As trAdições gAúchAs e suA rAcionAlizAção nA modernidAde tArdiA CAROLINE KRAUS LUVIZOTTO As tradições gaúchas e sua racionalização na modernidade tardia Conselho Editorial Acadêmico Responsável pela publicação desta obra Dr. Marcos Tadeu Del Roio Dra. Claude Lépine Dr. Francisco Luiz Corsi Dra. Célia Aparecida Ferreira CAROLINE KRAUS LUVIZOTTO As tradições gaúchas e sua racionalização na modernidade tardia CIP – Brasil. Catalogação na fonte Sindicato Nacional dos Editores de Livros, RJ L989t Luvizotto, Caroline Kraus As tradições gaúchas e sua racionalização na modernidade tardia / Caroline Kraus Luvizotto. – São Paulo : Cultura Acadêmica, 2010. 140p. : il. Inclui bibliografia ISBN 978-85-7983-088-4 1. Gaúchos – Rio Grande do Sul - Usos e costumes. 2. Rio Grande do Sul – Usos e costumes. 3. Querela entre antigos e modernos. 4. Conflito cultural. 5. Internet. I. Título. 10-6447. CDD: 981.65 CDU: 94(816.5) Este livro é publicado pelo Programa de Publicações Digitais da Pró ‑Reitoria de Pós ‑Graduação da Universidade Estadual Paulista “Júlio de Mesquita Filho” (UNESP) © 2010 Editora UNESP Cultura Acadêmica Praça da Sé, 108 01001 ‑900 – São Paulo – SP Tel.: (0xx11) 3242 ‑7171 Fax: (0xx11) 3242 ‑7172 www.editoraunesp.com.br feu@editora.unesp.br Ao meu Deus e Senhor pelo dom da vida À minha fantástica família pelo amor e compreensão Aos meus queridos amigos pela companhia e apoio Ao Sol que brilha e aquece os meus dias Sumário Lista de ilustrações 9 Apresentação 11 Introdução 13 Rio Grande do Sul: cultura e tradições 19 Modernidade e modernidade tardia 53 A (re)invenção da tradição no contexto da modernidade tardia 65 Tradição e ludicidade 81 Preservação e transmissão das tradições 99 Conclusão 129 Referências bibliográficas 135 LiSta de iluStraçõeS Figura 1 – CTG distribuídos pelo Brasil 41 Figura 2 – Organograma do IGTF 51 Figura 3 – Logotipo do ENART 2008 86 Figura 4 – Entrada do Parque da Oktoberfest em Santa Cruz do Sul 86 Figura 5 – Acampamento do CTG Adaga Velha 87 Figura 6 – Acampamento do CTG Rodeio da Querência 87 Figura 7 – Banner com a programação do evento para o palco D 81 Figura 8 – Barraca de comidas típicas do Rio Grande do Sul 90 Figura 9 – Churrasco no acampamento 91 Figura 10 – A pilcha. Roupa típica gaúcha e as prendas ao fundo 92 Figura 11 – Jovens trajando bombacha 93 Figura 12 – Apresentação de chula 94 Figura 13 – Apresentação de dança modalidade tradicional 95 Figura 14 – Apresentação de dança estilo livre 95 10 CAROLINE KRAUS LUVIZOTTO Figura 15 – Blog do Movimento Tradicionalista Gaúcho, MTG, da 21a Região Tradicionalista 111 Figura 16 – Seguidores do blog do Movimento Tradicionalista Gaúcho, MTG, da 21a Região Tradicionalista 111 Figura 17 – RSS do website do Grupo Musical Guapos 113 Figura 18 – Twitter da Rádio Gauchinha 115 Figura 19 – Bookmarks sobre cultura gaúcha disponíveis no Delicious 116 Figura 20 – Página do Orkut da comunidade CTG 117 Figura 21 – Bandeira do RS fincada nas terras da Ilha Brasil Porto Alegre no Second Life 120 Figura 22 – Avatar observando o palco do CGT Virtual Estância Celeste Brasil 121 Figura 23 – Avatares conversando com o capataz Toninho Barzane 121 Figura 24 – Espaço para celebrar a tradição gaúcha 122 Figura 25 – Baile no CTG virtual 122 Figura 26 – Website da Confederação Brasileira da Tradição Gaúcha 123 Figura 27 – Website do Movimento Tradicionalista Gaúcho 124 Figura 28 – Website do Instituto Gaúcho de Tradição e Folclore 125 ApreSentação Este livro analisa a racionalização das tradições num contexto de modernidade tardia. O estudo tem como ponto de partida as tradições gaúchas e sua manifestação nos Centros de Tradição Gaúcha (CTG). O estudo foi desenvolvido com base na biblio‑ grafia especializada sobre o tema e em uma pesquisa efetuada du‑ rante o Encontro de Arte e Tradição Gaúcha (Enart), realizado em 2008 na cidade de Santa Cruz do Sul (RS). Os estudos apontam que a modernidade tardia traz à tona a re‑ flexividade e racionalização das relações, experiências e tradições. Tradições são (re)inventadas e, nesse caso, (re)inventadas tendo o CTG como cenário, e essa (re)invenção permite manter os vínculos e a sociabilidade do grupo sociocultural que se reconhece enquanto grupo e se diferencia dos demais por identificar ‑se em torno de símbolos, práticas, crenças e rituais que unem seus membros, pois é comum a todos estes, independente do espaço geográfico que ocupem. Na modernidade tardia, o caráter de ludicidade atribuído às tra‑ dições (re)inventadas no CTG é o fio condutor para inúmeras rela‑ ções que se estabelecem nesse cenário e é o combustível de todas as práticas e rituais vivenciados ali. A ludicidade das atividades dá sentido às práticas tradicionalistas e a toda tradição que foi (re)in‑ 12 CAROLINE KRAUS LUVIZOTTO ventada e que passa a ser racionalizada no contexto da moderni‑ dade reflexiva. Essa apropriação do caráter lúdico das tradições e as relações estabelecidas no CTG a partir dos símbolos, práticas e rituais si‑ nalizam que estamos vivenciando no Brasil uma situação de mo‑ dernidade tardia. Nessa situação da modernidade tardia, a tradição racionalizada é uma maneira de evitar choques entre diferentes va‑ lores e modos de vida, uma vez que age como articuladora de atores e grupos sociais, entre as diferentes instâncias do mundo social. O presente livro baseia ‑se na tese de doutorado defendida em 2010 no Programa de Pós ‑Graduação em Ciências Sociais da UNESP, campus de Marília, orientada pelo prof. dr. José Geraldo Alberto Bertoncini Poker. Agradeço ao Conselho de Pós ‑Graduação em Ciências Sociais pela indicação desta obra para publicação e em especial o apoio do prof. Poker durante toda a confecção da tese e seu empenho para a publicação deste livro. Caroline Kraus Luvizotto Introdução Este livro tem como tema a tradição e a modernidade. Seu traço mais marcante é a tradição gaúcha e sua manifestação nos Centros de Tradições Gaúchas (CTG): as tradições são (re)inventadas e ra‑ cionalizadas nesse espaço, que é, por excelência, o espaço para a ma‑ nifestação das tradições gaúchas. Esse cenário tem como pano de fundo a modernidade tardia, que traz à tona um contexto de refle‑ xividade e de racionalização das relações, experiências e tradições. Tradições essas que são (re)inventadas e, nesse caso, (re)inventadas tendo o CTG como cenário para manter os vínculos e a sociabili‑ dade de um grupo sociocultural que se reconhece enquanto grupo e se diferencia dos demais por identificar ‑se em torno de símbolos, práticas, crenças e rituais que unem seus membros, pois é comum a todos eles, independente do espaço geográfico que ocupem: onde há um CTG sempre haverá um espaço destinado ao culto das tra‑ dições gaúchas. As tradições são (re)inventadas na medida em que estão inti‑ mamente ligadas ao dinamismo cultural da sociedade moderna. Mesmo (re)inventada, a tradição atua como ingrediente necessário no discurso dos guardiães da tradição. Esse discurso, entre outras coisas, serve para manter a vinculação identitária do grupo e o sen‑ tido de coletividade das ações sociais produzidas pelos sujeitos ativos nesse grupo. 14 CAROLINE KRAUS LUVIZOTTO Na modernidade tardia, as tradições são (re)inventadas porque são racionalizadas. São (re)inventadas para criar um cenário no qual se racionalizam os elementos, os símbolos, as práticas, com o objetivo de prover ideologicamente os indivíduos de uma segu‑ rança ontológica, (re)criando suas identidades, permitindo que o eu contido e reprimido nas sociedades pré ‑modernas se manifeste, possibilitando ao indivíduo pensar a si próprio. O CTG é o espaço criado para acolher as manifestações da tra‑ dição gaúcha e é nele que faz sentido todo o culto, toda a prática, toda a atividade que envolve os símbolos e rituais dessa tradição. A associação em torno dele é livre, basta que haja a identificação com os símbolos e rituais apresentados nesse espaço e não é cobrado de nenhum membro do CTG que pratique esses rituais fora dali, pois o CTG não tem caráter normativo nem pretende regulamentar a vida dos seus membros. Esse espaço é necessário para manter a so‑ ciabilidade e o vínculo daqueles que se identificam como gaúchos. Num contexto de modernidade tardia, é o CTG que recria referen‑ ciais tradicionais ampliando ‑os num cenário no qual as tradições são trazidas sob o aspecto lúdico, não para servir de mecanismo de coordenação das práticas sociais, mas sim para servir de pano de fundo para a sociabilidade, relações sociais coletivas e duradouras estabelecidas a partir da identidade cultural dos gaúchos. Parte ‑se do pressuposto de que na modernidade tardia o caráter de ludicidade atribuído às tradições (re)inventadas no CTG é o fio condutor para inúmeras relações que se estabelecem nesse cenário e é o combustível de todas as práticas e rituais vivenciados ali. A lu‑ dicidade das atividades dá sentido às práticas tradicionalistas e a toda tradição que foi (re)inventada e que passa a ser racionalizada no contexto de modernidade reflexiva. Essa apropriação do caráter lúdico das tradições e as relações estabelecidas no CTG a partir dos símbolos, práticas e rituais sinalizam que estamos vivenciando no Brasil uma situação de modernidade tardia. Este livro apresenta análises sobre as tradições no contexto da modernidade, bem como sobre o caráter de racionalização e reflexi‑ AS TRADIÇÕES GAÚCHAS E SUA RACIONALIZAÇÃO 15 vidade das tradições (re)inventadas. As análises são feitas da pers‑ pectiva da sociologia compreensiva e o livro está dividido em cinco capítulos. Ressalta ‑se que existem muitos olhares sobre a comple‑ xidade da relação existente entre tradição e modernidade tardia, mas elegeram ‑se as abordagens a seguir como necessárias para a análise que se propõe neste estudo. O primeiro capítulo tem como objetivo expor a origem, estrutura e funcionamento do CTG. Para tanto, apresentam ‑se, de modo des‑ critivo, aspectos relacionados ao Rio Grande do Sul: a ocupação da região, as atividades econômicas e o povo gaúcho. Acredita ‑se que essa visão geral dos aspectos que antecedem o surgimento do CTG seja importante para discorrer sobre o tradicionalismo e, por fim, tratar do Movimento Tradicionalista e do próprio CTG, nas suas mais diversas características. São apontadas no texto as diversas configurações histórico ‑cul‑ turais que constituíram o Rio Grande do Sul desde sua colonização. Não é objeto desta obra discutir os conflitos étnicos e culturais ine‑ rentes do processo de interação desses povos. Na compreensão do tradicionalismo gaúcho não são descartados esses conflitos e en‑ tende ‑se que são partes constitutivas do processo de criação da identi dade gaúcha, mas o estudo limita ‑se apenas a descrever esses grupos. Ao falar do Movimento Tradicionalista, o objetivo é compreen‑ der aspectos relativos à sociabilidade do gaúcho e elementos que for‑ talecem a relação que o movimento tem com suas tradições, mas não serão focalizados os aspectos políticos e econômicos do movimento, por acreditar ‑se que não é objeto de análise deste livro. O CTG é descrito nesta obra desde sua origem, suas caracterís‑ ticas, e sua distribuição pelo Brasil e pelo mundo. No que se refere a sua estrutura e funcionamento, são utilizados documentos do próprio centro. Esses documentos não são analisados. Apenas ilus‑ tram qual é a estrutura, funcionamento e finalidade do CTG segundo os próprios tradicionalistas. Reconhece ‑se que esses do‑ cumentos não expressam a verdadeira relação que os tradiciona‑ 16 CAROLINE KRAUS LUVIZOTTO listas têm com a sociedade sul ‑rio ‑grandense e brasileira, de modo geral. Mas não é objeto deste livro analisar essas relações nem ana‑ lisar o discurso tradicionalista. A análise sobre modernidade e modernidade tardia ou reflexiva apresenta ‑se no segundo capítulo. Trata ‑se de uma análise essen‑ cial, uma vez que a modernidade tardia é o pano de fundo para a reflexão em torno da tradição. Em particular adota ‑se as visões de Beck e Giddens sobre o tema por entender que são as visões mais representativas, de acordo com os instrumentos e referenciais teó‑ ricos deste estudo. O terceiro capítulo trata das tradições no contexto da moderni‑ dade tardia. Partindo das reflexões de Hobsbawm, Sahlins, Elias e Giddens, procuram ‑se