UNIVERSIDADE ESTADUAL PAULISTA “JÚLIO DE MESQUITA FILHO” FACULDADE DE FILOSOFIA E CIÊNCIAS – FFC/MARÍLIA PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM EDUCAÇÃO VANESSA APARECIDA PALERMO CAMPOS VISÃO DE PROFESSORES UNIVERSITÁRIOS SOBRE A ATUAÇÃO DO PEDAGOGO SURDO NAS SÉRIES INICIAIS DA EDUCAÇÃO BÁSICA MARÍLIA/SP 2021 VANESSA APARECIDA PALERMO CAMPOS VISÃO DE PROFESSORES UNIVERSITÁRIOS SOBRE A ATUAÇÃO DO PEDAGOGO SURDO NAS SÉRIES INICIAIS DA EDUCAÇÃO BÁSICA Dissertação apresentada por Vanessa Aparecida Palermo Campos ao Programa de Pós-Graduação em Educação da Faculdade de Filosofia e Ciências da Universidade Estadual Paulista Júlio Mesquita Filho, campus de Marília, para a obtenção do título de Mestra em Educação. Área de concentração: Educação Linha de pesquisa: Educação Especial. Orientadora: Profª. Drª. Sandra Eli Sartoreto de Oliveira Martins. MARÍLIA/SP 2021 C198v Campos, Vanessa Aparecida Palermo Visão de Professores Universitários sobre a atuação do Pedagogo surdo nas Séries Iniciais da Educação Básica / Vanessa Aparecida Palermo Campos. -- Marília, 2021 132 p. : tabs. Dissertação (mestrado) - Universidade Estadual Paulista (Unesp), Faculdade de Filosofia e Ciências, Marília Orientadora: Sandra Eli Sartoreto de Oliveira Martins 1. Educação. 2. Educação Especial. 3. Formação de Professores. 4. Surdos. 5. Curso de Pedagogia. I. Título. Sistema de geração automática de fichas catalográficas da Unesp. Biblioteca da Faculdade de Filosofia e Ciências, Marília. Dados fornecidos pelo autor(a). Essa ficha não pode ser modificada. VANESSA APARECIDA PALERMO CAMPOS VISÃO DE PROFESSORES UNIVERSITÁRIOS SOBRE A ATUAÇÃO DO PEDAGOGO SURDO NAS SÉRIES INICIAIS DA EDUCAÇÃO BÁSICA Dissertação apresentada ao Programa de Pós-Graduação em Educação, da Faculdade de Filosofia e Ciências, da Universidade Estadual Paulista Júlio de Mesquita Filho, Campus de Marília, para obtenção do título de Mestra em Educação, na área de concentração Educação, linha de pesquisa Educação Especial. BANCA EXAMINADORA _______________________________________________________________________ Presidente e Orientadora: Profª. Drª. Sandra Eli Sartoreto de Oliveira Martins Universidade Estadual Paulista “Júlio de Mesquita Filho” Faculdade de Filosofia e Ciências, Campus de Marília ______________________________________________________________________ Profª. Drª. Elieuza Aparecida de Lima Universidade Estadual Paulista “Júlio de Mesquita Filho” Faculdade de Filosofia e Ciências, Campus de Marília ___________________________________________________________________ Profª. Drª. Liliane Ferrari Giordani Faculdade de Educação da Universidade Federal do Rio Grande do Sul Marília, 08 de julho de 2021. Dedico este trabalho a Deus, a Ele toda honra e toda glória, e aos meus filhos, Vinícius e Maria Clara. AGRADECIMENTOS Àqueles que caminharam comigo... Primeiramente agradeço a Deus pelo merecimento de vida e a oportunidade de enveredar meu percurso acadêmico, vencendo as dificuldades, barreiras, dando-me sabedoria nas complexidades do pensar e possibilitando-me trilhar, de forma coerente, os caminhos até então desconhecidos. Obrigada Senhor, pela promessa cumprida em minha vida. À minha querida e estimada orientadora, Professora Drª. Sandra Eli Sartoreto de Oliveira Martins, pela excelente orientação. Obrigada pela paciência ao longo desse percurso, pelos ensinamentos e pela compreensão durante a construção do trabalho, bem como no decorrer do meu amadurecimento intelectual. Foi um privilégio tê-la como orientadora. Agradeço aos meus pais, que sempre me apoiaram nessa jornada, trabalharam muito para que hoje eu pudesse ter a possiblidade de trilhar em territórios intelectuais. Aos meus irmãos queridos, Marcos, Ricardo e Luciana, obrigada pelo apoio sempre. Aos meus cunhados e cunhadas, que são como irmãos para mim. Ao meu esposo Paulo, que é um marido e pai maravilhoso, se alegrou comigo a cada etapa concretizada com sucesso nesta fase da vida. Aos meus bens mais preciosos, Vinícius e Maria Clara que, apesar da pouca idade, respeitaram os momentos de pensamentos e construções advindas deste trabalho. Ao Vinícius, que sentia falta da mamãe durante as disciplinas concentradas. Graças à tecnologia, podíamos sempre matar a saudade por chamada de vídeo depois de um longo dia de estudo. À Maria que, ainda na barriga, acompanhava a mamãe nas disciplinas, estágios e grupos de estudos. E hoje participa dessa etapa final com seu sorriso que me motiva a continuar sempre. Ainda sobre os filhos, não posso esquecer do Príncipe e da Princesa, meus filhos de quatro patas, que também sentiam minha falta a cada ida para Marília/SP. Ao chegar, era recebida com muita alegria, lambeijos e carinhos. Às queridas professoras convidadas para minha banca – Profª. Drª. Elieuza Aparecida de Lima (UNESP) e Profª. Drª. Liliane Ferrari Giordani (UFRGS); e aos professores suplentes, Prof. Dr. Dagoberto Buim Arena (UNESP), Profª. Drª. Elianeth Dias Kanthack Hernandes (UNESP) e Dr. Ricardo Ernani Sander (UTFPR) pela dedicação a este trabalho e pelas experiências divididas comigo. Ao CNPq, pelo financiamento dessa pesquisa. Ao meu querido amigo irmão, professor Dr. João Carlos Pereira, você foi, desde o início, minha inspiração para essa pesquisa, obrigada por suas motivações, ensinamentos, colaborações e risadas compartilhadas. Às alunas surdas do curso de Pedagogia, por darem vida a essa pesquisa. O que aprendi com vocês é imensurável. Esta dissertação é uma tentativa de síntese daquilo que ainda dará muitos outros estudos. Obrigada aos docentes que aceitaram participar da pesquisa, minha eterna gratidão. Ao amigo Ricardo Sander, pela tradução em inglês do resumo desta pesquisa. À Flávia Luz, que me auxiliou com seu olhar na revisão deste texto. Aos meus amigos do grupo de estudo e pesquisa Lalis- Laboratório de Linguagem e Surdez, da UNESP de Marília, em especial, aos amigos companheiros: Juliana Louzada, mamãe do príncipe Heitor, pela parceria e palavras de apoio. Ricardo Ernani Sander, pelas suas colaborações desde o início da minha chegada ao grupo, sempre com bom humor, me fazendo rir e deixando a rotina acadêmica mais leve. Rubia Donda, obrigada pela companhia nas disciplinas, pelos seminários apresentados juntas, pelas muitas vezes em que se dispôs a me ajudar, você foi fundamental para meu crescimento acadêmico com as palavras de motivação. Alessandra Di Roma, mesmo não a conhecendo pessoalmente, nossa amizade já se concretizou, obrigada pela companhia nas madrugadas, você na França e eu aqui no Brasil, e quando tudo se tornava obscuro, difícil, parecendo que não avançaria, nos momentos de estudos com você, com o uso do pomodoro, minhas forças eram renovadas e as etapas foram vencidas. Com esse grupo, eu não me senti sozinha. “Em todo tempo ama o amigo e, na angústia, nasce um irmão” (Provérbios 17:17). Por fim, a todos que acreditaram em mim, no meu potencial e me apoiaram na construção deste trabalho, GRATIDÃO. Que Deus nos dê forças para mudar as coisas que podem ser mudadas; serenidade para aceitar as coisas que não podem mudar; e sabedoria para perceber a diferença. Mas Deus nos dê, sobretudo, coragem para não desistir daquilo que pensamos estar certo. Chester W. Nimitz Agência Financiadora: RESUMO A formação de professores se constitui como um tema recorrente no campo dos estudos em educação. Entretanto, problematizar aspectos da formação de professores surdos nesse campo é um fato recente. Posto isso, a presente pesquisa objetivou identificar e analisar o que dizem os professores ouvintes a respeito da formação inicial e da qualificação de universitários surdos para o exercício da docência nas séries iniciais da educação básica. Trata-se de um trabalho de pesquisa qualitativa, caracterizada por um estudo de caso envolvendo a participação de professores do curso de Pedagogia de uma faculdade privada do interior de São Paulo. Os procedimentos de produção dos materiais envolveram dois momentos específicos. O primeiro compreendeu o levantamento de informações sobre a visão dos docentes em relação aos processos formativos de universitários surdos, realizado por meio do desenvolvimento e da aplicação de um questionário semiestruturado, disponibilizado por meio da ferramenta Google Forms. No segundo, foram realizadas entrevistas, com perguntas abertas a dois responsáveis pelas disciplinas de metodologias de ensino e língua portuguesa escrita no curso em questão. Inicialmente, os dados produzidos nas entrevistas foram revisitados pela compreensão ativa dos enunciados e organizados em núcleos de significação, conforme proposto por Aguiar e Ozella (2006). Posteriormente, os questionários foram organizados em gráficos e analisados por eixos temáticos, com as articulações dos núcleos de significação nas discussões para contribuição dos resultados como um todo, bem como o ponto de vista dos docentes sobre a formação de universitários surdos para a prática docente, nas séries iniciais. O estudo demonstrou aspectos importantes sobre a visão dos professores acerca da temática. Revelou situações que aludem à restrição na oferta de práticas pedagógicas que considerem as especificidades linguísticas e formativas do público em questão, bem como pouca flexibilidade para reconhecer que estes estariam capacitados para o exercício da atribuição profissional ao concluírem o curso. Em geral, as justificativas alertam para o fato de os espaços na escola comum serem predominantemente ocupados por docentes que usam a língua majoritária, o português na modalidade falada e escrita. Assim, o estudo convoca a buscar repostas para compreender como os formadores de formadores reconhecem a pluralidade como traço constitutivo do humano em ambientes educacionais e a refletir sobre a existência de limites para que os universitários surdos assumam a docência para crianças não surdas, mesmo que as escolhas revelem aspectos de um caminho promissor em defesa de uma Educação Inclusiva. Palavras-chave: Educação. Formação Inicial de Professores. Surdos. Pedagogia. ABSTRACT Teacher training is a recurrent theme in the field of studies in education. However, problematizing aspects of the training of deaf teachers in this field is a recent fact. Therefore, this research aims to identify the vision of hearing teachers on the initial training of deaf university students to teach in the early grades of basic education. This is a qualitative research work, characterized by a case study involving the participation of teachers of the Pedagogy course of a private college in the interior of São Paulo. The procedures to produce the materials involved two specific moments. The first comprised the survey of information about the view of teachers in relation to the formative processes of deaf college students, carried out through the development and application of a semi-structured questionnaire, available through the Google Forms tool. In the second, we coordinated the interviews with open questions to two teachers responsible for the subjects of teaching methodologies and written Portuguese language, in the course in question. Initially, the data collected in the interviews were revisited by the active understanding of the statements and organized into cores of meaning, as proposed by Aguiar and Ozella (2006). Later, the questionnaires were organized into graphs and analyzed by thematic axes, with the articulations of the nuclei of meaning in the discussions for the contribution of the results, as well as the point of view of teachers on the training of deaf college students for teaching practice in the early grades. The study showed important aspects about the teachers' view on the theme. It revealed situations that allude to the restriction in offering pedagogical practices that consider the linguistic and training specificities of the public in question, as well as the little flexibility to recognize that they would be able to exercise the professional assignment at the end of the course. In general, the justifications alert to the fact that the spaces in ordinary schools are predominantly occupied by teachers who use the majority language, Portuguese in the spoken and written modality. Thus, the study invites us to seek answers to understand how the trainers of trainers recognize plurality as a constitutive feature of the human in educational settings and to reflect on the existence of limits for deaf college students to assume the teaching of non-deaf children, even if the choices reveal aspects of a promising path in defense of inclusive education. Keywords: Education. Initial Training of Teachers. Deaf. Pedagogy. LISTA DE ILUSTRAÇÕES Quadro 1 - Pesquisas sobre formação de professores surdos ................................................... 