óleo sobre tela, 666x 990cm.
Museu do Louvre, Paris.
CALIARI, Benedetto. Última ceia, segunda metade do século XVI.
Óleo sobre tela. Basília de São Giovanni e Paolo, Veneza, Itália.
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Gastronomia .41
manuais de etiqueta. Reflete também o fato da
culinária estar se tornando tão sofisticada que
era preciso uma transmissão escrita.
A enorme elaboração registrada nesses li-
vros é um indício crescente do interesse da corte
pela comida como aspecto importante da cultu-
ra e da emergência de uma classe de nouveaux ri-
ches – que encarava as artes da mesa como parte
de uma nova arte de viver.
Por volta de 1420, um chef chamado Chi-
quart – nos arquivos da cidade de Valais, Suiça,
encontra-se o manuscrito “Du Fait de Cuisine”
datado de 1420 –, que durante 25 anos foi cozi-
nheiro da família ducal de Sabóia, compilou um
volume de receitas. Volume este escrito a pe-
dido do duque Amadeu VIII e nele é possível ver
que Chiquart descreve seu trabalho como arte e
ciência. Os duques de Sabóia eram ligados dire-
tamente, por laços de casamento, aos duques de
Borgonha, o livro é citado como cheio de receitas
de um tipo que impressionaria as cortes mais ri-
cas e ostentadoras do final do período medieval.
�”Du Fait Cuisine”:
Texto disponível em
inglês no site . Acesso
em: 30 abr. 2006.
aparência. Aqui se testemunha a maior revolu-
ção histórica da alimentação, na qual, o lado físi-
co do comer é deslocado para o prazer estético
do olhar. Em suma, a ênfase desloca-se da boca
para os olhos. Passamos a ter o que chamo “es-
tética do gosto”. Camporesi defende que o olho
destrona o nariz nessa época, ou seja, o olho
“ favorece e exalta a policromia do desfile, o minueto
das taças, o baile das iguarias. Policromia e minia-
turização fundem-se no concerto bem temperado da
refeição como numa graciosa frase musical”.
A corte de Borgonha transformou as refei-
ções quase numa versão de missa leiga, onde a
mesa ficava como num altar, consumia-se pão e
vinho e o foco era o processo cerimonial e lava-
gens rituais, beijava-se objetos como se fossem
relíquias, até mesmo a taça ducal era elevada
quando levada em procissão, num gesto que
evocava a elevação do cálice consagrado. O jan-
tar real havia atingido a dimensão de um ato de
Estado e a comida assumiu um papel importan-
te, que mais tarde desempenharia nas monar-
quias renascentistas e barrocas. �
�Le Menágier de
Paris: é um guia
medieval francês de
1393 que ensina as
jovens esposas sobre
o comportamento
apropriado durante
o casamento e a
administração da
casa. Inclui conselhos
sexuais, receitas e
dicas de jardinagem.
Foi descrito por
Viandier de Taillevent.
�Missa leiga: missa
realizada por cidadãos
comuns, condenada
até hoje pela Igreja
Católica.
IRMÃOS LIMBOURG, As Mui Ricas Horas do Duque
de Berry, 1410. Iluminuras, 21 x 29 cm. Chatêau de
Chantilly, França.
O desejo de dotar o
alimento de forma e cor era
muito grande nessa época.
A corte de Borgonha no século XV, por sua
vez, não possuía nenhum chef ou livro de recei-
tas, segundo Strong, penso que talvez porque a
ênfase da sua culinária não estava no gosto da
comida e sim na sua aparência.
O desejo de dotar o alimento de forma e
cor era muito grande nessa época. De repen-
te passou-se a exigir que a comida assumisse
uma forma que não apenas valorizasse o status
do comensal, mas o afirmasse. Os cozinheiros
começaram a transformar os alimentos que co-
zinhavam num espelho de tudo que era mais
admirado na sociedade no final do período me-
dieval, convertendo-os por meio de forma, cor e
padrão numa visão superabundante de riqueza,
beleza e aristocracia. Tal aspiração está contida
no Ménagier. Sempre que qualifica um prato de
bonne ou belle, refere-se não ao gosto mas sim a
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42. Gastronomia
› Capítulo 1: Hedypatheia
Renascença
(entre séculos XIV e XVI)
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Gastronomia .43
corte de Borgonha serve de
exemplo para festejos e agora
tem uma “concorrente” a altura: a corte de Este.
Comer era um aspecto central na legitimação
da importância de cada uma, e foi no ducado de
Ferrara que o modo renascentista assumiu sua
forma mais característica.