situar as tradições (re)inventadas no cenário da modernidade tardia e como se configura a relação nós/eles tendo como pano de fundo a tradição. Para melhor compreender essa re‑ lação, apresentam ‑se reflexões sobre etnicidade e identidade étnica baseadas nos estudos de Poutignart, Streiff ‑Fenart, Barth e Oliven. O quarto capítulo descreve o aspecto lúdico das tradições. Par‑ tindo das contribuições de Huizinga, esse capítulo discorre sobre o Encontro de Arte e Tradição (Enart) que ocorre anualmente no Rio Grande do Sul. Trata ‑se de um estudo baseado na observação e em depoimentos colhidos durante o próprio evento, em novembro de 2008. Competições, festividades e confraternização são as marcas dessa atividade que exalta a tradição gaúcha. Esse evento é o pano de fundo para discutir a ludicidade nas tradições gaúchas neste livro. Por fim, o quinto capítulo diz respeito à transmissão e preser‑ vação das tradições. Num cenário de modernidade tardia faz ‑se ne‑ cessário compreender quais são os mecanismos que o CTG tem à sua disposição para fortalecer o vínculo identitário de seus mem‑ bros e transmitir as tradições. Esse capítulo demonstra, portanto, como os CTG utilizam a Internet para divulgar, ensinar, disse‑ minar e preservar conteúdos tradicionalistas. Lévy e Castells, além de O’Reilly, são os principais referenciais dessa seção, que discorre sobre as ferramentas Web 2.0 utilizadas pelos desenvolvedores dos AS TRADIÇÕES GAÚCHAS E SUA RACIONALIZAÇÃO 17 websites que apresentam conteúdo tradicionalista, com o objetivo de tornar o ambiente informacional digital mais interativo e cola‑ borativo para o usuário, qual seja, o indivíduo que busca e acessa conteúdo tradicionalista na Internet. Assim como as tradições gaúchas transmitidas via Internet, ofe‑ recidas a todos, ao alcance de qualquer um, a ludicidade presente nos CTG e no Enart são elementos essenciais para discutir as tradi‑ ções na modernidade tardia. 1 Rio Grande do Sul: cultura e tradiçõeS A cultura gaúcha e suas expressões estão alicerçadas em tra‑ dições, em conhecimentos obtidos pela convivência em grupo, somados a diversos elementos, entre eles, os históricos e os socio‑ lógicos. Seus legados e sua tradição são transportados para as ge‑ rações seguintes, sujeitos a mudanças próprias de cada época e circunstância. Neste livro, o ponto de partida para explorar a tradição gaúcha é o sentido de tradicionalismo, conceito que está intimamente ligado à configuração histórico ‑cultural do Rio Grande do Sul (RS). É o sentimento de tradicionalismo que une pessoas em torno do Mo‑ vimento Tradicionalista gaúcho e cria uma identidade comum a todos esses sujeitos: ser gaúcho. Dessa maneira, para abordar o CTG neste estudo e apresentar o papel que ocupa na reflexão sobre as tradições num contexto de modernidade tardia, acredita ‑se que seja necessário, primeira‑ mente, abordar as construções simbólicas que dão sentido à figura do gaúcho, bem como características sobre a história da ocupação do Rio Grande do Sul para que, a partir desses elementos des‑ critivos, possa ‑se compreender a origem do CTG na sociedade sul ‑rio ‑grandense. 20 CAROLINE KRAUS LUVIZOTTO Ocupação e colonização Não é possível pensar no RS como um estado composto por uma população culturalmente homogênea. Isso é apenas força de expressão. Ele apresenta diferentes faces, e cada uma tem a sua cul‑ tura, os seus rostos e suas falas. Temos um RS açoriano e de origem portuguesa, um RS dos ita‑ lianos, dos alemães, dos pomeranos. Espalhado por todo o estado, está também o RS dos afro ‑brasileiros, descendentes dos negros trazidos contra a vontade e que, apesar disso, conseguiram manter traços de sua cultura. Assim também, espalhados por toda a sua área, estão os descendentes dos povos indígenas, primeiros ha‑ bitantes da região. Mesmo após toda a opressão e perseguição do período colonial que dizimou milhares de indígenas, ainda hoje existem pequenos grupos que vivem nas reservas de Nonoai, Iraí e Tenente Portela, e que lutam para manter suas identidades. São eles os mbyás ‑guaranis e os caingangues. Fugindo da dominação e perseguição vieram os poloneses e judeus. Assim também aconteceu com os sul ‑rio ‑grandenses de olhos puxados, descendentes dos japoneses que vieram para o es‑ tado durante a 2a Guerra Mundial e que preservam seus costumes vivendo em suas comunidades. Esses são alguns dos povos que vieram para a região, embora outros também estejam presentes, porém em contingentes não tão significativos. Como se vê, não há um único Rio Grande do Sul, mas muitos. Sem dúvida, essa heterogeneidade étnica e cultural re‑ sultou, da mesma forma que em outras regiões do país, em uma constante emergência de tensões e conflitos sociais de toda ordem. Não é objetivo deste estudo identificar ou descrever esses conflitos. Nesta seção serão descritos alguns elementos da história da ocu‑ pação do estado, para que se possa caracterizar a configuração histórico ‑cultural do gaúcho. AS TRADIÇÕES GAÚCHAS E SUA RACIONALIZAÇÃO 21 A história da ocupação e do povoamento do Rio Grande do Sul está demarcada pela questão fronteiriça. Região ‑limite entre dois impérios – o espanhol, com sede em Buenos Aires, e o português, com sede no Rio de Janeiro –, o chamado Continente de São Pedro do Rio Grande do Sul desde o século XVII foi permanentemente disputado pelas duas coroas ibéricas. Pelo Tratado de Tordesilhas de 1493, a linha que separava os dois reinos católicos passava, na sua extensão meridional, ao largo do litoral do atual Estado de Santa Catarina e a região que viria a fazer parte do RS pertencia aos espanhóis. Portugal, por sua vez, sempre procurou estabelecer como sua real fronteira, como limite extremo do seu império na América do Sul, não uma linha abstrata, mas sim a margem esquerda do rio da Prata. Todos os conflitos entre o Brasil e seus vizinhos do Prata foram decorrentes dessas duas visões antagônicas sobre quais eram os marcos verdadeiros que os separavam. O RS foi desde o início uma fronteira quente, isto é, local de dis‑ puta militar, de guerras e de arranjos diplomáticos, área de con‑ flitos que se estenderam dos finais do século XVII até o século XIX. O Estado do Rio Grande do Sul, segundo Dacanal (1992), desempenhou duas funções importantes desde o início de sua ocu‑ pação. A primeira foi a de ser um local estratégico que garantia a presença portuguesa junto às áreas de colonização espanhola. A se‑ gunda, e não menos importante, foi a de fornecer alimentos e ou‑ tros bens para as demais regiões do país. A história da ocupação no RS começou muito antes da chegada dos portugueses àquele território. A região era povoada por índios, sendo vista como terra de ninguém. Apenas alguns aventureiros em busca de escravos se arriscavam a adentrar aquele território de difícil acesso. Zattera (1995) explica que os índios estavam sub divididos em tribos espalhadas pela região. No início havia o grupo jê, ramo dos tapuias, que se localizava no norte e nordeste. Desse grupo se derivavam os guaianás, subdivididos em ibiraiaras, caaguás, arachãs, carijós, tapes e, mais adiante, os caingangues. Outro grupo de indígenas encontrado no Rio Grande do Sul foi o 22 CAROLINE KRAUS LUVIZOTTO dos mbaias, que se subdividia em seis nações: charruas, minuanos, guenoas, yaros, mboanes e chanás, instalados mais ao sul e sudeste. Em 1626, depois de atacados pelos paulistas em suas reduções no Paraguai, os jesuítas se instalaram no território que atualmente compreende o Rio Grande do Sul e fundaram a Redução de San Nicolas, na chamada zona do Tape, reunindo inúmeras tribos gua‑ ranis. Em 1641, depois de combatidos e expulsos, os jesuítas le‑ varam consigo a maioria dos índios catequizados, deixando, no entanto, parte do gado que criavam. Sem dono, esse gado se tornou selvagem e bravio e formou uma grande reserva no espaço conhe‑ cido como Vacarias del Mar. Zattera (1995) conta que, a partir desse momento, esse gado se tornou importante economicamente pelo aproveitamento do couro e a prática de sua caça passou a inte‑ grar o cotidiano da população local. Em 1682, os padres jesuítas retornaram ao Rio Grande do Sul e fundaram na região dos estados do Paraná e Rio Grande do Sul, Argentina e Paraguai, as Missões Jesuítas, onde grande número de índios guaranis, submetidos pelos religiosos, foram convertidos ao cristianismo. Para alimentar tantos índios, os jesuítas utilizaram o gado criado nas pradarias gaúchas, aproveitando clima e vegetação favoráveis. E para se livrar dos constantes ataques de bandeirantes, os jesuítas resolveram concentrar os índios convertidos, que não eram poucos, em uma região mais segura, situada a noroeste do Es‑ tado do Rio Grande do Sul e fundaram os Sete Povos das Missões (1687). A base econômica era assentada na criação de gado com a extração do couro, mas os missionários dos Sete Povos se conscien‑ tizaram da importância da produção de erva ‑mate usada pelos ín‑ dios e, posteriormente, pelos padres. Em 1750, o Tratado de Madri1 entre Portugal e Espanha estabe‑ leceu que a região das Missões passasse para Portugal e, por maior que tivessem sido os esforços dos jesuítas, as Missões foram des‑ 1. O Tratado de Madri, assinado em 1750 entre Portugal e Espanha, dispunha que as missões passariam ao domínio português, ficando a Colônia de Sacra‑ mento com a Coroa espanhola, não chegando, contudo, a efetivar essa troca. AS TRADIÇÕES GAÚCHAS E SUA RACIONALIZAÇÃO 23 manteladas. Apesar disso, deixaram um legado que, sem dúvida nenhuma, veio a influenciar a história dessa região: os grandes re‑ banhos de bovinos e cavalos criados soltos nas pradarias gaúchas (Zattera, 1995). A presença do gado foi o principal motivo para a ocupação e fi‑ xação de portugueses em solo gaúcho. A Coroa garantia aos imi‑ grantes a propriedade de um pequeno terreno, mas não garantia o seu sustento. Assim, somente em 1770 uma leva de imigrantes açorianos chegou à província para povoar a região das Missões. Devido às dificuldades de transporte, esse grupo se fixou na área onde hoje está a cidade de Porto Alegre. Praticavam a agricultura de pequena propriedade e tinham uma economia voltada para a pecuária. Como descreve Bandeira (1995), a partir do século XIX, o go‑ verno brasileiro passou a incentivar a vinda de imigrantes europeus para o Brasil com a intenção de formar uma camada social de ho‑ mens livres com habilitação profissional. Como essa ideia foi rejei‑ tada por grande parte dos senhores de terras e escravos do norte do país, o governo direcionou os imigrantes para os estados do Sul. Os primeiros imigrantes que chegaram à província foram os alemães, em 1824, que, situados na região do atual município de São Leopoldo, em pouco tempo começaram a transformar o lugar. Medina (1997) relata que os primeiros colonos alemães a se ins‑ talar no Rio Grande do Sul viajaram no navio Anna Luise, partindo de Hamburgo em 5 de abril de 1824 e desembarcando no Rio de Janeiro em 4 de junho do mesmo ano. A bordo do bergantim São Joaquim Protector, 38 imigrantes rumaram para Porto Alegre e, em 25 de julho de 1824, começaram a se instalar às margens do rio dos Sinos, na antiga Real Feitoria de Linho Cânhamo, fundando a co‑ lônia de São Leopoldo. Consta que, até 1825, um total de 1.027 imigrantes chegou à colônia. O autor também aponta que os colonos que vieram para o RS ainda não tinham sido afetados pela industrialização e, ao chegarem à nova terra – no caso a colônia de São Leopoldo –, encontraram toda a base necessária para trabalhar, uma vez que eram em grande 24 CAROLINE KRAUS LUVIZOTTO parte camponeses e a região só podia oferecer terras para plantio. Para os que saíram da Alemanha expulsos do meio rural devido ao avanço da industrialização, a nova terra prometia grandes con‑ quistas e um futuro promissor. Mas os imigrantes, a partir de 1848, têm um novo perfil: são em grande parte artesãos e assalariados urbanos ou rurais, expulsos da terra ‑mãe pela crise que acompanhou a Era das Revoluções na Eu‑ ropa (Hobsbawm, 1996). Desde então, começaram a chegar ao Rio Grande do Sul exilados políticos, social ‑democratas e anarquistas alemães. A colônia cresceu rapidamente. Vinte anos após sua fundação, já se emancipava de Porto Alegre e se tornou líder de sua região. Hoje