22 Quadro 2 - Pesquisas sobre professores surdos pedagogos ...................................................... 32 Quadro 3 – Matriz Curricular dos Cursos em Pedagogia Bilíngue .......................................... 48 Quadro 4 – Estrutura do curso de Licenciatura em Pedagogia Bilíngue .................................. 50 Quadro 5 – Estrutura do curso de Licenciatura em Pedagogia................................................. 51 Figura 1 - Organização dos núcleos de significação ................................................................ 59 Quadro 6 - Excertos das entrevistas – João e Maria ................................................................. 61 Quadro 7 - Organização dos pré-indicadores e indicadores ..................................................... 65 Quadro 8 - Núcleos de significação .......................................................................................... 68 Quadro 9 - Eixos temáticos da pesquisa interligados aos núcleos de significação .................. 73 Quadro 10 - Perfil dos participantes ......................................................................................... 75 Gráfico 1 – Já teve algum estudante surdo nas suas aulas na universidade?............................76 Gráfico 2 - As estudantes surdas do curso de Pedagogia participam das suas aulas? .............. 78 Gráfico 3 – As estudantes apresentam dificuldades para realizar as atividades propostas em sala? .......................................................................................................................................... 79 Gráfico 4 - Você faz ajustes curriculares na disciplina para atender as necessidades das estudantes surdas? .................................................................................................................... 80 Gráfico 5 - Em suas aulas, usa algum suporte tecnológico e/ou didático específico para favorecer o acesso ao conteúdo pelo canal visual para os alunos? ........................................... 81 Gráfico 6 - A presença do Intérprete de Libras auxilia na comunicação das estudantes surdas em sala de aula? ........................................................................................................................ 84 Gráfico 7 - Após o tempo de contato com as estudantes surdas, você se sente capaz de ministrar o conteúdo mínimo ou mesmo total para elas sem a presença do Intérprete? .......................... 84 Gráfico 8 - Saber falar a língua portuguesa é uma condição indispensável para a atividade da docência nas séries iniciais? ..................................................................................................... 90 Gráfico 9 - Você acredita que o professor surdo possa alfabetizar alunos ouvintes? .............. 90 Gráfico 10 - Professor surdo pode ministrar aula apenas para surdo? ..................................... 93 Gráfico 11 – Você acredita que as estudantes surdas só poderão exercer a docência com crianças surdas em escolas especiais e/ou classes para surdos? ............................................................. 93 Gráfico 12 - Você acredita que as estudantes surdas conseguirão exercer a docência em uma classe comum após a conclusão do curso? ............................................................................... 95 LISTA DE ABREVIATURA E SIGLAS AEE Atendimento Educacional Especializado ART Artigo BDTD Biblioteca Digital Brasileira de Teses e Dissertações CEAD Centro de Educação a Distância CEED Conselho Estadual de Educação CFE Conselho Federal de Educação CNE Conselho Nacional de Educação CNS Conselho Nacional da Saúde CNPQ Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico DCN Diretrizes Curriculares Nacionais EAD Ensino a Distância ENEM Exame Nacional de Ensino Médio IES Instituição de Ensino Superior INES Instituto Nacional de Educação de Surdos ISBE Instituto Superior Bilíngue de Educação LIBRAS Língua Brasileira de Sinais LS Língua de Sinais TCLE Termo de Consentimento Livre e Esclarecido TILS Tradutor e Intérprete da Língua de Sinais P Professor PCN Parâmetros Curriculares Nacionais PPC Projeto Político de Curso UDESC Universidade do Estado de Santa Catarina UNESP Universidade Estadual Paulista - SP SUMÁRIO 1 INTRODUÇÃO ................................................................................................................... 15 2 O QUE AS PESQUISAS NOS DIZEM SOBRE A FORMAÇÃO INICIAL DO PROFESSOR SURDO? ......................................................................................................... 21 2.1 As produções voltadas para a formação de professores surdos pedagogos ............. 31 3 GRADUAÇÃO EM PEDAGOGIA NO BRASIL: O INÍCIO E SUAS DIRETRIZES CURRICULARES .................................................................................................................. 39 3.1 Um breve histórico sobre o curso de Pedagogia ......................................................... 39 3.2 Curso Normal em nível médio e a Pedagogia para Surdos ....................................... 42 3.3 Os cursos de Licenciatura em Pedagogia Bilíngue (Libras/Português) ................... 43 3.4 Matriz Curricular dos cursos de Pedagogia Bilíngue x Pedagogia Comum ........... 47 4 METODOLOGIA DA PESQUISA .................................................................................... 53 4.1 Aspectos éticos ............................................................................................................... 53 4.2 As etapas da pesquisa ................................................................................................... 53 4.2.1 A faculdade ............................................................................................................... 54 4.2.2 Os critérios de seleção dos participantes ................................................................ 54 4.2.3 Os docentes .............................................................................................................. 56 4.3 Instrumentos .................................................................................................................. 56 4.3.1 Questionário ............................................................................................................. 56 4.3.2 Entrevista ................................................................................................................. 57 5 PROCEDIMENTOS DE ANÁLISE DE DADOS ............................................................ 59 5.1 Os percursos de construção da proposta metodológica: levantamento dos pré- indicadores, organização dos indicadores e sistematização dos núcleos de significação na entrevista ........................................................................................................................ 59 5.2 Leitura flutuante ........................................................................................................... 60 5.3 Pré-indicadores ............................................................................................................. 60 5.4 Levantamento dos pré-indicadores nas entrevistas ................................................... 60 5.5 Indicadores .................................................................................................................... 64 5.6 Aglutinação dos pré-indicadores em indicadores ...................................................... 64 5.7 Articulação dos indicadores para a formação dos núcleos de significação ............. 68 5.8 O percurso de construção da proposta metodológica: os questionários .................. 68 6 RESULTADOS E DISCUSSÕES DOS DADOS .............................................................. 73 6.1 Eixo 1 – Caracterização e perfil formativo ................................................................. 74 6.2 Eixo 2 – Sobre os surdos no ensino superior .............................................................. 76 6.3 Eixo 3 – Interação estudante/professor e adaptação curricular ............................... 78 6.4 Eixo 4 – Tradutor intérprete de Libras ...................................................................... 83 6.5 Eixo 5 - Perspectiva de atuação profissional do surdo formado em Pedagogia ...... 89 7 CONSIDERAÇÕES FINAIS ............................................................................................ 101 REFERÊNCIAS ................................................................................................................... 106 APÊNDICE A - Questionários para docentes do curso de Pedagogia ............................ 114 APÊNDICE B - Roteiro de entrevista com professores da disciplina específica ............ 117 APÊNDICE C - Transcrição de entrevista semiestruturada ........................................... 119 APÊNDICE D - Transcrição de entrevista semiestruturada ........................................... 125 ANEXO A – Parecer do CEP .............................................................................................. 128 ANEXO B- Termo de Consentimento Livre e Esclarecido............................................... 132 15 1 INTRODUÇÃO Recordar é refletir sobre o momento que estamos passando com base nos fatos e acontecimentos históricos vividos ao longo de nossa existência. Esse processo criativo se desenvolve por meio da memória que, ligada às experiências do hoje, possibilita o entendimento de nossa subjetividade, singularidade e identidade. Meu nome é Vanessa,1 sou ouvinte, sou a mãe, a filha, a irmã, a esposa, a amiga, a funcionária, a intérprete e a estudante pesquisadora. Quando cogitei cursar a pós-graduação, fazer o mestrado, o primeiro pensamento foi: e meus filhos? Que horas darei a atenção necessária a eles? Nesse processo, um novo início de jornada acadêmica, a missão mãe foi conciliada com a vida de estudante e pesquisadora. No início dessa trajetória educacional, fui questionada sobre os autores a serem estudados ou sobre quais teóricos eu utilizaria em minha pesquisa, confesso, eu não sabia. Em minha cabeça, naquele momento, só habitavam personagens como: George Pig, Susie Ovelha, Zoe Zebra, Rebecca Coelho, Molly Toupeira, Madame Gazela, Dona Coelha, Mamãe Pig, Papai Pig e ela claro, Peppa Pig. Esses personagens do desenho animado, que faz parte das minhas manhãs junto dos meus pequenos, tinham lugar de destaque no meu mundo mãe. E, diferentemente do personagem Papai Pig, que tem como característica ser perito em tudo o que faz, eu não sabia como iria lidar com o momento de ser discente e mãe ao mesmo tempo. Em certos momentos, ao longo do desenvolvimento da pesquisa, me sentia como a personagem Dona Coelha, dócil, extremamente produtiva e versátil, até que, então, surge uma pandemia, momento em que muitos tiveram sua profissão ressignificada devido às consequências e protocolos de segurança em ocasião do alto índice de contaminação pela Covid-19, uma doença causada pelo novo coronavírus e que, dentre muitos efeitos, pode causar a morte por insuficiência respiratória. Em função dessas circunstâncias, o Brasil parou. Fechadas, as escolas e universidades aderiram ao estudo na modalidade remota, o que se tornou uma realidade, assim como o famoso home office. Entre outras questões, o ano de 2020 nos mostrou a grande capacidade que temos de nos adaptar ao novo, ao incerto e, mesmo assim, nos manter confiantes e pensar: “isso vai passar e vamos sair dessa”. Palavras de esperança e de motivação não poderiam faltar nesse momento delicado de isolamento social. Para Bauman (2007), vive-se uma época de transformações intensas e relações fragilizadas, submetidas a constantes incertezas. Por conseguinte, todos estão inseridos em uma conjuntura que propicia o surgimento de certos dilemas relacionados à carreira, ao trabalho e à 1 Nesse primeiro momento de apresentação pessoal e introdução, utilizarei a o verbo em 1ª pessoa do singular e, no decorrer do texto a partir da segunda seção, em 1ª pessoa do plural. 