Cada serviço tinha sua própria música ou
tipo de espetáculo, tudo perfeitamente integra-
do com a maneira de servir, numa forma que
na linguagem moderna poderia ser chamada de
happening.
Um cortesão tocou um solo de alaúde, uma
moça cantou madrigais, canções alla Pavana
in villanesco que era uma coisa maravilhosa de
se ouvir. Camponeses executavam um morisco,
bufões representaram alla Bergamasca e alla
Veneziana, um homem vestido de Orfeu cantou,
acompanhado por uma lira, uma sonata alla
alemanna. E quatro moças francesas entoaram
canzoni di gorga (a duquesa era francesa). As-
sim, todos os recursos musicais da corte de Este
foram exibidos, sendo as apresentações vocais
e instrumentais intercaladas com danças coreo-
grafadas. A festa chegou ao fi m as cinco da ma-
nhã. Distribuíram-se presentes, luvas perfuma-
das, brincos, bússolas e anéis. Num grand fi nale,
20 rapazes vestidos de libré e carregando tochas
irromperam vindo do caramanchão e dançaram
um último morisco. (STRONG, 2003, p.114)
O que coloca essa ceia à parte é o fato de
que se tratava de uma ocasião privada, infor-
mal. Encontramos preocupações semelhantes
com a decoração e as iguarias esculpidas em
outras cortes, mas apenas em festas de grande
signifi cado político. Ainda esta ceia em parti-
cular, mostra perfeitamente o estilo de comer no
Renascimento, quando não apenas a culinária
mas a maneira de apresentá-la signifi cava um
requinte e elegância desconhecidos do mundo
medieval.
A
�A Família Este era o
ramo italiano de uma
importante dinastia
européia de príncipes, foi
soberana nos Ducado
de Ferrara (1240-1597)
e no Ducado de Modena
(1288-1860), além de
importantes mecenas
durante o Renascimento.
�Serviço: O uso do termo
serviço vem do ingles
course, ou andadura do
jantar, ou a sequência
de pratos. CAMPORESI,
Piero. “Hedonismo e
exotismo. A arte de
viver na época das
Luzes”. São Paulo:
UNESP, 1996.
�Happening: esse termo
����
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1950 pelo americano Allan
Kaprow para designar
uma forma de arte que
combina artes visuais e
um teatro sui generis, sem
texto nem representação.
As improvisações
conduzem a cena -
ritmada pelas ideias de
acaso e espontaneidade
- em contextos variados
como ruas, antigos lofts,
lojas vazias e outros.
O happening ocorre em
tempo real, como teatro
e a ópera, mas recusa
as convenções art ísticas.
����
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�����
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���
Itaú Cultural, disponível em:
http:// itaucultural.org.br/
aplicexternas/enciclo
pedia_ic/index.
cfm?fuseaction=termos_
texto&cd_verbete=3647.
Acesso em: 20 dez. 2011.
BOTTICELLI, Sandro. História de
Nostalgio degli Onesti. Têmpera, 83
x 142 cm. Parte 3: Banquete na fl o-
resta de pinheiros. Museu do Prado,
Madri, Espanha.
AF_GASTRONOMIA_sangria15mm.indd 43 23/07/12 15:56
44. Gastronomia
Já tínhamos encontrado esculturas de açúcar
antes, mas não como enfeites de mesa na aber-
tura de um banquete. Além disso tratava-se aqui
de figuras da mitologia clássica esculpidas, sem
dúvida em imitação às antigas. Os guardanapos
dobrados com grande cuidado também eram
novidade, e a descrição da entrada e do primei-
ro serviço sugere que estamos diante de uma co-
zinha muito mais refinada. Acima de tudo, fica
claro que testemunhamos um banquete concebi-
do como uma experiência a ser desfrutada por
todos os sentidos, sem qualquer sentimento de
culpa. O olhar fica maravilhado com todos os
aspectos, da decoração ao arranjo dos pratos.
O olfato pode apreciar o delicado odor da água
perfumada oferecida para as abluções, bem
como o aroma dos alimentos que, ao serem co-
midos com a mão, também satisfazem o sentido
do tato. E todo o tempo a audição se delicia com
os doces sons da música. Em suma, o simples
› Capítulo 1: Hedypatheia
ato de comer transformou-se numa expressão de
arte sensual. (STRONG, 2003, p.115)
Percebe-se claramente que na Renascen-
ça o naturalismo não fica presente só nas artes
plásticas, estende-se também a gastronomia. Há
uma intenção de apresentar ao comensal uma
verosimilhança ilusionista quando esculpe-se
figuras clássicas em açúcar para serem aprecia-
das nos banquetes. Os cozinheiros até o século
O banquete consegue finalmente abraçar
todas as sensações produzidas pelos
cinco sentidos humanos, colocando-se
a serviço do sensório, que transmite
informações e com essas informações é
construído o conhecimento.