compreende ‑se o bom desenvolvimento dessa colônia a partir de sua localização geográfica. Localizada às margens do rio dos Sinos, havia fácil comunicação fluvial com Porto Alegre e com ci‑ dades como Pelotas e Rio Grande. As áreas planas e férteis para o plantio também facilitaram o bom desenvolvimento. A partir da colônia de São Leopoldo, outras colônias alemãs começaram a se formar à sua volta. Surgiram os núcleos de Novo Hamburgo, Campo Bom, Sinos, Taquari, Sapiranga, São Sebastião do Caí e Jacuí. Até a Segunda Guerra Mundial, o Rio Grande do Sul se tornou a segunda pátria para alemães de todas as classes sociais e estabeleceu ‑se um fluxo migratório constante da Ale‑ manha para a região. Após o fim da escravidão em 1888, muitas famílias alemãs no RS continuaram utilizando mão de obra negra. Como a maioria dos em‑ pregados era cria da casa, muitos negros acabaram por adotar o so‑ brenome alemão dos patrões e passaram a se considerar alemães também, o que reforça a ideia de que identidade cultural não é apenas uma questão de cor de pele nem de nascimento (Medina, 1997). Nesse período, muitos fatos curiosos ocorreram envolvendo alemães e a população nativa nas áreas onde se localizavam as colô‑ nias. Lendas, misticismo, rivalidades pessoais, brigas por causa da crença religiosa: os alemães sempre fizeram questão de demarcar seu território com a força das particularidades de sua cultura. Ainda AS TRADIÇÕES GAÚCHAS E SUA RACIONALIZAÇÃO 25 que estivesse vivendo em outro país e tendo contato com outras culturas, a cultura germânica sempre falava mais alto aos ouvidos dos imigrantes, que perpetuavam suas tradições transmitindo ‑as às novas gerações. A partir de 1875, começaram a chegar os imigrantes italianos, mas, como a região da capital já estava povoada pelos alemães, foram se instalar na região das serras. Aos poucos, formou ‑se um eixo básico de industrialização no estado ligando a capital e a ci‑ dade de Caxias do Sul, constituindo ‑se um intercâmbio entre ale‑ mães e italianos. Atividade econômica As missões jesuítas e a formação das estâncias de lagunenses e vicentinos – paulistas que se deslocavam do norte – foram res‑ ponsáveis pela introdução da pecuária no Rio Grande do Sul. A criação de estâncias correspondeu ao abandono das atividades pre‑ datórias desenvolvidas por gente selvagem do campo, os primei‑ ros gaúchos, que abatiam indiscriminadamente os animais apenas para extrair ‑lhes o couro e vendê ‑lo aos contrabandistas (Azevedo, 1958). A agricultura nesses primeiros tempos confinava ‑se ao plan‑ tio da erva ‑mate, herança dos hábitos dos índios guaranis. No início do século XVIII, com a descoberta das lavras de ouro e de diamante em Minas Gerais e o elevado preço dos alimentos nas regiões de garimpo, a pecuária virou uma atividade altamente ren‑ tável. Com a indústria extrativista esparramando ‑se pelo Brasil central, formou ‑se o primeiro mercado interno significativo na co‑ lônia, ao qual as estâncias gaúchas iriam atrelar ‑se, sendo essa uma das históricas razões econômicas da tensão entre o separatismo e o nacionalismo, vigentes até hoje no estado. No final do século XVIII, com a implantação das charqueadas na região de Pelotas e do rio Jacuí, um mercado bem mais vasto se abriu, pois, com a nova técnica da conservação de carnes, foi pos‑ sível superar a exportação do gado em pé. Era possível atingir, além 26 CAROLINE KRAUS LUVIZOTTO do centro e do Nordeste do Brasil, até os consumidores do mar do Caribe e do Sul dos Estados Unidos, visto que o charque era a ali‑ mentação básica dos escravos. Ironicamente, o alimento dos es‑ cravos era pago com escravos. Para Azevedo (1958), a chegada de levas deles ao território do RS resultou na expansão da indústria das carnes manufaturadas e salgadas, que se multiplicou por Pe‑ lotas e beira da Lagoa dos Patos e margens do rio Jacuí. Com a vinda dos açorianos, desembarcados em 1752, a agri‑ cultura tomou um novo impulso com as plantações de trigo ao redor da cidade de Rio Grande, expandindo ‑se para outras áreas até ser destruída, por volta de 1820, pela praga da ferrugem e pela ausência de apoio governamental. Os açorianos tornaram ‑se, então, pecuaristas e charqueadores. A partir da produção colonial alemã, já em 1830, Porto Alegre, com aproximadamente 12 mil habitantes, começava a enriquecer e ensaiava sua futura vocação comercial. A organização social gaúcha era bastante rígida. No topo encontravam ‑se os grandes fazendeiros e os ricos charqueadores, cabendo aos fazendeiros a hegemonia regional. Os comerciantes mais abastados tinham uma posição de destaque e eram, em boa parte, portugueses. Era importante também o número de médios e pequenos comerciantes. Os grandes polos comerciais da província eram Porto Alegre, Rio Grande, Pelotas e Rio Pardo. A agricultura e a criação mais diversificada de suínos e aves só se estabeleceram mais tarde com as colônias alemãs e italianas, entre 1824 e 1875, e foram elas que trouxeram as técnicas indus‑ triais que permitiram lançar os fundamentos da pequena indústria do curtume e da metalurgia. A partir de 1870, a vida econômica e social da província se trans‑ formou progressivamente, de acordo com a chegada de novos imi‑ grantes europeus e, consequentemente, novos hábitos e novos conceitos. No aspecto econômico, foi introduzido um novo cultivo, o arroz. A soja, cultivada há alguns anos, atingiu o mercado inter‑ nacional, e, graças ao artesanato realizado pelos europeus, nasceu a atividade industrial que se desenvolveu num ritmo crescente. Na AS TRADIÇÕES GAÚCHAS E SUA RACIONALIZAÇÃO 27 região da colonização italiana se destacaram os setores mecânicos, metalúrgicos e calçadistas. No início do século XIX, a produção de grãos e a agricultura cederam lugar à pecuária como base da riqueza social. Muitos dos antigos agricultores transformaram ‑se em fazendeiros com a orga‑ nização das charqueadas. Devido às grandes secas nordestinas, o Rio Grande do Sul transformara ‑se no principal centro brasileiro produtor de charque. Na sociedade sulina de então, a vida urbana desenvolvera ‑se relativamente bem (Maestri, 2001). A pecuária de corte tomou novo impulso com a criação dos frigo‑ ríficos estrangeiros, da Armour e da Swift, em 1917, tornando pos‑ sível exportar carnes enlatadas e refrigeradas para o centro do país. Segundo Azevedo (1958), o sucesso da chamada economia colonial deve ‑se preponderantemente à distribuição de terras feitas entre os colonos, formando não apenas um dinâmico centro pro dutivo poli‑ cultural, como também um crescente mercado consumidor. O crescimento industrial não significou o abandono da agricul‑ tura e, ainda hoje, o Rio Grande do Sul, juntamente com o Paraná, é um dos grandes responsáveis pela produção nacional de grãos. O gaúcho Darcy Ribeiro, em O povo brasileiro: a formação e o sentido do Brasil, traz um capítulo especial sobre o Sul do Brasil.2 O autor afirma que esta é uma área cultural complexa e singular e que sua característica básica, em comparação com as outras áreas culturais brasileiras, é sua heterogeneidade cultural. A configuração his‑ tórico ‑cultural do RS é constituída por três elementos: os lavrado‑ res matutos, de origem principalmente açoriana; os representantes atuais dos antigos gaúchos e a formação gringo ‑brasileira dos des‑ cendentes de imigrantes europeus. 2. “Brasis Sulinos: gaúchos, matutos e gringos” (Ribeiro, 1997). 28 CAROLINE KRAUS LUVIZOTTO Segundo o autor, a configuração histórico ‑cultural dos matutos é constituída de populações transladadas dos Açores no século XVIII, pelo governo português. O objetivo dessa colonização era implantar um núcleo de ocupação lusitana permanente para justi‑ ficar a apropriação da área ao governo espanhol. Esses matutos vi‑ viam como lavradores, estabelecendo no RS o mesmo modo de vida que tinham nos Açores, uma agricultura exercida de modo arcaico. Os sul ‑rio ‑grandenses originam ‑se da transfiguração étnica das populações mestiças de varões espanhóis e lusitanos com mulheres guaranis. Eram homens fortes, caçadores, que tinham no gado sel‑ vagem sua subsistência e a base econômica de sua sociedade. A terceira configuração histórico ‑cultural do Rio Grande do Sul é constituída pelos povos de origem germânica, italiana, polo‑ nesa, japonesa, libanesa e várias outras, introduzidos como imi‑ grantes nos séculos XIX e XX. Viviam em colônias, propriedades familiares em que cultivavam grãos e cereais, criavam animais e ti‑ ravam seu sustento. O contato entre essas três configurações cul‑ turais foi inevitável. Essa interação é definida por Ribeiro (1997) da seguinte forma: A distância que medeia entre os respectivos patrimônios culturais e, sobretudo, entre seus sistemas de produção agrícola – a lavoura de modelo arcaico dos matutos, o pastoreio gaúcho e a pequena propriedade explorada intensivamente pelos colonos gringos – funciona, porém, como fixadora de suas diferenças. Mesmo em face dos efeitos homogeneizadores da modernização decorrentes da industrialização e da urbanização, cada um destes complexos tende a reagir de modo próprio, integrando ‑se com ritmos e modos diferenciados nas novas formas de produção e de vida, dando lugar a estilos distintos de participação na comunidade nacional. (Ri‑ beiro, 1997, p.409) Para o autor, é esta a singularidade do povo sul ‑rio ‑grandense de hoje. A complexidade de sua origem histórico ‑cultural torna ‑o um grupo diferente dos demais brasileiros. AS TRADIÇÕES GAÚCHAS E SUA RACIONALIZAÇÃO 29 Pode ‑se dizer que a figura do gaúcho, como é conhecida hoje, sofreu um longo período de elaboração cultural. Durante o período colonial, os sul ‑rio ‑grandenses eram chamados de guascas e depois de gaudérios, um termo que possui sentido pejorativo e se referia aos aventureiros paulistas que tinham desertado das tropas regu‑ lares e adotado a vida rude ou se tornado ladrões de gado. Segundo Love (1975), a palavra gaúcho, o homem livre dos campos, foi aplicada inicialmente para definir um tipo humano ar‑ redio, o nômade do pampa, muitas vezes um desertor desobediente da lei e da ordem, que cavalgava sem rumo numa área vastíssima sempre atrás de gado amansado ou chucro e de cavalos. De acordo com Oliven (2006, p.66), essa figura do homem livre dos pampas e domador de cavalos iniciou um processo de criação da identidade do gaúcho. O termo passa a ser usado para exaltar e definir um tipo de sujeito que possui um passado de hon‑ ras e glórias e que “formou homens à imagem de um tipo ideal, criado em meio à liberdade do campo, montado em seu cavalo, des‑ bravando a natureza, protegendo as fronteiras, respeitando o ini‑ migo e lutando pela honra e pela justiça”. De tipo ideal, a representação do gaúcho tradicional foi sendo transformada ao longo do tempo e passou a ser empregada com o significado “gentílico de habitante do estado”. Como esclarece Maciel: O gaúcho também pode ser pensado como uma figura em ble‑ mática, pretendendo sintetizar e expressar uma determinada ima‑ gem dos habitantes da região, transmitindo ideias e valores sob re como seriam (ou deveriam ser) os gaúchos. [...] A figura do gaú‑ cho como representativa de uma identidade regional é elaborada a partir de uma busca pelo que seria denominador comum, procu‑ rando o que diferencia, perdura. (Maciel, 2000, p.79) Nesse contexto, passou a chamar ‑se de gaúcho, ou gaúcha, todas as pessoas nascidas no Rio Grande do Sul. E, conforme ex‑ plica Oliven (1992), isso aconteceu a partir da ressemantização do 30 CAROLINE KRAUS LUVIZOTTO termo, na qual um tipo social que era considerado desviante e mar‑ ginal foi apropriado, reelaborado e adquiriu um novo significado positivo, sendo transformado em símbolo de identidade regional. Como pode ser observado adiante, nas reflexões apontadas so‑ bre tradicionalismo, o termo gaúcho é empregado pelo Movimento Tradicionalista acompanhado de um forte imaginário. Oliven ex‑ plica esse emprego: Na construção social da identidade do gaúcho brasileiro há uma re‑ ferência constante a elementos que evocam um passado glorioso, no qual se forjou sua figura, cuja existência seria marcada pela vida em vastos campos, a presença do cavalo, a fronteira cisplatina, a virilidade e a bravura do homem ao enfrentar o inimigo ou as forças da