16 interface vida pessoal e trabalho. No entanto, eu só queria que esse momento atípico terminasse com o desfecho típico das histórias dos personagens do desenho infantil da Peppa Pig, todos às gargalhadas, estirados no chão. Também não poderia deixar de dizer que a constituição da pesquisa ora apresentada relaciona-se à minha própria história de vida no campo da educação de surdos, iniciada na licenciatura em Letras-Libras, passando por estudos na especialização, bem como pelas práticas exercidas na Educação Básica e no Ensino Superior como tradutora intérprete de Libras. Tal caminho levou aos estudos sobre formação docente de universitários surdos no curso de Pedagogia. A graduação em Letras-Libras permitiu ressignificar minhas práticas como tradutora em uma faculdade privada situada no interior de São Paulo, especificamente no curso de Pedagogia. Todas essas práticas influenciaram a proposta deste estudo, levando à reflexão sobre a formação de surdos como profissionais capazes de exercer a docência em uma sala de aula com crianças ouvintes. Além disso, a temática formação de professores tem sido destaque de muitas pesquisas, especialmente na área da educação. Trata-se, portanto, de um tema que tem provocado a necessidade de pesquisas e estudos acerca do processo educativo escolar dos surdos. Segundo Nóvoa (1992), a formação do professor deve vislumbrar um trabalho de flexibilidade crítica, apoiado na constituição contínua de uma identidade pessoal. Nessa perspectiva, garantir a formação desse profissional de modo qualitativo é fundamental para favorecer uma atuação pedagógica comprometida e reflexiva. Sobre isso, com foco na formação de universitários surdos no curso de Pedagogia, argumento que a presente proposta de investigação potencializará reflexões e avaliações em relação ao modo a universidade vem preparando os estudantes para ingressarem no sistema regular e especial de ensino, tendo em vista a necessidade de consonância com os princípios das políticas da formação docente e de Educação Inclusiva no Brasil (BRASIL, 2015) e com as demandas para o exercício da prática profissional no mercado de trabalho. Assumir uma sala de aula comum implicará reconhecer que o espaço educacional é diverso e que exige formação adequada na perspectiva da Educação Inclusiva, que considera a presença de estudantes com características de aprendizagens bem diferenciadas, como os que se identificam como usuários dos serviços de educação especial, a saber: alunos com deficiência, transtorno do espectro autismo, altas habilidades e superdotação. As Diretrizes Curriculares Nacionais (DCN) para o curso de graduação em Pedagogia (BRASIL, 2006a) apontam que as políticas de formação de professores devem garantir condições para que o profissional seja qualificado para “[...] o exercício da docência na 17 Educação Infantil e nos anos iniciais do Ensino Fundamental, nos cursos de Ensino Médio, na modalidade Normal, e em cursos de Educação Profissional” (BRASIL, 2006a, p. 2). Embora saibamos que ninguém se torna educador do dia para noite e que “ninguém começa a ser educador numa certa terça-feira às quatro horas da tarde” (FREIRE, 1991, p. 56), é preciso estar em ação, colocando-se em processo de estudo e reflexão, de modo a estar sempre a caminho da construção de uma prática educativa mais humanizante e engajada. Atualmente, as abordagens de formação docente não definem a competência do professor pautada no seu domínio sobre o conteúdo da disciplina que leciona. Porém, isso não consiste em desconsiderar a relevância dos conhecimentos do docente no que diz respeito ao seu campo de ensino. Assim, considerando que o saber docente não é estritamente ter conhecimento da disciplina, como é possível pensá-lo hoje? Ao ingressarmos no campo dos estudos de formação docente, percebemos que não há, historicamente, um consenso sobre os fundamentos epistemológicos que orientam a educação do professor no Brasil. Consequentemente, não há de definição sobre o professor que se deseja formar. Entretanto, há que se ponderar sobre os aspectos relacionados aos processos educacionais dos universitários surdos, compreendendo a peculiaridade do modo como eles apreendem o mundo e oportunizando experiências visuais e de acessibilidade que eliminem as barreiras existentes, para que haja a plena participação desses alunos nos processos formativos docentes (AGAPITO, 2015). Ao nos referirmos à comunidade surda, há que se considerar que os surdos reivindicam que suas demandas nos processos educacionais sejam consideradas e discutidas no campo da diferença linguística, afastados a definição da deficiência e os discursos que a definem como déficit, insuficiência e/ou incapacidade presentes nas práticas educacionais clínicas e patológicas. Nesse contexto, o fato de os surdos se reconhecerem como membros de uma comunidade linguística que faz uso de uma língua visual-espacial diferente (por exemplo, da língua portuguesa, que é oral-auditiva), como é a Libras,2 “ganha destaque no cenário educacional e configura-se como elemento capaz de proporcionar à pessoa surda acesso ao processo de significação nas relações sociais” (GIROTO; PINHO; MARTINS, 2016, p. 155). Para esses sujeitos, torna-se essencial garantir o acesso às informações em sua língua, respeitando a diversidade linguística existente. É por meio da Libras, uma língua natural, que acontece a comunicação entre as comunidades surdas. Trata-se de uma língua visual-espacial, que foi oficializada pela Lei de nº 10.436, em 24 de abril de 2002 (BRASIL, 2002) e, depois, 2 Língua Brasileira de Sinais, língua utilizada pela comunidade surda. 18 regulamentada pelo Decreto nº 5.626, em 22 de dezembro de 2005 (BRASIL, 2005a). Esses documentos representam o marco legal sobre a concepção de surdez, reconhecendo que os surdos são usuários da língua de sinais e, logo, são vistos como diferentes numa sociedade em que a maioria das pessoas é falante e usuária da língua vocal. Posto isso, considero que esta pesquisa provocará reflexões diversas sobre o papel do conhecimento humano referente à formação do universitário surdo no curso de Pedagogia, como também do docente do Ensino Superior como interventor intencional, na garantia de condições objetivas favoráveis para o desenvolvimento humano nesse momento de formação inicial. Sabemos que há vários loci no mercado de trabalho que podem ser ocupados pelo surdo pedagogo após a conclusão de sua formação, podendo exercer a profissão de professor de Educação Infantil e professor dos anos iniciais no Ensino Fundamental, além das demais atividades vinculadas às práticas gerenciais de espaço escolares e não escolares, conforme estabelecido pela Resolução CNE/CP n. 1, de 15 de maio de 2006, em seu artigo 4º: [...] o curso de Licenciatura em Pedagogia destina-se à formação de professores para exercer funções de magistério na Educação Infantil e nos anos iniciais do Ensino Fundamental, nos cursos de Ensino Médio, na modalidade normal, de Educação Profissional na área de serviços e apoio escolar e em outras áreas nas quais sejam previstos conhecimentos pedagógicos. Parágrafo único. As atividades docentes também compreendem participação na organização e gestão de sistemas e instituições do ensino, englobando: I – planejamento, execução, coordenação, acompanhamento e avaliação de tarefas próprias do setor de Educação; II – planejamento, execução, coordenação, acompanhamento e avaliação de projetos e experiências educativas não-escolares; III – produção e difusão do conhecimento científico-tecnológico do campo educacional, em contextos escolares e não-escolares. (BRASIL, pg. 2, 2006a). A atuação do pedagogo, após licenciado, pode se dar no campo teórico-investigativo da educação como atividade social, de modo que a docência tem que atingir as práticas de ensino e motivadoras de possibilidades de aprendizagem, podendo ser ligada a espaços escolares ou não. Esse campo pode considerar três possibilidades: docência, gestão e pesquisa, áreas em que se espera que esse docente esteja apto para atuar. Nesse sentindo, cabe ressaltar que a presente pesquisa não tem a intenção de abordar todos os campos de atuação do futuro surdo pedagogo, mas focalizar a atuação desse sujeito nas séries iniciais do Ensino Fundamental e, especificamente, considerando o papel de professor alfabetizador. Por conseguinte, indagamos: esses surdos estudantes de Pedagogia estariam qualificados para assumirem uma sala de aula comum, ao término do seu processo formativo? 19 Quais impedimentos e/ou facilidades relatam encontrar para concluírem com êxito tal processo? O que dizem os professores sobre a formação de universitários surdos no curso investigado? Na visão desses professores, estariam os surdos preparados para exercer a docência em classe comum na educação básica? Frente a essa problemática, nossa pesquisa como tem como objetivo geral identificar e analisar o que dizem os professores ouvintes a respeito da formação inicial e da qualificação de universitários surdos para o exercício da docência nas séries iniciais da educação básica. Também apresenta os seguintes objetivos específicos: a) identificar as práticas pedagógicas ofertadas a universitários surdos em um curso de Pedagogia; b) analisar o que os professores universitários relatam sobre a atuação dos futuros pedagogos surdos no exercício da docência; c) compreender o que os professores dizem sobre as atribuições do professor surdo como alfabetizador nas séries iniciais da educação básica. Para que os caminhos percorridos fossem apresentados de forma clara, organizamos o presente trabalho acadêmico-científico em seis seções, contando com a presente introdução, que constitui a primeira. A segunda seção analisa as produções sobre o tema formação de professores surdos, em nível de mestrado e doutorado. Ela encontra-se dividida em duas partes. A primeira tem a finalidade de apresentar o que dizem as produções sobre a formação inicial de surdos universitários nos últimos anos; a segunda procura aproximar as produções do campo com o tema formação de professores surdos pedagogos e, dessa maneira, identificar as contribuições e a pertinência dessas publicações para a área de formação de professores, procurando observar como tais estudos qualificam o professor surdo e como é reconhecida a docência exercida por esse sujeito. Na terceira seção, abordamos a graduação em Pedagogia no Brasil, ressaltando sua origem e diretrizes. Apresenta-se divida em quatro partes: um breve histórico sobre o curso de Pedagogia; a apresentação do curso Normal em nível médio e a Pedagogia para Surdos; uma abordagem dos cursos de licenciatura em Pedagogia Bilíngue (Libras/Português) e, por último, a análise das matrizes curriculares dos cursos de Pedagogia Comum e Pedagogia Bilíngue. Na quarta seção, são apresentadas as bases metodológicas aplicadas na execução deste trabalho. A quinta seção, por sua vez, consiste na apresentação dos procedimentos de análise de dados. Portanto, o objetivo desse capítulo é expor os pressupostos metodológicos que direcionaram a investigação, seus procedimentos, como também o processo de sistematização e análise dos dados coletados. 