BRUEGHEL, Jan. Os sentidos da audição, tato e paladar, 1618. Óleo sobre painel, 176 x 264 cm. Museu do Prado, Madri. Banquete informal.
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Gastronomia .45
XX, assim como na pintura, consideravam que a
perfeição da arte residia em criar imitações ilu-
sórias da natureza nessas esculturas que ficaram
tão em moda até a Revolução Francesa com o
cozinheiro Carème.
O banquete consegue finalmente abraçar
todas as sensações produzidas pelos cinco sen-
tidos humanos, colocando-se a serviço do sen-
sório, que transmite informações e com essas
informações é construído o conhecimento. O
artista Brueghel ilustra em algumas obras essa
nova tendência, de aliar o gosto pela música ao
paladar, pelos objetos, pelos ingredientes raros,
supõe-se que poderia haver essências no am-
biente para aspiração de perfumes.
Nestas obras Brueguel faz um estudo de al-
guns dos sentidos humanos. No primeiro quadro
(página ao lado) ele privilegia a audição, o tato
e o paladar. Pode-se ver na imagem uma famí-
lia em um banquete informal, numa das cabe-
ceiras da mesa a mãe amamenta o filho e ouve
a música executada pelo violonista ao seu lado,
algumas crianças brincam na cena e alguns
convidados servem-se sozinhos, pois justamen-
te pela informalidade esse banquete não tinha
empregados. As mesas da cena estão repletas
de alimentos e as paredes cobertas de obras de
arte. Os sentidos que o autor se propõe são fa-
cilmente percebidos pela existência da música,
da amamentação e da alimentação no banquete.
No segundo quadro, que pode ser visto
abaixo, uma mulher está acompanhada por um
sátiro, que é uma figura mítica e que parece ser-
vir o vinho na cena no canto esquerdo da tela.
Parece ser um banquete feito na varanda de um
palácio, as paredes são cobertas de obras de arte
e esta mulher come sozinha. A mesa está repleta
de alimentos, crus e cozidos, o chão também é
coberto de alimentos, observa-se peixes, patos,
frutas, lebres, uma cabeça de javali no canto di-
reito inferior, pavões, um cervo dependurado e
eviscerado. Toda essa representação diz respeito
também a diversidade de carnes que se poderia
cozinhar na época. A existência de um sátiro ser-
vindo o vinho faz alusão à luxúria, certamente
sem conotação de pecado, somente para inebriar
o paladar.
Giovan Battista Rossetti, trabalhou para
Afonso II, de 1557 a 1576 na função de scalco
e em 1584 publica Dello Scalco, onde explica as
RUBENS, Peter Paul e BRUEGHEL, Jan. O sentido do paladar, 1618. Óleo sobre painel, 64 x 109 cm. Museu do Prado, Madri.
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46. Gastronomia
funções desse profissional. Segundo ele, os atri-
butos do scalco incluíam uma bela presença,
elegância no vestir, conhecimentos, atenção e
presteza. Tinha como obrigação organizar todos
os banquetes da corte, escolhia o lugar, a de-
coração da mesa e do salão, cardápio, seleção
de músicas, dobra dos guardanapos, roupa dos
criados e presentes para os convidados.
As habilidades de Rossetti são mostradas
também em outro banquete para o casamen-
to ducal de 1565. Neste, os convivas foram
presenteados com a ilusão de comer sob o
mar. O teto foi pintado com ondas e monstros
marinhos, a toalha de mesa tinha ondas, os
guardanapos eram dobrados como peixes,
os saleiros reproduziam animais marinhos e
até mesmo os pratos de maiólica eram con-
chas. O final foi um triunfo de Netuno com 90
esculturas de açúcar em volta da divindade.
(STRONG, 2003, p.119)
A Renascença, com suas alegorias e coreo-
grafias do banquete, ficou para trás. A refeição
ainda era um exercício de discriminação social,
mas de tipo muito diferente. Ter o nome marca-
› Capítulo 1: Hedypatheia
do pelo rei era o ápice da aspiração, permitindo
entrar em outro mundo e deixar os que não eram
premiados com inveja e possivelmente com bas-
tante ressentimento, conforme Norbert Elias.