natureza, a lealdade, a honra, etc. (Oliven, 1992, p.50) Isto significa dizer que são construídas representações que ad‑ quirem uma força quase mítica e a tendência é ignorar a diversi‑ dade e representar seu habitante como um tipo único – o gaúcho. No que concerne ao papel da imagem, Maffesoli expõe: A imagem é consumida, coletivamente, aqui e agora. Ela serve de fator de agregação, permite perceber o mundo, e não o representar. E, mesmo que ela possa ser objeto de apropriação política, ela tem, sobretudo, uma função mitológica, pois favorece o mistério, isto é, une entre si os iniciados. (Maffesoli, 1995, p.35) Ou seja, mais uma vez, configura ‑se aqui a relação nós e eles. É certo que essa tipificação do gaúcho tradicional exclui um verda‑ deiro conjunto de pessoas que compõe o Rio Grande do Sul, mas esse acaba sendo um ícone que representa a identificação não so‑ mente de uma cultura, instituída e determinada em manuais e li‑ vros de história, mas de vários modos de sentir ‑se gaúcho. Nesse ponto, cabe agora definir o que se entende por gaúcho para os propósitos desta pesquisa. AS TRADIÇÕES GAÚCHAS E SUA RACIONALIZAÇÃO 31 Após estudos realizados em meio tradicionalista, percebeu ‑se que, mesmo com esse mito, o imaginário da figura do gaúcho, o que se encontra hoje entre os sul ‑rio ‑grandenses é um sentimento de pertencimento, é um modo de se ver como gaúcho. Não basta ter nascido no RS – esse é o sul ‑rio ‑grandense e, a rigor, todos os nas‑ cidos no estado o são –, é preciso identificar ‑se com a cultura e os ideais tradicionalistas para se sentir gaúcho. É um sentimento que independe do território. Ele ultrapassa as barreiras geográficas, a filiação e a origem ancestral e passa a ser um sentimento de iden‑ tificação com uma cultura arraigada em valores rurais, campeiros, mas que se manifesta também em meio urbano, buscando resgatar valores como honra, liberdade e bravura. Portanto, gaúcho, no entendimento desta pesquisa, é todo indi‑ víduo que se identifica com essa cultura e que se declara, intitula, como tal. Tradicionalismo Tradicionalismo é o movimento popular que visa auxiliar o Estado na consecução do bem coletivo, através de ações que o povo pratica (mesmo que não se aperceba de tal finalidade) com o fim de re‑ forçar o núcleo de sua cultura: graças ao que a sociedade adquire maior tranquilidade na vida em comum. (Lessa, 1999, p.18) Assim Barbosa Lessa, um dos pioneiros e idealizadores, define o tradicionalismo. De acordo com Dutra (2002), qualquer referência à história do tradicionalismo gaúcho deve levar em conta as obras dos cha‑ mados tradicionalistas históricos, aqueles que criaram o Movi‑ mento Tradi cionalista Gaúcho e que são celebrados como guardiões da memória tradicionalista: Paixão Côrtes, Barbosa Lessa e Glaucus Saraiva, considerados, respectivamente, idealizador, intelectual e organizador do movimento. 32 CAROLINE KRAUS LUVIZOTTO Aprovada no VII Congresso Tradicionalista (1961) e ainda em vigor, a Carta de Princípios do Movimento Tradicionalista define: Tradicionalismo ou Movimento Tradicionalista é um organismo social, perfeitamente definido e estatuído, de natureza cívica, ideo‑ lógica doutrinária, com características próprias e singulares que o colocam em plano especialíssimo no panorama da vida sul ‑rio‑ ‑grandense, brasileira e americana. Cumprindo ciclos sociais, cultu‑ rais, literários e artísticos de natureza nativista, procurando influir em todas as formas de manifestação da vida e do pensamento sul‑ ‑rio ‑grandenses, o tradicionalismo gira em uma órbita que tem como centro os problemas rurais da nossa terra, o homem brasi‑ leiro em geral e o sul ‑rio ‑grandense em particular, sua maior ex‑ pressão, e onde estão fixadas as suas raízes mais profundas. (Carta de Princípios, 1961) É preciso diferenciar tradição, tradicionalismo e aquilo que é tradicional. Entende ‑se a tradição como um conjunto de sistemas simbólicos que são passados de geração a geração e que tem um ca‑ ráter repetitivo. É uma memória de longa duração. São os usos e costumes, os símbolos, práticas, crenças, vestuário, culinária, mú‑ sica, poesia, dança, entre muitos outros elementos que fazem parte de uma dada cultura, um povo. O tradicionalismo é o culto a essas tradições. É um movimento organizado e coletivo que valoriza essas tradições e procura mantê ‑las vivas de geração a geração. Tra‑ dicional é aquilo que é transmitido por meio de uma tradição. Segundo Dutra (2002), o tradicionalismo difundiu representa‑ ções, construídas pela cultura tradicionalista do que seria o gaúcho e o Rio Grande do Sul no passado, adotando elementos novos que são confundidos com antigos e todos eles adjetivados como puros e autênticos e, segundo Maciel, essas construções: “são adotadas como ‘oficiais’ e tidas como parte da ‘cultura tradicional’, exemplos de ‘autênticas tradições do Rio Grande do Sul’” (Maciel, 1999, p.136). De acordo com Fagundes apud Savaris (2008), tradicionalismo só existe no Rio Grande do Sul e é obrigatoriamente associativo, AS TRADIÇÕES GAÚCHAS E SUA RACIONALIZAÇÃO 33 coletivo. É um movimento cívico ‑cultural. “É a tradição em marcha, resgatando valores que são válidos não por serem antigos, mas por serem eternos, exatamente os valores que trouxeram o Rio Grande e o gaúcho do passado para o presente, projetando ‑o no futuro”. É bem verdade que os tradicionalistas da década de 1940 criaram rituais e manifestações culturais, atribuindo aos mesmos um sentido de tradição, centrado sempre na figura do gaúcho va‑ lente, honrado, glorioso, como ressaltado por Oliven (1992) ante‑ riormente, e de sua prenda, a mulher ideal para o tipo ideal – o gaúcho. Como pode ser visto adiante, a partir da criação dos CTG, foram criados na década de 1940 diversos elementos que fazem re‑ ferência a uma cultura gaúcha genuína. Pode ‑se traçar um fio con‑ dutor entre a criação desses elementos e aquilo que Hobsbawm e Ranger chamaram de tradições inventadas. Cada elemento, do ves‑ tuário, da dança, da fala, passou a ser elaborado e reelaborado para representar o passado do homem do campo, os elementos antigos são buscados para o presente, no qual lhes são dados novos signifi‑ cados. As tradições inventadas nesse contexto são reinventadas constantemente, procurando atribuir um valor, ressignificando práticas e rituais cotidianos, buscando manter coeso o sentido dessas tradições dentro da modernidade, procurando satisfazer o indivíduo na busca pela segurança ontológica. O Movimento Tradicionalista reelaborou o gaúcho com base numa ideia de continuidade do passado, conferindo autenticidade e valor de verdade aos rituais e elementos da tradição, e imprimindo‑ ‑lhe, ao mesmo tempo, novos significados. Os Centros de Tradições Gaúchas (CTG) As particularidades da ocupação do extremo sul do Brasil mar‑ caram intensamente sua cultura. A luta constante pela posse da terra e a exploração do gado na região do pampa desenvolveram no 34 CAROLINE KRAUS LUVIZOTTO rio ‑grandense um sentimento nativista que se traduz pelo respeito à terra e a tudo relacionado com a atividade da pecuária, usos e cos‑ tumes da vida campeira. A primeira iniciativa de exaltar a cultura e tradição gaúchas foi em 1868, quando foi criada a Sociedade Parthenon Litterario, uma sociedade de intelectuais que tinha como objetivo a exaltação da te‑ mática gaúcha inspirada nos modelos positivistas europeus. A so‑ ciedade contava com colaboradores de toda a província e promovia um intercâmbio cultural que estimulou a intelectualidade sul ‑rio‑ ‑grandense. De acordo com Moreira (2002), essa atividade contribuiu para o intercâmbio de informações e para a expansão da cultura gaúcha por meio da circulação de matérias literárias em diferentes jornais espalhados nos mais distantes pontos da província. A mais mar‑ cante produção da sociedade foi a Revista Literária, que circulou durante dez anos apresentando críticas literárias, biografias, co‑ mentários, editoriais e estudos sobre a história e cultura gaúchas. Em 1898, foi criada a primeira agremiação tradicionalista com o nome de Grêmio Gaúcho de Porto Alegre, situada na cidade de Porto Alegre. Essa entidade promovia atividades voltadas às tradi‑ ções, realizando festas, desfiles de peões e cavaleiros, festivais mu‑ sicais, etc. Essa iniciativa incentivou a criação de outras entidades tradicionalistas espalhadas por todo o estado. Entre elas desta‑ caram ‑se: União Gaúcha de Pelotas (1899), Centro Gaúcho Bagé (1899), Grêmio Gaúcho de Santa Maria (1901), Sociedade Gaúcha Lombagrandense (1943). O objetivo dessas entidades era resgatar as tradições esquecidas ou deixadas de lado e aumentar os laços cul‑ turais existentes entre os participantes. O século XX foi o século das transformações. A partir da década de 1940, novos inventos passaram a integrar a vida das pessoas, mudando hábitos e conceitos. Analisando a situação nacional, Gerson Moura (1984, p.8), afirma que a chegada visível do Tio Sam ao Brasil aconteceu no início dos anos 40, em condições e com propósitos muito bem definidos. A pre‑ AS TRADIÇÕES GAÚCHAS E SUA RACIONALIZAÇÃO 35 sença econômica, menos visível, era bem anterior e certas manifes‑ tações culturais, como o cinema de Hollywood, já inculcavam valores e ampliavam mercados no Brasil. Mas a década de 40 é no‑ tável pela presença cultural maciça dos Estados Unidos, enten‑ dendo ‑se cultura no sentido amplo dos padrões de comportamento, da substância dos veículos de comunicação social, das expressões artísticas e dos modelos de conhecimento técnico e saber científico. O traço comum às mudanças que então ocorriam no Brasil na ma‑ neira de ver, sentir, explicar o mundo era a marcante influência que aquelas mudanças recebiam do american way of life. Essas transformações também afetaram a sociedade sul ‑rio‑ ‑grandense. No entanto, em meados do século XX começou a apa‑ recer em alguns sul ‑rio ‑grandenses um sentimento novo: a sua diferença em relação ao mundo. Vera Stedile Zattera (1995), histo‑ riadora de Caxias do Sul, descreve esse sentimento: É a nossa cidadania, é nossa raça, tão mesclada, mas tão clara. É nossa consciência de sermos elementos batalhadores, especiais, que grita. É hora de mostrarmos ao mundo do que nós, gaúchos, somos capazes, do que gostamos, quais são nossas músicas, quais são nossos hábitos, quais são nossas habilidades. (Zattera, 1995, p.153) Em meados de 1940, o Rio Grande do Sul era palco do america‑ nismo. Revoltados com essa situação, em 1947, um grupo de jovens fundou o Departamento de Tradições Gaúchas no Colégio Júlio de Castilhos, em Porto Alegre (Grêmio Estudantil). A esse grupo deu‑ ‑se o nome Grupo dos Oito, por serem oito componentes. Eram estudantes secundários vindos do interior, oriundos de áreas pasto‑ ris de grande latifúndio onde predominava a pecuária e filhos de pequenos proprietários rurais ou estancieiros em processo de declí‑ nio social, que saíram de suas casas para estudar na capital. Esses jovens organizaram a primeira Ronda Gaúcha (hoje Se‑ mana Farroupilha), que aconteceu entre 7 e 20 de setembro de 1947. Nessa atividade houve festa com música, poesia, fandango, 36 CAROLINE KRAUS LUVIZOTTO concursos e discursos. O grupo verificou que a iniciativa teve enorme êxito e resolveu fundar uma entidade permanente para a defesa das tradições gaúchas, pois acreditavam que o movimento precisava se alastrar. Foi quando, em 24 de abril de 1948, fundaram o 35 CTG, o primeiro CTG fundado no Rio Grande do Sul. O 35 CTG foi o nome dado em homenagem à Revolução Farroupilha de 1835. Os CTG foram criados para demonstrar as raízes históricas, os costumes nativos, a maneira de ser, a sociabilidade do povo gaúcho. Lá se estudam as danças, as poesias, as falas do gaúcho original, seus hábitos e sua história. A finalidade é mostrar e perpetuar as manifestações da cultura e tradições gaúchas com a maior precisão possível para o público nacional e internacional. O CTG não é apenas uma entidade que reflete sobre a tradição, é também um movimento que procura revivê ‑la. Dessa maneira, foi necessário recriar os costumes do campo e foi usada uma no‑ menclatura diferente de outras associações, substituindo o presi‑ dente, o vice ‑presidente, o secretário, o tesoureiro e o diretor, empregando os títulos de