20 A sexta seção corresponde às discussões dos dados obtidos junto aos docentes participantes e à apresentação dos resultados. Os dados obtidos foram estruturados em gráficos e tabelas, possibilitando-nos proceder com a análise quantitativa. Além disso, em alguns momentos da análise dos questionários, aparecerão os procedimentos de articulações dos núcleos de significação, para contribuir e dialogar com os resultados. Além das seções acima mencionadas, há, ainda, uma última dedicada às considerações finais, que consiste numa discussão acerca do conteúdo nuclear que compõe este trabalho, ou seja, a problematização da formação do universitário surdo no curso de Pedagogia, tendo em vista as percepções dos seus formadores. 21 2 O QUE AS PESQUISAS NOS DIZEM SOBRE A FORMAÇÃO INICIAL DO PROFESSOR SURDO? Quem escolheu ser professor, escolheu a mais impossível, mas também a mais necessária de todas as profissões. E sabe que não vale a pena acreditar que podemos tudo, que podemos tudo transformar. Não podemos. Mas podemos alguma coisa. E esta alguma coisa é, muitas vezes, “a coisa decisiva” na vida das nossas crianças e dos nossos jovens. Nóvoa. Nesta seção, trouxemos o resultado de uma pesquisa sobre as produções relacionadas à formação inicial de surdos nos últimos anos, em nível de mestrado e doutorado, com a finalidade de apresentar as contribuições para o aprofundamento das reflexões sobre o tema investigado. Como procedimento para levantamento da pesquisa bibliográfica, foi efetuada uma busca na Biblioteca Digital Brasileira de Teses e Dissertações (BDTD)3. Para esse processo, empregamos alguns descritores: professores surdos; formação de surdos; formação inicial de surdos universitários; formação docente e docente surdo. Essa revisão inicial foi realizada por volta do mês de fevereiro de 2020 e, após a análise de diversos trabalhos, encontramos 14 obras que versavam sobre formação de professores surdos. Oito delas, dentre dissertações e teses, diziam respeito à formação do professor surdo, e seis consideravam, especificamente, o professor surdo pedagogo. Nesse sentido, fazemos a seguir uma apresentação das obras selecionadas, dividindo-as em dois grupos, um reunindo as pesquisas sobre formação geral de professores surdos e o outro apresentando as pesquisas voltadas especialmente para pedagogos surdos. As dissertações e teses sobre a formação do professor surdo foram defendidas entre os anos de 2006 e 2018, cada um desses oito trabalhos foi analisado, para que nenhum dado relevante fosse negligenciado. A triagem dos dados teve início com a seleção dos títulos que apontavam para nosso objeto de estudo: selecionamos obras cujo título revelavam a temática formação acadêmica de surdos. Ao constatar o assunto, fazíamos a leitura dos respectivos resumos e, em alguns casos, também da introdução e do sumário. Como muitos trabalhos não deixaram claros, em seus resumos, se poderiam ou não se encaixar no escopo da pesquisa, a necessidade da leitura das introduções foi evidente. Feito isso, passamos a organizar os dados 3 Biblioteca Digital Brasileira de Teses e Dissertações. Disponível em: https://bdtd.ibict.br. Acesso em: 22 de fev. 2020. https://bdtd.ibict.br/ 22 em uma tabela do Excel, com o nome do autor, título da pesquisa, instituição, ano de publicação, palavras-chave usadas pelo autor, resumo e link de acesso das obras por meio do site da BDTD. A pesquisa revela que o número de estudos com a temática formação de professores surdos é relevante, o que mostra que ela tem se consolidado como área de interesse em diversas universidades, localizadas em diferentes regiões do país. Em relação à natureza das Instituições de Ensino Superior (IES) nas quais as pesquisas foram elaboradas, das oito pesquisadas, seis foram realizadas em IES públicas federais; uma em IES pública estadual e uma em IES privada, sendo cinco dissertações e três teses. As pesquisas ajudaram a compreender aspectos relacionados à atuação desses profissionais surdos nas instituições e constituíram-se como elementos que nos ajudaram a direcionar o olhar, a partir de um ponto de vista histórico, para o processo de constituição dos sujeitos surdos como profissionais de ensino. Ainda sobre os trabalhos encontrados, consideramos que existem dois tipos de pesquisa: aquela cuja investigação considerou a perspectiva de docentes surdos e foi feita por pesquisador surdo e a que pesquisou o docente surdo a partir do olhar do pesquisador ouvinte.4 Quanto aos trabalhos pesquisados, cinco são de autores ouvintes e três de autores surdos, conforme Quadro 1. Quadro 1 - Pesquisas sobre formação de professores surdos AUTOR/ANO TÍTULO MODALIDADE INSTITUIÇÃO Reis (2006) Professor surdo: a política e a poética da transgressão pedagógica Dissertação Pesquisador surdo Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC) Silva (2012) Memórias e narrativas surdas: o que sinalizam as professoras sobre sua formação Dissertação Pesquisador ouvinte Faculdade de Educação da Universidade Federal de Pelotas (UFPEL) Machado (2012) (Per)cursos na formação de professores de surdos capixabas: constituição da educação bilíngue no estado do Espírito Santo Tese Pesquisador ouvinte Universidade Federal do Espírito Santo (UFES) Chiachio (2014) Saberes docentes fundamentais para a promoção da aprendizagem do aluno surdo no ensino superior brasileiro Tese Pesquisador ouvinte Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC) Gomes (2015) Docente surdo: o discurso sobre sua prática Tese Pesquisador ouvinte Universidade Federal da Paraíba (UFPB) Carvalho (2016) Não basta ser surdo para ser professor: as práticas que constituem o ser professor surdo no espaço da inclusão Dissertação Pesquisador surdo Universidade Federal do Espírito Santo (UFES) Penha (2017) Surdo professor: formação por meio da filosofia e da constituição de um espaço pedagógico Dissertação Pesquisador ouvinte Universidade Federal do Espírito Santo (UFES) Mazacotte (2018) História de vida de uma professora surda e sua prática Dissertação Pesquisador surdo Universidade Estadual do Oeste do Paraná (UNIOSTE) Fonte: Elaborado pela autora. 4 É o caso dessa pesquisa, sou ouvinte fazendo pesquisa sobre o docente surdo. 23 Para darmos início à apresentação dos trabalhos selecionados, optamos por uma ordem cronológica da publicação de cada um. Assim, iniciamos com a dissertação de autoria de Reis (2006), intitulada “Professor surdo: a política e a poética da transgressão pedagógica”. A autora parte de uma perspectiva dos Estudos Culturais, aproximando-se dos Estudos Surdos (SKLIAR, 1999) com o propósito de colaborar para a melhoria da representação desse professor. Sua pesquisa está voltada para a prática pedagógica, atentando para um processo de transgressão em que o docente surdo passa a ser compreendido a partir de suas possibilidades de expor a realidade de sua transgressão no espaço educacional surdo. O estudo teve como objetivo focalizar a prática dos professores surdos na sala de aula e chamar a atenção sobre o despertar da pedagogia para esses sujeitos, tendo em vista sua cultura e reafirmando a diferença existente em relação aos professores ouvintes. Reis (2006) parte de sua própria experiência como discente para nos revelar como o universo da academia reage à presença do aluno surdo, especialmente no curso de pedagogia. Na introdução, a autora relata os momentos do ingresso na graduação em Pedagogia, para a qual foi aprovada na primeira tentativa. Porém, a jornada logo se inicia com a dificuldade, assim como para muitos surdos no Brasil, de permanecer no curso sem a presença de um intérprete nas aulas. Por dois anos e meio, a autora reivindicou seus direitos, por meio de uma denúncia ao Ministério Público, de modo que a faculdade cumpriu com a ordem e contratou um profissional Tradutor e Intérprete da Língua de Sinais (TILS). A pesquisa traz interessantes reflexões sobre os Estudos Culturais que desafiam a Pedagogia de surdos, ela questiona como professores surdos podem ensinar os conteúdos através de sua cultura, visto que, em sua formação, a imposição do ouvintismo5 continua sendo uma prática. A autora aponta que, nos dias atuais, a maioria das pessoas estão preocupadas em oralizar os surdos, em ensiná-los português para que, assim, sejam ‘normais’ ou que acompanhem uma universalização ouvinte. A partir dos estudos de Reis (2006), fomos levados a nos perguntar se seria esse o motivo de muitos surdos acabarem não assumindo cargo como professor de ouvintes. Será problema do sistema, que não permite que esse surdo usuário da língua de sinais trabalhe utilizando a sua própria metodologia de ensinar os alunos ouvintes? Ou esse profissional só é capaz de ministrar aulas para ouvintes quando a disciplina for Libras? O estudo ainda teve a pretensão de apresentar uma concepção de cultura. Reis (2006) afirma que, com uma visão limitada, muitos entendem cultura como algo restrito ou estereotipado, associando-a, por exemplo, aos povos indígenas brasileiros, que usam roupas 5 Segundo Skliar (1998, p. 15), o ouvintismo “trata-se de um conjunto de representações dos ouvintes, a partir do qual o surdo está obrigado a olhar-se e a narrar-se como se fosse ouvinte”. 24 típicas feitas de penas, armas como arco, flecha e lança para caçar e pescar. Reis (2006) esclarece que a cultura não pode ser confundida apenas com as coisas e objetos utilizados pelos povos, mas compreende seus modos de ver, identificar e transformar o mundo. A autora ainda expressa que cultura envolve aprender um com o outro, em processos relacionais com pessoas do mesmo grupo, bem como a partir da visão do sujeito que identifica sua maneira de estar no grupo, sua forma de ver e de transformar o mundo. E, por fim, a autora aborda os conceitos de pedagogia da diferença, de ser surdo e do espaço educacional surdo, defendendo que, conforme o estudo, nem todos os professores surdos têm a mesma estratégia de ensino, de modo que a pedagogia da diferença consiste em ser diferente dos outros. Para a pedagogia cultural, a compreensão das diferenças diz respeito a trabalhar com as diferenças, reforçá-las e enfatizá-las pelo seu próprio modo de ensinar, ou seja, em relação aos surdos, estaria pautada na possibilidade de usufruir todas as experiências visuais, políticas e de representação. Assim, a autora entende que essa alteridade incentiva a atuação de professores surdos. E que o sucesso da pedagogia da diferença pressupõe assumir a responsabilidade de orientar a própria diferença. A pesquisa de Silva (2012), sob o título “Memórias e narrativas surdas: o que sinalizam as professoras sobre sua formação”, discute temas como a constituição da identidade de professoras surdas e os aspectos da formação. Sua pesquisa objetiva analisar, com base nas narrativas das participantes do estudo, os processos formadores vivenciados ao longo da vida dessas professoras e que possibilitaram a construção de uma identidade docente. Os dados da pesquisa foram produzidos por meio de narrativas autobiográficas das histórias de vida e formação docente de três professoras surdas que atuavam no Ensino Fundamental – séries iniciais e no ensino de Libras de uma escola para surdos. A autora implementa uma metodologia por meio da qual organizou três encontros contemplando essas narrativas docentes. Alguns temas foram abordados e discutidos nesses encontros, como: oralização, experiência visual como marcador cultural do surdo, letramento, literatura infantil, literatura surda e outras temáticas que, com base nas experiências de vida, mostraram-se como possíveis elementos constituidores das identidades docentes. As professoras surdas, ao expressar suas histórias de formação, evidenciaram a pedagogia surda. Assim, Silva (2012) aborda a pedagogia dos surdos como uma pedagogia que difere das outras, pois “[...] assume o jeito do surdo ensinar, de propor, o jeito surdo de aprender, experiência