Luis XV (1715-1774), cujas paixões eram a
comida, a caça e as mulheres, tinha na Marque-
sa de Pompadour uma amante em que os três
vícios coincidiam. Educada, preparada e bonita,
tinha não apenas inteligência, mas extremo bom
gosto. Assim, foi capaz de criar e manter em tor-
no do rei um mundo privado no qual as aventu-
ras da caça e do amor podiam florescer – e tam-
bém em que seu gosto pela comida se realizava
numa nova forma de refeição, o souper intime.
O souper intime seria um jantar reservado
nos aposentos do rei, bem distante do ritual
público do jantar real anteriormente praticado,
onde o número de convidados era extremamen-
te baixo e que os criados só ficavam até o início
do serviço, depois se retiravam para uma liber-
dade maior nas conversas.
Na verdade esse tipo de refeição foi delibe-
radamente construída para que o rei pudesse
escapar ao rígido protocolo da vida em público.
Ceias semelhantes só haviam sido dadas pelo tio
de Luis XV, Felipe, Duque d’Orléans, no Palais
Royal de Paris. Neste caso, o objetivo tinha sido
em grande parte a gula. O Duque d’Orléans ha-
via aprendido a cozinhar na Espanha, e passou
a usar os ingredientes afrodisíacos para a sedu-
ção dos convivas. Esta também se tornou parte
do cenário de Luis XV, ali ele podia deleitar-se
na caça e depois entregar-se a festas íntimas com
os camaradas da caçada e um grupo seleto de
mulheres encabeçadas pela Marquesa de Pom-
padour. Esses jantares tinham uma atmosfera de
alta moda, flertes, mexericos; o uso da mesa re-
donda poupava os comensais das complicações
de precedência. A ausência de criados em grande
parte da refeição, como se observa no quadro ao
lado e na próxima página, não apenas desinibia
a conversa como também o livre fluxo de vinho,
que era colocado, junto com os copos, diretamen-
te sobre a mesa.
A tendência à privacidade acarretou outra
inovação, o cardápio, uma listagem por escrito da
sequência de pratos a serem servidos. Em primei-
�Giovan Battista
Rossetti, trabalhou
para Afonso II de 1557
a 1576 como scalco.
Em 1584 publica Dello
scalco, onde explica as
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Segundo ele, os atributos
do scalco incluíam uma
bela presença, elegância
no vestir, conhecimento,
atenção e presteza.
Organizava todos os
banquetes da corte,
escolhia o lugar, a
decoração da mesa e
salão, cardápio, seleção
de músicas, dobra dos
guardanapos, roupa dos
criados e presentes para
os convivas.
�souper intime: Sobre o
aparecimento do “souper
intime”, ver Béatrix
Saule, Versailles
Gardens.
TROY, Jean François de. O almoço de ostras, 1735.
Óleo sobre tela, 180 x 126 cm. Musée Condé, Chantilly,
França. Essa imagem retrata a informalidade de não
ter criados a aristocracia toma contato com a infor-
malidade.
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Gastronomia .47
ro lugar havia menos serviços, apenas quatro pra-
tos, mais a sobremesa. No entanto, é bem claro
que tais cardápios marcavam um intenso interes-
se dos convidados que efetivamente comeriam.
Pode-se dizer então que começava então a era do
gourmet. Onde gourmet era aquele considerado
um conhecedor e apreciados dos alimentos.
A sequência dos serviços mais formais, con-
forme Strong relata:
A refeição iniciava-se com sopas e ragus ou
oilles, passava para uma imensa variedade de
entradas, depois para os assados e finalmente
para os petit entrements. Nessa estrutura ha-
via uma nova progressão, do picante ao doce.
E também, o que é notável, incluíam-se pratos
atribuídos a certas pessoas, ou que lhes levavam
o nome, como Dindon du mareschal de Richilieu
ou Pâté de madame la Marquise de Pompadour.
O que isso quer dizer? Será que esses impor-
tantes personagens realmente cozinhavam tais
pratos, ou eles eram spécialité de suas maisons?
O que certamente podemos ver é que refletem
uma culinária de complexidade até então desco-
nhecida. (STRONG, 2003, p. 183)
Um grande caminho foi percorrido desde
o início do século XVII, onde as refeições eram
extremamente formais e seguia-se fielmente um
protocolo. Chegou-se à refeições onde a hierar-
quia era quebrada, os convidados se serviam, o
foco estava nos discursos e nas inter-relações
sociais elegantes. Nessas refeições, a arte culiná-
ria tornou-se tão interessante que os convidados
queriam ler o que seria servido. A descrição do
prato tornava-se um anúncio do gozo, o prenún-
cio do prazer em saborear pela maneira narrativa.