patrão, capataz, sota ‑capataz, agregados, posteiros. Os conselhos consultivos e deliberativos foram reno‑ meados de Conselho de Vaqueanos e os departamentos foram cha‑ mados de Invernadas, conseguindo assim uma maior proximidade da cultura do campo. A criação do 35 CTG provocou um forte sentimento tradicio‑ nalista que se espalhou por todo o Rio Grande do Sul e foram fun‑ dados em todo o estado, principalmente no interior, outros CTG. Nasciam nesse contexto todos os símbolos a serem seguidos como um ritual de culto à tradição gaúcha. A instituição de todo o cerimonial proposto pelo CTG pauta ‑se numa tradição inventada e estabeleceu ‑se e enraizou ‑se com bastante rapidez. Como explica Hobsbawm: Por “tradição inventada” entende ‑se um conjunto de práticas, normalmente reguladas por regras tácita ou abertamente aceitas; tais práticas, de natureza ritual ou simbólica, visam inculcar certos AS TRADIÇÕES GAÚCHAS E SUA RACIONALIZAÇÃO 37 valores e normas de comportamento através da repetição, o que implica, automaticamente, uma continuidade em relação ao pas‑ sado. Aliás, sempre que possível, tenta ‑se estabelecer continuidade com um passado histórico apropriado. (Hobsbawm & Ranger, 1997, p.9) De acordo com Rodrigues (2008), apesar de esses símbolos terem sido criados na década de 1940, eles são cultuados como an‑ tigos e muitos desconhecem sua origem. Paixão Côrtes afirma que em 1977 muitos seguiam os rituais e pensavam que esses símbolos usados pelo tradicionalismo teriam origem em 1835, início da Re‑ volução Farroupilha. A criação ou invenção do culto à tradição foi uma tentativa de reação às transformações da sociedade e à influência de outras cul‑ turas que penetravam na sociedade sul ‑rio ‑grandense. É uma ma‑ nifestação em defesa de uma cultura original e fundamenta ‑se na história de lutas desse povo pela defesa do seu território. Após os conflitos de coexistência entre as três principais confi‑ gurações histórico ‑culturais do estado, os índios, os portugueses e os espanhóis, estabeleceu ‑se uma cultura própria como mecanismo de defesa, e essa cultura precisava novamente se defender de outras culturas ameaçadoras que penetravam na cultura gaúcha. Assim nasce o CTG e o Movimento Tradicionalista. Um movimento de defesa cultural que se relaciona nas esferas econômica e política da sociedade para se estabelecer diante das culturas externas. Estrutura e funcionamento do CTG As informações descritas a seguir são derivadas de material do próprio Movimento Tradicionalista Gaúcho. É uma transcrição de documentos oficiais dos tradicionalistas. Não serão analisados nem questionados. Estão aqui para ilustrar a estrutura e o funcio‑ namento do CTG segundo os próprios tradicionalistas. O CTG é uma entidade civil de direito privado, sem fins lucra‑ tivos, cujo funcionamento é regido por um estatuto baseado na 38 CAROLINE KRAUS LUVIZOTTO carta de princípios do Movimento Tradicionalista Gaúcho (MTG). Verificando ‑se os estatutos de diversos CTG, podem ‑se destacar os seguintes objetivos para essa entidade: a. Preservar, promover e divulgar o tradicionalismo gaúcho, por meio de atividades esportivas, campeiras, sociais, assistenciais, culturais, artísticas e recreativas. b. Promover a cultura, defesa e conservação do patrimônio histó‑ rico e artístico. c. A promoção gratuita da educação, observando ‑se a forma com‑ plementar de participação. d. A promoção do voluntariado. e. A promoção da ética, da paz, da cidadania, dos direitos hu‑ manos, da democracia e de outros valores universais. No desenvolvimento de suas atividades, o CTG deve observar os princípios da legalidade, impessoalidade, moralidade, publici‑ dade, economicidade e da eficiência e não fará qualquer discrimi‑ nação de raça, cor, gênero ou religião, bem como atuará por meio da execução direta de projetos, programas ou planos de ações, da doação de recursos físicos, humanos e financeiros, ou prestação de serviços intermediários de apoio a outras organizações sem fins lu‑ crativos e a órgãos do setor público que atuam em áreas afins. Os CTG possuem unidades de prestação de serviço (inverna‑ das) regidas pelo estatuto. A partir dessas unidades é que se alcan‑ çam os objetivos do centro. Entre as principais unidades podem ‑se destacar: a invernada artística, cultural, esportiva, social, campeira, jurídica, comunicação e jovem. Ao responsável por cada invernada é dado o nome de posteiro (por exemplo: posteiro cultural). O CTG encontra ‑se estruturado da seguinte forma: AS TRADIÇÕES GAÚCHAS E SUA RACIONALIZAÇÃO 39 a) Assembleia geral É o órgão soberano da associação, sendo constituída por todos os associados em pleno gozo de seus direitos sociais e com deveres satisfeitos, e suas deliberações legais atingem a todos sem distinção. b) Patronagem A patronagem é a diretoria do CTG e é constituída por sete membros assim designados: • Patrão (presidente). • Primeiro capataz (vice ‑presidente). • Segundo capataz (2o vice ‑presidente). • Primeiro sota ‑capataz (1o secretário). • Segundo sota ‑capataz (2o secretário). • Primeiro agregado das chelpas (1o tesoureiro). • Segundo agregado das chelpas (2o tesoureiro). Entre as competências da patronagem destacam ‑se: • Elaborar e submeter à assembleia geral a proposta de progra‑ mação anual da associação. • Executar a programação anual de atividades da associação. • Elaborar e apresentar à assembleia geral o relatório anual. • Reunir ‑se com instituições públicas e privadas para mútua co‑ laboração em atividades de interesse comum. • Contratar e demitir empregados. c) Conselho de vaqueanos O conselho de vaqueanos é o conselho diretor do CTG e é cons‑ tituído por seis membros, sendo três titulares e três suplentes, cabendo a eles a escolha do seu presidente e secretário. São compe‑ tências do conselho de vaqueanos: 40 CAROLINE KRAUS LUVIZOTTO • Manifestar ‑se sobre todos os assuntos de interesse para a asso‑ ciação. • Propor as providências cabíveis para melhor administração da associação. • Zelar pelo fiel cumprimento do estatuto e regimento interno. • Discutir, alterar e aprovar o regulamento dos posteiros. • Coordenar e fiscalizar o processo de eleição da patronagem, bem como julgar as impugnações de chapas de candidatos. • Convocar a assembleia geral. • Auxiliar o conselho fiscal no cumprimento de suas atribuições. d) Conselho fiscal O conselho fiscal será constituído por seis membros, sendo três titulares e três suplentes, cabendo a eles a escolha do seu presidente e secretário. São atribuições do conselho fiscal: • Examinar os livros de escrituração da associação. • Fiscalizar as operações financeiras da patronagem. • Convocar extraordinariamente a assembleia geral. • Opinar sobre os balanços e relatórios de desempenho financeiro e contábil e sobre as operações patrimoniais realizadas, emi‑ tindo pareceres aos órgãos da associação. • Requisitar ao primeiro agregado das chelpas, a qualquer tempo, documentação comprobatória das operações econômico ‑finan‑ ceiras realizadas pela associação. • Acompanhar o trabalho de eventuais auditores externos inde‑ pendentes. Os CTG contam com associados que contribuem com uma mensalidade para custear as despesas da associação, bem como a promoção de eventos direcionados à preservação e disseminação das tradições. AS TRADIÇÕES GAÚCHAS E SUA RACIONALIZAÇÃO 41 Números A expansão dos CTG fora do Rio Grande do Sul seguiu uma tendência natural que foi sendo construída com a emigração do povo gaúcho para outras fronteiras agrícolas. Segundo dados da Confederação Brasileira de Tradição Gaúcha3 (CBTG) existem hoje 2.835 CTG que estão assim distribuídos no Brasil: Figura 1 – CTG distribuídos pelo Brasil.4 Adaptado de CBTG, disponível em 3. Fonte: . Acesso em 28/1/2010. 4 A distribuição de CTG por estado é uma informação contida no website da CBTG e foi atualizada em novembro de 2009. 42 CAROLINE KRAUS LUVIZOTTO A partir da Figura 1 pode ‑se constatar que existem CTG em 19 estados brasileiros e no Distrito Federal. A maior concentração de entidades localiza ‑se nos estados do Sul do Brasil, com predomi‑ nância no Rio Grande do Sul, que é a base para os CTG. Como consequência da emigração de sul ‑rio ‑grandenses pelo país, obser‑ va ‑se que Rondônia, Mato Grosso, São Paulo e Mato Grosso do Sul acolhem o maior número de CTG fora da região Sul do país, respectivamente. Os gaúchos residentes fora do país também podem fundar um CTG, desde que reconhecidos e amparados pela CBTG. De acordo com a CBTG, são reconhecidos oficialmente 12 CTG fora do Brasil,5 conforme segue: • CCG Bento Gonçalves – Los Angeles, EUA • CTG Brasil Tche – Bernadesville, EUA • CTG Deserto da Saudade – Israel • CTG Índio José – Santa Rita – Alto Paraná, Paraguai • CTG Nova Querência – Fort Lauderdale, EUA • CTG Pedro Álvares Cabral – Lisboa, Portugal • CTG Querência do Norte – Toronto, Canadá • CTG Rancho Rio Grande – Perris, EUA • CTG Saudade da Minha Terra – Newark, EUA • CTG União de Ideais – Paris, França • Núcleo Tradicionalista Gaúcho de Danbury – Brookfield, EUA • Recuerdos del Pago – Madri, Espanha Os dados sinalizam que, independente do território geográfico, é possível ao gaúcho continuar arraigado às suas tradições e perma‑ necer perpetuando os laços culturais com a terra natal. Essa consta‑ tação demonstra que o fio condutor entre cultura e tradição gaúchas e a criação do CTG não é a geografia, ou não haveria CTG fora do 5. Fonte: CBTG, disponível em . Acesso em 6/9/2009. AS TRADIÇÕES GAÚCHAS E SUA RACIONALIZAÇÃO 43 RS, tampouco o aspecto nacional, ou não haveria CTG fora do Brasil. Esse fio condutor é o sentimento de tradicionalismo ine‑ rente ao gaúcho – aqui estritamente tratado como o indivíduo que se identifica com a cultura e tradição gaúchas. Pode ‑se concluir, a partir desse panorama, que o tradicionalis‑ mo pode ser identificado como um movimento urbano que procura resgatar os valores rurais do passado, mesmo que esses integrantes não estejam ligados ao RS. Ou seja, não necessariamente precisa ser nascido ou residir no RS para ser tradicionalista e/ou fundar e/ou fazer parte de um CTG. Basta ter a identificação cultural com a terra, com a origem gaúcha, para ser tradicionalista, em qualquer parte do mundo. Considerando a estrutura do Movimento Tradicionalista, deve ‑se destacar também o papel da CBTG, do MTG e do Insti‑ tuto Gaúcho de Tradição e Folclore (IGTF). Confederação Brasileira de Tradição Gaúcha (CBTG) De acordo com seu estatuto, a CBTG6 é a entidade maior do Movimento Tradicionalista Gaúcho brasileiro, cuja essencialidade é valorizar, organizar, defender, promover e representar as tradi‑ ções e a cultura gaúchas, caracterizando ‑se como uma sociedade civil, sem fins econômicos, com duração indeterminada, fundada em 24 de maio de 1987. As informações descritas a seguir são derivadas de material do próprio Movimento Tradicionalista Gaúcho. É uma transcrição de documentos oficiais dos tradicionalistas. Não serão analisados nem questionados. Estão aqui para ilustrar a estrutura e o funciona‑ mento da CBTG segundo os próprios tradicionalistas. 6. Informações extraídas do website da CBTG disponível em . Acesso em 6/9/2009. 44 CAROLINE KRAUS LUVIZOTTO A CBTG tem por finalidade: 1. Representar, em todo o território nacional e no exterior, a cul‑ tura gaúcha, na condição de entidade maior do Movimento Tradicionalista Gaúcho brasileiro. 2. Desenvolver, em nível nacional, o sistema confederativo do Mo vimento Tradicionalista Gaúcho, para uma atuação inte‑ grada, fidedigna e próspera. 3. Definir políticas e diretrizes de atuação do sistema que valo‑ rizem as manifestações culturais regionais de convívio comum. 4. Promover a cultura, defesa e conservação do patrimônio histó‑ rico e artístico, voltando ‑se, em especial, para a organização e realização de eventos em prol da valorização da cultura, das tradições e do folclore gaúchos em âmbito nacional. 5. Cumprir e fazer cumprir a função social, em todas as esferas do sistema confederativo. 6. Difundir e incentivar, em todo o território nacional, a preserva‑ ção das tradições gaúchas, bem como as expressões “Movimento Tradicionalista Gaúcho” e “Centro de Tradições Gaúchas” e as siglas MTG e CTG, evitando o uso inadequado das mesmas e sua utilização na denominação de entidades não identificadas com o tradicionalismo gaúcho. 