vivida por aqueles que são surdos” (PERLIM, 2004, p. 81). A pesquisadora ainda demonstra que, para entender o sistema de construção da identidade docente, permitiu que as participantes relevassem como se reconheciam surdas, bem como as implicações dessas 25 vivências na constituição indentitária produzida culturalmente em suas práticas diárias no exercício da docência, denominando os modos de existência da sua atuação na escola como pedagogia surda. Assim, a autora defende que, na medida em que se produz cultura, se produz identidade e, a partir dos discursos das professoras, que falam sobre suas experiências de vida, destaca-se o comprometimento com um fazer pedagógico que atenda às necessidades de aprendizagem dos alunos surdos, endossando modos didáticos operativos de produzir uma pedagogia surda. Silva (2012) patenteia que os surdos são um grupo minoritário que batalha a fim de que sua cultura seja respeitada e legitimada no contexto político-social, por meio de discursos situados no campo da diferença. Para falarmos de docência, encontramos a tese de Machado (2012), com o título “(Per)cursos na formação de professores de surdos capixabas: constituição da educação bilíngue no estado do Espírito Santo”, que tem como objetivo compreender o “tornar-se” professor de surdos, levando em conta os saberes e a experiência constituídos juntamente com os saberes considerados acadêmicos. Apesar de não falar diretamente sobre a formação do surdo que é professor, a autora discute a questão da docência a partir da teoria de Michel Foucault, possibilitando-nos observar diferentes formas de constituição e subjetivação dos professores de surdos (ouvintes). Diferentemente das pesquisas até então apresentadas, a autora escolhe como sujeito de pesquisa professoras ouvintes atuantes com sujeitos surdos e estabelece uma rede de conversação que nos possibilita refletir sobre aspectos como: a análise de currículos dos cursos de formação de professores de surdos ao longo da história, a história dos movimentos surdos e as formações na perspectiva da educação bilíngue. No que diz respeito ao primeiro aspecto, Machado (2012) problematiza os saberes, as práticas e as experiências que permeiam a formação dos professores de surdos, abarcando reflexões acerca dos programas e propostas educacionais bilíngues. A autora afirma que esses documentos não apresentam linearidade, pois decorrem de experiências/práticas docentes diferentes. Machado (2012) defende que os surdos sejam protagonistas na oferta e na consolidação de programas educacionais bilíngues, de modo que possam ter acesso a um ensino de qualidade numa escola em que sua língua seja língua de conhecimento. Dialogamos, também, com a pesquisa de Chiachio (2014), sob o título “Saberes docentes fundamentais para a promoção da aprendizagem do aluno surdo no Ensino Superior brasileiro”, que objetiva identificar os saberes necessários (ou fundamentais) para a promoção da aprendizagem do aluno surdo no Ensino Superior brasileiro. Sobre esses saberes necessários, o autor traz uma explicação geral e enfatiza sete saberes também abordados por Morin (2003): 26 o conhecimento; o conhecimento pertinente; a identidade humana; a compreensão humana; a incerteza; a condição planetária e a antropo-ética. A pesquisa de campo foi realizada com sete professores especialistas em educação de surdos no Ensino Superior e, como instrumento de pesquisa, utilizou-se a entrevista, levada a cabo por meio de perguntas organizadas por eixos temáticos ou categorias de análise: formação docente; política pública, educação do surdo; acessibilidade educacional e tradutor intérprete. Assim, o autor buscou compreender o ponto de vista dos docentes em relação à educação promotora de aprendizagem do aluno surdo no Ensino Superior, além de investigar quais saberes são necessários, na prática educacional, para que se promova, de fato e de direito, a educação para o surdo (CHIACHIO 2014). A pesquisa também apresenta sinteticamente aspectos sobre saberes e desafios de aprendizagem e do Ensino Superior para o aluno surdo. As contribuições dos professores participantes do estudo direcionaram os esforços do autor frente ao desafio de estabelecer saberes que não representassem apenas uma lista interminável, mas um caminho possível de entendimento e saberes necessários. Segundo os participantes do estudo, deveriam subsidiar a prática docente do aluno surdo os seguintes saberes: a) experiência em docência; b) ensino de alunos com deficiência; c) docência de pessoas surdas; d) conhecimentos específicos em Libras; e) mecanismo e/ou metodologias de ensino; f) reconhecimento da particularidade da surdez; g) aplicação dos conhecimentos frente a diferentes perspectivas e práticas docentes em sala de aula. Ainda destacamos dois eixos temáticos da pesquisa de Chiachio (2014) que complementam os resultados do estudo: tradutor intérprete e acessibilidade educacional. Sobre o eixo acessibilidade educacional, Chiachio (2014) apresenta um dado curioso, que diz respeito aos resultados das notas desses universitários surdos, que são inferiores aos dos alunos ouvintes. Assim, o autor indaga: se os docentes alegam que não têm dificuldades para a promoção da aprendizagem do aluno surdo, por que todos apresentam baixo rendimento? Logo, alguns docentes afirmam que o problema está no surdo, que apresenta muitas dificuldades na aprendizagem, o que justificaria o baixo rendimento, se comparado com o aluno ouvinte. O eixo tradutor intérprete nos traz dados interessantes e que dariam uma extensa discussão, no entanto, tendo em vista que esse não é o objetivo central do presente estudo, apresentaremos alguns pontos de relevância apontados pelo pesquisador. O autor pontua um equívoco por parte de algumas respostas dos docentes, ao alegarem que é função do intérprete a responsabilidade de ensinar o aluno surdo, assim, deixando para outro a sua responsabilidade docente. Chiachio (2014) ainda complementa que, não raro, o professor interage com o aluno por meio dos serviços do tradutor intérprete, o qual, na maioria dos casos, desconhece a área do conhecimento 27 na qual vai atuar. Nesse sentido, a formação do professor e o desafio de garantir o ensino e a aprendizagem do aluno surdo apresenta-se como paradigma da Educação Inclusiva. Para encerrar, o pesquisador observa que cada vez mais alunos universitários com deficiência estão sendo formados ou mesmo estão cursando a universidade. No entanto, ele alega que, não acompanhando esse cenário, grande parte dos educadores não estão preparados para desenvolver atividades acadêmicas de promoção da educação para jovens e adultos com algum tipo de deficiência no Ensino Superior, pressuposto básico de um trabalho que tem como foco a questão da surdez. A tese de Gomes (2015), intitulada “Docente surdo: o discurso sobre sua prática”, traz a voz de uma professora surda, formada em pedagogia e professora de Libras. O trabalho tem como objetivo identificar, na fala da professora, o interdiscurso marcado pelas autoridades políticas, educacionais e maternais nas firmações de leis, tendo em consideração as conformações legais, as abordagens de ensino e as orientações cujo fim remetem ao processo de inclusão nas instituições acadêmicas. Participou como sujeito da pesquisa uma professora surda de 31 anos, formada em Pedagogia, usuária da língua de sinais, que ministrava a disciplina de Libras no curso de Letras e Pedagogia. Também houve a participação de uma intérprete de Libras, ambas faziam parte do quadro de funcionários da Faculdade de Ciências Humanas de Olinda, lócus da pesquisa. A autora realizou uma entrevista com a professora surda, como também observou as aulas nos cursos citados. Chamam a atenção no estudo perguntas que levaram as participantes a narrar aspectos do seu cotidiano de trabalho na universidade. Foi perguntado: “No primeiro ano, você era acompanhada pela intérprete, e ela explicava como seria toda a dinâmica da aula: o que era a surdez, narrava a trajetória dos surdos e leis que permeavam os diretos dos mesmos. Você teve dificuldades nesses primeiros anos de ensino? ”. A frase “ela explicava como seria toda dinâmica da aula” nos provocou a curiosidade de logo partir para a resposta da professora surda. O primeiro dia de aula é impossível, eu sozinha, porque o ouvinte fica confuso e com medo, é difícil. Então, no primeiro dia de aula sempre junto com o intérprete, claro pra poder ajudar. Tem que ser explicado minha história, a evolução dos surdos, também evitar chamar mudo, coitadinho, os adjetivos que são dados para os surdos. Esclarecer tudo porque é importante. A intérprete precisa deixar bem claro sobre isso, depois ela ensina normal, e quando tem prova preciso dela porque como não escuto os alunos, eles ficam falando (risos). (GOMES, 2015. p. 68). Quando a professora diz que é dificultoso o primeiro dia de aula sozinha, sabemos que o momento gera certa ansiedade, assim como medo de estar fora da zona de conforto, diante de 28 tudo novo ou vivenciando tudo pela primeira vez, de forma que fica mais simples e fácil se houver algum tipo de apoio. Logo, o que nos chamou a atenção foi a professora surda contar com a colaboração da intérprete de Libras para dirigir sua aula, explicando como seria toda a dinâmica, falando sobre a história de vida da professora, sobre a cultura dos surdos, termos inadequados etc. Reconhecemos a faculdade por disponibilizar o intérprete para os alunos ouvintes, de modo que ele possa fazer a mediação entre a professora surda e os discentes. Entretanto, isso nos leva a refletir sobre o papel desse intérprete em sala de aula, ao lado da professora surda. Talvez essa presença limite a autonomia que essa professora precisa ter perante seus alunos para falar de si mesmo. Embora essa discussão deva ser ampliada, deixamos aqui nosso apoio para tantos outros surdos professores que enfrentam pela primeira vez a sala de aula: você é capaz, você é eficiente, você pode e você consegue. E isso a própria professora surda nos mostrou, pois foi capaz. A autora revela, na pesquisa, que na trajetória dessa profissional destacou-se a autoridade evidenciada, inclusive com sua postura em sala de aula. No princípio, quem apresentava a disciplina e sua organização, assim como a própria professora, era a intérprete, como mostramos anteriormente. Nos dias de hoje, porém, segundo a pesquisa, a professora surda apresenta-se e discorre sobre sua disciplina e, muitas vezes, encontra-se sozinha em sala de aula, dialogando com os discentes ouvintes em língua de sinais. A investigação de Gomes (2015) permitiu verificar o percurso educacional de uma professora surda e compreender como ela foi modificando sua prática, a partir de sua reflexão sobre a prática do outro. Desse modo, o trabalho contribuiu para a compreensão da formação do professor surdo na graduação, levando os leitores a uma importante reflexão. A pesquisa de Carvalho (2016), por sua vez, denominada “Não basta ser surdo para ser professor: as práticas que constituem o ser professor surdo no espaço da inclusão”, discute a importância da formação docente que constitui esse professor. O autor defende que “não basta ser surdo para ser professor”. Para ele, o fato de ser surdo não pode ser a única condição para que o sujeito possa trazer para si o ensino de libras, como se fosse o único capaz de ensinar essa língua. O autor ainda alerta que é necessário assumirmos uma outra linguagem para pensar na docência do sujeito surdo de outro modo. O objetivo geral de seu trabalho foi compreender as práticas incorporadas nas instituições de ensino que compõem as diferentes subjetividades dos professores surdos. Assim, o autor mostra que os professores surdos são contratados para realizar Atendimento Educacional Especializado (AEE) para discentes surdos. 