Na figura acima percebe-se a informalidade
e a ausência de serviçais, o que traria uma maior
possibilidade de interação entre os convidados.
Claro que todas essas mudanças são muito
mais complexas do que meramente proporcio-
nar momentos de genuína descontração ao rei.
Os souper intimes jamais poderiam ter ocorrido
sem a perda da fé inocente da verdade do que se
vê, ou seja, a ideia da mesa como veículo para
o cerimonial e a alegoria. Outra mudança foi o
aparecimento dos ideais sociais dos filósofos do
Iluminismo e é preciso dizer que essas mudan-
ças não foram simultâneas em toda Europa Oci-
dental, ocorreram somente na França. Foi preci-
so que o comer atingisse um ápice de grandeza
tão opressora que era imperativo livrar-se desse
espetáculo.
E nesse momento é importante dizer que na
Renascença se testemunhou a chegada de novos
ingredientes vindos das Américas, como abóbo-
ra, tomate (que só será usado na cozinha muito
mais tarde), milho e feijão, para não mencionar o
peru, que iria substituir o pavão da mesa renas-
centista. O gosto também se modificou e a carne
de boi, por exemplo, que anteriormente era vista
como algo apropriado para a criadagem, mas
não para as mesas nobres, passa, juntamente à
carne de vitela, a ter um status mais elevado. �
MOREAU, Jean-Michel. Jantar Elegante, 1781. Louvre,
Paris.
Foi preciso que o comer
atingisse um ápice de
grandeza tão opressora
que era imperativo livrar-se
desse espetáculo.
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48. Gastronomia
› Capítulo 1: Hedypatheia
A queda da
Bastilha
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Gastronomia .49
Período 1789-1799: A revolução,
as refeições comunitárias e a
invenção do restaurante
oucos acontecimentos na história
moderna tiveram repercussão tão
grande quanto a Revolução Francesa.
Em julho de 1789, poucos dias depois da
queda da Bastilha, o marquês Charles de Villette
propôs que o novo ideal de fraternidade talvez
pudesse ser alcançado com um jantar comunitá-
rio nas ruas, onde os ricos e pobres se mistura-
riam e todas as ordens se uniriam. A capital fran-
cesa seria uma grande família de ponta a ponta,
um milhão de pessoas se sentariam à mesma
mesa, e colocando de cabeça para baixo a tra-
dição do antigo regime da família real jantando
ou grand couvert, os ricos afirmavam que nes se
dia toda a Nação teria seu grand couvert, o luxo de
poucos não mais contrastaria com a miséria
de muitos e reinariam as leis e não os homens.
Mulheres, idosos e crianças famintas saberiam
que encontrariam alimentos em mesas abertas
nas ruas. Claro que essa proposta é a represen-
tação maior de manipulação da refeição à ser-
viço do Estado que qualquer coisa já realizada
na história.
Essa retomada da refeição comunitária é
emblemática numa nova era de igualdade e
prosperidade, e iria continuar num fluxo e reflu-
xo nos primeiros anos da Revolução. No aniver-
sário do primeiro ano da Revolução Francesa,
foi encenado um Festival da Federação, prece-
dido por uma “refeição patriótica” ao ar livre
no Palais Royal, quando dois mil espectadores
“assistiram” a uma refeição dos membros da
Assembleia Nacional. As sobras desse fraternal
banquete foram depois dadas aos pobres.
P
�Charles de Villette:
político e escritor
francês (1736-1793).
Durante a Revolução
Francesa escreveu
artigos revolucionários
no “Chronique de Paris”,
onde propunha a
retirada de Luis XVI do
poder, mas o mantendo
como chefe de Estado.
Na página ao lado,
Festa da Federação
retratada por Isidore-
-Stanislas Helman.
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50. Gastronomia
› Capítulo 1: Hedypatheia
(...) certo tipo de culinária vista como
prerrogativa da realeza e da nobreza
estaria disponível a qualquer um que
pudesse pagar por ela.
Autor desconhecido. Tomada da Batilha: 1789-1791. Óleo sobre tela. Museu da Revolução, Paris.
Do ideal manifestado de uma solidarieda-
de à mesa, resultou num reforço do espetáculo
opressivo de degustação visual, de demonstra-
ção de possibilidades de riqueza e poder, já pra-
ticado antes da Revolução.
Três anos se passaram até que outra oca-
sião como essa se repetisse. A ideia de Villette
ganhou tom oficial