7. Incentivar as tradições gaúchas, traçando diretrizes, rumos e princípios cívico ‑culturais, artísticos e esportivos ao tradicio‑ nalismo gaúcho brasileiro. 8. Orientar as entidades confederadas no sentido de manter a au‑ tenticidade das manifestações gauchescas e a fidelidade às suas origens. 9. A CBTG, pelo interesse público, colaborará com os poderes públicos constituídos e com as entidades sociais organizadas. 10. Implantar, por si, ou por entidade criada com o fim específico pelo conselho diretor, mediante proposta da diretoria execu‑ tiva, cursos à distância ou presenciais voltados para a preser‑ vação da cultura gaúcha e ao desenvolvimento do homem do campo. AS TRADIÇÕES GAÚCHAS E SUA RACIONALIZAÇÃO 45 11. Promover a ética, a paz, a cidadania, os direitos humanos, a de‑ mocracia e outros valores universais. O sistema confederativo do Movimento Tradicionalista Gaúcho brasileiro é constituído pela seguinte organização política e admi‑ nistrativa: 1. Pela CBTG, como entidade confederativa. 2. Pelas entidades federativas: organizações de âmbito estadual, caracterizadas como pessoas jurídicas, com fins similares aos da CBTG e da representação e coordenação de atuação do tra‑ dicionalismo gaúcho e das entidades singulares, no nível das suas jurisdições e são denominadas pelo prefixo “MTG – Mo‑ vimento Tradicionalismo Gaúcho”, seguido pelo sufixo “nome do estado” que representam (por exemplo: MTG – SP). So‑ mente poderá associar ‑se à CBTG um MTG por estado. 3. Pelas entidades singulares: organizações caracterizadas como pessoas jurídicas, sociedades de pessoas físicas, de natureza so‑ ciocultural, com a finalidade de congregar um quadro social identificado e voltado a desenvolver o Movimento Tradiciona‑ lista Gaúcho, no conjunto da sociedade civil em que estão inse‑ ridas e são denominadas pelo prefixo “CTG – Centro de Tradições Gaúchas”, seguido por um sufixo de livre escolha (por exemplo: CTG Querência Farroupilha). As entidades sin‑ gulares organizadas fora do território nacional poderão filiar ‑se ao MTG do estado de sua escolha. As entidades denominadas por centros nativistas, piquetes de laçadores e/ou similares7 serão definidas como entidades singulares, quando já regular‑ mente filiadas aos MTG a que pertencem, e terão caráter de organização local, restritas à finalidade única de sua existência. 7. Centros nativistas, piquetes de laçadores e/ou similares são entidades tradicio‑ nalistas que ainda não receberam o status de CTG. 46 CAROLINE KRAUS LUVIZOTTO Movimento Tradicionalista Gaúcho (MTG) O MTG8 é uma associação civil, uma pessoa jurídica de direito privado, sem fins lucrativos, com circunscrição em todo o território nacional, constituindo ‑se na Federação dos Centros de Tradições Gaúchas e entidades afins. Tem por objetivo congregar os CTG e entidades afins e preservar o núcleo da formação gaúcha e a filo‑ sofia do Movimento Tradicionalista, decorrente da sua Carta de Princípios e expressa nas decisões dos congressos tradicionalistas. As informações a seguir são derivadas de material do próprio Movimento Tradicionalista Gaúcho. É uma transcrição de docu‑ mentos oficiais dos tradicionalistas. Não serão analisados nem questionados. Estão aqui para ilustrar a estrutura e o funciona‑ mento do MTG segundo os próprios tradicionalistas. A Carta de Princípios do MTG fixa os seguintes objetivos: 1. Auxiliar o Estado na solução dos seus problemas fundamentais e na conquista do bem coletivo. 2. Cultuar e difundir a história, a formação social, o folclore, enfim, a tradição do Rio Grande do Sul, como substância ba‑ silar da nacionalidade. 3. Promover, no meio do povo, uma retomada de consciência dos valores morais do gaúcho. 4. Facilitar e cooperar com a evolução e o progresso, buscando a harmonia social, criando a consciência do valor coletivo, com‑ batendo o enfraquecimento da cultura comum e a desagregação que daí resulta. 5. Criar barreiras aos fatores e ideias que vêm pelos veículos nor‑ mais de propaganda e que sejam diametralmente opostos ou antagônicos aos costumes e pendores naturais do povo gaúcho. 8. Informações extraídas do website do MTG disponível em . Acesso em 6/9/2009. AS TRADIÇÕES GAÚCHAS E SUA RACIONALIZAÇÃO 47 6. Preservar o patrimônio sociológico representado, principal‑ mente, pelo linguajar, vestimenta, arte culinária, forma de lides e artes populares. 7. Fazer de cada CTG um núcleo transmissor da herança social e, por meio da prática e divulgação dos hábitos locais, noção de valores, princípios morais, reações emocionais, etc.; criar nos grupos sociais uma unidade psicológica, com modos de agir e pensar coletivamente, valorizando e ajustando o homem ao meio, para a reação em conjunto diante dos problemas comuns. 8. Estimular e incentivar o processo aculturativo do elemento imigrante e seus descendentes. 9. Lutar pelos direitos humanos de Liberdade, Igualdade e Hu‑ manidade. 10. Respeitar e fazer respeitar seus postulados iniciais, que têm como característica essencial a absoluta independência de sec‑ tarismos político, religioso e racial. 11. Acatar e respeitar as leis e poderes públicos legalmente consti‑ tuídos, enquanto se mantiverem dentro dos princípios do re‑ gime democrático vigente. 12. Evitar todas as formas de vaidade e personalismo que buscam no Movimento Tradicionalista veículo para projeção em pro‑ veito próprio. 13. Evitar toda e qualquer manifestação individual ou coletiva, movida por interesses subterrâneos de natureza política, reli‑ giosa ou financeira. 14. Evitar atitudes pessoais ou coletivas que deslustrem e venham em detrimento dos princípios da formação moral do gaúcho. 15. Evitar que núcleos tradicionalistas adotem nomes de pessoas vivas. 16. Repudiar todas as manifestações e formas negativas de explo‑ ração direta ou indireta do Movimento Tradicionalista. 17. Prestigiar e estimular quaisquer iniciativas que, sincera e ho‑ nestamente, queiram perseguir objetivos correlatos com os do tradicionalismo. 48 CAROLINE KRAUS LUVIZOTTO 18. Incentivar, em todas as formas de divulgação e propaganda, o uso sadio dos autênticos motivos regionais. 19. Influir na literatura, artes clássicas e populares e outras formas de expressão espiritual do povo gaúcho, no sentido de que se voltem para os temas nativistas. 20. Zelar pela pureza e fidelidade dos costumes autênticos, comba‑ tendo todas as manifestações individuais ou coletivas que arti‑ ficializem ou descaracterizem as coisas tradicionais. 21. Estimular e amparar as células que fazem parte de seu orga‑ nismo social. 22. Procurar penetrar e atuar nas instituições públicas e privadas, principalmente nos colégios e no seio do povo, buscando con‑ quistar para o Movimento Tradicionalista Gaúcho a boa von‑ tade e a participação dos representantes de todas as classes e profissões dignas. 23. Comemorar e respeitar as datas, efemérides e vultos nacionais e, particularmente o dia 20 de setembro, como data máxima do Rio Grande do Sul. 24. Lutar para que seja instituído, oficialmente, o Dia do Gaúcho, em paridade de condições com o Dia do Colono e outros “Dias” respeitados publicamente. 25. Pugnar pela independência psicológica e ideológica do povo gaúcho. 26. Revalidar e reafirmar os valores fundamentais da formação gaúcha, apontando às novas gerações rumos definidos de cul‑ tura, civismo e nacionalidade. 27. Procurar o despertar da consciência para o espírito cívico de unidade e amor à Pátria. 28. Pugnar pela fraternidade e maior aproximação dos povos ame‑ ricanos. 29. Buscar, finalmente, a conquista de um estágio de força social que lhe dê ressonância nos poderes públicos e nas classes rio ‑grandenses para atuar real, poderosa e eficientemente, no levantamento dos padrões de moral e de vida do estado, ru‑ mando, fortalecido, para o campo e homem rural, suas raízes AS TRADIÇÕES GAÚCHAS E SUA RACIONALIZAÇÃO 49 primordiais, cumprindo, assim, sua alta destinação histórica em nossa pátria. Além dos princípios elencados, na Carta de Princípios, também são objetivos do Movimento Tradicionalista gaúcho: 1. Promover a cultura, a defesa e conservação do patrimônio his‑ tórico e artístico do Rio Grande do Sul. 2. Promover a ética, a paz, a cidadania, os direitos humanos, a de‑ mocracia e outros valores universais. 3. Não distribuir entre os seus associados, conselheiros, coordena‑ dores, diretores, empregados ou doadores eventuais excedentes operacionais, brutos ou líquidos, dividendos, bonificações, parti‑ cipações ou parcelas do seu patrimônio, auferido mediante o exercício de suas atividades, e os aplicar integralmente na con‑ servação do seu objetivo associativo. O MTG mantém suas atividades por meio das anuidades e ou‑ tras contribuições fixadas recebidas dos associados, por doações de recursos físicos, humanos e financeiros, ou prestação de serviços intermediários de apoio a outras organizações sem fins lucrativos e a órgãos do setor público que atuam em áreas afins. É vedado ao MTG e entidades filiadas vincular ‑se a qualquer atividade político ‑partidária ou religiosa. Os serviços de educação e de cultura gaúcha propostos, a que eventualmente se dedique o MTG, serão prestados de forma inteiramente espontânea e gra‑ tuita e com os recursos de que dispõe, sendo vedado o seu condicio‑ namento a qualquer doação, contrapartida ou equivalente. O MTG está assim organizado: I – Órgãos normativos: a) Congresso Tradicionalista. b) Convenção Tradicionalista. II – Órgão eletivo: a) Assembleia geral eletiva. 50 CAROLINE KRAUS LUVIZOTTO III – Órgãos administrativos: a) Conselho diretor. b) Junta fiscal. c) Regiões tradicionalistas. IV – Órgãos de assessoramento: a) Conselho de vaqueanos. b) Conselho de ética. A nenhum dos membros dos órgãos diretivos, bem como às ati‑ vidades de seus associados, é atribuído salário, vencimento, abono, gratificação ou remuneração de qualquer espécie. Instituto Gaúcho de Tradição e Folclore (IGTF) O IGTF,9 órgão vinculado à Secretaria de Estado da Cultura (Sedac) foi instituído pelo Decreto n. 23.613, de 27 de dezembro de 1974, para atuar na área da pesquisa e divulgar a cultura sul ‑rio‑ ‑grandense. Dentre as suas finalidades destaca ‑se a de promover estudos, pesquisas e a divulgação da cultura sul ‑rio ‑grandense e os valores que lhe são inerentes, especialmente folclore, tradição, arte, história e sociologia. Sua organização é mostrada na Figura 2. Manuelito Savaris, atual presidente do IGTF, explica da se‑ guinte maneira a importância do IGTF:10 De qualquer modo, diante do crescente avanço do fenômeno cha‑ mado globalização, cabe verificar se aquelas sociedades que não possuírem clareza cultural e identidade própria sucumbirão diante 9. Informações extraídas do website do IGTF disponível em . Acesso em 6/9/2009. 10. Palavra do Presidente do IGTF, divulgada em 24 de abril de 2007. Disponível em . Acesso em 6/9/ 2009. AS TRADIÇÕES GAÚCHAS E SUA RACIONALIZAÇÃO 51 do poderio econômico de outras sociedades. Aparentemente, a glo‑ balização econômica, ideológica e a da informação vieram para ficar e já se encontram estabelecidas no planeta. Resta preservar o regionalismo cultural. [...] Neste contexto em que, de um lado está o sentimento de orgulho regional, de outro o desconhecimento das nossas tradições e do nosso folclore, é que o IGTF está inserido. O papel da Fundação é contribuir para que a cultura regional seja mais conhecida e, a partir daí, as manifestações de orgulho de ser gaúcho possa ser um sentimento sólido e perene. Percebe ‑se que o IGTF está inserido no contexto do tradiciona‑ lismo gaúcho, sendo um órgão de grande importância para a manu‑ tenção da cultura e tradição gaúcha. O objetivo de apresentar o Movimento Tradicionalista e todas as suas instâncias, de modo descritivo, utilizando os documentos oficiais do tradicionalismo é demonstrar que há uma hierarquia, Figura 2 – Organograma do IGTF Fonte: IGTF. Disponível em . Acesso em 6/9/2009. 