29 A pesquisa aborda a forma como o professor surdo é mencionado no espaço escolar, não sendo reconhecido como “professor” e sim como “professor surdo”. Carvalho (2016) ainda expõe que muitos colegas surdos dizem: “Sou professor surdo”, ao invés de “Sou professor”. O autor firma que, muitas vezes, o comportamento do professor surdo passa a mensagem de que aquela área é somente dele, pois houve uma preparação feita pelo Estado para que esse espaço fosse ocupado por surdos. Isso faz com que o professor não seja reconhecido como um indivíduo apto a exercer uma atividade de ensino. Assim, em concordância com Carvalho (2016), entendemos que a área é referida como uma identidade e não como uma formação, marcando um território. Além disso, frisamos uma fala muito importante do autor, quando apresenta a possibilidade de os surdos atuarem em outras funções, como pedagogo ou professores de Educação Infantil. A pesquisa mostra que a partir do momento em que o sujeito surdo se direciona para essas áreas de atuação, é como se o foco não fosse mais sua identidade, pois o sistema de educação não visualiza os surdos atuando nessas áreas. Em complemento, Carvalho (2016) ainda se refere, de modo pontual, ao procedimento metodológico usado na pesquisa, chamado de “narrativa surda”. A principal questão que sustenta a narrativa surda é a seguinte: qual o seu papel de professor na escola? As narrativas foram produzidas por sujeitos surdos professores e instrutores de Libras atuantes nas instituições de ensino. Em umas das respostas, nomeado como surdo E, o sujeito responde: “Não vou ensinar só Libras. Só Libras? Pensa que surdos só sabem e servem para isso? Vou ensinar português sim”. Esse comentário traduz-se em alegria, pois mostra um sujeito se posicionando e mostrando que é capaz de exercer outra atividade além da Libras. Carvalho (2016) ainda deixa claro que outros professores surdos também têm as mesmas sensações de preocupação e assumem a necessidade de ensinar o português ou as palavras do português. Assim, a partir dessa realidade, considerada limitadora, o pesquisador lança um olhar sobre a função de ser professor de Libras e o papel de despertar o interesse do discente surdo pela matéria e não pela identidade do ser surdo. O autor finaliza afirmando que a surdez, como adjetivo de professor, retrata outras subjetividades para além da docência e aconselha que, ao invés de intitularmos “professor surdo”, como uma marca identitária e adjetiva de professor, seria mais interessante substantivar o surdo para “surdo professor”, aquele que é professor. A tese de Penha (2017), intitulada “Surdo professor: formação por meio da filosofia e da constituição de um espaço pedagógico”, tem início com o seguinte questionamento: “Quais são os efeitos dos atravessamentos da experiência-surdez nas práticas docentes do surdo que é 30 professor? ” A autora traz uma discussão sobre a formação do surdo que é professor, por meio da experiência do ser surdo no exercício da docência. Salienta-se ainda que, ao longo da pesquisa, a autora registra a expressão “Surdo que é Professor”, tendo grafado em maiúscula as palavras surdo e professor, para chamar a atenção para a expressão utilizada por Carvalho (2016), autor citado anteriormente. Assim, Penha (2017) tem a intenção de diferenciar a docência e a identidade surda, de forma que o acadêmico seja reconhecido pela sua atuação e não pela condição de não ouvir, que se caracteriza como uma singularidade de seu modo de existência. O trabalho teve como objetivo compreender a formação do surdo que é professor, por meio das reflexões filosóficas nas rodas de conversa, na constituição do espaço pedagógico como prática na relação docente-discente. A metodologia utilizada na pesquisa foi as rodas de conversas, com seis encontros presenciais com surdos professores bilíngues (Português/Libras) e intérpretes de Libras. Dentre os professores, 10 são formados em Pedagogia, um em Matemática e cinco em Letras/Libras, muitos deles dispunham de duas licenciaturas, sendo a primeira em Pedagogia. Sobre as rodas de conversa, dialogamos com um excerto retirado da pesquisa e que se assemelha à problemática apresentada pelo presente estudo: Sou formado em Pedagogia, posso dar aula para ouvinte também, porém não me deixam, por exemplo, conheço uma professora que tentou dar aula nas séries iniciais do Ensino Fundamental, e quando ela chegou à escola não pôde dar aula para aquela turma de crianças ouvintes, foi uma luta para ela conseguir o direito de dar aula para aquela turma. (PENHA, 2017. p. 37). Sobre esse excerto, a pesquisa de Penha (2017) apenas expressa que os surdos que são professores reconhecem a importância de ensinar o aluno a pensar, mas adverte que ensinar o outro a pensar reflexivamente é um desafio, pois parte desses professores, em suas vivências constitutivas da experiência do ser surdo, não foram ensinados a pensar reflexivamente e ainda alerta que as pessoas não nascem sabendo pensar reflexivamente sobre a docência ou aptas a ensinar sem ter passado por uma formação anteriormente. Mediante o exposto, a autora ressalta que sua pesquisa não se limitou a apontar aspectos sobre a formação docente do surdo que é professor, mas, também, apresentou alternativas de constituição de outras condições docentes, levando em conta o exercício de pensar de outro modo a prática docente do surdo que é professor. 31 Essa prática se diferencia de outros modos, ‘fora’ da ‘experiência de si’, alcançando campos outros, por meio do uso de novas tecnologias do eu.6 (PENHA, 2017). O estudo de Mazacotte (2018), “História de vida de uma professora surda e sua prática”, é um trabalho de autobiografia, que permitiu que a própria pesquisadora se apresentasse como professora surda, formada no ensino normal superior e na licenciatura em Letras/Libras e que, na ocasião, atuava como professora de surdos, desde a Educação Infantil até a Educação de Jovens e Adultos (EJA). Bernal também ministrava aulas de Libras nas licenciaturas de Pedagogia, Matemática, Letras e Enfermagem da Universidade Estadual do Oeste do Paraná, campus de Foz do Iguaçu. A pesquisa teve como objetivo registrar, por meio de autobiografia de uma professora surda, a história da luta dos surdos pela educação. Desse modo, a autora relata sua infância até a idade adulta, apontando como superou e como aprendeu a superar obstáculos impostos por ser surda em uma sociedade majoritariamente ouvinte. Mazacotte (2018) relata que cursou Normal Superior em uma faculdade privada, sem a presença de um intérprete de Libras, sofrendo com a dificuldade de formação por professores leigos no assunto, que não sabiam como lidar com a aluna surda na sala. Com a segunda graduação, no curso de Letras Libras, a autora diz ter encontrado o seu mundo, a comunidade surda. Com as duas graduações, a autora revela que teve dois momentos de formação como professora, um em que estudou como ouvinte e o outro como surda, no curso de Letras Libras. O trabalho cumpre a tarefa de conceituar a educação bilíngue para surdos, mostrando ideias de metodologias de ensino da Libras como primeira língua (L1) e da língua portuguesa (L2), assim como de apresentando o processo formativo de uma professora surda. A seção a seguir procura aproximar as produções do campo com o tema formação de professores surdos pedagogos e, dessa maneira, identificar as contribuições e a pertinência dessas publicações para a área de formação de professores, procurando observar como tais estudos qualificam o professor surdo e como é reconhecida a docência exercida por esse sujeito. 2.1 As produções voltadas para a formação de professores surdos pedagogos 6 A pesquisa de Penha (2017) teve inspiração teórico-metodológica foucautiana, utilizando os conceitos e as ferramentas “Experiência de Si” e “Tecnologias do Eu”. Conforme a autora aponta, encontramos em Foucault dois deslocamentos para a análise da “experiência de si”, conforme Larrosa (2011): o deslocamento pragmático, relacionado com as práticas que a produzem e a medeiam, e o deslocamento historicista, que analisa essas práticas pelo ponto de vista histórico e genealógico. Sobre as “tecnologias do eu”, Foucault aborda as práticas nas quais se constroem e se modificam as experiências que os indivíduos têm de si mesmos, justamente através do estudo dos mecanismos que transformam os seres humanos em sujeitos. (PENHA, 2017). 32 A pesquisa bibliográfica apontou que, dentre as produções mais relevantes, seis focalizam especificamente nosso objeto de estudo, como já mencionado. Observamos que a maioria dessas pesquisas está preocupada com as estratégias de formação do sujeito surdo, focalizando o ensino bilíngue. Embora, em um primeiro momento, tenhamos encontrado um grande número de pesquisas que abordam a temática formação de professores surdos, percebemos que, quando trazemos essa discussão para o contexto da formação dos professores surdos pedagogos, ou universitários surdos no curso de Pedagogia, o número de trabalhos é bem limitado. Atentamos que, diferentemente da seção anterior, a maior parte das pesquisas relacionadas foi realizada por pesquisadores ouvintes, que lançam um olhar para a formação de professores surdos. Apenas um trabalho foi escrito por pesquisador surdo. As produções apresentadas no Quadro 2 contemplam a “formação de professores surdos” e o “curso de Pedagogia”, tratando de representações culturais produzidas sobre professores surdos ou alunos surdos inseridos no referido curso. Quadro 2 - Pesquisas sobre professores surdos pedagogos AUTOR/ANO TÍTULO MODALIDADE INSTITUIÇÃO Miranda (2007) A experiência e a pedagogia que nós surdos queremos Tese Pesquisador surdo Faculdade de Educação da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS) Soares (2013) Educação bilíngue de surdos: desafios para a formação de professores Dissertação Pesquisador ouvinte Faculdade de Educação da Universidade de São Paulo (FEUSP) Costa (2014) Relação pedagógica do professor, intérprete de língua de sinais e o aluno do curso de pedagogia da UERN. Dissertação Pesquisador ouvinte Universidade do Estado do Rio Grande do Norte (UERN) Batista (2014) A formação de pedagogos surdos e ouvintes: tensões multiculturais Tese Pesquisador ouvinte Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ) Cicilino (2017) Políticas de formação de professores na perspectiva bilíngue: o caso do INES Dissertação Pesquisador ouvinte Universidade Estadual Paulista (UNESP) Schubert (2017) Limites e possibilidades da educação bilíngue para surdos no contexto das políticas de inclusão (1990-2017) Tese Pesquisador ouvinte Universidade Tuiuti do Paraná (UTP) Fonte: Elaborado pela autora. A análise desse grupo de obras também foi organizada pela apresentação das pesquisas em ordem cronológica da publicação. Na tese de Miranda (2007), intitulada “A experiência e a pedagogia que nós surdos queremos”, o autor relata que existe, no Brasil, vários cursos de 33 Pedagogia, porém não a pedagogia dos surdos. Por essa razão, decidiu pesquisar os professores surdos que atravessaram a formação acadêmica com sofrimento. Participaram do estudo de Miranda (2007) seis professores surdos formados no curso de Magistério do ensino médio para surdos e de Pedagogia para surdos, em Santa Maria (RS)7 e Florianópolis (SC), respectivamente. A pesquisa objetivou apresentar as experiências dos professores surdos sobre a Pedagogia dos Surdos, por meio de filmagens transcritas e narradas, mostrando o obstáculo e a volta epistemológica que se enfatizou com o desejo, os olhares e as necessidades dos sujeitos surdos. O autor mostra que, para os surdos que cursaram o magistério em turmas ouvintes do ensino médio, a formação não proporcionava um currículo que valorizasse a comunidade surda, centrando-se apenas em currículos ouvicêntricos, ou seja, próprios para ouvinte, baseados em língua portuguesa e suas literaturas, com repetições monolinguísticas ouvicêntricas. Já com o curso de Pedagogia dos Surdos, caracterizado mais recentemente como Pedagogia Bilíngue, era diferente, pois favorecia que os discentes aprendessem observando os professores surdos se comunicando em LS, ministrando disciplinas como: Histórias dos surdos, Arte-educação e Didática, por meio de um currículo construído a partir da visão epistemológica dos surdos. A dissertação de Soares (2013), sob o título “Educação bilíngue de surdos: desafios para a formação de professores”, teve como objetivo discutir a formação inicial de professores nos cursos de licenciatura em Pedagogia e Letras em Instituições de Ensino Superior, considerando que esses profissionais deverão atender os alunos surdos no contexto da educação bilíngue, onde a língua portuguesa escrita precisaria ocupar o espaço de L2. O estudo foi desenvolvido por meio de análise e intepretação de dados obtidos em pesquisa tipo bibliográfica, que procurou responder aos principais desafios na formação inicial de professores para a educação básica, considerando que esses profissionais precisam atender alunos surdos em contexto de educação bilíngue, cenário em que o português deve transitar como segunda língua. Além disso, o autor coloca que devemos desconstruir e desnaturalizar a ideia de que o surdo é bilíngue, a priori. O autor destaca sua preocupação com afirmativas generalizadas de que os surdos que fazem uso da Libras, em geral, são considerados bilíngues por natureza. Os resultados do trabalho de Soares (2013) revelam diferentes aspectos sobre os desafios na formação inicial dos professores que atuarão na educação bilíngue de alunos surdos. O primeiro diz respeito à necessidade de formulação de diretrizes para a formação inicial, com vistas a preparar o futuro 7 Ver detalhes sobre o curso de Pedagogia para Surdos de Santa Maria na página 37 desta dissertação. 34 professor com conhecimentos essenciais à boa prática docente com esse grupo de alunos. O segundo desafio consiste em investir em ações que visem desmistificar crenças que reforçam visões equivocadas sobre as capacidades de aprendizagem desse aluno. O terceiro considera a urgência de pensar sobre instrumentos dos quais o professor pode lançar mão para desenvolver metodologias e materiais que venham a ser eficientes no ensino do português escrito para o alunado surdo. E a quarta e última questão aponta a importância de trabalhar com esse futuro professor conhecimentos linguísticos suficientes, que possibilitem a sua reflexão sobre o estatuto da Libras. A pesquisa intitulada “Relação pedagógica professor, intérprete de língua brasileira de sinais e aluno surdo do curso de pedagogia da UERN", da autora Costa (2014), teve o intuito de problematizar a inclusão, no Ensino Superior público, da figura do intérprete, na perspectiva de possibilitar aos estudantes surdos melhores condições de atendimento. O trabalho tem como objetivo analisar a relação pedagógica professor, intérprete de língua de sinais e discente surdo do curso de Pedagogia, considerando um processo de ensino-aprendizagem pautado na inclusão. No trabalho em questão, os sujeitos participantes da pesquisa narram suas experiências de vida, refletem sobre a própria trajetória e encontram outros caminhos a percorrer, num processo contínuo de autoformação, como descreve a autora. A pesquisa contou com três participantes, dentre eles: uma professora do curso de Pedagogia, uma profissional tradutora intérprete de libras e um aluno surdo, também do curso de Pedagogia. Por meio de um método (auto) biográfico, os sujeitos narraram suas experiências de vida, refletiram sobre essas trajetórias e encontraram caminhos a percorrer no processo contínuo de (auto) formação. O trabalho problematizou a relação pedagógica e a formação inicial e continuada dos educadores. Segundo a autora, ela procurou buscar um olhar miúdo, desenvolvendo uma escuta e uma prática sensível e atenta às diferenças e à singularidade de todos. Ainda sobre os sujeitos, na medida em que narram ou relatam suas múltiplas vivências no campo educacional, refletem acerca delas e vislumbram outras possibilidades e saídas para superar suas angústias, medos, fracassos ou reafirmar o êxito de sua prática de ensino. Por conseguinte, a autora exemplifica que a demanda prevê o ingresso do professor-pedagogo em diversos espaços, sejam escolares e não-escolares. Desde modo, ela levanta o questionamento: “Será que o acadêmico surdo do curso de Pedagogia foi formado na perspectiva de atuar em todos os espaços (escolar e não-escolar)? Será que esses espaços estão acessíveis ao surdo? ” (COSTA, 2014, p.72). A autora continua indagando se a educação de nível básico e superior está despertando os discentes com/sem deficiência para serem sujeitos autônomos e pergunta 35 se esse universitário surdo está conseguindo desenvolver suas capacidades, habilidades, momentos de autonomia e autossuficiência. As indagações encontradas no estudo de Costa (2014) são semelhantes às questões que também motivam o nosso estudo, levando-nos a refletir sobre a atuação profissional desse sujeito surdo pós formado. É preciso refletir sobre as diversas questões pautadas na inclusão de surdos no Ensino Superior, possibilitando um repensar da formação, da prática dos educadores, dos profissionais da Libras e, ainda, de outros surdos que venham a ingressar na universidade, que deve se preocupar, cada vez mais, com atendimento e ensino de qualidade. Também corroboramos as reflexões apresentadas no estudo de Batista (2014), intitulado “A formação de pedagogos surdos e ouvintes: tenções multiculturais”, que tem como foco analisar perspectivas, potenciais e tensões multiculturais que ocorrem no contexto de um curso bilíngue de Pedagogia, no Instituto Nacional de Educação de Surdos (INES). A pesquisa de Batista (2014) buscou compreender como se configura a experiência daquele espaço formativo, levando em conta características, dificuldades, conquistas e desafios, a partir do ponto de vista de seus diferentes atores. Os dados da pesquisa foram acessados por meio de entrevistas semiestruturadas aplicadas para um total de 20 alunos do curso de Pedagogia Bilíngue do INES, sendo 10 surdos e 10 ouvintes do 3º, 5º, 6º e 8º período. Dentre esses sujeitos ouvintes, muitos são intérpretes e mães de surdos. Os resultados indicaram que a educação de surdos precisa dialogar com o multiculturalismo, que a hibridização é importante e que precisamos combater preconceitos. O trabalho ainda defende que as proposições do multiculturalismo podem ajudar na formação de professores mais sensíveis e atentos à diferença e no combate ao daltonismo cultural. Batista (2014) explica a noção de ‘daltônico cultural’ a partir do que foi proposto por Stoer e Cortezão (apud MOREIRA; CANDAU, 2008). Para os autores, o “daltônico cultural é aquele professor que não valoriza o arco-íris de culturas que encontra nas salas de aulas e com o qual precisa trabalhar, não tirando, portanto, proveito da riqueza que marca esse panorama”. Trata-se daquele professor que vê todos os estudantes como idênticos, não levando em conta a necessidade de estabelecer diferenças nas atividades pedagógicas que propõe promover. Nas considerações finais, a autora menciona que "os surdos têm uma trajetória educacional que não privilegiou, que não se preocupou ou não mostrou uma possibilidade de construírem uma segunda língua, com é o caso do português, língua oficial do país." (BATISTA, 2014, p. 127). A autora destaca a questão linguística como uma marca fundamental na convivência entre surdos e ouvintes do mesmo curso, afirmando que 36 Por um lado, os surdos reivindicam que os seus trabalhos sejam todos feitos em língua de sinais; no entanto, lembramos que se trata de um curso bilíngue, portanto, LIBRAS e português na modalidade escrita. Assim, se eles receberão a certificação de pedagogos “bilíngues”, que bilinguismo é esse? Pois o que ocorre é um “cabo de força” em que um grupo de um lado reivindica sua língua e vice-versa. Então, o bilinguismo não ocorre, e sim a presença de duas línguas que transitam no mesmo espaço, mas que é uma relação de lutas de poder o tempo todo e vira um campo de guerra. (BATISTA, 2014. p. 126). E continua: Entendemos que os surdos têm uma trajetória educacional que não privilegiou, que não se preocupou ou não mostrou uma possibilidade de constituírem uma segunda língua [...]. No entanto, consideramos que eles não podem ficar nesse ranço radical de que tudo seja em língua de sinais, porque senão vira uma discriminação inversa, de quererem que tudo seja em língua de sinais, a primazia da língua de sinais. Eles estão no Brasil, que tem por língua oficial a língua portuguesa. (BATISTA, 2014. p. 127). Conforme a afirmativa da autora, entendemos que, na formação inicial, os professores precisam ser levados a compreender o surdo como um cidadão de aprendizagem e não como incapaz e usuário de uma língua provida de deficiência. É necessário romper esse bloqueio e superar o estigma da deficiência linguística e de quem é o surdo. Para tal, o artigo 2º do Decreto n. 5.626 aponta que a pessoa surda: “interage com o mundo por meio de experiências visuais, manifestando sua cultura principalmente pelo uso da Língua Brasileira de Sinais – Libras" (BRASIL, 2005a. p. 1). A pesquisa de Cicilino (2017), com o título “Políticas de formação de professores na perspectiva bilíngue: o caso do INES”, tem como objetivo analisar a proposta do curso de Pedagogia Bilíngue do Instituto Nacional de Educação de Surdos (INES), que é referência no país. O trabalho tem início com a caracterização do estado da arte sobre a temática investigada, analisando as principais políticas educacionais que têm orientado a formação de professores para atuação com alunos surdos na perspectiva bilíngue e sua materialização no curso bilíngue de Pedagogia do INES. Cicilino (2017) expõe que o curso enfatiza a prevalência da Libras, deixando de evidenciar como essa formação qualifica para o exercício da docência em programas educacionais bilíngues em que o português se configura como componente curricular do projeto político pedagógico. A autora conclui que há necessidade urgente de estudos e discussões para propor uma política possível de ser materializada, com indicação de novas diretrizes e orientações oficiais quanto ao atendimento e às concepções sobre a implementação de um curso de Pedagogia bilíngue, capaz de alicerçar, efetivamente, o Projeto Político Pedagógico, focalizando a questão da apropriação dos conteúdos e as reais necessidades do surdo. Ademais, a autora afirma que 37 não há um padrão de Pedagogia bilíngue que atenda aos interesses dos surdos. Em síntese, o estudo de Ciciliano (2017) possibilitou constatar que a proposta da Pedagogia Bilíngue ainda não foi totalmente incorporada pelo INES, o que refletirá na qualidade da prática pedagógica desenvolvida por esses futuros professores, que terão dificuldade de proporcionar condições de inclusão, atuação e aprendizagem do aluno surdo. A última pesquisa localizada trata-se da tese Schubert (2017), sob o título “Limites e possibilidades da educação bilíngue para surdos, no contexto das políticas de inclusão (1990- 2017): implicações à formação de professores”. A tese tem como objetivo geral desvelar se há ou não presença de bilinguismo nas políticas de inclusão, de modo a possibilitar a formação de professores para surdos e a efetivação da educação bilíngue em libras-língua portuguesa. Como objetivos específicos, a autora nos traz: a) perquirir se o bilinguismo se faz presente nas políticas de inclusão para a formação de professores; b) interpelar os cursos de formação de professores, nomeadamente os de Pedagogia, em Curitiba e região metropolitana no estado do Paraná, quanto à presença do componente curricular Libras e a educação bilíngue e c) analisar a realidade de professores que trabalham com surdos, para constatar se há consonância com as políticas e se o bilinguismo para surdos está presente na formação continuada e nas práticas em sala de aula, verificando suas condições, limites e possibilidades. Para