52 CAROLINE KRAUS LUVIZOTTO estrutura e regulamento. É o Movimento Tradicionalista que dita como devem ser tratadas as tradições e como deve ser a sociabili‑ dade do gaúcho tradicionalista. Não se observa, porém, que esse movimento, representado principalmente pelo CTG, pretende ser regulamentador ou normatizador da vida dos gaúchos fora dos es‑ paços de culto à tradição, os CTG. Apresentado o CTG, sua origem e suas características, pode ‑se tratar especificamente da modernidade tardia, contexto no qual será analisado o CTG na Conclusão desta obra. 2 Modernidade e modernidade tardia Em Ciência e política: duas vocações, Max Weber (1968) definiu o advento da modernidade como um processo crescente de raciona‑ lização intelectualista, que estava ligado intimamente ao desenvol‑ vimento científico. Habermas (1992) comenta Weber no seu texto Modernidade: um projeto inacabado: Max Weber caracterizou a modernidade cultural, mostrando que a razão substancial expressa em imagens de mundo religiosas e metafísicas se divide em três momentos, os quais apenas formal‑ mente ainda podem ser mantidos juntos. Uma vez que as imagens de mundo se desagregam e os problemas legados se cindem entre os pontos de vista específicos da verdade, da justeza normativa, da autenticidade ou do belo, podendo ser tratados, respectiva‑ mente como questão de conhecimento, como questão de justiça e como questão de gosto, ocorre nos tempos modernos uma diferen‑ ciação de esferas de valor: ciência, moral e arte. (Habermas, 1992, p.109 ‑10) De acordo com Habermas, Weber concebe a modernidade como o próprio mundo racionalizado da economia capitalista, das esferas de valor, do Estado burocrático moderno, da arte, da moral e da ciência. Além disso, esse mundo racionalizado é definido pela 54 CAROLINE KRAUS LUVIZOTTO formação de uma estrutura baseada na conduta de vida metódico‑ ‑racional, sendo um fenômeno típico do Ocidente. Consoante a isso, Anthony Giddens aponta que a modernidade “refere ‑se a es‑ tilo, costume de vida ou organização social que emergiram na Eu‑ ropa a partir do século XVII, e que ulteriormente se tornaram mais ou menos mundiais em sua influência” (Giddens, 1991, p.11). Nesse processo, além do modo de vida e formas de organização, tem ‑se também a ciência e a técnica transformadas na principal força produtiva no campo do agir, comandado pelo desenvolvimento das forças produtivas. De acordo com Habermas (1990), umas das consequências desse processo é a colonização do mundo da vida pela razão instrumental, uma racionalidade que, embora não definida como instrumental, já no início do século passado foi observada por Max Weber (1983) como a “gênese do agir dos indivíduos reme‑ tidos ao destino social, ao tributar à razão e liberdade a possibili‑ dade de transformação da sociedade”. Pensando nesse contexto, chega ‑se ao mundo objetivo de Ha‑ bermas (1987, p.30): “o mundo apenas cobra objetividade em vir‑ tude de ser reconhecido e considerado como único e o mesmo mundo por uma comunidade de sujeitos capazes de linguagem e ação”. Isso representa a condição para que os indivíduos possam se entender por meio de uma ação comunicativa intersubjetiva, refle‑ tindo sobre o que acontece no mundo ou o que há de acontecer no mundo. Baseado nesse conceito de mundo objetivo, Boaventura de Sousa Santos (1997) acredita que os diferentes atores agem na so‑ ciedade moderna conforme o sentido dos dois pilares da racionali‑ dade presentes no projeto sociocultural da modernidade: um deles é o da emancipação, e o outro, o da regulação. O projeto de modernidade de Habermas Habermas ressalta o que ele chama de projeto da modernidade e que tem sido discutido nos dias de hoje. Segundo Harvey, mesmo AS TRADIÇÕES GAÚCHAS E SUA RACIONALIZAÇÃO 55 sendo o termo moderno utilizado há tempos, o que Habermas cha‑ ma de projeto da modernidade começou a vigorar durante o século XVIII. Para Harvey, esse projeto corresponde a um grande esforço intelectual dos pensadores iluministas “para desenvolver a ciência objetiva, a moralidade e a lei universais, a arte autônoma nos ter‑ mos da própria lógica interna destas”, objetivando a emancipação humana a partir do acúmulo de conhecimento gerado por muitas pessoas trabalhando livre e criativamente (Harvey, 1992, p.23). Ao refletir a respeito da origem da modernidade, Habermas a as‑ socia ao surgimento de uma consciência temporal que confronta o moderno ao antigo e cria uma concepção histórica processual da vida, cujo horizonte é um futuro que não pode ser previsto. Para o autor, a modernidade é um projeto inacabado, no qual se deve apren‑ der com os desacertos que acompanham o projeto (Habermas, 1992). A teoria da modernidade de Habermas integra a teoria da ação comunicativa. Essa teoria procura explicar a origem da moderna sociedade ocidental, diagnosticar seus problemas e propor cor‑ reção. Para tal, baseia ‑se em um conceito de sociedade que associa a perspectiva subjetiva do mundo vivido à perspectiva objetiva e do resgate de um conceito de racionalidade. Pode ‑se assim entender a modernidade como o fracionamento dos modelos estabelecidos no passado, construídos em unidades fechadas e que agora se abrem direcionadas ao desconhecido. Pode ser encarada como a emancipação da razão ou a forma de (re)in‑ ventar novos caminhos de pensamento que deem conta dos novos questionamentos. São as novas leituras de mundo. Diante das inúmeras forças de desintegração que estão dentro e fora das sociedades nacionais, ressalta ‑se o fato de que todas as socie‑ dades estão inseridas em uma comunidade de riscos partilhados per‑ cebidos como desafios para a ação política cooperativa (Habermas, 1995). Os indivíduos só poderão conter o avanço desses riscos se es‑ tiverem munidos de uma formação discursiva da opinião e da von‑ tade, objetivando a racionalização do mundo da vida. Nesse contexto, a racionalidade é encarada como uma força produtiva importante para os desafios da modernização reflexiva (Habermas, 2001). 56 CAROLINE KRAUS LUVIZOTTO Em relação à imprevisibilidade, sabe ‑se que o mundo de hoje é tão previsível quanto era antes. Entretanto, atualmente, ocorrem si‑ tuações de risco que as gerações passadas não tiveram que enfrentar. A ciência e a tecnologia são as responsáveis pelo surgimento desses novos riscos, que incluem desde os nossos corpos até as grandes mudanças na estrutura da sociedade. Sendo assim, não há como es‑ capar da imprevisibilidade que integra o mundo em que vivemos. Essa imprevisibilidade é estrutural também no sentido de que um retorno ao passado não é concebível. A solução para esse impasse é encontrar um novo tipo de equilíbrio entre o risco e a segurança. Uma consequência da incerteza, da imprevisibilidade, é a indi‑ vidualização, que passa a ser sofrida pelas pessoas que se encon‑ tram cada vez mais longe das instituições que davam segurança à sociedade industrial, como a família. Esse processo de individuali‑ zação obriga as pessoas a tomar decisões cotidianas que implicam risco pessoal e faz surgir uma infinidade de opiniões sobre os mais variados assuntos, tornando a sociedade de risco uma sociedade au‑ tocrítica. Esse contexto, segundo Beck, deu origem à modernização refle‑ xiva, um processo contínuo, imperceptível, quase autônomo de mudança que atinge as bases da sociedade industrial. A modernização reflexiva ou modernidade tardia de Ulrich Beck e Anthony Giddens Conjugando o pensamento de Habermas e concebendo as so‑ ciedades modernas num estado de alta ou radicalizada moderni‑ dade que apresenta como característica dominante um elevado grau de reflexividade, Beck prefere a expressão modernidade refle‑ xiva, pois acredita que a modernização reflexiva possibilita o en‑ tendimento e a criação de interpretações que possam responder às descontinuidades da modernidade, geradas a partir das mudanças da vida moderna. O autor acredita que esse processo favorece o po‑ tencial destrutivo envolvido na relação dos homens com a natureza AS TRADIÇÕES GAÚCHAS E SUA RACIONALIZAÇÃO 57 e dos homens entre si, aumentando o nível de perigo vivenciado na vida coletiva. De acordo com Beck (1997), a sociedade passa a ser reflexiva quando se torna um tema e um problema para si própria. As so ‑ ciedades reflexivas precisam encontrar soluções por si para os problemas criados sistematicamente pela modernização social, principalmente no âmbito político. Uma sociedade dotada de reflexividade é marcada pela redes‑ coberta e pela dissolução da tradição, bem como pela destruição daquilo que sempre pareceu ser uma tendência estabelecida. Isto não significa que o mundo se torne imune às tentativas humanas de controle. Essas tentativas de controle, principalmente no que diz respeito aos riscos de grandes consequências, permanecem ne‑ cessárias. Entretanto, é necessário reconhecer que essas tentativas estarão sujeitas a muitas rupturas. Pode ‑se assim abordar a questão do risco. Segundo Beck, Qualquer um que conceba a modernização como um processo de inovação autônoma deve contar até mesmo com a obsolescência da sociedade industrial. O outro lado dessa obsolescência é a emer‑ gência da sociedade de risco. Este conceito designa uma fase no de‑ senvolvimento da sociedade moderna, em que os riscos sociais, políticos, econômicos e individuais tendem cada vez mais a escapar das instituições para o controle e a proteção da sociedade indus‑ trial. (Beck, 1997, p.15) Beck completa esse pensamento afirmando que a sociedade de risco não é uma opção a ser escolhida ou rejeitada no calor das lutas políticas. Ela surge no decorrer dos processos de modernização autônoma que produzem ameaças que questionam e destroem as bases da sociedade industrial. Habermas (1990) acredita que a reflexividade criada pela coleti‑ vidade deve ser uma reflexividade substancialmente política e deve estar fundamentada num modelo ético universalista. Para Beck (1997), 58 CAROLINE KRAUS LUVIZOTTO O conceito de política na modernidade simples é baseado em um sistema de eixos, em que uma coordenada passa entre os polos da esquerda e da direita e a outra, entre o público e o privado. Nesse caso tornar ‑se político significa deixar a esfera privada e caminhar em direção à esfera pública, ou, ao contrário, permitir que as exi‑ gências dos partidos, da política partidária ou do governo proli‑ ferem em todos os nichos da vida privada. Se o cidadão não vai para a política, a política vem para o cidadão. (Beck, 1997, p.60) Na visão de Beck, a modernização reflexiva necessita de uma reforma da racionalidade, uma vez que a racionalidade da ciência e seus padrões e métodos explicativos não são capazes de controlar o fluxo contínuo de novas ameaças e riscos vivenciados nas socie‑ dades atuais. Por consequência, o autor acredita que a racionalidade cientí‑ fica deve ser substituída por uma ética reflexiva, que se baseie na evidência de que “o microcosmo da conduta da vida pessoal está inter ‑relacionado com o macrocosmo dos problemas globais, ter‑ rivelmente insolúveis” (Beck, 1997, p.61). Ainda, as sociedades modernas encontram ‑se em um momento em que são obrigadas a refletir sobre si e, ao mesmo tempo, desenvolvem a capacidade de refletir retrospectivamente sobre si; isso caracteriza a chamada mo‑ dernização reflexiva ou a modernidade tardia para Giddens (1997). Nesse contexto, na busca dos indivíduos por fontes de segu‑ rança, o conhecimento científico vem substituindo a tradição. O mecanismo que enfrenta a insegurança produzida pelas transforma‑ ções sociais e a ruptura das estruturas tradicionais é a absorção de sistemas abstratos de conhecimentos, que são teorias, conceitos e descobertas, e, segundo Giddens, “em todas as sociedades, a manu‑ tenção da identidade pessoal, e sua conexão com identidades sociais mais amplas, é um requisito primordial de segurança ontológica”1 (Giddens, 1997, p.100). 