isso, a autora realizou uma análise nos documentos nacionais e internacionais e documentos produzidos a partir dos movimentos sociais dos surdos sobre educação e inclusão. Também foram utilizados como instrumento de coleta de dados a entrevista e o questionário com gestores, professores surdos e ouvintes que trabalham com surdos na educação básica e no Ensino Superior, além de pesquisa de campo em instituições com matrículas de surdos. A partir das análises propostas, Schubert (2017) coloca que a educação bilíngue pressupõe que o professor seja proficiente e fluente em ambas as línguas, língua de sinais e língua portuguesa, com conhecimentos aprofundados necessários à prática pedagógica de ensino de uma segunda língua, tanto para o surdo como para o ouvinte, considerando as características dos estudantes. Schubert (2017) também aponta que as produções revelam que a formação inicial de professores não os prepara para a educação de surdos, de modo que a autora defende a inserção da disciplina Libras na licenciatura, além de uma formação continuada centrada no bilinguismo. A investigação de Schubert (2017) verificou que, nas formações existentes, há um esvaziamento de conhecimentos gerais e específicos relacionados aos surdos. De modo geral, é possível afirmar que os autores aqui apresentados questionam o academicismo exacerbado de alguns modelos de formação docente e a pouca inserção prática 38 das questões do bilinguismo e do sujeito surdo na constituição, também teórica, do campo educacional. Tardif (2012), por exemplo, ressalta a necessidade de pensar o docente como um profissional composto por saberes. Para o autor, o saber docente define-se como um “saber plural, formado de diversos saberes provenientes das instituições de formação, da formação profissional, dos currículos e da prática cotidiana. ” (TARDIF, 2012, p. 54). Isto é, o saber docente consiste numa amálgama de diversos outros saberes que, em sua combinação, formam o sujeito professor e estipulam as suas práticas. Desse modo, como dito anteriormente, o saber docente pressupõe configurações que ultrapassam a dimensão do conhecimento do conteúdo da disciplina, atingindo um patamar de saber reflexivo, plural e complexo, contextual afetivo e cultural (FIORENTINI, 1994). Por essas características, não é válido considerá-lo conhecimento enrijecido e estagnado, mas lócus de mudanças e transformação. Entre os fatores que possibilitam essa mutabilidade está a sua constituição volátil, mediada pela trajetória profissional docente e pelas interações com o ambiente de sala de aula. Levando em conta as considerações apresentadas pelos trabalhos selecionados no levantamento bibliográfico sobre o tema, concordamos com Perrenoud (1999), para quem o conhecimento do professor configura-se como um conhecimento na ação, de modo que é possível, a partir dele, mobilizar diversos recursos cognitivos para enfrentar as situações profissionais que surgirem. Tais situações, como ressalta Ponte (2014), são possibilidades de o professor elaborar e reelaborar seu conhecimento, transformando-o. Ser docente em formação, então, consiste em entrar nesse ciclo de reflexão e produção de conhecimento por meio da prática, capaz de criar alternativas de ação frente ao contexto escolar e isso não ocorre de forma diferente para o profissional surdo. Em síntese, pudemos observar, por meios dos 14 trabalhos apresentados até aqui, que nenhum coloca em evidência o surdo como pedagogo, atuando nas séries iniciais da educação básica. No entanto, vale ressaltar que, na maioria das pesquisas, os professores possuem formação complementar em Letras/Libras, de modo que passam a atuar como professor de Libras em universidades ou com aluno surdo em escolas bilíngues. Posto isso, parece oportuno refletir sobre como o professor surdo vem vislumbrando o seu ingresso no sistema regular para o exercício da docência. Consideramos essa ponderação como parte dos objetivos deste estudo, que tem o propósito de identificar o que dizem os professores ouvintes sobre a formação inicial de universitários surdos para a docência nas séries iniciais da educação básica. 39 3 GRADUAÇÃO EM PEDAGOGIA NO BRASIL: O INÍCIO E SUAS DIRETRIZES CURRICULARES Nesta seção, abordar um panorama sobre a história da Pedagogia e suas diretrizes curriculares, como também da Pedagogia bilíngue no Brasil. 3.1 Um breve histórico sobre o curso de Pedagogia A temática formação de professores, as licenciaturas, a todo momento, é alvo de discussões no âmbito da educação superior no Brasil. Especificamente sobre o currículo, diversas políticas vêm estabelecendo que os cursos de formação de professores para a educação básica qualifiquem profissionais para atuar nas classes comuns. Desse modo, a matriz curricular dos cursos de Pedagogia e das demais licenciaturas passa por uma reestruturação de extrema importância, de acordo com as fases políticas e econômicas do país. Segundo Gatti (2012), o curso de Pedagogia foi, dentre os cursos de graduação em nível superior, um dos que mais sofreu reformulações normativas ao longo dos anos. O curso de Pedagogia foi criado no Brasil como consequência da preocupação com o preparo dos docentes para a escola secundária. Surgiu junto com as licenciaturas, instituídas ao ser organizada a antiga Faculdade Nacional de Filosofia, da Universidade do Brasil, pelo Decreto – Lei nº 1190 de 1939. Essa faculdade visava à dupla função de formar bacharéis e licenciados. (SHEIBE; AGUIAR, 1999, p. 223). Para adentrarmos na história do curso de Pedagogia do Brasil, iniciamos a análise terminológica, que tem sido considerada menos contemporânea aos estudos da área, embora ainda existam formas de pensar a Pedagogia ligadas a preferências pessoais do profissional como fator para a escolha da profissão, como por exemplo, gostar de crianças. [...] o “peda”, do termo Pedagogia, vem do grego paidós que significa criança. Ora, o ensino dirige-se as crianças, e então quem ensina para crianças é pedagogo. E para ser pedagogo, ensinador de crianças, faz um curso de Pedagogia, isto é, um curso que forma professoras para ensinar crianças. (LIBÂNEO, 2011, p. 66). Segundo Libâneo (2011), existe no Brasil uma prática na formação de professores segundo a qual o pedagogo é alguém que ensina algo, levando a compreender que o curso de Pedagogia se dedica à formação de professores para as séries iniciais. Logo, esse mesmo pensamento concebe que a educação e o ensino dizem respeito às crianças. Assim, se o ensino se concentra nas crianças, quem ensina é pedagogo e, para isso, é preciso cursar Pedagogia. É importante destacar que o conceito de Pedagogia construído na história do Brasil não é o mesmo 40 adotado em outros países. Aqui, o nome pedagogia é utilizado para identificar o curso de formação de professores para as séries iniciais do Ensino Fundamental. No Brasil, em 1939, deu-se a origem do curso de Pedagogia, a partir do Decreto-Lei n. 1190/39. De início, a proposta era de um curso que se iniciava com o bacharelado, nos três primeiros anos. O bacharel, para alcançar o título de licenciado, teria que cursar as disciplinas Didática Geral e Didática Especial. Assim, o curso nasce com o objetivo de formar o pedagogo bacharel-técnico da educação e também com a possibilidade de formar o pedagogo professor licenciado. Em meados do ano de 1930, as faculdades de filosofia demonstraram uma inquietação no que se refere à formação de professores para a escola secundária, ou melhor, os cursos de licenciatura da época. Desse modo, grande parte dos cursos de licenciatura adere ao formato estabelecido nessa década, aplicando o modelo 3+1, onde as disciplinas relacionadas aos conteúdos específicos ocupavam três anos do curso e as de cunho pedagógico, apenas um (VAN-DAL; OLIVEIRA 2016). Esse formato de curso permaneceu até a aprovação da primeira Lei de Diretrizes e Bases, Lei 4024/61 (BRASIL, 1961), por meio da qual o Conselho Federal de Educação passou a definir currículos mínimos para diversos cursos, até mesmo para a Pedagogia. Apoiado nessa lei e no Parecer n. 251, aprovado em 1962, o curso passa a ser ofertado na modalidade bacharelado e/ou licenciatura, sendo orientado para quatro anos de duração. Após essa flexibilidade, permitiu-se que as disciplinas da licenciatura fossem cursadas de forma concomitante ao bacharelado. Consequentemente, nessa nova estrutura, deixava de vigorar o esquema 3+1, cuja proposta para o último ano estava dirigida ao cumprimento das disciplinas vinculadas às atividades da atuação do educador em áreas fora da escola - no ensino não formal, com possibilidade de atuação em empresas, associações, entidades culturais, vinculadas ao bacharelado. Relacionada à Reforma Universitária, a Lei n. 5540/68 ocasionou nova regulamentação para os cursos de Pedagogia, levada a efeito pelo Parecer n. 252 (BRASIL, 1969a), do Conselho Federal de Educação (CFE), que resultou na Resolução CFE n. 2 (BRASIL, 1969b), que fixou os conteúdos e o tempo do curso. Conforme essa resolução, a formação de docentes para o ensino normal e de especialistas para as atividades de orientação, administração, supervisão e inspeção no campo escolar se efetivaria através do curso de graduação em Pedagogia, tendo o grau de licenciado diversas modalidades de habilitação. Devido ao parecer, foi suprimida a distinção entre bacharelado e licenciatura, restringindo o curso de Pedagogia a um só título: Licenciado em Pedagogia (MAZZOTA, 1993). Ademais, conforme as Diretrizes Curriculares 41 Nacionais sobre o curso de Pedagogia (BRASIL, 2006a), as políticas de formação de professores deveriam garantir condições para que o profissional fosse qualificado para: [...] exercer funções de magistério na Educação Infantil e nos anos iniciais do Ensino Fundamental, nos cursos de Ensino Médio, na modalidade normal, de Educação profissional na área de serviços e apoio escolar e em outras áreas nas quais sejam previstos conhecimentos pedagógicos. (BRASIL, 2006a, p. 2). Nesse sentido, o curso de Licenciatura em Pedagogia destina-se à formação de professores para exercer funções específicas, de acordo com as diretrizes, de modo que o egresso deverá estar qualificado para desenvolver um extenso quadro de atividades em diversos contextos, níveis e modalidades de ensino. Destacaremos alguns dos incisos do art. 5º das DCNs, que versam sobre as competências do egresso: Ensinar Língua Portuguesa, Matemática, Ciências, História, Geografia, Artes, Educação Física, de forma interdisciplinar e adequada às diferentes fases do desenvolvimento humano; identificar problemas socioculturais e educacionais com postura investigativa, interativa e propositiva em face de realidades complexas, com vistas a contribuir para superação de exclusões sociais, étnico-raciais, econômicas, culturais, religiosas, políticas e outras; demonstrar consciência da diversidade, respeitando as diferenças de natureza ambiental-ecológica, étnico-racial, de gêneros, faixas geracionais, classes sociais, religiões, necessidades especiais, escolhas sexuais, entre outras. (BRASIL, 2006a, p. 2). A leitura desses incisos nos leva a pensar no amplo campo de atividades do pedagogo no exercício epistemológico da Pedagogia. Desse modo, o campo de atuação profissional que hoje se apresenta ao egresso dos atuais cursos de Pedagogia supera, e muito, o universo escolar e, ao mesmo tempo, explicita o complexo e ambíguo perfil exigido do profissional pedagogo, reafirmado pelas Diretrizes Curriculares Nacionais (PEDROSO, 2016). O pedagogo dispõe de um campo amplo de atuação, podendo exercer sua profissão como professor de Educação Infantil, professor dos anos iniciais do Ensino Fundamental e das disciplinas pedagógicas do curso normal nível médio, não esquecendo das organizações de sistemas e unidades escolares nas quais pode atuar. Além disso, as habilitações administrativas e as tarefas de orientação e supervisão escolar aparecem como possibilidade de formação a ser