1. Giddens refere ‑se a segurança ontológica como um sentido de ordem e continui‑ dade a respeito das experiências do indivíduo. Argumenta que isto é dependente AS TRADIÇÕES GAÚCHAS E SUA RACIONALIZAÇÃO 59 O autor observa que vivemos uma época na qual estão presentes de modo muito marcante a desorientação e a sensação de que não compreendemos completamente os eventos sociais e que, por isso, perdemos o controle. Entre as mudanças trazidas pela moderni‑ dade, evidencia ‑se a transformação das relações sociais e também a percepção dos indivíduos e coletividades sobre os perigos e riscos do viver, bem como sobre a segurança e a confiança: A modernidade, pode ‑se dizer, rompe o referencial protetor da pe‑ quena comunidade e da tradição, substituindo ‑as por organizações muito maiores e impessoais. O indivíduo se sente privado e só num mundo em que lhe falta o apoio psicológico e o sentido de segu‑ rança oferecidos em ambientes mais tradicionais. (Giddens, 2002, p.38) A modernidade tardia indica uma mudança no modo de viven‑ ciar as relações, a partir da identificação da razão como o elemento ordenador que produz confiança e elimina ou minimiza os riscos. Ao indivíduo moderno, cabe confrontar seus exageros, assumir ‑se como objeto de reflexão e exercer uma crítica racional sobre o pró‑ prio sistema, tornando ‑se um tema e um problema para si. Esse indivíduo reflete sobre o mundo em que vive e exerce uma análise racional das consequências de fatos passados, as condições atuais e a probabilidade de perigos futuros, procurando, assim, minimizar os perigos à medida que esse futuro vai se tornando presente. Para alcançar a segurança ontológica, a modernidade teve que (re)inventar tradições e se afastar de tradições genuínas, isto é, aqueles valores radicalmente vinculados ao passado pré ‑moderno. Este é um caráter de descontinuidade da modernidade, a separação entre o que se apresenta como o novo e o que persiste como herança do velho. da habilidade da pessoa de dar sentido a sua vida. O significado que é achado em experimentar emoções estáveis positivas e por evitar o caos e a ansiedade. 60 CAROLINE KRAUS LUVIZOTTO Esse caráter de descontinuidade, percebido sobretudo entre as ordens sociais tradicionais e as instituições sociais modernas, tem como principais características o ritmo da mudança que a moderni‑ dade coloca em movimento e o escopo dessa mudança, isto é, a sua abrangência global e a natureza das instituições modernas. Giddens (1991) afirma que uma importante característica da mo dernidade tardia é o seu dinamismo, derivado de três fontes do minantes: a separação entre tempo e espaço, o desenvolvimento de mecanismos de desencaixe e a apropriação reflexiva do conhe‑ cimento. No que concerne à separação entre tempo e espaço, pode ‑se dizer que ela provoca as relações entre indivíduos, grupos ou insti‑ tuições ausentes, em que “os locais são completamente penetrados e moldados em termos de influências sociais bem distantes deles” (Giddens, 1991, p.22). A separação entre tempo e espaço é a prin‑ cipal condição para o processo de desencaixe das instituições sociais e desencaixe para ele é “o deslocamento das relações sociais de con‑ textos locais de interação e sua reestruturação através de extensões indefinidas de tempo ‑espaço” (Giddens, 1991, p.24). O autor dis‑ tingue dois tipos de mecanismos de desencaixe ligados ao desen‑ volvimento das instituições sociais modernas: as fichas simbólicas e os sistemas peritos. Por fichas simbólicas quero significar meios de intercâmbio que podem ser “circulados” sem ter em vista as características especí‑ ficas dos indivíduos ou grupos que lidam com eles em qualquer conjuntura particular. Vários tipos de fichas simbólicas podem ser distinguidos, tais como os meios de legitimação política; devo me concentrar aqui na ficha do dinheiro. (Giddens, 1991, p.25) Os sistemas peritos estão presentes em todos os aspectos da vida social nas condições de modernidade e, segundo o autor, são mecanismos de desencaixe porque: AS TRADIÇÕES GAÚCHAS E SUA RACIONALIZAÇÃO 61 Os sistemas peritos são mecanismos de desencaixe porque, em comum com as fichas simbólicas, eles removem as relações so ciais das imediações do contexto. Ambos os tipos de mecanismo de desencaixe pressupõem, embora também promovam, a separação entre tempo e espaço como condição do distanciamento tempo‑ ‑espaço que eles realizam. Um sistema perito desencaixa da mesma forma que uma ficha simbólica, fornecendo “garantias” de expec‑ tativas através de tempo ‑espaço distanciados. Este “alongamento” de sistemas sociais é conseguido por meio da natureza impessoal de testes aplicados para avaliar o conhecimento técnico e pela crítica pública (sobre a qual se baseia a produção do conhecimento téc‑ nico), usado para controlar sua forma. (Giddens, 1991, p.31) A terceira fonte dominante que atribui à modernidade um ca‑ ráter de dinamismo é a apropriação reflexiva do conhecimento. Segundo Giddens (1991, p.51), “a produção de conhecimento sis‑ temático sobre a vida social torna ‑se integrante da reprodução do sistema, deslocando a vida social da fixidez da tradição”. Pensando em conjunto essas três características, o autor re‑ sume: Tomadas em conjunto, estas três características das instituições modernas ajudam a explicar por que viver no mundo moderno é mais semelhante a estar a bordo de um carro de Jagrená2 em dispa‑ rada [...] do que estar num automóvel a motor cuidadosamente controlado e bem dirigido. A apropriação reflexiva do conheci‑ mento, que é intrinsecamente energizante mas também necessaria‑ mente instável, se amplia para incorporar grandes extensões de tempo ‑espaço. Os mecanismos de desencaixe fornecem os meios desta extensão retirando as relações sociais de sua “situacionali‑ dade” em locais específicos. (Giddens, 1991, p.51 ‑2) 2. Segundo Giddens (1991, p.118), “o termo vem do hindu Jagannalh, ‘senhor do mundo’, e é um título de Krishna; um ídolo desta deidade era levado anual‑ mente pelas ruas num grande carro, sob cuja rodas, conta ‑se, atiravam ‑se seus seguidores para serem esmagados”. 62 CAROLINE KRAUS LUVIZOTTO Posto isso e direcionando o foco para o indivíduo no cenário da modernidade, faz ‑se necessário tecer considerações sobre a questão da identidade. De acordo com Giddens (2002), nas sociedades tradicionais, é a tradição, o parentesco e a localidade que limitam a identidade so‑ cial dos indivíduos. Na sociedade moderna, caracterizada como uma ordem pós ‑tradicional, que rompe com as práticas e preceitos preestabelecidos, pode ‑se identificar a ênfase ao cultivo das poten‑ cialidades individuais, possibilitando ao indivíduo uma identidade móvel, mutável. Nesse sentido, segundo Dias (2005, p.87), na modernidade, o “eu” torna ‑se, cada vez mais, um projeto re flexivo, pois aonde não existe mais a referência da tradição, descortina ‑se, para o indivíduo, um mundo de diversidade, de pos‑ sibilidades abertas, de escolhas. O indivíduo passa a ser respon‑ sável por si mesmo e o planejamento estratégico da vida assume especial importância. Sem dúvida, uma grande característica desse projeto reflexivo é estar relacionado a um mundo cada vez mais constituído de infor‑ mação e procurar negar modos preestabelecidos de conduta, con‑ duzindo o indivíduo a realizar escolhas sucessivas, permitindo que este componha a sua narrativa de identidade, sempre aberta a revi‑ sões. Para Giddens (1991, p.39), “a reflexividade da vida social moderna consiste no fato de que as práticas sociais são constante‑ mente examinadas e reformadas à luz de informação renovada sobre estas próprias práticas, alterando assim constitutivamente seu caráter”. Em relação ao caráter de reflexividade da modernidade tardia, Dias (2005, p.87) afirma: Nas condições da alta modernidade, sensações de inquietude e an‑ siedade podem se infiltrar na experiência cotidiana dos indivíduos, pois a narrativa da autoidentidade torna ‑se inerentemente frágil diante das intensas e extensas mudanças que a modernização pro‑ AS TRADIÇÕES GAÚCHAS E SUA RACIONALIZAÇÃO 63 voca. Entretanto, ainda que a modernidade seja inerentemente suscetível à crise, favorece, por outro lado, a apropriação de novas possibilidades de ação ao indivíduo, oferecendo oportunidades de revisão de hábitos e costumes tipicamente tradicionais. Giddens (2002) considera a reflexividade da modernidade uma das maiores influências sobre o dinamismo das instituições mo‑ dernas. É essa reflexividade que permite compreender de que forma a modernidade altera a natureza da vida social cotidiana. É por essa razão que, nesta pesquisa, a modernidade tardia é o pano de fundo para as relações sociais vivenciadas no CTG e para a ma‑ nifestação de tradições culturais nesse cenário. Isto posto, podem ‑se apresentar as considerações concernentes às tradições. 3 A (re)invenção da tradição no contexto da modernidade tardia Entende ‑se a tradição como um conjunto de sistemas simbó‑ licos que são passados de geração a geração e que tem um caráter repetitivo. A tradição deve ser considerada dinâmica e não estática, uma orientação para o passado e uma maneira de organizar o mundo para o tempo futuro. A tradição coordena a ação que orga‑ niza temporal e espacialmente as relações dentro da comunidade e é um elemento intrínseco e inseparável da mesma. Seu caráter repetitivo denota atualização dos esquemas de vida. Isto significa que a tradição é uma orientação para o passado, justa‑ mente porque o passado tem força e influência relevante sobre o curso das ações presentes. A tradição também se reporta ao futuro, ou melhor, indica como or ganizar o mundo para o tempo futuro, que não é visto como algo distante e separado; ele está diretamente ligado a uma linha con‑ tínua que envolve o passado e o presente. Essa linha é a tradição. Ela persiste e é (re)modelada e (re)inventada a cada geração. Assim, pode ‑se dizer que não há um corte profundo, ruptura ou desconti‑ nuidade absoluta entre o passado, o presente e o futuro. A compreensão do mundo é organizada pela tradição, pelo fato de ela ser fundamentada na superstição, na religião e nos costumes. A ordem social baseada na tradição expressa a valorização da cul‑ 66 CAROLINE KRAUS LUVIZOTTO tura oral, do passado e dos símbolos enquanto fatores que per‑ petuam a experiência das gerações, e, nesse sentido, conhecer é ter habilidade para produzir algo e está ligado à técnica e à reprodução das condições do viver. Segundo Weber (1994), uma das formas de dominação em uma sociedade é baseada na tradição, a crença na santidade das ordens e dos poderes existentes desde sempre, cujo conteúdo não se tem a possibilidade de alterar, funcionando como o elemento que une as ordens sociais. Porém, salienta Sahlins (1990), os sistemas simbó‑ licos não devem ser pensados como estáticos, mas sim como dinâ‑ micos, atendendo ao curso da história para se reproduzirem. Desse modo, “em toda mudança vê ‑se também a persistência da subs‑ tância antiga: a desconsideração que se tem pelo passado é apenas relativa” (Sahlins, 1990, p.190). Assim, deve ‑se entender a tradição como um campo que en‑ volve um ritual e possui status de integridade, uma forma de ga‑ rantir a preservação, baseado em modelos que podem ser histórias fictícias, reais ou reinventadas, dando conta dos inúmeros pro‑ cessos de simbolização no curso da história dos atores sociais. Em suma, a tradição passa a ter um caráter normativo, relacionado aos processos interpretativos, por meio do qual o passado e o presente são conectados para ajustar o futuro. Como observam Hobsbawm e Ranger (1997), toda tradição é uma invenção que surgiu em algum lugar do passado, podendo ser alterada em algum lugar do futuro. As tradições estão sempre mu‑ dando, mas há algo em relação à noção de tradição que pressupõe persistência: se for tradicional, uma crença ou prática tem uma in‑ tegridade e continuidade que resistem aos contratempos e às mu‑ danças. A tradição sobrevive de citações que podem ser sônicas e/ ou visuais e que consistem em traços de referências de elementos que transportam para o passado. Mas esses traços encontram ‑se completamente descontextualizados e abertos a qualquer contex‑ tualização. Observa Sahlins: AS TRADIÇÕES GAÚCHAS E SUA RACIONALIZAÇÃO 67 Para compreendermos os movimentos culturalistas contemporâ‑ neos, as lições da sabedoria tradicional poderiam ser tomadas da seguinte forma: a defesa de uma tradição implica alguma cons‑ ciência, consciência da tradição implica alguma invenção, a in‑ venção da tradição implica alguma tradição. (Sahlins, 1990, p.89) Segundo Hobsbawm e Ranger, a invenção de tradições ocorre Quando uma transformação rápida da sociedade debilita ou des‑ trói os padrões sociais para os quais as “velhas tradições” foram feitas, produzindo novos padrões com os quais essas tradições são incompatíveis; quando as velhas tradições, juntamente com seus promotores e divulgadores institucionais, dão mostras de haver perdido grande parte da capacidade de adaptação e da flexibi